AÇÃO COMUNICATIVA E JURISDIÇÃO: UMA CONTRIBUIÇÃO HABERMASIANA Genacéia da Silva Alberton Doutora em Direito e Desembargadora do TJRS. Numa época em que a insegurança abala a sociedade, em que o mundo se debate em guerras e corrupções, há um clamor generalizado pela aplicação de leis ao mesmo tempo em que aumenta a sensação de que a força da jurisdição estatal não é suficiente para trazer a pacificação social. É o momento de repensar o sentido da jurisdição. Não bastam teorias quando elas se mantêm no abstrato do mundo das idéias. Impõe-se, por isso, procurar a adequação das teorias à realidade, a racionalização dos fatos vividos e sentidos. Nesse sentido, faremos uma breve incursão na teoria do agir comunicativo de Habermas para demonstrar como ela pode trazer uma possibilidade de abordagem ao tema da jurisdição. A teoria da ação comunicativa na proposta de Jürgen Habermas não é uma metateoria, mas o princípio de uma teoria da sociedade1, teoria essa que dá fundamento a uma crítica da própria sociedade e possibilita estudos interdisciplinares2. Em decorrência, a racionalidade do agir comunicativo possibilita diferentes enfoques, um deles o do atuar da jurisdição. A racionalidade na perspectiva habermasiana não se dirige ao conhecimento ou à forma de aquisição de conhecimento, mas à forma como os sujeitos capazes de linguagem e de ação fazem uso desse conhecimento. Por isso, a sua atenção é dirigida à racionalidade imanente na prática comunicativa. Ela abrange um amplo espectro e remete às diversas formas de argumentação, às possibilidades de prosseguir a ação comunicativa com meios reflexivos e meios de gerar consenso. Tudo vai depender do desempenho do discurso dos sujeitos3. 1 2 3 HABERMAS. Teoría de la acción comunicativa, v. I. – Racionalidad de la acción y racionalización social. Op. cit., p. 9. Ibid., v. II, p. 562. Ibid., v. I, pp. 26-27. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. 85 O reconhecimento da comunicação entre o mundo dos fatos e a realização do direito, entre a vida e a validez da norma é aspecto que torna o pensamento habermasiano propício para o tratamento do tema jurisdição, que deverá refletir esse efetivo interagir das alterações dos fatos da vida no direito. Além disso, outro aspecto importante é que Habermas supera a filosofia do sujeito e por isso ele substitui a razão prática kantiana4 por uma razão comunicativa5, que se expressa na força da fala orientada ao entendimento6. Essa razão prática habermasiana, como ele próprio adverte, não tem seu centro no sujeito particular ou no macrossujeito estatal ou social, mas é o meio lingüístico pelo qual se concatenam as interações e as formas de vida se estruturam, tornando possível a comunicação7. Com isso, Habermas rechaça a crítica ao conhecimento com suporte em uma razão abstrata, para construir uma racionalidade com base na linguagem. Portanto, ao trabalharmos com a teoria habermasiana, estaremos voltados à ação discursiva da jurisdição. A razão comunicativa vem oferecer um fio condutor à reconstrução da trama de discursos formadores de opinião e preparadores da decisão8 presentes 4 5 6 7 8 86 A força da autonomia da vontade e a centralidade no sujeito são características marcantes na obra de Kant. O fundamento dos juízos é o próprio sujeito. Conclui Kant: “Duas coisas enchem o ânimo de crescente admiração e respeito, veneração sempre renovada quanto com mais freqüência e aplicação delas se ocupa a reflexão: por sobre mim o céu estrelado; em mim a lei moral. Ambas essas coisas não tenho necessidade de buscá-las e simplesmente supô-las como se fossem envoltas de obscuridade ou se encontrassem no domínio do transcendente, fora do meu horizonte; vejo-as diante de mim, coadunando-as de imediato com a consciência da minha existência” (KANT, Emanuel. Crítica da razão pura. 4. ed. São Paulo: Brasil Editora, 1959. p. 244). “... en Teoría de la acción comunicativa emprendí un camino distinto: el lugar de la razón práctica pasa a ocuparlo la razón comunicativa. […] Y esto es algo más que un cambio de etiqueta” [“… na Teoria da ação comunicativa empreendi um caminho distinto: em lugar da razão prática passa a ocupá-la a razão comunicativa. E isso é algo mais que uma alteração de etiqueta”.] (HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Op. cit., p. 65). HABERMAS, Jürgen. Racionalidad del entendimiento. Aclaraciones al concepto de racionalidad comunicativa desde la teoria de los actos da habla. In: Verdad y justificación: ensayos filosóficos. Madrid: Trotta, 2002. p. 107. “La razón comunicativa empieza distinguiéndose de la razón práctica porque ya no queda atribuida al actor particular o a un macrossujeto estatal-social. Es más bien el medio lingüístico, mediante el que se concatenan las interacciones y se estructuran las formas de vida, el que hace posible a la razón comunicativa” [“A razão comunicativa começa distinguindo-se da razão prática porque já não fica atribuída ao ator particular ou a um macrossujeito estatal-social. Melhor é o meio lingüístico, mediante o qual se concatenam as interações e se estruturam as formas de vida, o que faz possível a razão comunicativa”.] (HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Op. cit., p. 65). “... más bien ofrece un hilo conductor para la reconstrucción de esa trama de discursos formadores de opinión y preparadores de la decisión, en que está inserto el poder democrático ejercido en forma de derecho” [“... melhor oferece um fio condutor para a reconstrução dessa trama de discurso formadores de opinião e preparadores da decisão, em que está inserto o poder democrático exercido em forma de direito”.] (Ibid., p. 67). Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. no exercício da democracia. Em decorrência, a prática das decisões judiciais se apresenta como processo de racionalização, forma de comunicação articulada no Estado de Direito9, parte de um complexo mais amplo de racionalização dos fatos da vida. É possível afirmar, assim, que a tensão entre “faticidade” e “validez”10 refletese no sistema jurídico que encontra sua legitimidade na prática do discurso democrático, estabilizando-se pela integração social11 por meio da jurisdicização. Isso porque, para a compreensão dessa relação, a linguagem passa a ser o meio de incorporação da razão. A tensão entre faticidade e validez se introduz no modo de coordenação da ação comunicativa exatamente pela linguagem, tomando posturas de negação ou de afirmação em frente das pretensões de validez suscetíveis de críticas12 . Essa coordenação do agir comunicativo não se apresenta apenas nas relações intersubjetivas, mas na relação do agir do sujeito enquanto ente privado com a sua autonomia pública de cidadão. Habermas percebe a conexão interna entre Estado de Direito e democracia que se explica conceitualmente porque “las liberdades subjetivas de acción del sujeto de derecho privado y la autonomia pública del ciudadano se posibilitan reciprocamente”13 . A democracia, por sua vez, implica participação. A ação comunicativa orientada à participação na produção de normas leva à expectativa de que a produção de direito se realize na presunção de aceitabilidade das normas. Na 9 10 11 12 13 Sobre o tema Estado de Direito, escreve Canotilho: “Estado de Direito é um Estado ou uma forma de organização político-estadual cuja actividade é determinada e limitada pelo direito. [...] A forma que na nossa contemporaneidade se revela com uma das mais adequadas para colher esses princípios e valores de um Estado subordinado ao direito é a do Estado constitucional de direito democrático e social ambientalmente sustentado” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999. pp. 11 e 21). As expressões são usadas por Habermas e servem de título a uma de suas mais importantes obras de Direito, ou seja: Facticidad y validez. A obra foi traduzida para o português pela Biblioteca Tempo Universitário, em dois volumes, sob o título Direito e democracia entre facticidade e validade. “Con el concepto de acción comunicativa, que pone en juego al entendimiento lingüístico como mecanismo de coordinación de las acciones, reciben también las presuposiciones contrafáticas de los actores, los cuales han de orientar su acción por pretensiones de validez. […] En la integración social efectuada a través del derecho positivo esa tensión se estabiliza...” [“Com o conceito de ação comunicativa, que põe em jogo o entendimento lingüístico como mecanismo de coordenação de ações, recebem também as pressuposições contrafáticas dos atores, os quais hão de orientar sua ação por pretensões de validez. [...] Na integração social efetuada através do direito positivo, essa tensão se estabiliza...”.] (HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Op. cit., p. 79). Ibid., p. 70. [“... as liberdades subjetivas de ação do sujeito de direito privado e a autonomia pública do cidadão possibilitam-se reciprocamente”.] (Ibid., p. 652). Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. 87 tensão entre norma e realidade, o direito como mediação social apresenta sua força vinculante, mas não a elimina. A tensão permanece. Portanto, a reconstrução racional possibilita identificar a legitimidade da produção de direito e verificar em que medida o princípio do discurso pode fundamentar a administração de justiça e diferentes falas de solução de controvérsias. Adverte Habermas que é preciso uma adequada articulação da relação entre faticidade e validez porque, dependendo de qual posição se adote, haverá premissas distintas e inclusive estratégias teóricas diversas. Por isso, a teoria da ação comunicativa no âmbito da teoria do direito assume em seus conceitos básicos a tensão entre faticidade e validez. As pretensões de validez que um falante estabelece ao executar atos da fala se fundam em relações intersubjetivas, “têm a faticidade de fatos sociais”, expressão utilizada por Habermas (“tienen la facticidade de hechos sociales”). Nesse sentido de validez, Habermas distingue quatro classes de pretensões de validades: inteligibilidade, verdade, veracidade e retidão. A inteligibilidade não se dá se falante e ouvinte não dominam a mesma língua. Em tal caso será necessário um esforço hermenêutico para chegar a um esclarecimento do sentido. É necessário ter presente também que as constatações, afirmações, explicações implicam uma pretensão de verdade. Tal pretensão não tem razão de ser quando o estado de coisas não existe. Essa pretensão de verdade difere da pretensão de veracidade. Quanto a esse aspecto, note-se que todas as manifestações expressivas no sentido estrito (sentimentos, manifestações de vontade) implicam uma pretensão de veracidade. Diferem elas, por outro lado, das manifestações normativamente orientadas (mandatos, promessas) que implicam pretensão de retitude. Embora as pretensões possam se apresentar com caráter de validade, elas não serão legítimas se as normas que subjazem às manifestações não puderem justificar-se. Por isso destaca Habermas que a coerência do enunciado depende da prática de justificação. Embora a verdade não possa se reduzir à coerência e à asseverabilidade justificada, deve haver uma relação interna entre verdade e justificação14. Isso permite a Habermas manter a relação entre sociedade e razão, entre as restrições e as coerções na reprodução da vida social15. 14 15 88 HABERMAS, Jürgen. Verdad y justificación: ensayos filosóficos. Madrid: Trotta, 2002. p. 239). Para Habermas, toda a sociedade, como um plexo de vida articulado em termos de sentido, guarda uma relação imanente com a verdade. E explica: “Pues la realidad de las estructuras de sentido descansa en una peculiar facticidad de pretensiones de validez que en general se dan por cumplidas o desempeñadas. Pero las pretensiones de validez también pueden ponerse en cuestión. Pues tales Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. Identificada a articulação entre faticidade e validez no direito, impõe-se reconhecer na racionalidade do agir comunicativo a importância dos fatores que envolvem esse agir. Na visão habermasiana, a coordenação da ação comunicativa é orientada por valores, prática do consenso ou a ação é coordenada por interesses, gerando compromisso. Na prática da negociação, a conciliação tem como base necessária uma sociedade complexa. Nessa sociedade, a coerção, caracterizada pela possibilidade de sanção, não pode ser o elemento condutor do agir social quando em conflito. Por isso, embora justificada a coercitividade do direito, procura-se o privilégio do consenso e da inclusão para legitimar as soluções de controvérsias. Releve-se que para Habermas a competência comunicativa se refere não só à capacidade de falantes e ouvintes produzirem sentenças e se entenderem por meio delas, mas aos modos de comunicação e conexão com o mundo externo. Portanto, Habermas não trabalha com a linguagem como faria um lingüista porque vê a linguagem enquanto prática social16. Aliás, Habermas distingue a ação comunicativa da ação estrategicamente mediada lingüisticamente. Destaca que na ação comunicativa os participantes perseguem com seus atos da fala fins ilocucionários17. O objetivo que o falante 16 17 pretensiones no pueden menos que suponer que tienen la razón de su parte, y tal legitimidad puede problematizarse, y confirmarse o rechazarse. Ciertamente que en todo ello, de “verdad” sólo puede hablarse en un sentido muy lato, justo en el sentido de la legitimidad de una pretensión, que puede cumplirse o verse defraudada”. [“Pois a realidade das estruturas de sentido descansa em uma peculiar faticidade de pretensões de validez que em geral se dão por cumpridas ou desempenhadas. Mas as pretensões de validez também podem ser postas em questão. Mas de tais pretensões não se podem supor menos do que tenham razão, e tal legitimidade pode problematizar-se e confirmar-se ou rechaçar-se. Certamente que, em todo ele, de “verdade” só se pode falar em um sentido muito lato, justamente no sentido da legitimidade de uma pretensão, que pode cumprir-se ou ver-se defraudada”] (HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios prévios. 5. ed. Madrid: Cátedra, 2001. pp. 41-42). Habermas aponta a distinção de Austin entre ato locucionário e perlocucionário, mas para ele o entendimento somente tem base em atos ilocucionários. Quanto aos efeitos perlocucionários, escreve: “Los efectos perlocucionarios, lo mismo que los resultados de acciones teleológicas en general, pueden describirse como estados del mundo producidos por intervenciones en el mundo. Los éxitos ilocucionarios, por el contrario, se consiguen en un plano de relaciones interpersonales, en el que los participantes en la comunicación se entienden entre sí sobre algo en el mundo”. [“Os efeitos perlocucionários, o mesmo que os resultados das ações teleológicas em geral, podem descreverse como estados do mundo produzidos por intervenções no mundo. Os êxitos ilocucionários, pelo contrário, se conseguem em um plano de relações interpessoais, em que os participantes na comunicação se entendem entre si sobre algo no mundo...”.] (Ibid., v. I, p. 376). Segundo o verbete “ilocucionário”, que consta no Dicionário de Lingüística e Fonética, de David Crystal: “termo usado na teoria dos atos da fala com referência a um ato realizado pelo falante por causa de seu enunciado. São exemplos de atos ilocucionários (ou força ilocucionária) as promessas, as ordens, os pedidos...” (CRYSTAL, David. Dicionário de Lingüística e Fonética. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. p. 143). Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. 89 persegue deriva do próprio significado do que diz. Sua intenção se esgota em que o ouvinte entenda o conteúdo daquilo que ele manifesta. Difere, assim, das interações em que pelo menos um dos participantes pretende provocar efeitos perlocucionários18 em seu interlocutor. Nessas condições ocorre o que Habermas denomina de ação estrategicamente mediada pela linguagem. Assim, a ação comunicativa se distingue das interações do tipo estratégico porque todos os participantes perseguem fins ilocucionários com o propósito de chegar a um acordo que sirva de base à coordenação de planos de ação 19. Destaque-se que, em decorrência da importância que Habermas apresenta à ação comunicativa, o princípio do discurso, ao tomar forma jurídica, se transforma, sem dúvida, em princípio de democracia, revelando a racionalidade do direito no contexto do Estado. No Estado, a insuficiência do modelo liberal de jurisdição que se apresenta como atribuição do poder soberano do Estado de dizer o direito, visando precipuamente à solução de conflitos, nos conduz ao repensar da jurisdição. Questionamos a permanência de uma “jurisdição-soberania”. Na linha do modelo habermasiano do agir comunicativo, é viável a superação da jurisdição-soberania, ou seja, a jurisdição centrada apenas no poder soberano do Estado, numa relação de sujeito-objeto, decisão do Estado-Juiz que declarará quem será o ganhador ou o perdedor para irmos a busca de um modelo de “jurisdição-participação”. A proposta habermasiana da teoria discursiva do direito apresenta sua aplicabilidade à jurisdição. Isso porque temos na teoria do agir comunicativo uma efetiva inter-relação entre o direito e as relações do mundo dos fatos da sociedade civil. A validez se resolve na tensão entre faticidade social e legitimidade racional ou comunicativa que se realiza na participação democrática no discurso comunicativo dos atos decisórios. Portanto, é possível afirmar que a racionalização do direito que se realiza pelo exercício da jurisdição encontra sua legitimidade no discurso democrático que somente se efetiva com o atuar comunicativo de todos os sujeitos da relação processual em exame. Esse atuar, todavia, fora do Estado se apresenta com déficit democrático, pois oferece as mesmas limitações da jurisdição interna, ou seja, a 18 19 90 “Perlocucionário. Termo usado na teoria dos atos da fala para indicar um ato desempenhado quando um enunciado atinge um efeito específico no comportamento, na crença, nos sentimentos, etc. de um ouvinte. São exemplos de atos perlocucionários (ou efeitos perlocucionários) os enunciados que amedrontam, insultam, ridicularizam, convencem, etc.” (Ibid., p. 200). HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Op. cit., v. I, p. 379. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. resistência à participação dos sujeitos, mantendo-se no modelo da jurisdiçãosoberania. Foram muitas as transformações do Estado e do próprio sentido de atuação dos operadores no Estado. O Estado como organização social e política tende a se refundar, adaptando-se às transformações decorrentes da mundialização. O Estado se mantém não apenas na sua relação de soberania em frente do outro Estado, mas como entidade política que necessariamente não está isolada e somente se realiza com os outros. Com isso, a supremacia da soberania cede espaço ao princípio da cooperação e o reconhecimento mútuo de possibilidade de atuação legítima, imperativo de justiça e segurança jurídica. O foco de atenção não é mais apenas o indivíduo com os seus interesses e seus conflitos, mas o indivíduo enquanto membro participante de um contexto social que não se limita ao território do Estado-Nação. Logo, o mero poder de soberania estatal não é eixo suficiente para assegurar o movimento de pacificação de conflitos judicializados. Há um deslocamento para o cidadão, influenciando e sendo influenciado, sendo responsável por si, pela evolução social, mundial e cobrando também o direito de ver respeitados seus direitos fundamentais, coresponsável pela jurisdição. Aí, cada vez mais, a importância de princípios como reguladores da atuação jurisdicional. É a co-responsabilidade pelo resultado da jurisdição que se cobra dos participantes da “jurisdição-participação”. É certo que, na relação nacional, internacional e supranacional, a mera harmonização legislativa não é suficiente. Necessário seria a harmonização de direitos sociais. Há que se ter presente a proteção ao mínimo social, e nesse mínimo está o direito à não-exclusão. Essa não-exclusão gera, necessariamente, o direito a participar, a integrar relações que, quando estão em nível de conflito, exigindo uma solução, conduzem a um atuar participativo das partes no espaço público decisório. É necessário alterar o modelo perde-ganha que exige do Estado a jurisdiçãosoberania, a busca da certeza por intermédio da sentença judicial. É preciso conviver com a diferença, encontrar caminhos de consenso. Precisamos ter aptidão para aceitar o desafio da mudança. A jurisdição-soberania, direcionada precipuamente a declarar o direito aplicável à solução de conflitos, deficitária de legitimidade democrática, dá espaço à jurisdição-participação. No plano da jurisdição no Estado, o foco se desloca da jurisdição centrada no juiz para a jurisdição realizada por outros sujeitos que poderão encontrar num espaço público condições adequadas à realização do entendimento. Por isso são Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. 91 bem-vindos os projetos legislativos que visam a normatizar as possibilidades de conciliação/mediação. Há de se desenvolver uma cultura de menor beligerância. Colocamos, pois, a conciliação, mediação e arbitragem como possibilidade efetiva do exercício da jurisdição que passa a ser realizada por diferentes atores e não apenas pelo juiz.20 Não é possível buscar a hegemonia total, a unificação que vai contra a convivência com a diferença. A harmonização21 é politicamente mais aceitável quando as divergências são mais fortes, pois ela se contenta com uma “aproximação” dos sistemas entre si, sem, no entanto, suprimir todas as diferenças22 . Nesse movimento pendular, altera-se a metodologia da jurisdição. Vemos, de um lado, a busca da descentralização da jurisdição da pessoa do Estado-Juiz, o que denominamos de jurisdição-soberania, para propor, via teoria discursiva habermasiana, a “jurisdição-participação” voltada ao consenso. Na medida em que Habermas busca na razão comunicativa a interpenetração dos fatos do mundo, ou seja, dos fatos da vida social com o normatizado, a intersubjetividade das pretensões à validez é mediatizada pela linguagem. Aí a importância do espaço democrático, pois nele é possível a realização do discurso. Na busca da consensualidade irá se processar e se legitimar a decisão. 20 21 22 92 A idéia é permitir que essas formas de tratamento de conflitos sejam realizados no espaço estatal público com a atuação de operadores em momento prévio à propositura da demanda judicial. Lembre-se ainda da Organização para Harmonização do Direito Econômico na África (OHADA) e, no plano mundial, o Órgão de Regulação dos Conflitos (ORD), no interior da Organização Mundial do Comércio (OMC), referidos por DELMAS-MARTY. Três desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 91. Nesse sentido, ver as colocações de DELMAS-MARTY, op. cit., p. 117. Sobre o problema da harmonização e o mito de legislação uniforme na Europa, ver PERLINGIERI, Pietro. Diritto comunitario e legalità costituzionale: per un sistema italo-comunitario delle fonti. 3. ed. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2000. pp. 2-3. Sobre os trabalhos de harmonização, ver Procedural law on the threshold of a new millennium, publicado pelo Center of Legal Competence, em 2002; GRINOVER, Ada Pellegrini. Lineamentos gerais do novo processo penal na América Latina: Argentina, Brasil e o Código Modelo para Ibero-América. In: ARAÚJO Jr. (Org.). Ciência e política criminal em honra de Heleno Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1992. pp. 33-55; BIDART, Adolfo Gelsi et al. Anteproyecto de Codigo Procesal Civil modelo para Iberoamerica: exposición de motivos. Revista de Processo, n. 51, pp.109-163, jul./set./1988; CALMON FILHO, Petrônio; BELTRAME, Adriana (Orgs.). Temas atuais de Direito Processual Ibero-Americano. Jornadas Ibero-Americanas de Direito Processual (1998: Brasília, DF). Rio de Janeiro: Forense, 1998. No sentido de buscar normas transnacionais, ver HAZARD JR., Geoffrey C.; TARUFFO, Michele. Normas transnacionais de processo civil. Revista dos Mestrandos em Direito Econômico da UFBA, n. 8, pp. 54-77, jan./dez./2000; GIDI, Antonio. Normas transnacionais de processo civil. Revista de Processo, n. 102, pp.185-196, abr./jun./2001; TARZIA, Giuseppe. Harmonisation ou unification transnationale de la procedure civile. Rivista di Diritto Internazionale Privato e Processuale, n. 54, pp. 869-884, 2001. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. Ao poder de decisão que ocorre por meio do poder soberano do Estado, Habermas direciona a capacidade de argumentação visando ao consenso. Cumpre apenas apontar se efetivamente não há uma utopia na proposta habermasiana. A resposta é negativa, na medida em que não há uma recusa do poder. O que Habermas procura é legitimar o poder, o que somente ocorre pela participação decisória. Por outro lado, há de se convir que a visão habermasiana encontra dificuldade de aplicação se mantivermos o modelo do conflito na relação perdeganha e na busca da certeza. Esses modelos-padrão devem ser superados ou, pelo menos, minimizados se pretendermos a realização de uma racionalização do direito via ação comunicativa legitimada pela participação e validada pelo entendimento. Na visão habermasiana, podemos dizer que a decisão participativa se legitima quando os destinatários se sentem autores racionais daquilo que ficou estabelecido. Por outro lado, toda a ação lingüística é orientada para o entendimento. Quando o indivíduo participa, deixa de ser subordinado, de ser tutelado, e passa a ser participante, co-responsável pelo que for decidido. É insuficiente identificar as garantias/princípios constitucionais. A preservação de direitos fundamentais23 é tarefa que cabe à jurisdição na sua concretização. Ressalte-se que no processo, instrumento de solução de conflitos sociais, método de instrumentalização das demandas, teremos que considerar a dimensão social no sentido de permitir ao sem-voz e sem-vez a possibilidade de ser ouvido no processo e dele participar. Não basta, pois, ter na Constituição a possibilidade de acesso à Justiça, mas deve-se, sim, permitir o acesso e a participação na realização da jurisdição, 23 Bem apontam Comoglio, Ferri e Taruffo: “La funzione istituzionale di soluzione dei conflitti, che si denomina giurisdizione, assume un ruolo fondamentale nell’assetto moderno dell’organizzazione statuale. Essa si consolida sino a costituire uno dei poteri fondamentali dello Stato, ad esempio nella dottrina della divisione dei poteri, e rappresenta una delle funzioni che lo Stato svolge in favore dei cittadini. Inoltre essa implica uma complessa struttura organizzativa di ‘uffici’ che concretamente se ne occupano. Nei sistemi costituzionali moderni, poi, essa è anche il ‘luogo’ ove si collocano e si attuano valori giurico-politico fondamentali ...”. [A função institucional de soluções dos conflitos, que se denomina jurisdição, assume um papel fundamental na ordem moderna das organizações estaduais. Essa se consolida se não a constituir um dos poderes fundamentais do Estado, por exemplo na doutrina da divisão dos poderes e representa uma das funções do Estado que se realiza em favor dos cidadãos. Por outro lado, essa implica uma complexa estrutura organizativa de ‘ofícios’ do qual concretamente se ocupam. Nos sistemas constitucionais modernos, pois, esta é ainda um ‘lugar’ onde se colocam e atuam os valores jurídico-políticos fundamentais”.] (COMOGLIO, Luigi Paolo; FERRI, Conrado; TARUFFO, Michele. Lezioni sul processo civile. Bologna: Mulino, 1998. p. 14). Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. 93 participação essa que afasta do juiz o papel de mero aplicador da norma positivada, mas o faz atuante e sociologicamente responsável24 . Com a jurisdição-participação, temos a superação da mera lógica da subsunção pela prevalência da lógica discursiva. Em se tratando da jurisdição, o discurso legitima a produção decisória pela participação em busca do consenso. A limitação que se pode apontar à teoria habermasiana é que a produção da decisão se faz com base no melhor argumento. Para que isso ocorra, o ambiente deve estar livre de coações internas ou externas. Por esse motivo, o espaço adequado é o democrático. Entretanto, ao utilizar a linguagem como medium para veicular os argumentos, o consenso não será uma proposta sempre alcançada. Cumpre intensificar estratégias que priorizem uma jurisdição-participação sobre a jurisdição-soberania, aqui entendida como a jurisdição centrada no juiz como órgão do Estado com poder decisório. A democracia, pela ausência de arbítrio e de pressão limitadora à manifestação de pensamento, permite o reconhecimento da diferença, a discussão, a participação, a comunicação efetiva. As estratégias possíveis a essa realização estão no incentivo ao consenso. No Estado Democrático de Direito, mais do que meras correções de desigualdades, busca-se a participação nessa transformação social. Não temos apenas uma adaptação melhorada das condições sociais de existência, mas um conteúdo transformador da realidade, sendo a jurisdição a possibilidade dessa transformação. Admite-se a dificuldade em afastar a jurisdição do modelo substitutivo tradicional chiovendiano, que, embora criticado, ainda permanece no cerne da atividade jurisdicional na medida em que o tratamento da controvérsia é direcionado pelo e para o juiz. Não há, porém, como admitir uma atividade substitutiva quando o próprio cidadão é chamado ao espaço público estatal para participar no realizar da jurisdição. A realidade nos oferece as possibilidades que precisam ser trabalhadas. O que pretendemos é revelar o que está “empiricamente dado”25 . 24 25 94 Sobre a visão moderna de contraditório e a idéia do juiz participativo, ver BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os elementos objetivos da demanda examinados à luz do contraditório. In: TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos (Orgs.). Causa de pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. pp.13-52. Afirma Bedaque: “Não mais satisfaz a idéia do juiz inerte e neutro, alheio ao ‘dramma della competizione’. Essa neutralidade passiva, supostamente garantidora da imparcialidade, não corresponde aos anseios por uma Justiça efetiva, que propicie acesso efetivo à ordem jurídica justa” (p. 21). SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. Op. cit., p. 23. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. A jurisdição não é um mero poder, mas um poder-direito social pelo qual não se busca apenas a preservação das normas que cada ordenamento oferece, mas a preservação de princípios e direitos fundamentais expostos na Carta Constitucional que conduzam à inclusão26 . Não estamos mais no momento propício à formulação de teorias gerais. Entretanto, sob a ótica de um direito social, a jurisdição, numa visão prospectiva, poderia ser a base da construção processual. Processo e ação são instrumento e realização da jurisdição, motivo pelo qual, em vez de falar-se em uma teoria geral do processo, que oferece dificuldades considerando as especificidades de cada um dos ramos da processualística, teríamos uma “teoria geral” da jurisdição, com base em valores fundamentais para a preservação da vida em sociedade, permitindo a interdisciplinariedade necessária à realização da pacificação social. A jurisdição é reflexo do Estado e, ao mesmo tempo, modulador dele; a jurisdição é mais uma faceta do direito fundamental do homem em sociedade. Na medida em que não se confunde direito fundamental com direito natural, mas, sim, com direito social de inclusão indispensável ao desenvolvimento do homem, a jurisdição pode ser vista como um direito fundamental social. A jurisdição revela um compromisso social de exercício de cidadania e de inclusão no plano nacional, internacional e supranacional. A crise dos cidadãos é reflexo da crise do próprio Estado, que não atende às necessidades de seus nacionais; a crise de um Estado reflete nos demais. A pujança de um deve representar o desenvolvimento dos demais, motivo pelo qual devem ser repudiadas as condutas imperialistas e discriminatórias. Aí se inclui a questão dos imigrantes, dos sem-terra, das discriminações religiosas e étnicas, valorizando-se, nesse aspecto, a ênfase à preservação de medidas que visem à garantia da dignidade humana. Todos têm direito ao desenvolvimento enquanto membros da espécie humana. O respeito às diferenças somente se admite quando não é elemento de subterfúgio à prepotência. Na falta de legislação ou de medida administrativa, resta à jurisdição propiciar caminhos garantidores dessa dignidade. É a jurisdição vista na sua funcionalidade, a quem recai o poder-dever de garantia à realização de direitos fundamentais. Habermas veio dar o suporte teórico à jurisdição-participação enquanto ato de comunicação, comunicação dos sujeitos sociais, tendo como espaço adequado de atuação o Estado Democrático. O espaço da jurisdição, na visão habermasiana, 26 Sobre a importância dos direitos fundamentais como limites do poder constituinte segundo Habermas, ver CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., pp. 1310-1311. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. 95 somente poderá ser o democrático porque é o que permite que os atores se comuniquem sem pressão, bem como haja uma participação racional no processo de entendimento. Afastamo-nos, assim, de uma jurisdição-soberania em busca de uma jurisdição participativa ou, simplesmente, uma jurisdição-participação. Sem negar a soberania ou a força formadora do Estado, desloca-se o eixo de atenção do poder estatal do Estado-Juiz para o poder da comunidade na formação de decisões na perspectiva da jurisdição-participação. A jurisdição é histórica, e, portanto, deve se adequar ao Estado em que ela se realiza. Assim, no Estado Democrático de Direito, quando passamos da jurisdição-soberania para uma jurisdição-participação, estamos apontando, com base na matriz habermasiana, para uma jurisdição que supera o modelo da jurisdição conflitual que busca pelo processo a solução de conflitos. Há, sim, pela participação dos sujeitos da relação, uma busca de pacificação pela coordenação do agir comunicativo, via entendimento, em prol do consenso. Os sujeitos são coformadores do decidido. Portanto, a jurisdição-participação consolida a democracia, concretizando-a pela utilização de espaço adequado de participação, aproximando o discurso do direito do mundo dos fatos da vida. Se o consenso não for possível, pelo menos terá o julgador, pelo agir comunicativo, um processo qualificado pela participação, reconhecendo elementos do mundo dos fatos e da vida dos sujeitos em conflito, numa fusão de horizontes capaz de orientar o resultado via sentença. Assim, a jurisdição estará tornando possível a realização do princípio democrático e permitirá que o espaço público onde ela se realize seja um efetivo espaço de cidadania. O movimento pendular da jurisdição abrange, paulatinamente, maior número de destinatários, maior extensão de espaço de atuação e maior extensão de direitos que têm sua base nos princípios e nos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Temos uma realidade a demonstrar a necessidade de uma revisão crítica de superação do modelo conflitual de jurisdição. Impõe-se fazer substancialmente legítima a jurisdição pela participação democrática dos atores processuais visando à pacificação das controvérsias, concretizando, via jurisdição, o Estado Democrático de Direito. Não se propõe uma utopia, mas a realização de um projeto de jurisdição relacionado com a sociedade, jurisdição legitimada no discurso democrático dos sujeitos agentes dessa jurisdição. A proposta é dar espaço a agentes de conciliação e mediação em busca de solução consensual, assim como admitir árbitros voluntários que, no espaço público 96 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. estatal, possam dar um tratamento ao conflito com celeridade, informalidade e menor custo. Seria a jurisdição realizada num espaço público, com força vinculativa, mantida a dimensão da imparcialidade. A orientação dos grupos de mediação pode minimizar o impacto dos litígios, com a participação ativa da sociedade na tarefa do exercício de pacificação como exercício de cidadania, possibilitando que o Estado venha garantir o acesso à jurisdição, legitimando a proposta social e democrática. A mediação como pressuposto procedimental para a iniciativa judicial, com grupos especializados por matéria, é uma alternativa viável e que se coloca de lege ferenda. A formação de grupos de mediação, de caráter interdisciplinar, vai ao encontro da proposta de uma ação racionalmente comunicativa, pois permite a participação ativa da sociedade na tarefa de pacificação como exercício de cidadania. Assim, a mediação pode ser colocada como pressuposto de admissibilidade ou, enquanto não houver legislação nesse sentido, como faculdade a ser exercida em centros de mediação. O que usualmente são chamadas de alternativas à jurisdição trazida para o espaço público jurisdicional se apresenta como jurisdição, forma privilegiada de minimização de conflitos sociais. E, para que isso se efetive, propõe-se que haja espaço institucionalizado de pacificação de controvérsias descentralizados do juiz. É a jurisdição fortalecendo mecanismos de consenso sem ingenuidade, mas com a convicção de que a participação no espaço decisório legitima a efetiva inclusão do cidadão. Afirmamos, do ponto de vista do cidadão, a jurisdição como um direito social fundamental. Em face da transformação do Estado, da crise da soberania e da participação como legitimadora do agir comunicativo, a jurisdição se apresenta como poder-dever social de garantir, com força vinculativa, a realização do projeto constitucional, favorecendo a inclusão social, enquanto possibilidade de participação no processo decisório, tendo como espaço favorável o democrático. Como conseqüência, é por meio da jurisdição que se afirma o projeto do próprio Estado preconizado na Carta Constitucional, e, por isso, por meio dela deve ser propiciada a inclusão, que passa a ser um exercício de cidadania, com a vantagem que permite a atuação por princípios, tornando o Judiciário responsável pelo projeto de mudanças sociais. O sentido atual da jurisdição quebra os grilhões da limitação da soberania e dá abertura a diferentes espaços de reflexão. Assim, no plano da teoria do Estado, a jurisdição não fica adstrita à idéia de um poder jurisdicional que visa precipuamente Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 85-102, jan./dez./2004. 97 à aplicação das disposições normativas, mas um poder voltado para a realização do projeto do próprio Estado e, portanto, socialmente vinculado. É a jurisdição-participação, jurisdição não-excludente no espaço democrático, superando a tensão entre os fatos da vida e o direito por meio da ação comunicativa em busca do consenso, que se apresenta como uma proposta possível, propiciando o fortalecimento da sociedade civil co-responsável na tarefa de consecução do desenvolvimento com paz. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVAREZ, Daniel González. La conciliación penal em Iberoamérica: la justicia penal consensual. In: Temas atuais do Direito Processual IberoAmericano: XVI Jornadas Ibero-Americanas de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense, 1998. pp. 405-445. ALVIM, J. E. Carreira. Tratado geral da arbitragem. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. ANDRIGHI, Fátima Nancy. A arbitragem: solução alternativa de conflitos. Revista da Escola Superior da Magistratura do Distrito Federal, n. 2, pp. 149173, maio/ago./1996. ARAGÃO, Lucia. Razão comunicativa e teoria social crítica em Jürgen Habermas. 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