A TRIBUTAÇÃO PELO ICMS DAS PERDAS NÃO-TÉCNICAS/COMERCIAIS DE ENERGIA ELÉTRICA Luiz Gustavo A. S. Bichara Sócio de Bichara, Barata & Costa Advogados, Diretor da Associação Brasileira de Direito Financeiro – ABDF, Presidente da Comissão da Justiça Federal da OAB-RJ e Vice-Presidente da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB-RJ. Thiago Giglio Abrantes da Silva Advogado de Bichara, Barata & Costa Advogados. 1. INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 autoriza os Estados e o Distrito Federal a tributarem a energia elétrica pelo ICMS, que substituiu o antigo Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE), de Competência da União Federal. Como se pode imaginar, a tributação do fornecimento de energia elétrica à semelhança das demais mercadorias iguala o tratamento tributário de realidades diferentes, haja vista que tal fornecimento configura situação diversa daquela relativa à transferência de bens tangíveis, em que os mesmo saem de determinado lugar, onde se encontravam armazenados à espera do comprador, e entram noutro, onde continuam expostos à venda até que apareçam interessados em sua aquisição. A especificidade da mercadoria energia elétrica e a possibilidade de perdas durante o seu transporte até o consumidor final acabam por gerar interpretações incongruentes e ilegítimas no que tange à incidência do imposto estadual. Inicialmente, vale esclarecer que, ao longo da cadeia de geração (produção) → transmissão → distribuição → comercialização, parte da energia elétrica em circulação sofre perdas, classificadas como técnicas e não-técnicas ou comerciais. Muito em resumo, as perdas técnicas são aquelas que ocorrem, na maioria das vezes, no suprimento de energia elétrica das geradoras para as distribuidoras e são inerentes ao próprio transporte de energia pelas redes. Por sua vez, as perdas não-técnicas ou comerciais, objeto do presente estudo, verificam-se no fornecimento de energia aos consumidores finais e são causadas normalmente por problemas relacionados aos medidores de energia, à fraude e ao furto de energia (comumente conhecido como “gato”). Neste último, a empresa distribuidora de energia, através de sua rede, coloca à disposição de seus clientes a energia que estes desejam consumir em seus cabos de transmissão (fios). Dessa forma, valendo-se dos mais variados artifícios, os infratores desviam a energia ali “contida” para os também mais diversos destinos, sejam seus estabelecimentos comerciais, sejam suas residências, impedindo que a mercadoria comercializada pela distribuidora circule e chegue a seu verdadeiro consumidor final. É diante dessa realidade que os Fiscos Estaduais têm lavrado uma série de autos de infração visando à cobrança do ICMS sobre as perdas não-técnicas/comerciais de energia elétrica. Entretanto, a nosso ver, há razões concretas que impedem a cobrança da exação pretendida pela Administração Fazendária, como se analisará a seguir. 2. AUSÊNCIA DE FATO GERADOR DO ICMS Uma das modalidades de perdas comerciais mais recorrentes (e difíceis de serem combatidas) é o furto de energia elétrica, que se encontra tipificado pelo art. 155, §3º, do Código Penal1, e é consumado quando a energia se encontra ainda nas redes de distribuição e, portanto, “no interior” das dependências da empresa distribuidora, em etapa anterior à saída da mesma aos consumidores regulares. Nesse contexto, a questão que se coloca é saber se, nos casos das perdas experimentadas pela empresa distribuidora, a mesma fica obrigada a estornar o valor do imposto de que tenha se creditado por ocasião da entrada da energia elétrica em seu estabelecimento. Dado o modus operandi da atividade delitiva, a resposta mostra-se evidentemente negativa. 1 “Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. (...) § 3º - Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.” (grifou-se) Isso porque, como se sabe, nos termos dos arts. 155, II, da Constituição Federal, c/c 12, I, da Lei Complementar nº 87/96, o fato gerador do ICMS é a saída de mercadoria do estabelecimento do respectivo contribuinte, o que absolutamente não se verifica na hipótese em estudo. Relembre-se o permissivo constitucional (confirmado pela mencionada Lei Complementar2): “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...) II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;” Como visto, o furto da energia comercializada pela distribuidora ocorre quando esta ainda se encontra em suas linhas de transmissão, simplesmente posta à disposição de seus efetivos destinatários finais. Assim, verificando-se em etapa anterior à circulação e à venda aos consumidores, vê-se que nessa “operação” não há a “saída” eleita pela legislação como ensejadora da incidência do ICMS. É dizer, é como se determinada mercadoria fosse furtada antes de sua saída do estabelecimento vendedor. Ora, nem o mais fanático dos fiscais alegaria incidir ICMS se uma loja fosse assaltada e suas mercadorias furtadas, por exemplo....Mas é precisamente diante de uma hipótese idêntica a esta que nos encontramos. Além disso, conforme dispõe o § 9 do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)3, as empresas distribuidoras de energia elétrica são as responsáveis, por 2 “Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento: I - da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular;” (grifou-se) 3 “Art. 34. O sistema tributário nacional entrará em vigor a partir do primeiro dia do quinto mês seguinte ao da promulgação da Constituição, mantido, até então, o da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda nº 1, de 1969, e pelas posteriores. (...) § 9º - Até que lei complementar disponha sobre a matéria, as empresas distribuidoras de energia elétrica, na condição de contribuintes ou de substitutos tributários, serão as responsáveis, por ocasião da saída do produto de seus estabelecimentos, ainda que destinado a outra unidade da Federação, pelo pagamento do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias incidente sobre energia elétrica, desde a produção ou importação até a última operação, CALCULADO O IMPOSTO SOBRE O PREÇO ENTÃO PRATICADO NA OPERAÇÃO FINAL e assegurado seu recolhimento ao Estado ou ao Distrito Federal, conforme o local onde deva ocorrer essa operação.” (grifou-se) ocasião da saída do produto de seus estabelecimentos, pelo pagamento do ICMS, o qual é calculado sobre o PREÇO então praticado na operação final. Levando-se em conta que a energia perdida não é vendida pela distribuidora, mas dela furtada, como se poderia calcular o ICMS sobre o eventual preço? Quem furta nada paga! Portanto, parece-nos incontestável que tais perdas, enquanto decorrentes de furto realizado no interior do estabelecimento jamais poderão ser tratadas ou equiparadas ao fato gerador do ICMS, por inadequação à hipótese legal prevista (saída de mercadoria). 3. INCLUSÃO DO MONTANTE REFERENTE ÀS PERDAS NA TARIFA DE ENERGIA ELÉTRICA Outro ponto que merece destaque diz respeito ao fato de o montante estimado das perdas comerciais estar embutido na composição do custo tarifário (custo de produção), justamente para que a distribuidora de energia possa se recuperar, quando do recebimento do preço final, de despesas incorridas de modo independente de sua vontade. Nesse contexto, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL editou a Resolução n° 166/2005, que estabelece os procedimentos para o cálculo da tarifa de uso dos sistemas de distribuição (TUSD) e da tarifa de energia elétrica (TE). Após conceituar de maneira rigorosamente técnica e minuciosa as tarifas de energia (TE) e as tarifas de uso dos sistemas de distribuição de energia elétrica (TUSD), a referida Resolução explicitou claramente os componentes das TUSD, nos seguintes termos: Art. 2º Para os fins e efeitos desta Resolução são adotados os seguintes termos e respectivos conceitos: (...) V – Componentes da TUSD: valores que formam a tarifa de uso dos sistemas de distribuição, relativos a: a) serviço de transmissão de energia elétrica, na forma da TUSD – Fio A; b) serviço de distribuição de energia elétrica, na forma da TUSD – Fio B; c) encargos do próprio sistema de distribuição, na forma da TUSD – Encargos do Serviço de Distribuição; d) perdas elétricas técnicas e não técnicas, respectivamente, na forma TUSD – Perdas Técnicas e TUSD – Perdas Não Técnicas;” (grifou-se) Podemos constatar, assim, que tanto as perdas técnicas quanto as perdas comercias (nãotécnicas) encontram-se contempladas na composição dos valores pagos pelos consumidores em razão do uso dos sistemas de distribuição de energia. A base para o cálculo do ICMS no fornecimento de energia elétrica é justamente a tarifa vigente por ocasião do faturamento ao consumidor final. Como no preço final estão inseridas as estimativas de perdas comerciais, estas já são consideradas para fins de incidência do ICMS. Por isso, não soa coerente admitir eventual pretensão de tributação isolada de tais valores. Ressalte-se, também, que quando constatada fraude ou erro no consumo de energia (perda comercial) e a distribuidora adquire o direito de recuperar o montante referente ao consumo que não havia sido faturado, há incidência de ICMS no valor que é recuperado. Logo, chancelar a tributação isolada da perda de energia elétrica seria como admitir que, quando tal perda for recuperada, haverá uma dupla incidência da exação, prática vedada pelo ordenamento jurídico pátrio. Cumpre esclarecer que não se trata de reconhecer que as perdas não-técnicas de energia elétrica devam ser tributadas e por esse motivo estariam incluídas na tarifa referente ao fornecimento. Na verdade, a consideração dos valores estimados das perdas na composição das tarifas deve ser interpretada como uma forma de assegurar o equilíbrio econômico financeiro do contrato de concessão e, por isso, é reconhecido como um custo de produção. A questão foi tratada com precisão pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo por ocasião do julgamento do recurso de apelação nº 0013820-78.2010.8.26.0053, cuja ementa transcrevemos abaixo: “ICMS - Energia elétrica - Inadmissibilidade da incidência sobre perdas comerciais, decorrentes de desvios, furtos (gatos) e fraudes - Apenas com a tradição da energia comercializada, com a operação final, consistente na entrega ao consumidor, é que nasce a obrigação tributária - O ICMS deve, assim, incidir sobre o valor da energia elétrica efetivamente consumida, sem que a desviada ou furtada possa ser tributada, mesmo porque a Aneel já inclui na conta de luz o valor dessas perdas - Ação procedente Recursos não providos.”4 (grifou-se) A esse respeito, veja-se trecho do preciso voto lançado pelo Exmo. Desembargador Urbano Ruiz no precedente acima destacado: “O impetrante, Sindicato da Indústria de Energia do Estado de São Paulo SIESP pretende obstar a incidência de ICMS sobre as chamadas “perdas comerciais”. (...) Assim, de rigor que, para o efeito de cálculo de ICMS sobre transmissão de energia elétrica, seja considerada apenas a energia elétrica efetivamente entregue e consumida, tendo seu consumidor regularmente identificado. A que se extraviou ou foi furtada, não pode ser tributada, mesmo porque no preço final da energia faturada está embutido o valor dessas perdas comerciais, ou seja, dos furtos ou erros de medição e até mesmo da inadimplência. (...) Assim, se essas perdas já estão incluídas na base de cálculo, não se pode admitir nova tributação.” (grifou-se) Por fim, é de suma importância mencionar que o próprio Estado do Rio de Janeiro, em recente manifestação apresentada por ocasião do julgamento do recurso voluntário nº 31.919 (processo administrativo nº E-34/059089/2004), admitiu expressamente que, a partir da Resolução ANEEL nº 666/20025, que incluiu as perdas comerciais na tarifa de energia elétrica, não mais caberia sua tributação isolada pelo ICMS, como podemos verificar pelo trecho colacionado a seguir: “O estorno em razão da perda ou do perecimento da mercadoria somente deixa de ser necessário nos casos em que essa perda, por ser ordinária e decorrente do processo produtivo, passa a compor o custo do produto. Isso porque os custos são automaticamente transferidos para os preços dos 4 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº: 0013820-78.2010.8.26.0053. Décima Câmara de Direito Público. Desembargador Relator Urbano Ruiz. DJ de 04/07/2011. 5 Grande parte da Resolução ANEEL nº 666/2002 foi revogada pela Resolução ANEEL n° 166/2005. produtos ou mercadorias e serão, por conseqüência, tributados pelo ICMS através do valor agregado nas operações seguintes. Ocorre que, no caso da energia elétrica adquirida pelas distribuidoras, as perdas comerciais passaram a fazer parte dos itens considerados no cálculo da tarifa somente a partir da Resolução ANEEL nº 666 de 29/11/2002. A partir deste momento não se há de falar em perdas comerciais, uma vez que aqueles que efetivamente pagam a energia elétrica já têm embutido, no total devido, o percentual relativo às perdas, valor sobre o qual já incide o ICMS.” 4. CONCLUSÃO Como vimos ao longo deste estudo, as particularidades que envolvem a energia elétrica acabam por criar uma série de incertezas e distorções quanto ao seu tratamento como mercadoria para fins de incidência do ICMS. A principal delas diz respeito à pretensão dos Fiscos Estaduais de tributar as perdas comerciais ou não-técnicas de energia, que são aquelas causadas por problemas relacionados aos medidores de energia, à fraude e ao furto de energia, sendo esta última, popularmente chamada de “gato”, a mais recorrente e difícil de ser combatida pelas distribuidoras de energia elétrica. Entretanto, a nosso ver, tal pretensão não pode ser levada a efeito pela Administração Fazendária, seja pela não ocorrência do fato gerador da obrigação tributária respectiva, nos termos dos arts. 155, II, da Constituição Federal, c/c 12, I, da Lei Complementar nº 87/96, seja pela inclusão do montante referente às perdas não-técnicas/comerciais de energia no cálculo da tarifa de uso dos sistemas de distribuição (TUSD), conforme disposto no art. 2º, V, “d”, da Resolução ANEEL nº 166/2005.