Educação, dádiva e reciprocidade : reflexões preliminares
Eric Sabourin1
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Introdução : educação, dádiva e utilitarismo
Esse texto esboça uma analise da importância e do papel da noção de reciprocidade na
educação. Propõe uma revisão da mobilização do princípio de reciprocidade - no sentido
antropológico, mas também sociológico e econômico - nos processos educativos, e em
particular, na educação de adultos.
De fato, educar é dar; é dar conhecimentos, transmitir valores, compartilhar saberes, regras...
É um ato de dádiva por natureza: educar, mesmo quando remete para a sua função
instrumental, caracteriza-se como um ato materialmente desinteressado, associando uma
função simbólica e valores morais à função instrumental da aprendizagem (ver Bourdieu,
1994, Caillé, 1994).
Educar passa pela palavra, outra função humana associada à dádiva. Bourdieu (1986)
escreveu sobre “Dar a palavra”; Godbout (1996) fala da “linguagem da dádiva “ ...
Mas educar não se constitui apenas numa relação de dádiva assimétrica e unilateral : do
educador que sabe para o educando que não sabe ou de pais para filhos. O processo de
aprendizagem e de construção da autonomia nasce e se fortalece na interação entre o
educando, o educador, o meio, e até com os outros aprendizes. Educação, portanto, é também
reciprocidade.
Educar é dar sentido, é dar vida. Remete a um elemento central do fato social total de Mauss
(1924). Esse aspecto é muitas vezes esquecido, numa sociedade e época na qual as
comunidades e famílias têm cada vez mais tendência a delegar a educação dos filhos para o
Estado (a escola e o colégio público) ou inclusive, como no caso das classes médias e ricas do
Brasil, para o mercado dos colégios privados. Um resultado dessa atitude, como lembra
Cláudio Naranjo (2002), pode ser encontrado no stress e na crise de identidade dos
educadores e professores na maioria dos países. Tanta responsabilidade colocada sobre eles
(ser ao mesmo tempo professor, sábio, enciclopédico, orientador profissional, educador e
pais), constitui uma enorme pressão associada a um sentimento de incompreensão do seu
papel social. Pois, hoje, este papel de professor está marcado pela sua transformação
utilitarista e mercantil numa função de transmissores de saberes, num mundo de
conhecimentos cada vez mais numerosos, complexos e sofisticados.
Os professores e educadores, tanto como os alunos, precisam da interação mútua, dessa
interdependência recíproca com os educandos, mas também com os pais de alunos e com a
sociedade, que está hoje em crise, tanto como os métodos e conteúdos da escola ou da
universidade.
1
Sociólogo e antropólogo, pesquisador do CIRAD - UPR Action collective, marchés et politiques publiques
34398 Montpellier e professor visitante no Dpt° de sociologia da Universidade de Brasilia.
1
O texto se divide em três partes. A primeira traz alguns elementos sobre a teoria da
reciprocidade; a segunda analisa a importância da reciprocidade na educação na obra de
Mauss; a terceira apresenta e discute contribuições mais recentes sobre o papel da relação de
reciprocidade na educação de adultos.
1. O que é a reciprocidade ?
O princípio de reciprocidade
Polanyi (1957) definiu a reciprocidade do ponto de vista econômico como um modo de
integração social e de relação econômica interpessoal, diferente da troca e da redistribuição. A
reciprocidade corresponde aos movimentos de bens e serviços “ entre pontos de correlação
de grupos simétricos”.
Para Godbout (2004: 230-232):
“Podemos definir a reciprocidade de maneira simples: quando alguém recebe
algo na forma de uma dádiva, ele tem tendência a dar por sua vez... A dádiva do outro
carrega com ela uma impulsão a dar por parte de quem recebe. Não se trata em nada
de um constrangimento, ao contrário, por exemplo, do contrato, no qual as
obrigações de cada um estão sendo definidas da maneira a mais detalhada possível e
regidas pela lei. Não, trata-se de uma incitação, de um convite. Mas esse fenômeno é
tão importante que pode se falar de uma força social elementar. Um grande sociólogo
americano Gouldner (1960), diz da reciprocidade que ela é tão fundamental para a
humanidade como o tabu do incesto”.
De acordo com Castel (2006: 04)
“a reciprocidade é o princípio pelo qual a produção é dada a outros num
espírito de solidariedade, quer dizer no marco de uma relação entre pessoas tendo
consciência de uma comunidade de interesses que leva a uma obrigação moral de
apoiar os outros”. Portanto, “não se dá para receber, se dá para que o outro dê e
procura-se estabelecer uma relação entre várias pessoas ou grupos mediante ume
seqüência durável de dádivas. Por meio da reprodução das dádivas entre pessoas ou
formas simétricas da organização social, a produção dada é valorizada pelo seu valor
de uso ou seu valor simbólico”.
Mauss (1924) viu a primazia da obrigação de devolver, da qual diz que ela é total e imperativa
do fato social, mas sem extrair dessa preeminência, o princípio da reciprocidade. Nas
prestações totais, tudo é simbólico e tudo é recíproco diz Mauss (1924).
Lévi-Strauss (1950) cobra de Mauss, não ter postulado o intercâmbio (a troca) no centro da
função simbólica. Mas, de fato, associando aliança e parentesco à tríplice obrigação : « dar,
receber e retribuir», Mauss desenhou um projeto que Lévi-Strauss (1967) propõe logo nas
Estruturas Elementares do Parentesco. Ordenando as relações de parentesco ao princípio de
reciprocidade, Lévi-Strauss trata da reciprocidade direta (ou bilateral) com o termo de
intercâmbio restrito ou simétrico (casamento com a prima cruzada bilateral) e da
reciprocidade indireta, com o termo de intercâmbio generalizado ou assimétrico.
Para L C Becker (1986): a tendência à reciprocidade (devolver tanto o bem quanto o mal) é
uma forte potência na vida humana e esse conceito está estreitamente ligado às idéias e
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valores de justiça, equidade, obrigação, gratidão, responsabilidade perante gerações futuras
e obrigação de obediência às leis.
Becker considera a reciprocidade como um princípio de base para as obrigações sociais
voluntárias ou não, nas relações íntimas como distantes. Identifica, como Mauss, a relação
entre valores éticos e estruturas sociais como, por exemplo, as estruturas de parentesco.
A teoria da reciprocidade de Temple
Temple (1995, 1997) parte, na origem da mesma constatação da dádiva de Mauss (1924), e
pergunta: será que se pode dar, gratuitamente, sem razão, sem motivo, apenas por princípio,
quer dizer sem reciprocidade? Como Caillé (1994, 2001), ele constata que a dádiva não é
desinteressada, mas motivada, primeiro, pelo interesse pelo outro, pelo reconhecimento do
outro (“como a si mesmo” da ipseidade de Ricoeur, 1990) como base da participação de um
grupo social ou, por extensão, da humanidade.
Para Temple (2004) :
“...a reciprocidade é a matriz do sentido e ela dá um sentido a dádiva. Ela dá
o sentido de ser um ato sem contrapartida obrigatória (...). Devemos distinguir a
reciprocidade que vem a ser a condição da dádiva, e a dádiva em si, que só tem por
sentido de ser uma dádiva. (....) Enquanto você lembra as condições que dão sentido
à dádiva, quer dizer, quando você está certo que o outro sabe o que dar quer dizer
(porque ele mesmo participa de uma relação de reciprocidade dos dons), você tem a
possibilidade de dar livremente. A dádiva pode então ser tanto mais pura que ela se
insere numa estrutura de reciprocidade mais rigorosa. Para dissipar a ilusão de uma
antinomia entre reciprocidade e dádiva pura, deve-se considerar a dádiva como uma
palavra, quer dizer como a expressão de um sentimento nascido da reciprocidade”.
Temple (1997, 2004) propõe considerar a reciprocidade como o redobramento de uma ação
ou de uma prestação, entre outras, como a reprodução da dádiva. Distingue, assim, o
intercâmbio (a troca) da reciprocidade: A operação de intercâmbio corresponde a uma
permutação de objetos, enquanto a estrutura de reciprocidade constitui uma relação
reversível entre sujeitos».
As prestações da dádiva podem corresponder ao fato social total identificado por Mauss, na
medida em que as relações de reciprocidade engajam (comprometem?) o ser humano
(indivíduo ou grupo) na sua totalidade, tanto do ponto de vista material (econômico) como
simbólico e social. É nesse sentido que Temple (1998) identifica e associa a produção de
certos tipos de valores humanos, éticos ou afetivos, às estruturas de reciprocidade e de
redistribuição.
As estruturas elementares da reciprocidade
Segundo Lévi-Strauss (1949) a noção de estrutura designa as diversas maneiras pelas quais o
espírito humano constrói valores e sistemas de valores. Mas Lévi-Strauss não estabelece uma
diferença entre sistemas de intercâmbio e de reciprocidade, porque considera a reciprocidade
como uma forma de troca recíproca e simétrica.
Para Sartre (1969) o sistema de valores em curso numa sociedade reflete a estrutura dessa
sociedade e tende a conservá-la. A noção de sistema evoca duas idéias: a de pluralidade e a de
organização. A expressão “sistema de valores” remete para a idéia de vários valores não
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apenas justapostos, mas articulados, organizados2. As estruturas elementares de reciprocidade
foram sistematizadas por Temple (1998), que identifica certos dos valores humanos que
produzem ou reproduzem.
- As estruturas de reciprocidade binária correspondem às relações de aliança (matrimônio,
compadrio, redes interpessoais, etc.) e de amizade3 que se estabelecem entre indivíduos,
famílias e grupos. A reciprocidade binária simétrica (face to face, cara a cara) produz a
amizade. A reciprocidade binária assimétrica produz o prestígio do doador (dádiva agonística,
potlach).
- As estruturas de reciprocidade ternária implicam, no mínimo, três partes. A reciprocidade
ternária pode ser unilateral: por exemplo, a dádiva inter-gerações (relação entre pais e filhos)
que produz a responsabilidade (Ricoeur, 1994). Ela pode ser bilateral, por exemplo, no caso
do compartilhamento de recursos comuns, ela produz então a justiça e a confiança.
Quando a estrutura ternária é bilateral ela submete o sentimento de
responsabilidade a uma obrigação nova, por exemplo, a obrigação de equilibrar as
dádivas que vêm de um lado com aquelas que vão para outro. O objetivo do doador
na estrutura de reciprocidade ternária unilateral é de dar o máximo possível, porque,
quanto mais ele dá, mais ele gera laço social. Na reciprocidade ternária bilateral,
aquele que se situa entre dois doadores deve reproduzir a dádiva de um e a do outro
de maneira apropriada. Tal inquietação é a mesma da justiça (Temple, 1998: 241).
- Na estrutura da reciprocidade centralizada, as prestações e as decisões são distribuídas por
um centro de redistribuição (o chefe, o poder religioso, o patriarca, o rei, o Estado). No caso
da reciprocidade ternária centralizada, a confiança torna-se obediência e obrigação ao centro
de redistribuição.
2. Reciprocidade ternária e educação em Mauss
Na origem da humanidade e na continuidade das estruturas de parentesco (reguladas pela
reciprocidade como mostrou Lévi-Strauss, 1967) educar os filhos passou a constituir uma das
primeiras estruturas de reciprocidade ternária unilateral inter-generacional (Temple 1998).
Como Lévi-Strauss (1947) o mostrou, o intercâmbio é, às vezes, chamado de recíproco
porque, de fato, satisfaz o interesse de cada parceiro. Nesse caso, em que difere da
reciprocidade? Precisamente porque a reciprocidade implica na preocupação pelo outro para
produzir valores afetivos ou éticos como a paz, a confiança, a amizade e a compreensão
mútua. Mauss não encontrando palavra ocidental para definir esse sentimento ou valor
associado a dádiva, usa a palavra indígena “mana” que tentará de traduzir como “a força ou o
espírito da dádiva”.
Qual é a diferença entre a reciprocidade e um intercâmbio mútuo? O intercâmbio utiliza esses
valores humanos primordiais para se poupar da violência. O intercâmbio é uma relação de
interesses, mas que supõe uma reciprocidade mínima. A razão aconselha de fato, estabelecer a
2 Blais (1983) distingue valores “meios” e valores “fins” (ou valores éticos) hierarquizados. Para ele, quando se conhece o
sistema de valores de uma sociedade é possível reconstituir a organização que ela se deu para cultivá-las. Também, e ao
contrário, a analise das estruturas permite reconstituir o sistema de valores de uma sociedade.
3 Alain Caille (2001) usa em francês o belo termo de “aimance”, para tratar da amizade ou do amor para os outros em geral,
ou como ele diz, para “nossos irmãos humanos”.
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competição de interesses em cima da confiança, da paz e da compreensão mútua, valores
produzidos pelas relações de reciprocidade.
Dá para entender que se possa muito facilmente confundir o intercâmbio com uma forma de
reciprocidade simétrica. Mas, em realidade, ele inverte o movimento da reciprocidade, porque
em vez de se preocupar com o outro, procura em primeiro lugar a satisfação do interesse
próprio.
Segundo Temple e Chabal (1995) Mauss reuniu as principais peças de uma teoria da
reciprocidade: a dádiva, a obrigação de devolver, o prestígio e a presença do terceiro.
A necessidade de passar por um terceiro era o elemento que Mauss chamava no Ensaio sobre
a Dádiva (1924) “a única obscuridade da teoria indígena”.
Mauss fica convencido da idéia que o ciclo das dádivas leva a obrigação de devolver. No
entanto, essa obrigação supõe ou uma estrutura fundamental de simetria entre as dádivas ou
então recorrer a um terceiro.
Um fato importante no Ensaio sobre a Dádiva é precisamente que para o essencial dos
elementos que descobre e que não correspondem à lógica do intercâmbio, Mauss deixa falar
os “indígenas”. Para qualificar o valor espiritual associado ao movimento das dádivas, ou para
dar conta da necessidade do terceiro, usa o termo mana ou a expressão “a cara do mana”.
Quando introduz o termo de “manifestar respeitos recíprocos” traduz a expressão dos índios
Tlingit. Para falar desse laço espiritual, usa a expressão Kanak “A reciprocidade das dádivas
é como a agulha que tece o teto do mundo”.
Pois o terceiro é um vinculo de almas, a reciprocidade sua matriz, o princípio da sua gênese.
No final da sua obra, Mauss (1931, 1968-1969) percebe a origem natural da estrutura de
reciprocidade nas condições do parentesco (exogamia e filiação).
“...a separação por sexo, por gerações, por clãs, leva a fazer de um grupo A o
associado de um grupo B, mas esses dois grupos, A e B, quer dizer as linhagens, são
precisamente divididas por sexos e gerações : as oposições cruzam as coesões”
(Mauss, 1931).
Como escreve Laval (2006), para Mauss, a reciprocidade não se limita tampouco à dádiva
entre pares, ela rege o princípio das relações entre grupos de idade e estatutos.
Mauss diferencia assim a reciprocidade direta (prestações materiais ou simbólicas devolvidas
entre dois indivíduos ou dois grupos) da reciprocidade indireta quando os bens simbólicos
recebidos não são devolvidos a quem os deu, mas a outro grupo que terá que devolvê-los, por
sua vez a um outro grupo. O modelo dessa reciprocidade indireta é também aquele da
circulação dos bens entre as gerações.
“ É aquilo que seu pai fez para você que você pode devolver ao seu filho”
(Mauss, 1931:19).
O que é recebido em termos de educação também deve ser devolvido (Laval, 2006). Essa
estrutura de reciprocidade ternária, segundo Temple (1998) é aquela que reproduz também o
sentimento e o valor ético de “responsabilidade” entre gerações. Aplicado aos recursos
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naturais, é essa mesma responsabilidade que levou as gerações passadas a se preocupar pelas
florestas, pelos rios, lagos e mares que recebemos.
No fim da vida, Mauss pressentiu a universalidade desse princípio de reciprocidade quando
discutiu a teoria educativa de Piaget escrevendo :
“(Ele) faz da noção de reciprocidade um privilegio do indivíduo saído da
infância ou da sociedade já civilizada. Mas os fijianos, australianos (...) das grandes
civilizações neolíticas já possuíam a noção de reciprocidade; no entanto a
reciprocidade não quer dizer sempre igualdade. Da geração 1 à geração 2, como da
geração 2 à 3, há reciprocidade, mas não igualdade; da mesma maneira entre homem
e mulher” (ibid, p 301).
Como reconhece Laval (2006:109) “podemos considerar que a transmissão cultural é
estruturada segundo o princípio de reciprocidade indireta do qual Mauss foi o grande
descobridor”.
Mas, de fato, já na conclusão do Ensaio, Mauss explica essa moral da reciprocidade como
matriz da humanidade, de uma maneira bem clara:
“Convém que o cidadão não seja nem demasiado bom e subjetivo demais, nem
demasiado insensível e realista demais. É preciso que ele tenha um senso agudo de si
mesmo, dos outros e da realidade social (e haverá, nesses fatos de moral uma outra
realidade ?). Ele deve agir levando em conta a si, os subgrupos e a sociedade. Essa
moral é eterna, é comum as sociedades mais evoluídas, às do futuro próximo, e as
sociedades menos educadas que possamos imaginar ! Tocamos a pedra fundamental.
Nem mesmo falamos mais em termos de direito, falamos de homens e de grupos de
homens , porque são eles, é a sociedade, são os sentimentos de homens de carne, osso
e espírito que agem o tempo todo e agiram em toda parte.”
Quer dizer, que, para Mauss, o objetivo ético e político não é apenas assegurar as condições
materiais de vida decentes para todos os seres humanos - por elas em si -, nem de garantir –
por si só - a liberdade dos indivíduos psíquicos e coletivos, mas de assegurar a maximização
da sua individualização no sentido da expressão da sua singularidade, como garantia do seu
pertencimento diferenciado a coletivos sociais ou a totalidades humanas.
3. Reciprocidade e educação de adultos
A importância da reciprocidade na aprendizagem segundo Piaget
Para Piaget (1978), os conteúdos não são concebidos como fins em si mesmos, mas como
instrumentos que servem para o desenvolvimento evolutivo natural. Defende a primazia de
um método que leve ao descobrimento por parte do aluno ao invés de receber passivamente
através do professor.
A interação para Piaget, como em Simmel (1897), leva para a reciprocidade entre sujeitos. Os
conflitos cognitivos são importantes para o desenvolvimento da aprendizagem. A interação
social favorece a aprendizagem. As experiências de aprendizagem necessitam estruturar-se de
modo a privilegiarem a colaboração, a cooperação e intercâmbio de pontos de vista na busca
conjunta do conhecimento.
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O princípio de reciprocidade entre o educando, o meio ou o educador e até com outros
educandos é essencial para a construção da autonomia. Para Piaget, de acordo com Zacharias
(s/d) a autonomia não está relacionada com isolamento (capacidade de aprender sozinho e
respeito ao ritmo próprio - escola comportamentalista). Piaget entende que o florescer do
pensamento autônomo e lógico operatório é paralelo ao surgimento da capacidade de
estabelecer relações cooperativas. Quando os agrupamentos operatórios surgem com as
articulações das intuições, a criança torna-se cada vez mais apta a agir cooperativamente.
Ser autônomo significa estar apto a cooperativamente construir o sistema de regras morais e
operatórias necessárias à manutenção de relações permeadas pelo respeito mútuo.
Ele caracteriza a "Autonomia como a capacidade de coordenação de diferentes perspectivas
sociais com o pressuposto do respeito recíproco" (apud Kesselring, 1993:173-181).
Para Piaget, segundo Zacharia (s/d), a constituição do princípio de autonomia se desenvolve
juntamente com o processo de desenvolvimento da autoconsciência. Não é possível uma
autonomia intelectual sem uma autonomia moral, pois ambas se sustentam no respeito mútuo,
o qual, por sua vez, se sustenta no respeito a si próprio e reconhecimento do outro como ele
mesmo. A falta de consciência do eu e a consciência centrada na autoridade do outro
impossibilitam a cooperação, em relação ao comum, pois este não existe. A consciência
centrada no outro anula a ação do indivíduo como sujeito. O indivíduo submete-se às regras, e
pratica-as em função do outro. Segundo Piaget este estágio pode representar a passagem para
o nível da cooperação, quando, na relação, o indivíduo se depara com condições e
possibilidades de identificar o outro como ele mesmo, e não como si próprio (Piaget, 1978).
"Na medida em que os indivíduos decidem com igualdade - objetivamente ou
subjetivamente, pouco importa - as pressões que exercem uns sobre os outros se
tornam colaterais. A autonomia adquirida pela moral depende, precisamente, dessa
cooperação progressiva. De fato, nossos estudos têm mostrado que as normas
racionais e, em particular essa norma tão importante que é a reciprocidade, não
podem se desenvolver senão na e pela cooperação. A razão tem necessidade da
cooperação na medida em que ser racional consiste em 'se' situar para submeter o
individual ao universal. O respeito mútuo aparece, portanto, como condição
necessária da autonomia, sobre o seu duplo aspecto intelectual e moral. Do ponto de
vista intelectual, liberta a criança das opiniões impostas, em proveito da coerência
interna e do controle recíproco. Do ponto de vista moral, substitui as normas da
autoridade pela norma imanente à própria ação e à própria consciência, que é a
reciprocidade na simpatia." (Piaget, 1977:94).
A reciprocidade educativa
Na continuidade de Mauss (1924) e de Piaget (1972), Jean Marie Labelle (1996) propõe
recorrer ao princípio de reciprocidade no marco da educação de adultos. Ele usa a noção de
reciprocidade educativa. Essa proposta dá a prioridade à função simbólica no ensino sobre a
função instrumental (Postic, 1998). A pessoa é reconhecida como o valor supremo no
processo de educação.
Labelle (1996) mobiliza a psicologia personalista de Maurice Nédoncelle (1942), "a
metafísica da intersubjetividade", que permite de validar a noção de reciprocidade educativa
para a educação de adultos. Para Labelle :
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« Os desafios essenciais da educação de adultos se resumem em três palavras
indissociáveis (....) Educar-se como alimentar-se, é, ao mesmo tempo recorrer à ação
de um outro e contar apenas sobre si mesmo para crescer, se comportar e
desenvolver-se. O paradoxo da mutualidade reside no fato que estou construindo a
minha singularidade pessoal (ou me referindo a ela) querendo que você seja “você
próprio” e, vice-versa” (...) Podemos chamar de “caminhando” essa educabilidade
das pessoas que se desenvolvem e se assumem percorrendo juntas seus caminhos
terrestres e interiores”.
De fato, em situação de trabalho, estamos acostumados a essa injunção paradoxal “sejam
autônomos! ” produto de um discurso de “management” chamando para mais liberdade de
ação para os assalariados. Mas essa atitude supõe também, mediante a auto-formação, uma
carga cada vez maior de responsabilidades para cada um. Tal discurso é paradoxal porque
exigindo a autonomização e a responsabilização do indivíduo, a firma ou a organização
raramente lhe dá os meios de controlar totalmente a sua atividade de trabalho e de
aprendizagem. Nesse contexto a auto-formação não procura apenas o desenvolvimento da
autonomia dos atores, mas pode favorecer também, lógicas individualistas de concorrência e
de competição. No contraponto de tal abordagem, o livro de Jérome Eneau (2005) considera
os estudos e trabalhos sobre a reciprocidade para examinar a construção da autonomia “por e
com os outros”. Essa autonomização construída na interdependência responde então a uma
lógica de autoformação, individual e coletiva ao mesmo tempo, que privilegia a interação
mútua e a cooperação, ao contrário de todo excesso de individualismo. A noção de
reciprocidade oferece, assim, um meio original de pensar a auto-formação de adultos. Visando
a autonomia de todos, permite integrar o objetivo de uma aprendizagem organizacional, e
fortalece o lugar para novos dispositivos de formação e de educação, como o codesenvolvimento profissional, as comunidades de prática (Wenger, 1998) ou a pesquisaformação-ação (Coudel e Sabourin, 2005, 2007).
Referenciado no construtivismo de Piaget e de Candy, Eneau procura também em Mauss,
Caillé e Temple (1997) a mobilização da teoria da reciprocidade para propor um quadro da
autonomia e um modelo da autonomização A autonomização para a auto-formação seria
construída com o outro e pelo outro, num processo de interdependência e de alteridade. Lina
Sylvain (2004) escreve também “quando ensino, aprendo”.
A proposta sintética de Eneau mobiliza as diferentes polaridades das relações e estruturas de
reciprocidade (Temple, 1998) assim como os valores sociais, éticos, culturais ou simbólicos
produzidos por essas relações. Pois Postic (1998) definiu uma divisão do ato de ensinar ou
formar em duas funções : a função instrumental e a função simbólica que remete aos valores,
em particular aquelas da sociedade, da escola ou da universidade, do docente e do estudante.
Essa dupla função instrumental e simbólica do ensino gera tensões que podem ser analisadas e
tratadas a partir da teoria da reciprocidade. Por exemplo, três estudos recentes no Brasil
mobilizaram as estruturas de reciprocidade para tratar dos valores simbólicos, afetivos ou
éticos, mas também das manifestações de assimetria e de poder produzidas por e mediante
relações de educação e dinâmicas de aprendizagem (Sabourin, 2007)
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Estudos brasileiros
Coudel e Sabourin (2005, 2007) aplicaram essa proposta à analise da aprendizagem social e
institucional entre agricultores camponeses e docentes da Universidade Camponesa na região
do Cariri do Estado da Paraíba. As avaliações dos resultados do primeiro ciclo da Unicampo
em termos de aquisição de competências e de aprendizagem social ou coletiva expressam de
maneira clara a existência de uma produção associada de valores éticos e simbólicos (respeito,
confiança, dignidade, etc) mais também afetivos (amizade, solidariedade) junto com os
valores materiais ou instrumentais (técnicas, conhecimentos, etc) (Coudel et al, 2007).
Patrícia Lenne (2006) acompanhou a confrontação e a partilha de conhecimentos entre
pesquisadores e agricultores no marco de dispositivos de inovação participativa em torno de
sistemas de plantio direto de grãos nos assentamentos de reforma agrária do Município de
Unai-MG. O estudo analisa de um lado os conhecimentos produzidos ou partilhados em
termos de objeto e de outro lado os valores humanos éticos ou afetivos associados às
dinâmicas sociais dos conhecimentos. De fato, os agricultores em grande parte, mas também
os pesquisadores, não conseguem separar a produção, a aquisição ou a transmissão de saberes
ou de um saber-fazer, das relações humanas e sociais (inclusive as relações institucionais e de
poder) dentro das quais acontecem os processos de diálogo ou de experimentação (Lenne et
al, 2007). Confirmam também a importância da produção ou/e da manutenção de valores
humanos como amizade, confiança, dignidade, etc junto com a produção ou partilha de
conhecimentos.
A pesquisa de Rosana Kirsch sobre as dinâmicas de reciprocidade nos processos de incubação
de empreendimentos de economia solidária examina as diferentes polaridades e
conseqüências das relações entre educadores e formandos (Kirsch, 2007, Kirsch e Sabourin,
2007). A partir da leitura da reciprocidade educativa, explicita as tensões entre os
trabalhadores da economia solidária, mas também entre os professores universitários da área
de tecnologias e os extensionistas da incubação. Em vários casos, os processos de capacitação
e incubação dos universitários estão centrados em metas meramente instrumentais que levam
a adotar um processo de transferência de tecnologia, mais que de aquisição de regras,
princípios e valores. Muitos docentes estão preocupados com as finalidades, mais que com os
métodos e processos. Passam assim a adotar estratégias pedagógicas com um forte caráter
instrumental que parecem suportar o conjunto da estrutura educativa da incubação. A função
simbólica da formação, no caso as regras, os princípios e projetos das cooperativas populares
e da economia solidária, nesta lógica, aparecem como esquecidos ou relegados num segundo
plano.
Conclusão
A constante renovação dos conhecimentos e da informação, as exigências das situações de
trabalho como de organização social têm mobilizado os atores sócio-profissionais em torno da
auto-formação como instrumento de autonomização e de empoderamento, inclusive de grupos
e categorias subalternas. Existem poucas pistas de pesquisa para investigar os aspectos sociais
da auto-formação. Uma pista original e emergente é aquela do papel do outro na autoformação e das relações estabelecidas entre sujeitos, por exemplo na configuração das redes
de intercâmbio mútuo de saberes. Labelle (1996) é autor de uma perspectiva pioneira,
propondo colocar a reciprocidade entre os sujeitos na base das suas aprendizagens respectivas
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e do seu possível desenvolvimento mútuo: a reciprocidade interpessoal é propriamente
educadora. A relação ao outro se torna central no processo de formação de si, já que, nessa
perspectiva, a alteridade é constitutiva da própria identidade dos sujeitos. Para Labelle e
Eneau, essa teoria convida a um questionamento sobre a ética e os valores do enfoque
educativo, e sobre a postura do educador ou os métodos para acompanhar, na reciprocidade, o
desenvolvimento da identidade e a autonomização.
Em contexto organizacional, além da evidência de práticas de aprendizagem coletiva
(Hatchuel, 2000) a interdependência mútua é mobilizada para analisar e apoiar os grupos de
“co-desenvolvimento profissional” (Darré, 1996), a interação no caso das “comunidades de
práticas” (Wenger, 1998). A teoria da reciprocidade passou, recentemente, a ser utilizada de
maneira explicita, no caso do manejo de recursos comuns pelas comunidades camponesas ou
das evoluções das formas de ajuda mútua (Ostrom, 1998; Sabourin, 2004, 2005; 2007).
Os trabalhos de Labelle e Eneau confrontados a minhas leituras e aplicações das propostas de
Temple (1997, 2003) conduzem a construir e fortalecer o quadro teórico referencial da
reciprocidade, assim como a sua utilização para analisar e propor condições de facilitação da
auto-formação e do papel do outro na aprendizagem em contexto organizacional.
A natureza e os princípios da reciprocidade constituem uma primeira dimensão deste quadro.
Reconhecer que a reciprocidade é constitutiva do vínculo social leva os membros da
organização a refletir sobre a natureza dos laços sociais como sobre aquela dos coletivos
formados. Por exemplo, em matéria de educação e de formação, ou ainda de concepção de
inovação, de experimentação e de pesquisa-ação em parceria, trata-se de trabalhar a dimensão
coletiva da aprendizagem, no seio dos grupos, das redes, das comunidades, ou até de
dispositivos ad hoc, considerados como tantos lugares de sociabilidade.
Reconhecer a autonomia individual dos atores no seio desses coletivos implica levar em conta
o grau de autonomia pré-existente dos aprendizes, mas também, de propor aprendizagens
capazes de favorecer a sua autonomia.
Reconhecer que as relações de reciprocidade estruturadas ou repetitivas geram a produção de
valores humanos éticos orientados no reconhecimento ou na implicação do outro, implica,
para esses coletivos, uma série de condições e de atitudes (escuta, diálogo, reconhecimento
mútuo) como a partilha de valores éticos e afetivos (confiança, respeito, responsabilidade, etc)
que permitam a reprodução dos ciclos de reciprocidade.
Uma segunda dimensão tem a ver como as modalidades operativas. Trata-se de reconhecer
nos papéis, posições e status de cada um, as assimetrias que permitem as relações mútuas ou
as trocas recíprocas, sob a condição que estas sejam reversíveis e alternadas. No caso da
formação profissional, trata-se de valorizar, por exemplo, as potencialidades e modalidades da
alternância pedagógica (entre escola e meio profissional).
A tríplice obrigação de « dar, receber e retribuir», supõe uma iniciativa individual (a aposta de
ser o primeiro a dar, para incluir o outro, para iniciar uma aliança, antes de esperar receber) e
uma formalização coletiva desses três termos, que para o princípio de reciprocidade,
constituem uma relação de natureza oposta a uma relação de troca, à um intercâmbio
mercantil o de estrito interesse material e individual.
Por fim, trata-se de favorecer os dispositivos de cooperação visando interesses coletivos de
longo prazo, às vezes, em detrimento de interesses individuais de curto prazo ou de estratégias
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de competição e de concorrência para o acumulo privado de toda forma de capital (material,
financeiro, humano).
Uma terceira dimensão concerne os efeitos esperados da reciprocidade. Se ela tem um efeito
de regulação dos laços sociais, se o compartilhamento ou a re-distribuição estão em condição
efetiva de funcionar, a reciprocidade pode contribuir para um equilíbrio social, permitindo a
cada um de fazer a experiência do papel e da situação do outro, e de medir as vantagens da
cooperação. Neste sentido, a teoria da reciprocidade permite considerar dispositivos de autoformação ou dispositivos de co-construção da inovação e de associar e construir ao mesmo
tempo o processo de autonomia individual na coesão social. Isto é possível, na medida em que
esse processo é vivido por meio da experimentação da inter dependência, da alternância e da
alteridade, imposta pela dinâmica da reciprocidade.
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Educação, dádiva e reciprocidade