Um debate atual sobre o binarismo dos sexos Simone Perelson Nesta comunicação, partirei da questão da indefinição sexual dos jovens e adolescentes de hoje para abordar alguns aspectos do debate contemporâneo em torno da questão da diferença sexual travado entre algumas teorizações psicanalíticas e algumas teorizações dos chamados estudos do gênero. Diante da questão “é menino ou menina?”, inúmeros jovens e adolescentes respondem hoje, seja pelo enunciado discursivo, seja pela aparência andrógina ou ainda pela multiplicidade possível de escolhas objetais: “nem menino, nem menina, menine”. Os jovens e adolescentes de hoje parecem transitar livremente, sem que nenhum obstáculo lhes seja apresentado, do universo masculino ao feminino e vice-versa. Recentemente escutei de uma mãe: “Para a minha geração, isso ainda era uma questão – escolhas homossexuais ou heterossexuais. Hoje isso parece ter deixado de ser questão: ora namora-se menino, ora menina, passa-se de um ao outro sem problema ou questão alguma.”. E para nós, psicanalistas, isso faz questão? O que podemos pensar sobre esse “fenômeno sexual contemporâneo”? Será que ele nos revela algo sobre a nossa atualidade sexual? Haveria uma atualidade sexual? Seria ele revelador do que Henri Frignet descreve como uma “recusa cultural da diferença dos sexos”, explicação, a seu ver, para o surgimento do fenômeno social contemporâneo do transexualismo? Ou seria ele, ao contrário, o feliz revelador do “turvamento no gênero” – do Gender Trouble – expressão presente no título do livro de Judith Butler traduzido por Problemas de gênero (e que preferi traduzir aqui por “turvamento no gênero”)? Eis explicitadas algumas das questões fundamentais que norteiam o debate atual entre o “discurso psicanalítico” e os chamados “discursos do gênero”. Pra simplificar a apresentação e fornecer um esquema deste debate, indicaremos que, no campo das produções do discurso psicanalítico no que se refere a esse debate há ao menos dois blocos de posições distintas. Em primeiro lugar, temos aquele que lançará mão das contribuições dos estudos do gênero para empreender uma releitura crítica das formulações psicanalíticas sobre a sexuação fundamentadas no binarismo dos sexos e para repensar, dentro do referencial teórico psicanalítico, a questão da identificação sexual – encontram-se aqui autores como Michel Tort, Monique Schneider, Sabine 1 Prokhoris e Joel Birman. Em segundo lugar, temos aquele que, ao contrário, se fundamentará no discurso psicanalítico para sublinhar o caráter real, inelutável e estruturante deste mesmo binarismo e criticar as proposições das teorizações do gênero, incluindo-as no conjunto das manifestações sintomáticas da recusa perversa contemporânea à diferença binária entre os sexos. Independentemente, entretanto, dessas diferenças, há dois pontos que unem esses dois pólos discursivos. Em primeiro lugar, ambos julgam que não é mais possível nem desejável ignorar as produções atuais dos chamados estudos do gênero e que a psicanálise só tem a ganhar ao buscar estabelecer um diálogo com esse discurso. Com efeito, a publicação, no ano passado, pela Association Lacanienne Internationale, de um volume de sua revista intitulado Sex and Gender e dedicado em grande parte à discussão das teorizações de Judith Butler, mais célebre representante contemporânea dos estudos do gênero, é reveladora da importância que vem ganhando no meio psicanalítico esse debate. É inegável que os discursos do gênero, que tem nas produções de Judith Butler efetivamente a sua mais importante representação, seja ao provocarem, por parte do discurso psicanalítico, uma crítica às suas concepções, seja ao suscitarem, nesse mesmo discurso, um movimento de releitura crítica de alguns de seus próprios conceitos, não podem mais ser ignorados pela reflexão psicanalítica sobre os destinos contemporâneos da identificação sexual. Em segundo lugar, ambos, mesmo que cada um a seu modo, nos falam de produções discursivas e de produções sintomáticas que só podem ser compreendidos na medida em que as inscrevermos no contexto histórico da nossa atualidade social. Se, no primeiro caso, trata-se de contextualizar historicamente o discurso psicanalítico que sustenta o binarismo sexual, mostrando em que medida ele é uma produção da Modernidade, apontando para a revelação contemporânea de sua insuficiência, no segundo caso, trata-se de contextualizar historicamente as teorizações dos estudos do gênero, indicando que elas obedecem ao mesmo imperativo social contemporâneo a que estão submetidos algumas manifestações sintomáticas subjetivas contemporâneas, como, por exemplo, o transexualismo. Cabe aqui nos explicarmos melhor a respeito dessa segunda referência à questão do transexualismo. Se até recentemente esse fenômeno era de forma majoritária referido, no campo da psicanálise, à psicose e à foraclusão da função paterna – sendo que no caso das psicoses não desencadeadas, ele funcionaria como suplência a essa função -, hoje alguns psicanalistas, entre os quais destaca-se Henri Frignet, sustentarão 2 que, diferentemente do transexualismo psicótico, nosso tempo vê surgir, ou melhor, produz a transexualidade como sintoma social. Teríamos, assim, hoje, coexistindo lado a lado, por um lado, o transexualismo como a expressão do sentimento subjetivo de pertencer ao sexo oposto àquele que sua anatomia indica, o transexualismo referido, portanto, a um não saber do sujeito quanto ao seu sexo, a uma identicação sexual simbólica não realizada ou insuficientemente realizada e, por outro lado, a transexualidade como o desejo, ou ainda como o suposto desejo, de um sujeito que, embora sabendo muito bem a que sexo pertence, quer passar para o outro lado, quer ser reconhecido como pertencendo ao sexo oposto àquele indicado por sua anatomia e ao qual ele teria se identificado simbolicamente. O sujeito aqui deseja mudar de sexo, ser reconhecido como pertencendo ao sexo oposto àquele ao qual ele já teria se identificado simbolicamente. Lá, ao contrario, o que ele solicitaria seria a sua inscrição simbólica ainda não realizada em um dos dois lados, não se tratando, portanto, de passar de um lado ao outro, visto que ele não está ainda em lugar algum. Se, no primeiro caso, é o mecanismo da foraclusão/ rejeição (Verwerfung) que está em jogo, no segundo caso, trata-se da recusa (Verleugnung). Se, no primeiro caso, temos uma manifestação produzida e interpretável a partir apenas da história singular do sujeito, no segundo caso, e aqui chegamos ao ponto que nos interessa, trata-se da expressão de um sintoma social contemporâneo: a recusa à diferença entre os sexos, ao real binarismo sexual. Trata-se, mais precisamente, de uma resposta do sujeito à convocação social a uma recusa, convocação sustentada, segundo Frignet, em grande medida pela medicina, pelo direito e pelos estudos do gênero. Esta expressão, nos indica, portanto, o psicanalista, só pode ser interpretada à luz da abordagem do contexto social contemporâneo. É, então, a indicação da importância da consideração do contexto social, assim como das contribuições teóricas dos estudo do gênero para se repensar algumas concepções psicanalíticas que une, sem evidentemente apagar suas diferenças, os dois pólos discursivos psicanalíticos por nós anteriormente indicados. Mas a abordagem da questão do fenômeno transexual, indicando a diferenciação empreendida por Frignet entre suas formas distintas - a saber, manifestação psicótica da rejeição singular à diferença sexual e fenômeno social da recusa perversa a essa mesma diferença – não nos serve apenas para indicar os pontos em comum entre os dois pólos discursivos psicanalíticos. Ela também nos ajuda a colocar novas questões a respeito do fenômeno, se assim podemos falar, da indiferenciação sexual comum nos jovens e adolescentes contemporâneos. Como situar esse último fenômeno com relação 3 às duas definições forjadas por Frignet a partir da questão do fenômeno transexual? Em que medida ele se aproxima ou se distancia de cada uma delas? Nos parece evidente que de modo algum podemos compreender esse fenômeno como uma manifestação psicótica. E isso não apenas porque, tal como Freud, na ocasião em que sustentava a teoria da sedução, suspeitara da possibilidade da existência de tantos pais perversos, devemos suspeitar da possibilidade da existência hoje de tantos jovens e adolescentes psicóticos, como também porque, fora alguns reais possíveis casos de psicose, esses jovens sabem muito bem a que sexo pertencem. É menos evidente, entretanto, que não possamos incluí-lo no segundo caso, compreendo-o então como mais uma resposta à recusa social da diferença binária real entre os sexos. Caso se aceite essa aproximação é necessário, contudo, atentarmo-nos aqui para um ponto importante. Se é possível aproximarmos o fenômeno da transexualidade àquele da indiferenciação sexual em questão, na medida em que ambos se colocariam como resposta à recusa social da diferença binária entre os sexos, deve-se observar que não se trata, num caso e no outro, da mesma resposta, visto que enquanto no primeiro caso o que se expressa é o desejo de pertencer ao outro sexo, de pertencer ao sexo oposto; no segundo caso, trata-se, ao contrário, de pretender não ser necessariamente reconhecido como pertencendo nem a um nem ao outro termo deste binarismo. Desejo de poder transitar livremente entre um e o outro, de situar-se entre os dois, ou ainda de inscrever-se em outro lugar, não demarcado por esses dois pólos opostos. Lembrando: nem menina, nem menino, menine. Portanto, se é possível aproximar o fenômeno que trouxemos aqui ao que Frignet chama de fenômeno social da transexualidade, é importante não identificar esses dois fenômenos. O que não impede, entretanto, de situá-lo, se seguirmos a argumentação do psicanalista, junto com a transexualidade e os estudos do gênero, no campo do engodo que caracteriza a busca imaginaria ou os esforços teóricos de desconstrução do que não teria como deixar de existir e insistir. Frignet é claro a esse respeito: não há como passar de um sexo ao outro; não há como tampouco transitar entre os dois, nem, enfim, escapar de pertencer seja a um seja a outro. A não ser, é claro, na psicose. Mesmo que marquemos, portanto, uma diferença, ao seguirmos as elaborações de Frignet nos pareceu possível a aproximação proposta. Esta seria, então, a questão a que seríamos conduzidos a formular a partir das contribuições deste psicanalista: Como podemos articular o fenômeno atual comum de indistinção sexual nos jovens e 4 adolescentes e a recusa social do binarismo sexual? Em que medida podemos compreender esse fenômeno como expressão dessa recusa? Mas se é a essa aproximação e a essas questões que somos conduzidos ao seguirmos as elaborações deste psicanalista, é o questionamento dos pressupostos contidos nesta aproximação e nestas questões – existência real e recusa social do binarismo sexual – assim como da conclusão a que conduzem – o engodo das posições e proposições desconstrutivas do binarismo - que irá mover em grande medida as chamadas teorizações do gênero, assim como o outro pólo discursivo psicanalítico anteriormente indicado, pólo que buscará fazer uso dessas teorizações para repensar a questão da identificação sexual na contemporaneidade. Se aqui não há lugar para a hipótese da compreensão da indefinição sexual dos jovens e adolescentes de hoje como resposta à recusa cultural da diferença dos sexos, se trataria de ver nesse fenômeno, como indicamos anteriormente, o feliz revelador do turvamento no gênero, se trataria aqui da efetivação de uma posição subversiva da lei que impõe o binarismo? É para avançarmos no sentido de propor algumas respostas a essa questão que é necessário explicitarmos em que consiste a crítica que os estudos contemporâneos do gênero vão dirigir à concepção da diferença binária como real instransponível assim como, e sobretudo, o modo segundo o qual eles vão pensar as possibilidades de subversão das interdições postas pelo sistema binário. Nos apoiaremos aqui nas teorizações de Judith Butler que, como já foi colocado, é reconhecidamente a teórica mais importante destes estudos. Em primeiro lugar, é preciso articular a crítica de Butler à concepção de um binarismo sexual real e intransponível e a crítica foucaultiana à concepção do poder como repressor. Fortemente fundamentada nas concepções de Foucault, Butler apresenta o binarismo dos sexos como uma produção do poder a criar o efeito do natural, original e inevitável. A seu ver, o binarismo é um produto reificado de práticas discursivas, múltiplas e difusas que funcionam como regimes de poder, sendo o falocentrismo e a heterossexualidades compulsórias apontados como os elementos definidores desta produção/construção. Entretanto, e aqui a autora continua seguindo Foucault, afirmar que o binarismo é uma construção da lei, uma produção do poder, não implica em compreender a sexualidade subversiva como aquela que estaria livre ou fora desta lei ou deste poder. E isto pelo simples fato de que não há essa possibilidade. Como Foucault sublinhou muito claramente, a oposição entre, por um lado, uma sexualidade subversiva pré-lei e por outro, uma lei repressora, é uma produção da própria lei. A lei é 5 produtiva: ela produz a ilusão da existência desta oposição. Portanto, se não há exterioridade com relação às interdições postas pelo sistema binário, não haveria tampouco estratégias eficazes de subversão dessas interdições? De modo algum, afirmará Butler, para quem não se deve compreender a hegemonia do poder como o fracasso da possibilidade de subversão, pois operar no interior da matriz do poder não é o mesmo que reproduzir acriticamente as relações de dominação. Como, então, irá a autora pensar as estratégias subversivas? A seu ver, no campo da hegemonia da lei e da reificação do binarismo dos sexos, as estratégias subversivas devem ser buscadas nas práticas parodísticas nas quais a submissão à lei, através da torsão de suas conseqüências performativas, implica na desarticulação de seus processos de ordenamento. Como indica Vladimir Safatle, no artigo intitulado “Sexo, simulacro e políticas da paródia”, a concepção apresentada por Butler de subversão da lei enquanto prática parodística é similar àquela apresentada por Deleuze. Com efeito, como mostra Safatle, o filósofo pensa a subversão da lei em termos do humor, definido por ele como a operação de torsão da lei pelo aprofundamento de suas conseqüências. Define-se, portanto, assim a subversão em termos parodísticos ou em termos do humor: “seguiremos a lei ao pé da letra, mas faremos de tal maneira que essa obediência justifique conseqüências que pareciam inicialmente contraditórias em relação à lei; ou seja, a lei será seguida através de uma aplicação escrupulosa, mas os efeitos da lei são invertidos”. O humor em Deleuze ou a paródia em Butler seriam, então, esta capacidade de fazer o funcionamento da lei justificar disposições performativas que lhe pareciam contraditórias. A noção de simulacro dos cínicos e estóicos está intimamente relacionada às concepções de humor e de paródia. O simulacro, lembremos, desarticula as relações convencionais entre cópia, por um lado e modelo, original ou Idéia, por outro. Como observa Safatle, “o simulacro coloca-se como o que se modela a partir da Idéia para mostrar que a Idéia não tem a força de assegurar um campo fundamentado de aplicação”. Ele é, portanto, “aquilo que se coloca como realização da Idéia, mas que desautoriza a partilha entre verdadeiro e falso a partir da aplicação da Idéia”. Assim, a relação que os cínicos e estóicos estabeleciam entre o simulacro e a Idéia é a mesma que Deleuze vai estabelecer entre o humor e a Lei e Butler entre as práticas parodísticas e o binarismo dos sexos. O poder subversivo, portanto, do simulacro, do humor e da paródia não se encontram no repúdio, desprezo ou superação da Idéia, da Lei ou do 6 binarismo sexual, mas sim numa forma de submissão a esses termos que revela ao mesmo tempo o seu caráter artificial ou construído. Se Deleuze encontrará o melhor exemplo deste humor em Sacher Masoch – “o masoquismo conservaria os motivos da lei apenas para destruir sua força performativa” -, Butler privilegiará o travestismo, sobretudos nas performances de drag-queens, para exemplificar o que está em questão nas subversões parodísticas. Como ela observa, nessas performances, o travesti colocaria em cena simultaneamente duas afirmações de verdade contraditórias: por uma lado, ele diria “minha aparência externa é feminina”, mas minha essência interna [o corpo] é masculina”; e, por outro lado, ele diria “minha aparência externa [meu corpo] é masculina, mas minha essência interna [meu eu] é feminina”. Através desta dupla afirmação de verdades contraditórias, a performance do drag queen elevaria a aparência à condição de simulacro, produzindo um embaralhamento das distinções ontológicas entre essência e aparência, entre original e cópia. Em suma, o que se realizaria aqui seria a paródia da própria idéia de um original supostamente imitado na performance, a revelação de que este suposto original é também uma cópia sem origem. E se este original seria o homem ou a mulher, são esses dois termos enquanto constituintes do binarismo dos sexos fundante das identificações que são, senão descartados, ao menos reconsiderados quanto a seu lugar e estabilidade. O poder subversivo do travestismo derivaria, então, do fato do travesti ao mesmo tempo, como coloca Safatle, “adequar-se e não se adequar à diferença sexual e aos modos de sexuação tais como seriam postos pela Lei”, ou ainda pelo fato de que “ao agir (performing) e ao chamar a atenção para a estrutura do gênero como performance, pudesse ser feita uma espécie de crítica à reificação dos gêneros”, “a uma política que aspira saber o real de maneira segura”. Espero estar claro agora que, muito mais do que na indistinção sexual tão na moda entre os jovens e adolescentes de hoje, é na repetição paródica do binarismo dos sexos que Butler localiza o que inicialmente nos referimos como o feliz revelador do “turvamento no gênero”. Mas se, como observamos, Butler critica a reificação do binarismo sustentada por Frignet, o que a leva a buscar apontar práticas que coloquem em causa essa reificação e a localizar nas paródias subversivas dos travestis essa colocação em causa, cabe agora apontar uma interessante crítica dirigida a essa autora por Safatle. Segundo Safatle, o engano de Butler seria o de pressupor uma Lei simbólica que funcionaria (ou ao menos tentaria funcionar) como Lei que procura naturalizar seus modos de aplicação 7 reificando aquilo que ela enuncia. No entanto, continua o autor, nada disso é certo atualmente, e é bem provável que a contemporaneidade esteja diante de uma situação histórica na qual a prórpria Lei e suas figuras ideais de socialização tendem a funcionar de maneira paródica e auto-derrisória. Citando Zizek, ele esclarece: “figuras de um poder capaz de ‘revelar o segredo de seu funcionamento e continuar a funcionar como tal’”, poder referido ao que Sloterdijk chama de “ideologia reflexiva”, posição ideológica que porta em si mesma a negação dos conteúdos que apresenta”. “Se este for realmente o caso, pergunta então Safatle, o que dizer então das práticas políticas que procuram tirar sua força subversiva da paródia em contextos sócio-culturais em que o poder já ri de suas próprias injunções e já marca os processos de socialização com o selo da ironização?” 8