Psicologia, Gêneros e Processos de Subjetivação Fernando Silva Teixeira Filho PSICOLOGIA, GÊNEROS E PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO Discentes: Bianca CHAGAS RIBEIRO Lucas ZIEGLER JUSTINO Pamela CRISTINA VINHOTO Assis, 23 de Maio de 2018 De que modo o texto da Claudia de Lima Costa (visto na aula) reforça a tese apresentada por Sherry B. Ortner em "Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura". Nas articulações de Ortner no artigo “Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?" percebe-se que a condição da mulher na ordem das coisas, do ponto de vista dialético, é examinada, percebida e retratada numa condição simbólica em relação à natureza e à cultura, como parte da primeira, e por sua vez, subalterna e secundária em relação homens, em termos de protagonizar enquanto sujeito da criação da cultura. Portanto, os discursos — através de condicionamentos socioculturais falocêntricos ao longo da história — associou a condição feminina como evidente e própria às questões da natureza (o domínio sobre gerar vidas). Ao contrário do homem, que foi “predestinado” nos discursos, a ter atributos, basicamente “inatos”, para a reprodução e dominação da cultura. Entretanto, de acordo com as observações apresentadas, tais diferenças relativas aos papeis de gênero não se sustentam em argumentos como por exemplo, como decorrência de um determinismo biológico, uma vez que as enunciações dos papéis mostram-se evidentemente regidos pela cultura. “Cultura” e “natureza”, são categorias conceituais, onde a natureza refere-se ao ser humano enquanto matéria, corpo, natureza biológica, e a cultura, é aquilo que transcende o corpo, que expressa-se imaterialmente e modifica o mundo físico a partir de criações artificiais. “Cada cultura, ou, genericamente “cultura” está engajada no processo de gerar e suster sistemas de formas de significados [símbolos, artefatos] por meio dos quais a humanidade transcende os atributos da existência natural, ligando-as a seus propósitos, controlando-os de acordo com seus interesses. Podemos assim amplamente equacionar a cultura com a noção de consciência humana (isto é, sistemas de pensamento e tecnologias), por meio dos quais a humanidade procura garantir o controle sobre a natureza”. (Orter, Sherry. p. 100. 1979) Sherry pontua que reproduziu-se o discurso de ser a natureza subalterna em relação à cultura, ao passo que, por conta de tal reprodução simbólica, deixou-se de compreender que a mulher não está mais inclinada à natureza no plano da realidade do que o homem, em detrimento da cultura. “O status intermediário, as funções mediadoras e os sentidos ambíguos, são diferentes interpretações para finalidades contextuais diversas da mulher focalizada como intermediária entre a natureza e a cultura” (Orter, Sherry. p. 118. 1979) Claudia de Lima Costa, em sua publicação “O sujeito no feminismo: revisitando os debates”, (2002), tece uma análise crítica no que diz respeito a enunciação e colocação da mulher, enquanto sujeito, dentro do feminismo — articulando sobre os variados discursos e vertentes contidos no movimento, a partir da abordagem epistemológica pós estruturalista. No discorrer do artigo é minuciosamente trazido à luz, a condição histórica da mulher e a forma como ela, enquanto sujeito, é retratada como um signo subalterno, secundário e de falta — na ordem de uma reprodução cultural, intelectual, falocêntrica. Ao passo que a autora propõe-se criticar, com intenções de descontruir pressupostos filosóficos cuja perspectiva desconheça a mulher enquanto um signo positivo, protagonista e articuladora de ideias. “o sujeito é sempre um interdiscurso, o produto dos efeitos das práticas discursivas que o atravessam no curso de sua história, então se torna imperativo nos referirmos às especificidades da história desse sujeito – suas lignes d’erreur – na elucidação do complexo dialogismo entre o sujeito e seus múltiplos lugares de enunciação” (COSTA, Claudia de Lima . 2002.p.65) Neste contexto faz-se necessário e é positivo analiticamente, que hajam essas várias vertentes dentro dos espaços de discurso e enunciação do feminismo, que se propõe articular sobre os dilemas da mulher “referentes à subjetividade e à identidade” “Defendo que o movimento para dentro e para fora das representações/discursos não gera negatividade, mas, ao contrário, uma positividade que também fala dos investimentos particulares do sujeito (materiais, emocionais, libidinosos) em posições discursivas a partir das quais se experiência o mundo. Resumindo meu argumento, a vitalidade atribuída à teoria feminista hoje vem da sua posição dentro dos discursos tanto autorizados quanto exteriores ou mesmo excessivos a eles próprios, ou seja, da posição da “mulher” como essencial e também como radicalmente “outra”” (COSTA, Claudia de Lima. 2002.p.67). Questão 02 Quais seriam as implicações psicossociais e para a prática clínica que podemos inferir a partir da afirmação de Monique Wittig: “As lésbicas não são mulheres”. De acordo com Monique Wittig no texto ‘O Pensamento Hétero’ (1980), vivemos em uma sociedade onde todo e qualquer discurso é indubitavelmente heterossexual. Mesmo que possamos dizer que nada é natural, mas sim cultural, ainda se acredita que a heterossexualidade é inata ao ser humano, ou seja, toda construção social partiu desta única predisposta – e opressora – ‘certeza’: toda sociedade e aqueles que vivem nela são heterossexuais. Com isso, temos a relação social entre ‘homem’ e ‘mulher’ (cultura binária), processos inconscientes imperativos que nos ensinam cada vez mais sobre nós mesmos (nós como indivíduos deste pensamento hétero), a constante necessidade da sociedade heterossexual pelo diferente/outro – que seriam aqueles que não se enquadram ou são considerados inferiores nesta sociedade quadrada, como, por exemplo, as mulheres, as lésbicas, gays e várias categorias de homens, todos estes na posição de serem dominados. Wittig diz “Se nós, lésbicas e homossexuais, continuarmos a falar de nós próprias(os) e a conceber-nos como mulheres e como homens, estamos a ser instrumentais na manutenção da heterossexualidade” (1980), ou seja, se encaixar nesta cultura binária, se denominando homem ou mulher, apenas estaria contribuindo para que este pensamento persista. Seguindo esta linha de pensamento, na ultima linha de seu texto, ela escreve (1980): “As lésbicas não são mulheres”, nisto, ela se refere ao fato de que, neste mundo heterossexual, a mulher é dependente do homem, que ela precisa de uma figura masculina em sua vida, e a ideia de que uma mulher possa vir a manter um relacionamento sexual ou amoroso com outra mulher é inconcebível. Então, como uma lésbica não precisa de um homem para a sua existência, ela não pode ser considerada uma mulher. A partir desta tentativa de quebrar o pensamento hétero opressor, podemos compreender que, como ela não se enquadra nesta cultura binária, então está numa categoria completamente nova ou, simplesmente, em nenhuma categoria, e que com isso, vários conceitos concebidos através da sociedade heterossexual, também não lhe representam. As lésbicas, por não serem mulheres (mesmo fazendo parte do diferente/outro), não estariam suscetíveis ao tipo de opressão que este tipo binário sofre constantemente. Não seriam cobradas diariamente para realizarem aquilo que – socialmente falando – torna uma mulher mulher: ser mãe (e amar incondicionalmente seus filhos), cuidar dos deveres do lar, ser venerável e, claro, nunca parar a busca por um homem, o que lhe dará sentido à sua vida. Além disso, podemos questionar a relação desta afirmação com a psicanálise, pois, como tudo e qualquer coisa fundamentada nesta sociedade, essa linha da psicologia também carrega o pensamento hétero. Conceitos como o Complexo de Édipo, Nome doPai, Castração, Inveja do Falo, entre outros, tem como personagens principais a criança, o pai e a mãe – novamente, a cultura binária, pois mesmo que sejam papéis que possam ser assumidos por qualquer sexo biológico, ainda são papéis que carregam várias predisposições sociais –. Estes conceitos colocam os primeiros objetos de desejo da criança em quadrados sociais que vão influencia-la sobre qual quadrado ela irá corresponder. Ao se retirar destas posições sociais, Wittig inviabiliza esses conceitos, pois estes não representam as lésbicas. E fica claro sua preocupação com a relação do discurso psicanalítico e o pensamento hétero pois “[...] o pensamento hétero desenvolve uma interpretação totalizante da história, da realidade social, da cultura, da linguagem e simultaneamente de todos os fenômenos subjetivos. Posso apenas sublinhar o caráter opressivo de que se reveste o pensamento hétero na sua tendência para imediatamente universalizar a sua produção de conceitos em leis gerais que se reclamam de ser aplicáveis a todas as sociedades, a todas as épocas, a todos os indivíduos. Assim, fala-se de conceitos como a troca de mulheres, a diferença entre os sexos, a ordem simbólica, o Inconsciente, Desejo, Jouissance, Cultura, História, dando um significado absoluto a estes conceitos, quando são apenas categorias fundadas sobre a heterossexualidade, ou sobre um pensamento que produz a diferença entre os sexos como um dogma político e filosófico.” (WITTIG, Monique, 1980) Em suma, podemos entender a clínica como um linha teórica heterossexual voltada para pessoas heterossexuais e capaz de produzir ainda mais indivíduos ajustados de acordo com este pensamento. Em seu texto, Regulações de Gênero (p.703), a filósofa Judith Butler indaga: “Como uma mudança de pensamento sobre gênero como regulado por leis simbólicas para uma concepção de gênero como regulado por normas sociais pode contestar essa indiferença da lei àquilo que regula? E de que forma tal mudança possibilita uma contestação mais radical da própria lei?” Comentem os efeitos da indagação de Judith Butler para a prática clínica em psicologia. Judith Butler aponta como a noção de cultura é diferente, por vezes, radicalmente oposta, da perspectiva dos psicanalistas lacanianos para os estudiosos contemporâneos da cultura. As implicações na prática clínica dessas concepções ocorrem na medida em que para os psicanalistas, ao menos os lacanianos, o “simbólico” do sujeito é construído por diversas contingencias culturais, mas é algo que está além do social e do biológico. Para a psicanálise a construção do gênero está englobada pela própria formação do inconsciente do sujeito, o gênero estaria sujeito ao regime e as condições inconscientes. Já para Judith Butler: “... gênero requer e institui seu próprio regime regulador e disciplinar específico” (BUTLER J., 2014, Do bom uso do mau gênero, p. 4). Pode-se constatar através da leitura dos textos de Jacques Lacan uma proposta de binarismo de gênero e normatividade em sua teoria psicanalítica. O sujeito que não passa pela cisão afetiva “normal”, esperada, com a sua mãe na infância, com o masculino impondo o rompimento dos laços afetivos com o feminino, mostrando novamente o binarismo psicanalítico, não pode se enquadrar mais como “neurótico”, personalidade esperada na maior parte da população, o indivíduo passa a ser perverso ou psicótico, podendo até ser um subtipo classificado como “homossexual”, dentro dessas estruturas psíquicas disfuncionais segundo a teoria psicanalítica lacaniana. “Gênero é o aparato pelo qual a produção e a normalização do masculino e do feminino se manifestam junto com as formas intersticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e performativas que o gênero assume. Supor que gênero sempre e exclusivamente significa as matrizes “masculino” e “feminina” é perder de vista o ponto crítico de que essa produção coerente e binária é contingente, que ela teve um custo, e que as permutações de gênero que não se encaixam nesse binarismo são tanto parte do gênero quanto seu exemplo mais normativo.” (BUTLER J., 2014, Do bom uso do mau gênero, p. 5) Gênero pode ser visto muitas vezes de maneira binária, masculino e feminino, e pode ser usado para subcategorizar indivíduos de maneira que acabe produzindo a exclusão social. Em um espaço de escuta clínica o psicólogo não deve estigmatizar seu paciente por sua orientação sexual, deve haver um processo de desconstrução de gênero, partindo do terapeuta e chegando até o cliente, gênero pode ser uma ferramenta de desconstrução. “Gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato através do qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados.” (BUTLER J., 2014, Do bom uso do mau gênero, p. 7) Para a psicanálise há uma distinção entre a lei simbólica e as leis sócias e biológicas, para a teoria queer da psique essas diferenças não se sustentam, porque o próprio simbólico se estabelece pelas práticas sócias. Na clínica o psicólogo entende que o sujeito, por essas perspectivas, é fruto de suas relações sócias. Butler desafia a perspectiva lacaniana que acredita existir uma demanda ideal do inconsciente, na qual o pai teria seu lugar simbólico, sendo esse pouco afetado pelas reorganizações sócias, o falo seria a figura central imutável. No processo clínico, o terapeuta, com essa visão lacaniana, poderia facilmente seguir o discurso do patriarcado no processo de análise do sujeito, ignorando os rearranjos sociais. A psicanálise lacaniana insiste que as posições simbólicas masculinas e femininas são incontestáveis. “Se há uma Lei que não podemos deslocar, mas que, sempre que possível, tentamos deslocar em nosso imaginário, então sabemos desde o início que nossos esforços de mudanças serão questionados, e nossa batalha contra a versão da autoridade de gênero será frustrada, e que nos submeteremos a uma autoridade incontestável” (BUTLER J., 2014, Do bom uso do mau gênero, p. 9) Em virtude dos fatos mencionados, pode se constatar que às indagações de Judith Butler tenham efeitos na prática clínica por levaram o psicólogo a desconstruir diversos pressupostos de linhas teóricas a respeito do gênero, como a própria ideia do binarismo. “Se gênero é uma norma, isso não equivale a um modelo ao qual os indivíduos tentam se aproximar. Ao contrário, é uma forma de poder social que produz o campo inteligível de sujeitos, e um aparato pelo qual o binarismo de gênero é instituído.” (BUTLER J., 2014, Do bom uso do mau gênero, p. 13). Devemos parar de olhar o outro sob as lentes do binarismo, com a ótica do preconceito que fomenta e incentiva a exclusão social.