1
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN
Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria
Faculdade de Filosofia
Curso: Licenciatura em Filosofia
Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza
História da Filosofia Contemporânea I
Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza1
1. NIHILISMO: DA NEGAÇÃO DA VERDADE E DOS VALORES À
PERGUNTA SOBRE O SENTIDO DA EXISTÊNCIA
O Nihilismo, em seus diferentes modos de apresentação, é interpretado, por boa
parte dos filósofos contemporâneos, na seqüela de Nietzsche e Heidegger, como
resultado inevitável do desenvolvimento do lógos ocidental. Este movimento
influenciaria não só a especulação, mas também a atividade prática e produtiva. Em sua
apresentação teórica ele geralmente parte de uma interpretação que tende a ler a deriva
nihilista — que traz consigo um acentuado clima de indisposição em relação ao que foi
chamado no Ocidente de filosofia nos últimos vinte e seis séculos, chegando a apregoar
a sua exaustão — como o fim implacável da forma de pensar construída a partir de
Sócrates, sobre o fundamento da metafísica, que pretendia o conhecimento do Ser, ou
do “Em si”. Segundo esta mesma leitura, a revolução científico-técnica, moderna e
contemporânea, seria apenas um outro capítulo desta história, seguindo a sua mesma
lógica (D’AGOSTINI, 1999).
Vários movimentos — dentre outros: a crise da subjetividade de tipo cartesiana;
a tentativa de fundação de uma nova forma de compreensão do objeto em sua relação
com o sujeito que conhece; a crítica do objetivismo científico — acabaram por
convergir em um importante fenômeno filosófico do século XX que se chamou
comumente de revolução lingüística. Inicialmente, as preocupações dos estudiosos da
linguagem vertiam sobre a possibilidade de constituição de uma meta-linguagem
universal que pudesse servir de fundação ao discurso científico. No entanto, tal projeto
não tardou a revelar as suas limitações. A linguagem mostrou-se um lugar de
1
O Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza é mestre em filosofia pela Pontifícia
Universidade Gregoriana de Roma, mestre em bioética pela Universidade Pontifícia
Regina Apostolorum de Roma e professor da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte.
intersubjetividades com um fundo impuro e pragmático, determinado mais ou menos de
acordo com relações comunicativas, interesses, emoções e vínculos sociais. Em meio a
tal âmbito se desenvolverá as teorizações dos mais importantes tipos de relativismo
(D’AGOSTINI, 1997, p. 167): a) histórico; b) epistemológico; c) lógico-linguístico e d)
ético.
1.1 TIPOLOGIA DO NIHILISMO
a) Relativismo histórico: relacionado, sobretudo, com um especial modo de
interpretação da história das aquisições teóricas que marcaram o lógos ocidental,
segundo o qual as revoluções qualitativas que caracterizaram as diversas épocas, nas
quais tal história pode ser fracionada, são indícios comprovativos da contingência e
relatividade de qualquer forma de interpretação de mundo. Já presentes em Vico e
Hegel, as teorias sobre a transitoriedade das aquisições teóricas somente com Dilthey e
o historicismo alcançam uma apresentação determinante para a filosofia contemporânea.
Entretanto, segundo Dilthey tal dinamicidade não seria aplicável às ciências
ditas naturais, nas quais a evidência dos dados e a cientificidade de procedimentos não
deixariam espaço para a contingência típica do sujeito histórico — ao contrário do que
aconteceria com as ciências ditas do espírito, onde o sujeito que conhece se encontraria
profundamente envolvido.
As conseqüências de tal visão, logicamente, atingem em cheio a filosofia: toda
solução filosófica ao problema da relação do trio conceitual Deus-homem-mundo
possuirá, como veremos a seguir, a sua validade somente em relação ao presente.
As conclusões de Dilthey serão retomadas por Heidegger e Gadamer, em uma
prospectiva mais concentradamente lingüística. Segundo estes autores, “conhecer” será
equivalente a “interpretar”. No entanto, o que é colhido em um ato de conhecimento não
será nunca completamente global (todo o ser) e definitivo (para sempre). A verdade
seria sempre situada, porque seu lugar é a linguagem, evento este sempre relativo às
modalidades nas quais se manifesta, possuindo em si uma estrutura temporal.
b) Relativismo epistemológico: a crescente especialização das ciências naturais
provocou sua acentuada fragmentação interna, com a fundação de diferentes campos de
aplicação das leis e descobertas. Objetivando a reunificação, ao menos metodológica,
das ciências, diversos autores teorizaram a possibilidade de identificação de um
esqueleto lógico que possivelmente nos daria a centralidade do problema relacionado
com a cientificidade, em especial através do estudo da lógica da descoberta científica.
Neste projeto a filosofia, segundo alguns autores,2 desempenharia um papel de grande
importância, como meta-linguagem ou meta-teoria.
Todavia, como observará Mary Hesse em sua obra Revolutions and
Reconstruction in Philosophy of Science (1980), uma nova descrição histórica da
ciência romperá com qualquer dicotomia entre ciências da natureza e ciências do
espírito, aplicando também às primeiras as teses de Dilthey sobre a teoria histórica.
Os resultados de diversos estudos foram surpreendentes. Basta lembrar da
famosa obra de Th. Kuhn, Estrutura das revoluções Científicas. Partindo da análise da
história da ciência, Kuhn identifica um processo interno no qual procedendo de blocos
ou paradigmas explicativos que dão sentido à realidade, cedo ou tarde se produz uma
crise, a qual tende a tornar-se violenta, até que o antigo paradigma é substituído por um
novo. Tal revolução, no entanto, não se realizaria dentro de uma mesma linear evolução,
ou seja, o salto de um paradigma a outro não seria racional, fundamentalmente porque
os paradigmas são incomensuráveis entre si e dado a inexistência de um metaparadigma universal em relação ao qual os paradigmas singulares pudessem ser
julgados (LAKATOS, 1985, I, p. 116). Sobre as razões que levam os cientistas a
abraçarem um novo paradigma, escreve Kuhn (1978, p. 184-185):
Singularmente considerados, os cientistas abraçam um novo
paradigma por todo gênero de razão, e geralmente por várias razões ao
mesmo tempo. Algumas destas razões — por exemplo, o culto do sol
que contribuiu a converter Kepler ao copernicanismo — si encontram
completamente fora da esfera da ciência. Outras razões podem
depender da idiossincrasia autobibliográfica e pessoal. Por fim, a
nacionalidade ou a precedente reputação do inovador e de seus
mestres pode desempenhar uma fundação importante.
A partir de tais constatações, Kuhn promove uma forte crítica à prospectiva
empírico-racionalística de Popper e Carnap, elevando-se contra a idéia de um método
2
Veja-se o exemplo do Husserl das Pesquisas Lógicas.
único para a análise das teorias científicas (mesmo que constantemente renovado em
sentido falsificacionista) e contra a pretensão de que a ciência seria ou deveria ser uma
mera descrição de fatos, sem a implicação de valores. A incomensurabilidade das
teorias provocaria a lógica delegitimação da filosofia como meta-teoria, pela
impossibilidade de confrontar resultados.
c) Relativismo lógico-lingüístico: segundo F. D’Agostini (1997, p. 176), o
percurso deste terceiro tipo de relativismo se compreende somente observando a
interconexão que se criou entre a prospectiva lógico-lingüística e aquela epistemológica.
Neste âmbito, assiste-se a um processo que vai do atomismo lógico-lingüístico à
continuidade histórico-dinâmica. A tal respeito são importantes as observações de
Richard Bernstein em Beyond Objectivism and Relativism (1997, p. 24): “assistimos a
uma dialética interna que levou da preocupação […] pelo termo isolado à preocupação
pelo enunciado ou proposição, assim ao esquema conceitual ou à estrutura (semântica
modelística) e em último à tradição histórica”.
Ainda seguindo tal obra, no campo da lógica o início do século XX é dominado
pelo confronto de três posições principais: de um lado o logicismo (no qual se exprimia
uma certa confiança na objetividade e atemporalidade das estruturas lógicas de base do
pensamento); de um outro lado, o intuicionismo (sublinha o arbítrio do matemático na
criação e concepção das estruturas lógicas do pensar) e o formalismo (implicante uma
teoria geral do pensar como um sistema axiomático-dedutivo, desenvolvido a partir de
certos axiomas assumidos inicialmente; sem que se presuma, entretanto, a sua
universalidade compartilhada ou o seu efetivo poder de descrição da realidade) que se
configuram como tipos de relativismo lógico. O surgimento das lógicas alternativas e o
falimento das tentativas de fundação a partir da lógica de um meta-discurso, embora não
dêem razões suficientes ao intuicionismo e ao formalismo, provocaram, entretanto, o
aniquilamento do logicismo.
Em âmbito lógico-lingüístico, a mais influente expressão de relativismo pode ser
vislumbrada no Wittgenstein das Philosophische Untersuchungen e sua teoria dos jogos
lingüísticos. Nesta fase de seu pensar, ele coloca em discussão a utilidade da lógica
formal na análise da linguagem, acabando por teorizar que o significado de uma palavra
seria dado de seu uso, ou seja, do modo e das circunstâncias específicas nas quais nós a
utilizamos. Saber o significado de uma dada palavra é saber as regras de seu uso,
válidas somente em dadas circunstâncias e não em outras, nem muito menos
universalmente.
Autonomamente a Wittgenstein, desde fins dos anos quarenta, Willard V.O.
Quine formulava uma posição que punha em questão seja a dicotomia — cara ao
objetivismo científico — entre verdades lógicas (fundadas sobre a estrutura lógica e
válida universalmente da linguagem) e verdades de fato (fundadas sobre a experiência
empírica), seja a teoria do significado como referimento a coisas. Em 1960, na obra
Palavra e objeto, Quine defende o princípio da indeterminação da tradução, segundo o
qual o significado seria em grande parte determinado pela configuração lógicoontológica na qual nos encontramos, ou melhor, pelo nosso esquema conceitual —
analogamente a quanto observou Kuhn em âmbito epistemológico, com a diferença que
para Kuhn existem diversos mundos incomensuráveis, enquanto Quine pensa em um
único mundo e diversos esquemas lingüísticos.
d) Relativismo Ético: Asladair MacIntyre se preocupará em After virtue em
caracterizar o relativismo ético ao qual nossa época é sujeita.
No segundo capítulo de tal obra afirma (MACINTYRE, 1988, p. 17):
A característica mais singular da expressão moral contemporânea é
que uma grande parte desta é utilizada para manifestar dissensos; e a
característica mais singular dos debates nos quais estes dissensos se
manifestam é a sua interminabilidade. Com tal não pretendo afirmar
somente que tais debates se prolongam até a náusea (se bem que o
façam), mas também que não parecem poder provar nenhuma
conclusão legítima. Parece que não existam meios racionais para
garantir o acordo moral na nossa cultura.
Como já mencionamos, MacIntyre partirá de tal constatação e procurará a
identificação de suas motivações, encontrando-a no período que seguiu ao iluminismo,
no qual se dará a perda do contexto teístico clássico e conseqüentemente se criarão
resíduos lingüísticos tendentes à confusão e ininteligibilidade.
MacIntyre nos capítulos 4, 5 e 6 da mesma obra promove uma reconstrução
histórica da tentativa moderna de fundação da moral, centrando-se sobre o estudo de
três autores: Hume, Kant e Kierkegaard.
Segundo MacIntyre, tais teorizações morais não podem ser descontextualizadas
e, em geral, são frutos de uma prática já existente, ou ao menos pretendem sê-lo. Mas
como seria esta caracterizada? A prática moral nestes séculos possuiria suas raízes na
moral do primeiro período de sua história, cujo contexto filosófico é o da tradição
clássica, no qual dominam três elementos, reciprocamente relacionados, quanto à
consideração ética do homem: a natureza espontânea, os preceitos morais e a natureza
realizada. Hume, Kant e Kierkegaard tentam promover uma sua nova articulação.
Dentro de seus projetos, algumas opiniões são compartilhadas, como por
exemplo a consideração do matrimônio e da família como valores indiscutíveis ou a
fidelidade às promessas feitas e à justiça como invioláveis. E não somente: Kant, Hume
e Kierkegaard concordam no que concerne ao como deveria ser uma justificação
racional da moral, ou seja, no seu referimento a um ou mais elementos da natureza
humana (ainda que Kant não o admita, por entender o conceito de natureza humana
como o lado não racional do homem), e é em base ao que seria tal “natureza” que as
regras morais poderiam ser justificadas. (MACINTYRE, 1988, p. 69-72)
Hume parte da teorização de que são os sentimentos e as paixões a levarem o
homem a agir, e não uma qualquer razão intelectual. Reconhece, ainda, que a nossa
formação de juízos morais faz referência a regras gerais, e pretende explicar estas
últimas por meio da sua unidade no procurar ajudar-nos a atingir os fins de nossas
próprias paixões. É claro que se consideram aqui como sede de juízo as paixões de um
homem normal, o qual podemos definir racional, ou melhor, de acordo com Hume: “de
um herdeiro satisfeito da revolução francesa de 1688” (MACINTYRE, 1988, p. 66).
Mas, no caso de conflitos dentro de nossas próprios interesses ou em relação aos
interesses de outros sujeitos? No âmbito de nossos próprios interesses, o nosso juízo de
ação deve ser feito tendo como base a distinção entre interesses superiores e inferiores.
Em relação ao conflito com interesses de outros nos quais seria violada a justiça, Hume
em Investigação sobre o princípio da moral reconhece a existência do critério da
simpatia, o qual justifica o certo altruísmo em base ao qual podemos renunciar.
Os problemas são evidentes: além de pressupor um critério que foge ao seu
sistema moral, qual seja a simpatia; em que basear a distinção entre o que seja superior
e o que seja inferior em relação aos nossos interesses? Certamente, não a partir dos
nossos próprios interesses. Fazendo uso de um critério externo? Qual seria este? Hume
não nos dará tal resposta.
Passemos à consideração da tentativa levada a cabo por Kant. Na Crítica da
razão prática Kant negará que a moral humana seja fundada sobre uma qualquer
natureza (entendendo-se natureza, como já dissemos, como a parte irracional do
homem). O critério do juízo moral não poderia ser o da experiência, dado que assim a
moral deveria ser subjetiva e particular, portanto variável e contingente. O fim que
determinaria a ação da vontade, para se fundar uma ciência universalmente válida, não
poderia ser externo a esta, devendo constituir-se em uma lei ou forma a priori
incondicionada. Tais caracterizações Kant encontrará na formulação do imperativo
categórico, o qual pode ser expresso como segue: “age em modo que a máxima da tua
vontade possa, sempre e ao mesmo tempo, valer como princípio de uma legislação
universal“. Assim, seriam excluídas toda forma de heteronomia e de empiricidade,
porquanto o imperativo categórico seria determinado somente pela pura forma universal
da razão, sendo excluso inclusive o referimento prudencial aristotélico à felicidade.
Uma pergunta é, entretanto, premente: porque seguir uma tal enunciação? Kant
não nos dá razões suficientes, a não ser a do dever pelo dever. Mas qual o senso de tal
obrigação? Além do mais, não se poderiam detectar incoerências de princípio em se
pretender, por exemplo, agir egoisticamente ou não ser fiel à verdade (como no caso de
alguém, ou de uma mentalidade cultural, que assuma que tal procedimento poderia ser
compatível com as exigências do imperativo categórico), senão no caso de se pressupor
um motivo que funde a incoerência, motivo este mais uma vez exterior ao sistema.
MacIntyre a tal respeito afirma ainda que poderia ser danoso, mas em todo caso não
impossível, invocar razões de conveniência ou de referimento prudencial à felicidade
(MACINTYRE, 1988, p. 64).
Kant parece não se eximir desta questão de maneira tal a pensar na Crítica da
razão prática em uma re-introdução — depois da sua exclusão da esfera de
consideração da razão pura — não somente da idéia da liberdade como elemento
sintético presente no imperativo categórico, mas ainda das idéias de imortalidade e de
Deus como garantidoras da não absurdidade de uma existência que mesmo contra o útil
optaria pela concordância moral com a máxima universal.
Em obras posteriores, Kant na tentativa de salvar o seu sistema, nos dá a chave
de ingresso à crítica moral posteriormente dirigida à modernidade por Nietzsche. Na sua
obra de 1793, A religião nos limites da Pura Razão, Kant propõe uma interpretação da
religião natural e da religião cristã, segundo a qual esta última deveria conformar-se à
primeira. A revelação seria inútil, sendo autenticamente válida somente em suas
conclusões morais coincidentes com os resultados obtidos pela razão prática. A religião
serviria somente para preencher o vazio da sustentação da vida moral, em vista de nos
fazer homens melhores — como pessoas morais, e não em senso ao alcance da
divindade. A partir de uma outra obra de 1798, O conflito das faculdades, Kant chega a
concluir que a nossa idéia de Deus não poderia possuir nenhum referimento fora da
razão, porquanto Deus seria um ser a nós inacessível, enquanto não empírico. O Deus
que entraria de alguma forma em relação com o homem, em fins de conta, parece ser
reduzido ao que Kant chamou lei moral interior.
Em relação a Kierkegaard, mais uma vez fundamentalmente sobre a orientação
de MacIntyre (1988, pp. 58-60), concentramos o nosso estudo sobre Enten-Eller. São
referidos, em tal obra, dois modos de vida possíveis, o ético e o estético. A partir destes
dois gêneros de vida recorre uma nova idéia fundamental: reconhecendo ser impossível
fundar a moral seja na razão, seja nas paixões, o sujeito humano deve optar — ao menos
virtualmente, dado a possibilidade de não total pureza — por um ou outro
fundamentalmente contraditórios e incompatíveis estilos de vida. Nesta escolha não se
pode aludir a nenhum pressuposto, dado que estes dois estilos são reconhecidos como
princípios primeiros, não se podendo fazer uso de qualquer outra razão para sustentá-los
— devendo ser adotados mesmo sem nenhuma razão, através de uma escolha que
supera a razão, porque é a escolha que para nós deve valer como uma razão. Segundo
MacIntyre não é difícil observar a falha de tal teorização (1988, p. 59):
consideremos o gênero de autoridade que exerce sobre nós qualquer
princípio que poderemos escolher como vinculante ou não [...] Os
princípios possuem autoridade na mesma medida em que existem
boas razões para observá-los, e a perdem na medida em que tais
razões não existem. Seguiria que um princípio a favor de uma escolha
da qual não se poderia aduzir nenhuma razão seria um princípio
desprovido de autoridade. [...] Um princípio de tal gênero (e chamá-lo
princípio parece ser uma extensão indevida do uso lingüístico)
pareceria claramente pertencer à esfera da estética kierkegaardiana.
Ora, o significado da doutrina de Enten-Eller é claramente que os
princípios que definem a vida ética devem ser adotados sem nenhuma
razão, mas em base a uma escolha que transcende a razão,
precisamente porque é a escolha daquilo que para nós deve valer
como uma razão. Mas como pode possuir uma autoridade sobre nós
um princípio que adotamos sem razão? A contradição na doutrina de
Kierkegaard é evidente.
Esta nossa sintética análise moral, para ser-nos suficiente à elaboração de uma
conclusão mais contundente, deve ainda levar em consideração um último argumento:
segundo MacIntyre, o fato mais significativo de tal teorização moral, nos três casos
citados (Hume, Kant e Kierkegaard), é que a justificação de cada uma duas primeiras
posições se edificava principalmente sobre a constatação do falimento da outra, e a
terceira sobre a do falimento do inteiro projeto racional-passional moderno
(MACINTYRE, 1988, pp. 67- 68):
o que conduziu [a Hume] à conclusão que a moral deva ser entendida
em base ao papel das paixões e dos desejos na vida humana, explicada
e justificada em referimento a este, é a sua assunção inicial que a
moral seja ou obra da razão ou obra das paixões, e os seus argumentos
que aparentemente excluem em modo definitivo que possa ser obra da
razão. [...] assim Kant a funda sobre a razão porque os seus
argumentos excluíram a possibilidade de fundá-la sobre as paixões, e
Kierkegaard sobre a escolha fundamental privada de critérios por
causa daquilo que ele considera o caráter congênito das considerações
que excluem tanto a razão quanto as paixões. [...] O projeto de
fornecer uma justificação racional da moral era decisivamente falido:
e de agora em diante à moral da cultura que nos precedeu (e de
conseqüência à nossa) faltou qualquer base lógica ou justificação
publicamente compartilhada.
Após a análise destes quatro tipos de relativismo, entende-se o porquê das
afirmações contemporâneas que interpretam o nihilismo como sendo o destino
implacável do lógos ocidental. Neste contexto, porém, torna-se imprescindível ao
espírito crítico não ocultar a pergunta: realmente a técnica-nihilismo é um resultado
inevitável e lógico da forma como a razão ocidental fora desenvolvida, a partir dos
gregos, ou se trata apenas, como pensava Husserl, “de um empobrecimento ou erro na
concepção do lógos que em Sócrates, Platão e Aristóteles soube se impor contra o
nihilismo que encontra em Górgia uma de suas figuras carismáticas?” (VOLPI, 1994, p.
313). Ou melhor, O único caminho possível é o deixar-se livremente levar pelos
dinamismos dos acontecimentos, entregando-se à deriva da corrente, indubitavelmente
forte, que nos arrastaria ao nihilismo, que finalmente chega a proclamar-se como total:
nihilismo da vida. Seria o nihilismo o ponto de atração irremediável dentro ao
movimento não mais simplesmente do lógos — não compacto —, mas de sua crise?
De certo, o projeto moderno de fundação de uma indubitável ciência filosófica
especulativa e prática — que encontra em Spinoza, Leibniz e Kant alguns de seus mais
ilustres defensores — mostrou-se injustificável. Observe-se que esta crise de verdade e
de valores atingirá a fé em uma possível resposta àquela que se configurará para Kant,
na Crítica da Razão Pura, na pergunta filosófica fundamental: “quem é o homem?”,
traduzida tanto pela filosofia de Blondel, quanto por aquela de Nietzsche em uma
pergunta pelo sentido da existência: “Sim ou não, a vida humana possui um sentido, e o
homem, um destino?” (M. BLONDEL, L’Action, VII ). ”Não apenas rejeitamos […] a
interpretação cristã e julgamos o seu sentido uma falsificação, embatemos-nos ao
instante, pavorosamente, na pergunta de Schopenhauer: Mas, a existência possui um
sentido?” (F. NIETZSCHE, Gaia scienza, 357).
A atual pesquisa procurará delimitar o horizonte de seus questionamentos em
torno da pergunta sobre o significado da existência humana, interior à esta crise, que
marcará, segundo Franca D’Agostini, paradoxalmente o paradigma filosófico atual
(D’AGOSTINI, 1999).
O estudo comparativo da filosofia de F. Nietzsche e de M. Blondel — a partir
do fio condutor da obra prima do filósofo de Aix-en-province, L’Action (1893) — em
torno do questionamento sobre o sentido da existência, não obstante o aparente
distanciamento, parece curiosamente se constituir em uma ocasião sob medida na
tentativa de buscar tais respostas.
Continuaremos brevemente as atuais discussões...
Download

O nihilismo se mostra em nossos dias como um complexo cultural