MEMÓRIA
C
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D
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L
Os donos da voz
PROJETO CHAMA ATENÇÃO PARA IMPORTÂNCIA
DA AUTORIA NOS FOLHETOS DE CORDEL
ualquer menção à literatura
de cordel geralmente nos traz
à mente a imagem de folhetos com
histórias sertanejas e capa em xilogravura, apresentados por cantadores de feira como se fossem peças
folclóricas, vindas não importa de
onde, escritas não importa por
quem. A autoria do cordel não é
muito notada fora dos círculos acadêmicos, e muitos se esquecem de
que, por trás da poesia popular, há
grandes poetas. O projeto Folhetos de Papel – Memória do Cordel,
coordenado pela professora Ivone
Ramos Maya, da Universidade Federal Fluminense (UFF), ajuda a
chamar a atenção para o quão pessoal é esse gênero, hoje consagrado
nas esferas mais intelectualizadas,
depois de cair nas graças de nomes
que vão de Guimarães Rosa a Ariano Suassuna. Para isso, na primeira fase, agora finalizada, a equipe
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FOTOS CARLO WREDE
DEBRUÇADA SOBRE O ACERVO DA CASA
DE RUI BARBOSA, IVONE MAYA RESGATOU A OBRA
DO MAIS ILUSTRE INTEGRANTE DO
GRUPO FUNDADOR DO CORDEL BRASILEIRO
de Ivone debruçou-se sobre a obra
do paraibano Leandro Gomes de
Barros (1865–1918), principal integrante do núcleo do Vale do Teixeira, na Paraíba, grupo fundador
do cordel brasileiro. Leandro, que
se mudaria para Pernambuco, estabelecendo-se em Recife, foi o primeiro a imprimir e editar folhetos
no Brasil, em 1893.
Explorando o acervo de cordel
da Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, o projeto vai trazer novamente a obra de Leandro ao público e mostrar as idiossincrasias de
um artista que, ao mesmo tempo,
esteve ligado à tradição francesa,
capaz de fazer poemas narrando
aventuras de cavalaria de Carlos
Magno, e sintonizado com o mundo que o cercava, com coragem
para fazer críticas morais e políticas. Mas talvez o detalhe mais curioso seja o fato de que ele era um
editor com interesse pela singularidade do artista.
“Embora seja poesia popular,
Leandro se preocupa muito com a
autoria, tanto que chama a atenção
para sua assinatura", diz Ivone,
diante de uma mesa em que os livretos de Leandro são preparados
para a digitalização. O material, na
maior parte legado à Casa de Rui
Barbosa por colecionadores, é
composto por quase mil folhetos,
que serão agora restaurados. Cerca
de 180 deles são raros – primeiras
edições e edições únicas, todas
impressas pelo próprio Leandro,
antes de sua morte –,
com cerca de 800
poemas. A pesquisadora e sua equipe –
três alunos de graduação da UFF,
um aluno colaborador, um historiador e um professor de literatura – chegaram a encontrar folhetos anteriores a
1905, como as raridades “Mosca,
pulga e percevejo” e “O povo na
cruz”, alguns em edições únicas,
sem reedição posterior, como “Um
pau com formigas”, que escapa do
estereótipo que seria consagrado
para a capa do cordel, o da ilustração tosca em xilogravura. O folheto, de 1912, e provavelmente
único no país, traz uma capa em
papel azul ilustrada em estilo art
nouveau, com arabescos.
O restante do acervo é de republicações posteriores à morte de
Leandro, em 1918, até a década de
70, por tipógrafos que adquiriram
(ou se apoderaram) dos direitos sobre sua obra. Há casos em que há
três edições de um mesmo texto,
como a de “O cachorro dos mortos”, de 1913, impressão do próprio
Leandro, com capa bastante simples, que ganha uma edição em
1919 pelas mãos de outro editor e
outra na década de 70, em off-set.
Mesmo em vida, Leandro já tinha suas histórias publicadas por
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O “GREGÓRIO DE MATTOS” DO CORDEL
Os poemas de Leandro Gomes de Barros, que versam sobre assuntos que vão
do cangaço ao cometa Halley, revelam uma veia crítica e uma língua ferina
raras. Ele é uma espécie de Gregório de Mattos do cordel. Dono de uma boca quase tão infernal quanto a do colega baiano, Leandro tinha a mesma
ojeriza à Igreja. Tanto que chegou a descrever a representação
de Deus na Terra como “excrescência” (e também o exército, os
políticos e outros grupos que o incomodavam) no poema sugestivamente intitulado “A caganeira”. Esse folheto, outro tesouro
do acervo, ainda não foi datado. Também não foi republicado e
não aparece em nenhuma antologia de literatura popular nordestina, embora tenha circulado em outras versões, atribuídas a
outros poetas, inclusive ao próprio Gregório de Mattos. “Mas a
dicção própria de Leandro e a presença das iniciais na contracapa não deixam dúvida: trata-se de um poema dele”, diz Ivone.
Apesar das críticas à Igreja, a pesquisadora chama a atenção
para os outros aspectos da personalidade do poeta: “Para
começar, ele é muito moralista e conservador, sobretudo em relação à emancipação da mulher”. Essa faceta aparece em folhetos como
“As saias calções”, em que ataca os novos comportamentos sociais por
meio das roupas das mulheres. Outra marca é o olhar cruel sobre a política.
“Ele é monarquista ferrenho e odeia a República”, diz Ivone, mostrando um
folheto de 1906 em que o poeta aciona sua metralhadora giratória contra
o presidente recém-eleito, Afonso Pena. É uma coleção memorável de insultos, que, junto com outros tantos que Leandro lançou contra a Igreja, os
militares, os impostos e até contra as sogras, poderão, na segunda etapa
do projeto, ser acessados via Internet, com vários recursos de multimídia.
F O L H E T O S
A N T E N A D O S
A conservação de acervos não é única
forma de mostrar que a literatura de
cordel quer sobreviver. Ainda há hoje em
todo o país autores que se dedicam aos
folhetos, mostrando
que cordel não é coisa
(só) de museu. Um
bom exemplo disso foi
o lançamento, na Bienal do Livro, em maio,
de “O menino que viajou num cometa”, de
Raimundo Santa Helena, um dos maiores
nomes da poesia de
cordel no país e o mais velho cordelista
ainda em atividade, aos 77 anos. O folheto, lançado pela editora Entrelinhas,
é o primeiro cordel infantil já feito e
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outros cordelistas, contra sua vontade, claro. Por isso, travou uma
batalha pelos “direitos autorais".
“Ele chega a colocar seu retrato na
segunda capa dos folhetos que
publica", explica Ivone. Mas talvez
a técnica mais radical tenha sido a de pôr um acróstico de sua assinatura
nas últimas estrofes de seus
cordéis. Nem isso, entretanto, conseguiu garantir a
integridade da obra. Várias
reedições
modificaram
versos para omitir a autoria, o que dificultou o trabalho da pesquisa, cujo
objetivo inicial era conseguir classificar tematicamente o acervo de cordel. “Os
critérios de classificação da biblioteca são superficiais, seguem
uma classificação biblioteconômica e não uma classificação literária", diz a professora, explicando
a necessidade de reler todos os
folhetos e ampliar o número de categorias em que, em breve, se po-
saiu com a cara dos tempos modernos:
vem acompanhado de um CD-ROM, com
a história apresentada em repente.
Santa Helena é uma lenda viva do
cordel. Foi o maior responsável pela
guinada que essa poesia popular deu
no final da década de 70. Em 1979, um
evento internacional de poetas de
cordel, na Bahia, concluía que o gênero estava chegando ao fim. “O cordel
estava de vela na mão, acabando em
todos os países”, diz ele. Pois ele criou
então o cordel urbano, uma nova versão da maneira de se fazer poemas
que já vinha desde o final do século
XIX, usando o mesmo tipo de versificação, mas transferindo o universo
temático para o cotidiano das cidades. Saíram de cena os cangaceiros, o
Padre Cícero e as mazelas morais, entraram temas como a ecologia (o
primeiro cordel urbano, de 1979, foi
“Devastar o Brasil?... Aqui para vocês!”) e até a educação sexual.
“O cordel urbano foi uma resposta
à necessidade que tínhamos de encontrar o público”, relembra Santa
Helena. Hoje, o poeta comemora a
marca de mais de 430 títulos e mais de
um milhão de folhetos vendidos. O
livrinho infantil é a cara do que ele
quer dizer com “encontrar o público”.
Diferentemente dos cordéis tradicionais, ele é todo ilustrado (uma
sugestão dada pelo poeta Carlos
Drummond de Andrade, amigo de Santa Helena, quando ele teve a idéia do
cordel, ainda na década de 80). Conta
derá fazer buscas no acervo, num
banco de dados eletrônico.
Formada em Letras, especializada em Alemão, pela UFRJ, foi na
brasileiríssima expressão do cordel
que Ivone encontrou seu campo de
trabalho mais fértil. Convidada em
1979 para um projeto de classificação temática de folhetos de cordel
da Casa de Rui Barbosa, ela retomou o assunto depois de terminar o
doutorado, na França, em 1987,
quando foi novamente convocada.
Em 2001, foi convidada pela diretora do Centro de Pesquisa da instituição, Raquel Valença, para o projeto de reestruturação da coleção
de cordel. Foi quando se deparou
com a necessidade de remontar o
sistema de classificação e datação
do acervo. O trabalho, com apoio
da FAPERJ desde 2002, começa
agora a render os primeiros frutos.
Alexandre Werneck
Apoio Faperj
Título | Folhetos de papel: memória do cordel
Modalidade | Auxílio à Editoração – APQ3
Ano | 2001 Valor | R$53 mil
uma história fantasiosa a partir da
passagem do cometa Halley, que acaba levando um menino para passear
pelas estrelas. E pede paz, de uma
forma um tanto, digamos, positivista.
“Pra que se fechem feridas/De velhos
ressentimentos/Pra que se rasguem
caminhos/De novos conhecimentos!”,
diz uma estrofe.
Essa tendência foi seguida por vários nomes importantes, como Azulão,
também do Rio, ou outros que ficaram
no Nordeste, como o pernambucano
Olegário Fernandes, hoje com 71 anos
e autor de mais de 200 cordéis. Fernandes foi um dos que, antenados
com seu tempo, mostraram a força do
cordel em 2001, em um boom ocorrido
no Nordeste logo depois dos atenta-
TRECHOS DE POEMAS DE CORDEL DE LEANDRO GOMES DE BARROS:
O velho mundo vai mal./E o governo, damnado/Cobrando
imposto de honra/Sem haver ninguém honrado/E como se
paga imposto/Do que não tem mercado?
[...]
Agora, se querem ver/O cofre público estufado/E ver no Rio
de Janeiro/O dinheiro armazenado/Mande que o governo
cobre/Imposto de deshonrado.
( " O I M P O STO D E H O N R A" , 1 9 1 6 )
A mulher é um volume/Que tem um peso infinito/Com carne
de dois mil réis/Feijão a crusado o litro/Farinha a mil e
duzentos/E esse só tem o couro/Ainda diz a mulher/Compre
pelo que estiver/Não faça cara de choro.
( " O C A S A M E N TO H O J E E M D I A" , E N T R E 1 9 1 7 E 1 9 1 8 )
[...] Fui logo ao bispote e assentando,/Mesmo sem querer
me fui cagando,/Caguei cabos, sargentos,
furriéis,/Capitães, majores, coronéis,/ Soldados, alferes,
tenentes,/Secretários, quartéis-mestres e agentes,[...].
( "A C A G A N E I R A" , I N Í C I O D O S É C U LO X X ) .
dos terroristas de 11 de setembro nos
Estados Unidos. Quase cem diferentes
folhetos foram lançados sobre o tema, alguns deles ultrapassando a casa dos 5 mil exemplares vendidos. O de
Fernandes, “O atentado terrorista e o
nosso sofrimento”, trazia na capa
uma xilogravura de um dos aviões se
aproximando dos prédios e aproxima
o povo nordestino da geopolítica do
terrorismo: “Há muitos anos que a
gente/sofre no alto grau/seca, fome
e carestia/no povo metendo o pau/e
agora pra completar/vem a guerra
mundial”.
Mas mesmo com o renascimento, o
cordel vem sobrevivendo a duras penas, como tudo de tradicional que insiste em se tornar autêntico neste
mundo pós-moderno. Santa Helena
mantém seus folhetos sendo vendidos
em todo o Brasil, mas o surgimento de
novos autores é cada vez mais raro.
Além disso, ele, um dos fundadores da
Feira de São Cristóvão, reduto maior
da comunidade nordestina no Rio,
teme pelo fim de espaços tradicionais, como a feira, que está sendo reformada, ou seja, modernizada. As
barracas vão ganhar um novo formato
e a feira vai ganhar horário fixo e outras formalidades a partir de setembro. Mas Santa Helena avisa: “Se
não houver um palco para o cordel e
os repentistas e continuar aquela parafernália de som sem que possamos
ser ouvidos, vamos fazer uma outra
feira, na rua”.
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Cordel - Faperj