O Brasil e a OMC O relançamento das negociações da Rodada Doha Marcos Márcia Fernando Marcos B. A. Galvão é embaixador, delegado permanente do Brasil junto à OMC, Márcia Donner Abreu é ministra-conselheira, delegada permanente alterna do Brasil junto à OMC e Fernando Meirelles Pimentel é ministro-conselheiro, delegação do Brasil junto à OMC. A RODADA DOHA: DE 2001 AO “PACOTE DE BALI” DE 2013 A conclusão da Rodada Uruguai (RU) de negociações comerciais e a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em janeiro de 1995, foram saudadas como um salto qualitativo de grande envergadura na regulamentação do comércio mundial. Ficavam para trás as diversas limitações do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, sigla em inglês), como a virtual exclusão da agricultura, de grande interesse comercial não só para o Brasil, como para maioria dos países em desenvolvimento; o arranjo institucional fragmentado resultante da existência de inúmeros acordos “plurilaterais”, aplicáveis apenas a parte de seus membros; as contestadas medidas “de zona cinzenta”, como os acordos de restrição voluntária de exportações, que tanto penalizaram manufaturas competitivas em países em desenvolvimento; e o imperfeito mecanismo de solução de controvérsias que dependia, para a implementação de suas decisões, do consentimento da parte reclamada. A OMC instituiu um sistema efetivamente multilateral, com a expansão do número de membros (128 em 1995, 161 em 2014), regras universais aplicáveis a todos, extensão da cobertura normativa a agricultura, serviços e propriedade intelectual, o estabelecimento de um mecanismo compulsório de solução de controvérsias e uma estrutura institucional sólida, com personalidade jurídica de direito internacional. Mas em setores como agricultura e serviços os oito anos de negociação da Rodada Uruguai não chegaram a promover uma liberalização efetiva do comércio internacional. Vinte anos depois, as tarifas médias aplicáveis aos produtos agrícolas continuam muito superiores às tarifas industriais, e são ainda mais elevadas no caso de produtos de interesse brasileiro, como açúcar e carnes. Os subsídios permitidos na agricultura, inclusive o apoio direto à exportação – banido desde 1958 para bens industriais – geram distorções comerciais com efeitos especialmente negativos nos países em desenvolvimento (PEDs). No setor de serviços, a “abertura comercial” na OMC limitou-se a tornar obrigatórios as regras e os regulamentos já aplicados pelos membros aos serviços e aos prestadores de serviço estrangeiros, sem gerar remoção adicional às barreiras existentes. Daí a OMC ter nascido como uma “obra em curso”, dotada, nos próprios textos negociadores que lhe deram origem, de uma agenda negociadora mandatada para iniciar-se a partir do ano 2000. 6 Nº 122 - Janeiro/Março de 2015 RBCE - A revista da York e ao Pentágono em Washington, o início de nova rodada de negociações comerciais. Muito rapidamente, entretanto, ficou clara a reticência de grandes economias industrializadas em avançar na liberalização agrícola caso a “moeda de troca” devesse limitar-se ao setor de serviços. Europeus, sobretudo – mas também norte-americanos – concordaram em que seria necessário lançar um novo processo negociador abrangente, com a inclusão de bens industriais, “regras”1 e, possivelmente, temas como investimentos, concorrência, questões laborais e facilitação de comércio. Uma primeira tentativa de voltar à mesa de negociações teve lugar em dezembro de 1999, em Seattle, onde se esperava que a III Conferência Ministerial da OMC lançasse a “Rodada do Milênio”. O projeto inviabilizou-se com o colapso do encontro, por divergências substantivas que incluíram nova tentativa de “composição” dos Estados Unidos (EUA) e da União Europeia (UE) em torno da agricultura e um clima de profunda acrimônia entre delegações de países desenvolvidos e em desenvolvimento, em meio a enormes manifestações de rua que marcaram, de forma definitiva, a chegada da sociedade civil organizada ao debate sobre os perigos da globalização comercial. Foi necessário esperar mais dois anos para acordar, em novembro de 2001, em Doha, meros dois meses após o atentado às torres gêmeas em Nova A Rodada Doha nasceu com a promessa de resultados robustos em temas do interesse dos países em desenvolvimento, àquela altura amplamente conscientes dos vários desequilíbrios resultantes da Rodada Uruguai. É sempre bom lembrar que, apesar dos inegáveis avanços em favor do sistema multilateral de comércio, a Rodada Uruguai consolidou uma espécie de “déficit de desenvolvimento” na OMC, ao estabelecer obrigações ambiciosas em novas áreas de interesse do mundo desenvolvido (propriedade intelectual e serviços), reduzir a latitude para política industrial nos PEDs – acordos de subsídios e de medidas de investimento relacionadas ao comércio, Trade-Related Investment Measures (TRIMS)–, oferecendo, em contrapartida, disciplinas claramente insuficientes em agricultura, talhadas “sob medida” pelo acordo de Blair House concluído entre os EUA e a Comunidade Europeia no final de 1992.2 O ambicioso cronograma acertado no Catar – adotar “modalidades negociadoras”3 até 2003 e concluir a Rodada em quatro anos, até dezembro de 2005 – não guardava proporção com a ambição do mandato, nem com a nova realidade “geopolítica” das negociações, marcada pela crescente projeção dos países em desenvolvimento num cenário que fora, dos tempos do GATT até anos iniciais da OMC, dominado pelo chamado Quad, reunindo as grandes potências comerciais da época: EUA, UE, Japão e Canadá. O edifício do livre-cambismo seletivo praticado até então começou a desmoronar em agosto de 2003, quando, em reação a uma nova tentativa euro-americana de limitar os avanços em agricultura, Brasil, Argentina, Índia, África do Sul e China reuniram 16 outros países em desenvolvimento com interesses substanciais em agricultura no “G-20” agrícola (G-20A), para impedir que fosse adiante uma nova iteração do “espírito de Blair House”. O firme posicionamento do grupo, sua expressão política, econômica e comercial e a qualidade e fundamentação técnica de suas posições puseram em cheque os ultrapassados ............................................................................ 1 No jargão da OMC, entende-se por “regras” o conjunto das disciplinas de defesa comercial: anti-dumping, subsídios e salvaguardas. 2 Concluído em novembro de 1992, o acordo de Blair House desbloqueou as negociações agrícolas da Rodada Uruguai, mas permitiu preservar o 3 essencial dos subsídios domésticos norte-americanos e das altas tarifas europeias na agricultura. 3 Simplificadamente, “modalidades” são as metodologias negociadoras e as fórmulas para corte de tarifas e subsídios existentes. Nº 122 - Janeiro/Março de 2015 7 O Brasil e a OMC métodos de tomada de decisão do sistema multilateral de comércio; mais do que isso, estimularam o ativismo de diversos outros grupos de interesse dos PEDs, dentre os quais o “G-33”,4 o G-905 e o Grupo das Economias Pequenas e Vulneráveis (SVEs, no inglês), que também passaram a assumir papel de relevo na negociação de temas de seu interesse direto. Essa democratização do processo decisório na OMC gerou impasses até hoje não resolvidos, dadas as diferentes expectativas sobre os resultados negociadores que possam corresponder ao “melhor interesse” de cada grupo. Apesar da antinomia entre PEDs e países desenvolvidos, a Rodada Doha conseguiu avanços importantes em 2004 e 2005, ano em que se adotou um detalhado programa de trabalho na Conferência Ministerial de Hong Kong. Em 2008, esteve-se muito próximo de uma conclusão das negociações, com resultados que figurariam como os mais ambiciosos na história do sistema multilateral de comércio. O entendimento terminou por fracassar – nominalmente, por diferenças negociadoras sobre a proteção de mercados agrícolas em países em desenvolvimento. Nos meses seguintes, um novo esforço para “fechar” o pacote esbarrou em demandas excessivas de abertura industrial nos principais países emergentes, entre os quais, naturalmente, Brasil, China e Índia. A crise econômico-financeira global a partir de 2008 não ajudou, ao ampliar as demandas por proteção comercial nos mais distintos países. Até 2012, todas as tentativas de desbloquear as negociações fracassaram e a OMC passou a dedicar atenção substancial ao monitoramento de “restrições ao comércio”, sobretudo quando adotadas por países do G-20 financeiro. De 2009 em diante, os países desenvolvidos passaram a defender a “colheita antecipada” de resultados negociadores em áreas de seu interesse, como serviços e facilitação do comércio. Negociações em serviços acabaram sendo lançadas em 2012, “fora” da Rodada, em formato plurilateral: participam hoje das negociações do TiSA (Trade in Services Agreement) cerca “ Cristalizou-se entre os membros a posição em prol de um pacote negociador equilibrado, centrado na prioridade agrícola e nos dois outros temas nucleares da Rodada Doha: NAMA e serviços “ de 50 países desenvolvidos e em desenvolvimento, contando os 28 da UE, os integrantes da “Aliança do Pacífico”, e outros como Costa Rica, Paraguai, Panamá, Paquistão, Coreia, Turquia e Uruguai.6 O tema de Facilitação do Comércio, originalmente objeto de viva objeção de alguns PEDs, passou a ser negociado no âmbito da Rodada a partir de 2004. O progresso foi lento até 2012, mas recebeu impulso importante na reunião ministerial de Davos em janeiro de 2013: ali consolidou-se a ideia de se concluir, na Conferência Ministerial de Bali, a realizar-se em dezembro seguinte, um pacote de resultados modestos como “colheita antecipada” da Rodada Doha, incluindo o Acordo de Facilitação de Comércio (voltado basicamente à modernização e desburocratização aduaneiras), elementos de agricultura, na linha das propostas até ali formalizadas pelo G-20A e pelo G-33, e temas de interesse dos países de menor desenvolvimento relativo. Intensas negociações ao longo de 2013 permitiram efetivamente chegar a um conjunto de resultados aprovados pelos ministros em Bali. O de maior densidade foi o Acordo de Facilitação de Comércio, de interesse de inúmeros países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre eles o governo e o empresariado brasileiros. Em agricultura, foram adotadas decisões sobre “serviços gerais” de combate à pobreza e desenvolvimento em meio rural, “estoques públicos de segurança alimentar” e “administração de ............................................................................ 4 Grupo hoje formado por 47 países em desenvolvimento com interesses defensivos em agricultura. 5 Foro de coordenação que reúne o Grupo Africano, o Grupo África-Caribe-Pacífico das antigas colônias europeias, e o Grupo dos Países de Menor Desenvolvimento Relativo. 6 A China sinalizou interesse em se unir ao exercício, mas continua, até o momento, impedida de fazê-lo por resistência de pelo menos um participante. 8 Nº 122 - Janeiro/Março de 2015 RBCE - A revista da quotas tarifárias”, bem como uma declaração sobre “competição na exportação”, que reitera o compromisso político de eliminar subsídios à exportação agrícola e medidas equivalentes – as duas últimas propostas pelo Brasil e seus parceiros no G-20A. As economias mais vulneráveis, por sua vez, beneficiaram-se com decisões de princípio sobre algodão, preferências em comércio de serviços, acesso livre de quotas e tarifas para bens por eles exportados e regras de origem preferenciais. Mais importante do que as decisões temáticas, entretanto, foi o compromisso assumido pelos ministros de definir, até o final de 2014, um programa de trabalho com vistas à conclusão da Rodada Doha. Para o Brasil, que sempre se recusou a ver no Pacote de Bali “um fim em si mesmo”, o principal ganho da conferência ministerial na Indonésia não tomou forma com seus resultados formais, reconhecidamente limitados – e sim no resgate da credibilidade do “pilar negociador” da OMC depois de anos de impasse, com a decisão dos membros de retomar os principais mandatos de 2001. O PÓS-BALI: RUMO À CONCLUSÃO DE DOHA Em meio aos trabalhos de “polimento jurídico” necessários para a entrada em vigor do Acordo de Facilitação de Comércio, as discussões sobre o Programa de Trabalho pós-Bali (PTPB) pouco avançaram durante o primeiro semestre de 2014. Lançou-se um debate, mas as conversas foram dominadas pela repetição de posições conhecidas e, crescentemente, pela narrativa – a cargo, sobretudo, dos principais países desenvolvidos – de que o mundo mudou e, por conseguinte, o reengajamento negociador deverá necessariamente ampliar os compromissos e a contribuição das grandes economias emergentes aos resultados finais do processo. Não obstante, cristalizou-se entre os membros a posição que o Brasil vinha defendendo desde Bali, sobre a necessidade de deixar-se de lado a fórmula de “pequenos resultados onde for possível” em prol de um pacote negociador equilibrado, centrado na prioridade agrícola – a grande retardatária da liberalização comercial – e nos dois outros temas nucleares da Rodada Doha: NAMA (Non-Agricultural Market Access – bens industriais) e serviços. O compromisso indiscutível da Rodada com o desenvolvimento, tema horizontal por excelência, estará, da perspectiva brasileira, coberto, sobretudo, por avanços em agricultura, setor que deve definir o nível de ambição geral do programa de trabalho. Ao longo do mês de julho de 2014, o temor de que estivesse em curso um processo de “esvaziamento” do Programa de Trabalho pós-Bali e do engajamento coletivo em encontrar uma solução permanente para o tema dos estoques de segurança alimentar levou um pequeno grupo de países, sob a liderança da Índia, a opor-se à aprovação do Protocolo que incorporava o Acordo sobre Facilitação de Comércio ao Acordo de Marraqueche.7 Em reação, importante conjunto de países, sobretudo desenvolvidos, com destaque para os EUA, decidiu suspender os trabalhos de “implementação” das decisões de Bali, inclusive as voltadas aos países de menor desenvolvimento relativo. O impasse daí decorrente persistiu por quase todo o segundo semestre de 2014; sua solução exigiu o engajamento direto dos mandatários dos países mais diretamente envolvidos. Em 27 de novembro, finalmente – com quase cinco meses de atraso em relação à data prevista – o Conselho Geral da OMC aprovou o Protocolo do Acordo de Facilitação de Comércio, concluindo formalmente a negociação do primeiro novo acordo multilateral adotado pela Organização em seus19 anos de existência. Ao mesmo tempo, adiou-se para julho de 2015 a data de adoção do Programa de Trabalho Pós-Bali, e antecipou-se, para dezembro deste ano (por oposição à data original de dezembro de 2017) o calendário de negociação da “solução permanente” para os subsídios agrícolas destinados à formação de estoques de segurança alimentar. ............................................................................ 7 O Acordo de Marraqueche de 1994 que instituiu a OMC tem o formato de um “acordo guarda-chuva”: abriga, na forma de anexos, os vários textos jurídicos emanados da Rodada Uruguai. Os Acordos do setor de bens encontram-se no Anexo 1A; o General Agreement on Trade in Services (GATS), Acordo sobre Serviços, no Anexo 1B; o Acordo de Propriedade Intelectual figura como Anexo 1C. O Anexo 2 contém o Entendimento sobre Solução de Controvérsias, o Anexo 3 o Mecanismo de Revisão de Políticas Comerciais, o Anexo 4 os dois Acordos Plurilaterais herdados do passado e ainda em vigor, sobre compras governamentais e aeronaves civis. Nº 122 - Janeiro/Março de 2015 9 O Brasil e a OMC RUMOS FUTUROS A pergunta recorrente que embaixadores e delegados junto à OMC têm feito uns aos outros – e ouvido de observadores interessados de governos, setor privado, acadêmicos e jornalistas – diz respeito a como vemos a real possibilidade de concluirmos o Programa de Trabalho para a retomada de negociações até a nova datalimite de 31 de julho e, dai em diante, avançarmos no sentido de resultados concretos no contexto da Rodada Doha. De modo geral, as respostas são cuidadosas. A verdade é que ninguém, ninguém mesmo, sabe ao certo. Os quase 14 anos decorridos desde o lançamento da Rodada dariam motivo para ceticismo. O impulso gerado em Bali, de outra parte, ensejaria alguma confiança na viabilidade de se avançar. O ambiente em Genebra sugere uma combinação de ambos os sentimentos. Na sequência da Ministerial de Bali, durante o primeiro semestre do ano passado, chegou-se a iniciar um processo de consultas entre os membros, em diversos formatos. Tal como o Brasil vem propondo desde Bali, o foco continua voltado para as questões centrais de agricultura, bens industriais (Nama) e serviços e, também como vimos defendendo, é hoje aceito cada vez mais consensualmente que o nível de ambição definido para a área agrícola deverá determinar a altura do “sarrafo” nos outros dois setores. Como se sabe, porém, no segundo semestre de 2014, em decorrência de impasse havido em torno do tema dos subsídios destinados à formação de estoques públicos para a segurança alimentar, objeto de decisão específica em Bali, a conversa ficou paralisada. Alguns chegavam até mesmo a falar em “jogar a toalha”, com graus distintos de frustração, e a defender mudanças que enfraqueceriam o caráter multilateral dos processos de negociação na OMC. A Organização, segundo algumas dessas visões, se transformaria numa espécie de ancoradouro de acordos plurilaterais, em que grupos de países, com afinidades maiores de pensamento e interesse, negociariam entre si, fora do contexto multilateral pleno, acordos sobre temas específicos. Outra visão recorrente aludia à “OMC do século XXI”, conceito guarda-chuva que, em sua acepção mais geral, traduzia a noção de que a OMC deveria abordar os novos aspectos do comércio. Essa imagem aparentemente pouco controversa, no entanto, embute ambições implícitas, principalmente de países desenvolvidos, segundo as quais a OMC deveria “abandonar” a discussão dos temas do passado, notadamente a óbvia 10 “ Se o Brasil e outros importantes exportadores nessa área não cumprirem seu papel “ofensivo” como demandantes em agricultura, quem o fará? “ pendência no que tange à liberalização agrícola, e se debruçar sobre temas de seu especial interesse. Diga-se, a propósito, que essas alternativas foram, de setembro a novembro do ano passado, fortemente rechaçadas por parte da maioria dos membros, em especial dos países em desenvolvimento. Não se pode excluir que tal reação, além do isolamento em que se viram os contendores no impasse sobre estoques públicos, tenha servido de incentivo ao equacionamento do problema e à retomada do processo engajando o conjunto dos membros. Nas últimas semanas, assim, as discussões intensificaramse, as reuniões de consulta em variadas configurações multiplicaram-se, as conversas paralelas entre as delegações aumentaram em número e, mais lentamente, em termos de precisão. Vive-se um ambiente de prénegociação, de aferição do terreno e de possíveis “zonas de aterrissagem”, como se diz aqui. É fato que o mesmo se deu na primeira metade de 2014, mas agora, depois da superação do impasse em novembro, e da clareza com que a maioria dos membros recusou a ideia de mudança da natureza das negociações na OMC, de sua plurilateralização, já parece, ao final de fevereiro, quando se encerra a redação do presente artigo, estarmos alguns passos além do ponto ao qual havíamos chegado em maio do ano passado. Ainda é cedo, porém, para se tentar descrever panorama mais claro. Há dificuldades, à partida, que são de conhecimento público. Uma delas diz respeito à “diferenciação” (graduação) dos grandes países em desenvolvimento. Apesar de concordarem com a manutenção de certas provisões especiais para países de menor desenvolvimento relativo (PMDRs), diversos países desenvolvidos pedem a eliminação ou redução dos benefícios concedidos aos grandes países em desenvolvimento, com foco em China, Índia e Brasil. Nº 122 - Janeiro/Março de 2015 RBCE - A revista da Tais países, por sua vez, rejeitam categoricamente qualquer noção de uma diferenciação institucional/legal entre países em desenvolvimento, embora reconheçam que suas “contribuições” possam ser superiores às dos PMDRs e de Pequenas Economias Frágeis (SVEs) aceitação tácita de que suas ofertas finais poderiam ser “superiores” às dos PMDRs. Nas discussões sobre agricultura, as dificuldades estão especialmente, mas não apenas, no pilar do apoio doméstico, ou seja, em torno da demanda por maior disciplinamento dos subsídios à produção. Membros com programas mais importantes de apoio interno, desenvolvidos e em desenvolvimento, apresentam posições que, à primeira vista, parecem de difícil compatibilização. Essa divergência figura hoje como o problema mais visível a superar. Os dois outros pilares agrícolas – acesso a mercados e apoio/ subsídios à exportação – embora também tenham seus próprios desafios e variáveis, pelo menos não estão sendo invocados por alguns como barreiras ao início de negociações mais concretas. Vale dizer que, obviamente, não cabe, em processos negociadores, desistir ou retroceder diante do primeiro sinal de resistência. A posição do Brasil é clara e corresponde fielmente à nossa realidade econômicacomercial: tal como numerosos outros membros da OMC, demandamos avanços concretos nos três pilares agrícolas: acesso a mercados, subsídios internos e subsídios/apoio à exportação. Pareceria desnecessário recordar, nesta publicação, a grande e cada vez maior importância do agronegócio na economia brasileira, na geração de empregos e renda também para a indústria e o setor terciário, bem como em nossas exportações. Uma postura de liderança, e perseverança, nesse sentido não apenas é o que corresponde à realidade e interesse nacionais, mas também é o que esperam de nós a sociedade brasileira e os nossos parceiros na OMC. Seria incompreensível, internamente e no plano internacional, que nos portássemos de outra maneira, que adotássemos posições que pareceriam melhor ajustar-se, por exemplo, a países com economias como as de nossos parceiros e amigos alemães ou japoneses. Nem eles próprios entenderiam, embora dificilmente fossem reclamar.... E mais: se o Brasil e outros importantes exportadores nessa área não cumprirem seu papel “ofensivo” como demandantes em agricultura, quem o fará? Resposta incontornável: ninguém! O resultado será que não vamos sair do lugar. Com prejuízo para quem? Para o Brasil, sem dúvida, bem como para a maioria dos membros da OMC, especialmente países em desenvolvimento, para os quais Nº 122 - Janeiro/Março de 2015 o comércio agrícola representa alavanca importante na promoção do seu avanço socioeconômico. Cabe recusar, portanto, a narrativa, ingênua ou interessada, de que ao “pedir muito” em agricultura o Brasil estaria dificultando o avanço das negociações como um todo. Tal versão já veio à tona até mesmo na mídia nacional. Nada mais conveniente aos protecionistas nas negociações agrícolas – teimosamente escudados atrás de altíssimas tarifas, gigantescos subsídios, quotas estreitas e salvaguardas de todo tipo – que os demandantes, historicamente obrigados a travar um combate desigual, não possam sequer contar com o respaldo de suas retaguardas nacionais. O Brasil não está “pedindo muito”. Apenas demanda que se comece a reequilibrar um campo de jogo, como se diz nos países de língua inglesa, há muito desequilibrado em desfavor da liberalização e do disciplinamento do comércio de produtos do agronegócio. Essa é uma dívida histórica do sistema multilateral de comércio que precisa ser cobrada e, tão depressa quanto possível, liquidada. As regras do comércio agrícola precisam aproximar-se daquelas que há muito regem o comércio de bens industriais. O subsídio à exportação é um bom exemplo: banido nas transações em Nama há mais de cinco décadas, continua a ser “legal” no comércio agrícola. As tarifas e subsídios estratosféricos “permitidos” na área agrícola são a outra face desse desequilíbrio em cuja correção é imperativo que o Brasil exerça o papel que lhe cabe. Fácil, já sabemos por experiência, não será de modo algum. Ao mesmo tempo em que tentamos obter progressos na frente agrícola, teremos de nos engajar em discussões nas outras áreas centrais da Rodada: bens industriais e serviços. Em todas essas três frentes, a nossa Delegação em Genebra deverá contar, como base das instruções que receberá do Itamaraty, com um diálogo ágil entre as diversas áreas envolvidas do governo, assim como, é claro, com a contribuição decisiva do setor privado. Contaremos também com o interesse e o engajamento do Congresso Nacional, e de lideranças, organizações políticas e sociais. Assim foi, cabe testemunhar, na reta final das negociações, no final de 2013, do Acordo de Facilitação de Comércio. Pudemos atuar, como é absolutamente necessário para um país com o peso do Brasil em negociações comerciais, com instruções coordenadas pelo Itamaraty, em parceria com o Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) e a Receita Federal, que recebíamos quase em “tempo-real”. 11 O Brasil e a OMC Se de fato retomarmos às negociações na OMC, é assim que terá de ser. Voltando à substância, é cedo ainda para se ter uma noção mais clara do que será possível demandar e, eventualmente, alcançar em Genebra. Sem perder o sentido de objetividade quanto ao atual contexto negociador, o Brasil trabalha para que se alcance não o mínimo, mas sim o máximo denominador comum, desde que os resultados sejam ao mesmo tempo equilibrados e capazes de contribuir para a redução do histórico desequilíbrio em detrimento do comércio agrícola. Não atende aos interesses do país, tampouco à necessidade de se restabelecer a credibilidade da OMC como foro negociador, que se conclua a Rodada Doha sem a apresentação de resultados com significado concreto. Não é verdade que um mau acordo, um acordo desbalanceado, ou de ambição próxima a zero, seja melhor do que nenhum acordo. Um acordo visivelmente inócuo não contribuiria em nada para reforçar a confiança no sistema multilateral de comércio, muito pelo contrário. Não enganaria a ninguém. As pessoas sabem fazer contas e a matemática do comércio não chega a ser das mais complexas. Além disso, um acordo que pouco ou nada alterasse a realidade presente, com certeza seria ainda mais frustrante aos interesses daqueles membros, como o Brasil, mais adversamente afetados pelo desequilíbrio das atuais regras multilaterais. Uma vez esboçados os contornos do “jogo”, pintadas as linhas do campo, por assim dizer, cada país terá de debruçar-se internamente sobre esses parâmetros, a fim de definir posições, demandas, limites, margens de ajuste e prioridades na negociação – assim como o valor relativo, de seu ponto de vista, entre ganhos que pudéssemos obter em um determinado setor e, em sentido inverso, de concessões que devêssemos fazer no mesmo setor ou em outro. Numa economia complexa e plural como a nossa, às voltas com desafios econômicos nacionais e internacionais, haverá perspectivas e interesses a conciliar, equilíbrios a construir, correlações de valor a estabelecer. Em Genebra, nossa Delegação estará, como sempre, articulada com a Secretaria de Estado, como nós chamamos a sede do Itamaraty, a quem caberá, no Brasil, em coordenação com as demais pastas envolvidas e permanente diálogo com o setor privado, formular as instruções que nos irão guiar na mesa de negociação. consequência automática do fato de termos uma das maiores economias do mundo. Nossa voz já se fazia ouvir em Genebra, vale lembrar, mesmo em momentos de grande dificuldade de nossa vida econômica e mesmo política. O espaço que conquistamos é, sobretudo, resultado de esforço e trabalho desenvolvido por mais de uma ou duas gerações de brasileiros de vários quadrantes da vida nacional. Tal espaço, é preciso deixar claro, tampouco se sustenta por inércia: é preciso sempre mais esforço, mais trabalho, mais engajamento do conjunto de nossa sociedade. Assim como não pode haver descanso na luta pelo desenvolvimento nacional, tampouco há períodos de folga para a nossa atuação em prol de regras multilaterais mais justas e equilibradas para o comércio internacional. Mesmo quando não se negociam acordos em Genebra, mesmo quando Rodadas se encontram há anos travadas, a OMC não para: segue funcionando o cada vez mais importante mecanismo de solução de controvérsias, continuam os exercícios de revisão das políticas comerciais de cada membro pelo conjunto de seus parceiros, multiplicam-se as consultas, questionamentos, críticas, cobranças, pressões. O pano de fundo desse trabalho, desse “diálogo” constante, são interesses de dezenas, centenas de bilhões de dólares, milhões de empregos, em resumo, o bem-estar maior ou menor de nossas sociedades. Em Genebra, na OMC, diferentemente do que ocorre em outras instituições internacionais nas quais o atraso de reformas de governança faz com que grandes economias emergentes, por exemplo, não tenham ainda o espaço que lhes corresponderia em função do peso relativo de suas economias, o Brasil, sim, tem responsabilidades proporcionais ao lugar que ocupa entre os maiores PIBs do mundo. Devemos estar sempre prontos e dispostos a cumprir o papel que nos cabe, o qual poderá ser mais ou menos visível, em determinados momentos, aos olhos da opinião pública. Não se trata apenas de contribuir para o fortalecimento do sistema multilateral de comércio, principalmente por meio da retificação de suas distorções – o Brasil evidentemente tem interesse em que o comércio seja regido por regras claras, equilibradas, e não pela lei da selva – mas, acima de tudo, de trabalhar no sentido de que o comércio internacional, cada vez mais, possa servir ao reforço e modernização de nossa economia e, em última instância, ao desenvolvimento do país. O perfil elevado que o Brasil tem tido há muitos anos na OMC certamente não é fruto do acaso, nem mera 12 Nº 122 - Janeiro/Março de 2015