Psicanálise e corpo na contemporaneidade Fuad Kyrillos Neto Docente da Universidade do Estado de Minas Gerais e Doutor em Psicologia Social pela PUC/SP. Rua José Linhares 21 Bairro Santa Teresa 36201-088 Barbacena MG [email protected] Introdução: A contemporaneidade tem como um de seus referenciais o corpo a mostra. A corpolatria tem sido cultivada nas diferentes apresentações do corpo. Nesse mostrar-se a si mesmo e aos outros o corpo passou a ser estetizado e espetacularizado semelhante a outras esferas culturais, levando a uma colonização pela estética, tornando-se uma mercadoria preciosa. Nesse contexto como se deve tomar a psicanálise frente ao uso e funcionamento do corpo que exigem um remanejamento do simbólico e uma leitura da subjetividade? O corpo para a psicanálise aparece a partir no momento em que Freud, ao trabalhar com quadros de histeria contrapõe o corpo biológico ao corpo significado e marcado pelo desejo inconsciente, pelo sexual e pela linguagem. Apresentaremos o percurso histórico de Freud acerca do conceito de corpo enfatizando sobre o conceito de pulsão como, necessário para o surgimento do eu corporal na segunda tópica. Abordaremos a formação do ideal do eu como um ponto fundamental da economia libidinal exercendo uma função tipificadora no desejo. Exporemos alguns autores que procuram apreender o sujeito no quadro da contemporaneidade (LASCH,1986; DEBORD,1997; BIRMAN,1999; LIPOVETSKY,1983.) com o objetivo de conjuntura social contemporânea BAUMAN,1998; abordar como a se traduz no campo da subjetividade. Mais especificamente na relação do sujeito com seu corpo. Trataremos da temática do corpo na contemporaneidade pelo viés da arte. Para tanto, faremos uma análise dos jogos corporais descritos por Pires (2005). 1 Nossa análise partirá do discurso da tecnociência e sua cumplicidade com a pulsão de morte que se dá pela crença na realização plena e satisfatória do desejo. 1 – O corpo e a invenção da psicanálise Partindo da descoberta que a fala afeta o corpo, Freud ouvindo suas histéricas, salientou, na verdade a idéia de um conflito inconsciente que remete a um desejo de ordem sexual. Se o corpo da histérica se afasta do corpo da anatomia, ele se aproxima, no entanto, de um corpo representado a partir de uma linguagem popular e não científica. Essa diferença, entre o corpo científico e o corpo popular, evidenciado de forma exemplar pelo fenômeno da conversão histérica, inaugura a distinção entre o corpo biológico e o corpo psicanalítico. Enquanto o corpo biológico obedece às leis da distribuição anatômica dos órgãos e dos sistemas funcionais, constituindo um todo em funcionamento, isto é um organismo, o corpo psicanalítico obedece às leis do desejo inconsciente constituindo um todo em funcionamento coerente com a história do sujeito. Por meio da linguagem do corpo Freud descobre o inconsciente. Neste sentido, o corpo aparece para a psicanálise, no momento em que Freud se dá conta do inconsciente. O Inconsciente e o corpo psicanalítico surgem simultaneamente. O pensamento freudiano acerca do conceito de corpo segue uma seqüência de um momento inicial associado ao campo da biologia quando Freud estabelece uma cisão que vem opor o corpo biológico e o corpo psicanalítico. Como já foi dito, Freud a partir de seu trabalho clínico com as histéricas, contrapõe o corpo biológico e o transforma, ainda que de forma incipiente, no corpo psicanalítico: aquele marcado pelo desejo inconsciente, sexual e atravessado pela linguagem. Lazzarini e Viana apontam para uma tripla característica ligada ao corpo. Ele é, ao mesmo tempo, marginal e fronteiriço, fundador e constitutivo e encoberto e descoberto. É por intermédio de todas essas formas que o corpo faz 2 presença. Esta presença remonta ao nascimento da psicanálise, no qual houve o confronto com o corpo. Posteriormente, esse corpo da psicanálise, que evidencia a sexualidade trará a tona, uma lógica dada pelo erotismo e será regulado pelo desejo. 2- Corpo e pulsão Segundo Lazzarini e Viana, a configuração do corpo psicanalítico implica importantes passagens: do corpo auto – erótico e fragmentado, para o corpo unificado pelo narcisismo. Entremeando essas passagens, Freud constrói uma metapsicologia do corpo, com o conceito de pulsão 1. O conceito de pulsão foi concebido como algo fundamental que ancora o psiquismo no corpo. O registro psíquico, também, está imerso no corporal não sendo, pois, o psíquico apenas da ordem da realidade, mas movido pelas pulsões. Assim, Freud transformou a concepção dualista de sua época acerca das relações entre corpo e psiquismo, indicando que a pulsão seria o lugar no qual se daria o encontro. Para tanto Freud opôs os registros do organismo e do corpo, pois o registro pulsional não se identificaria com o conceito biológico do somático. É como corpo pulsional que, o corpo pode ser auto-erótico e narcísico. Como força constante e exigência de trabalho imposta ao psiquismo pela sua ligação ao corporal, à pulsão seria origem e um dos fundamentos do sujeito. Posteriormente tem-se a retomada do conceito de pulsão que mais tarde desembocará no dualismo pulsional (pulsão de vida e pulsão de morte), a criação da segunda tópica e o surgimento do eu corporal. Lazzarini e Viana nos lembram que o corpo pulsional nos remete a uma dispersão da pulsão enquanto o corpo narcísico se refere a uma unidade do corpo realizada pela presença de um outro. Inferimos a possibilidade deste outro se fazer presente também na forma de um outro social. Para Freud, a pulsão é uma força constante e o corpo pulsional é a matéria prima para construção do corpo narcísisco. No narcisismo primário o 1 Pressão ou força que faz o organismo tender para um alvo. Para Freud, a pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu alvo é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir seu alvo. (Laplanche & Pontalis) 3 sujeito se materializa pelo não reconhecimento do outro, já que o infans investe toda a libido em sim mesmo, enquanto que pelo narcisismo secundário, o sujeito se materializa por esse reconhecimento. Ou seja, no narcisismo secundário temos um retorno ao ego da libido retirada dos seus investimentos libidinais. No narcisismo secundário temos a dimensão da alteridade, uma corporeidade regulada pelo princípio da realidade. O corpo da dimensão alteritária, corpo do narcisismo secundário implica, assim, num redimensionamento daquele corpo narcísico primeiro que passa a ser submetido à experiência de Édipo e castração. 3- O ego como corpo Com o advento da segunda tópica, Freud vai pensar o eu como sendo essencialmente corporal. Na segunda tópica a teoria nos levará ao mais próximo da teoria freudiana do corporal, aquela que aborda o afloramento do eu corporal. Na obra o ego e o id Freud (1923) define o eu como instância corporal, e ainda a projeção de uma superfície. A conseqüência da segunda tópica acerca do corpo é que a emergência de uma economia da sexualidade centrada na unidade. O texto de 1923 está situado no centro do discurso freudiano que começa a entrever uma ordem corpórea na qual a dor e a morte também se revelam primordiais. Birman (1993): Entre o corpo e a representação circula o ser da pulsão, de maneira que a sexuação encontra na pulsão a sua matriz originária, constituindo as condições de possibilidades da sexualidade infantil. (p.76) O autor nos lembra que o conceito de sexualidade infantil em Freud circunscreve a invenção psicanalítica do campo do sexual criando um conjunto de pressupostos e uma série de desdobramentos conceituais que nos levam a pensar um deslocamento da ordem do sexual para a ordem do sexo. Não restringindo a sexualidade a genitalidade, temos que a ordem sexual não se define pelo instinto (instinkt), mas pelo de pulsão (trieb) que ocupa importante posição na metapsicologia. Assim o campo sexual foi visto por Freud inicialmente sendo da 4 ordem do prazer em oposição à ordem da realidade. Com o advento da segunda tópica o campo do sexual não se restringiu apenas a ordem do prazer, inserindose também no conceito de pulsão de morte2 Em o ego e o id a noção de corpo vem associada a noção de eu. Freud faz menção ao eu como “a projeção de uma superfície” (p.40). Freud, na segunda tópica, alarga a noção de ego, atribuindo a ele as mais diversas funções: controle processos mentais e pensamento racional. Ainda segundo Freud “o próprio corpo de uma pessoa e, acima de tudo, a sua superfície, constitui um lugar de onde podem originar-se sensações tanto externas quanto internas” (p.39) Desta forma podemos entender o eu como mais uma subjetivação da superfície corporal do que uma aparelhagem mental do corpo. Também podemos considerá-lo como efeito da emergência do corpo como próprio do que como o produto acabado de uma experiência corporal. O corpo para a psicanálise não é uma experiência primária para o sujeito. Ele só tem acesso ao corpo mediante uma série de ações que são efetuadas pelo simbólico. A psicanálise realiza uma passagem da lógica da anatomia para a lógica da representação. O corpo da psicanálise é então, um corpo atravessado pela linguagem. Na vertente lacaniana a linguagem é fundamental no discernimento e constituição do corpo. O corpo simbólico faz com que o corpo real nele se incorpore. Diz Lacan (1966/1998): A fala, com efeito, é um dom de linguagem, e a linguagem não é imaterial. É um corpo sutil, mas é corpo. As palavras são tiradas de todas as imagens corporais que cativam o sujeito; podem engravidar a histérica, identificar-se com o objeto do Penis-neid, representar a torrente de urina da ambição uretral, ou o excremento retido do gozo do avarento. (p.302) Freud reencontra o corpo como lugar de manifestação do psíquico e do somático. A racionalidade do psíquico e do somático está vinculada ao inconsciente. 2 Na última teoria freudiana das pulsões, a pulsão de morte designa uma categoria fundamental de pulsões que contrapõem as pulsões de vida e que tendem para a redução completa das tensões, isto é, tendem a reconduzir o ser vivo ao estado inorgânico. (Laplanche & Pontalis) 5 Para Freud existe uma dispersão corporal oferecida pelas pulsões auto – eróticas3; a formação do eu comportaria a passagem destas ao narcisismo primário - tentativa de dar consistência a dispersão corporal por meio de uma certa unidade corporal representada pelo eu ideal - primeiro esboço de imagem que causa júbilo ou êxtase diante de si mesmo. O narcisismo primário, relação do sujeito à imagem, tem efeitos inevitáveis sobre as escolhas objetais posteriores. No início da vida, a criança não faz distinção entre ela e mundo, tampouco da totalidade de seu corpo. Será a partir das primeiras identificações que a criança terá, de maneira primitiva, os contornos do eu. No entanto, não podemos dizer, ainda, que se trate de uma subjetividade no sentido de individualidade. Isso porque a condição em que o infans se encontra é de total alienação ao olhar do outro; em outras palavras, ao identificar-se com a mãe, identifica-se com o objeto de seu desejo. A criança é o objeto de desejo da mãe. Podemos descrever três momentos do Édipo em Lacan: no primeiro tempo temos dois personagens: a criança e a mãe. A criança, naquele momento, deseja ser tudo para a mãe; deseja ser o objeto de seu desejo, convertendo-se no objeto que a mãe deseja. É um estado de completude, de perfeição narcísica. Estamos falando de narcisismo primário, modelo do Ego Ideal. Dito de outra maneira, ela deseja ser o falo para a mãe. Na perspectiva lacaniana o falo é o significante do desejo. Dessa forma o falo é o que completa, é o narcisismo satisfeito, o Ego Ideal. Em contrapartida, a castração implica a perda da identificação com o Ego Ideal. Temos, portanto, no primeiro tempo do Édipo, o narcisismo primário, caracterizado por ser contemporâneo da constituição do eu. (relação especular com a mãe).O modo de relação dual caracteriza esse momento marcado pela alienação do infans ao desejo da mãe. Posteriormente a figura do pai surge para impedir na relação dual mãe-filho. Esse pai é um pai temido, interditor. A entrada do pai ocasionará dupla privação: a criança será privada do objeto de seu desejo, enquanto a mãe é privada de seu 3 Freud, na primeira tópica, distingue dois grupos de pulsões: pulsões sexuais e pulsões de conservação. A pulsão sexual no seu conjunto pode ser analisada por certo número de pulsões parciais, a maioria delas ligadas a uma zona erógena determinada, outras se definem pelo seu alvo embora possamos indicar sua fonte somática. 6 objeto fálico. Temos, assim, a “castração”: do ponto de vista do supereu a introdução de um corte, uma ruptura, uma perda. Na perspectiva do significante a castração corresponde à incapacidade do sujeito obter do Outro a garantia de gozo reservada que ela está ao pai em sua precedência simbólica junto à mãe. Estamos falando da separação entre mãe e filho. A castração implica a perda da identificação com o Ego Ideal. Mas não basta a interdição do pai para que surja o sujeito. Esse pai deve ser reconhecido pela mãe, que deverá, também, estar sujeita às suas leis. A identificação da criança com o ideal de ego se faz no momento que o pai deixa de ser a lei e passa a ser o representante dela. Este movimento marca o terceiro momento do Édipo. Ele é de suma importância para a constituição subjetiva, pois será a partir da interiorização da lei que será possível à criança se constituir como sujeito O reconhecimento da lei é que torna possível a saída do narcisismo primário e a passagem para o secundário. O narcisismo primário é mortífero, pois reduz o outro ao duplo de si, enquanto o secundário implica dois movimentos: o sujeito concentra num objeto suas pulsões parciais, a libido investe um objeto que posteriormente volta para o eu. A criança deixa o narcisismo primário quando vê seu eu confrontado com um ideal com o qual tem que se comparar, ideal este que se formou fora dela e que lhe é imposto de fora. Nesta vertente o sujeito busca proteger seu narcisismo (a si próprio exalta e louva), e diante da castração desenvolverá uma relação com o Outro na qual parte do narcisismo possa ser resguardada. Essa nova ordem da economia libidinal exibe-se em torno da formação do ideal do eu, como efeito do recalque. O ideal de eu representa agora o amor a si mesmo, anteriormente representado pelo eu ideal, ou seja, o sujeito abre mão de uma satisfação em troca de outra. Toews (2000) nos lembra que a criança entra nas relações interpessoais do complexo de Édipo com um sujeito narcisista que imagina seu próprio eu como primário do desejo e que associa esse “eu” com o órgão do prazer genital. A tarefa do momento edipiano, para Toews, passou a ser a de o sujeito direcionar a libido 7 de seu mesmo para os outros, das relações intra-subjetivas para as intersubjetivas e de se reconhecer como um sujeito no mundo de outros sujeitos. O eu ideal representa, pois um ponto essencial da economia libidinal, e todas as vezes que o sujeito se vê na vida de adulto em situações nas quais o narcisismo é muito ferido, ele busca recuperá-lo na forma do eu ideal. O ideal do eu desempenha uma função tipificadora no desejo do sujeito, e, encontrando-se ligado a toda a economia libidinal, é fundamental no enlaçamento do sujeito ao Outro. O ideal do eu corresponde no adulto, aos ideais a serem alcançados. Esses conceitos nos interessam, pois, conforme exposto, a passagem pelo Conplexo de Édipo determina a relação do sujeito com a lei. A passagem nos demonstra a importância da relação com o outro como estruturante do sujeito humano. Porém na contemporaneidade temos uma peculiaridade: o Outro da lei promete a realização plena e satisfatória do desejo. 4- Corpo, narcisismo e sociedade Koltai (2002) nos lembra que a conjuntura social contemporânea permite a crença na realização plena e satisfatória do desejo. Desta forma temos um esquecimento que a renúncia ao gozo é condição para se preservar o desejo. Assim o sujeito vai se instalando em um mundo no qual o sofrimento se torna intolerável. Inferimos a possibilidade que o os ideais a serem alcançados, o que é prometido, é o acesso direto e imediato ao objeto. Nas palavras de Koltai: os novos e sempre crescentes poderes da ciência levaram a confundir o deslocamento do limite do impossível com a evacuação do lugar do impossível, daí o risco de perda dos limites. Evacuar o lugar do impossível muda nossa relação com o tempo e com o espaço. O tempo, antes histórico, se torna agora, operatório, como o tempo da técnica, que só conhece o futuro. Um futuro que, no entanto, deixou de ser a atualização progressiva, difícil e arriscada de um potencial inscrito no passado e de um presente que decorre deste passado. (2002, p.38) 8 Neste trabalho pretendemos abordar como tais considerações se traduzem no campo da subjetividade. Mais especificamente na relação do sujeito com seu corpo. Roudinesco (2006) em sua obra discute o “culto de si e as novas formas de sofrimento psíquico” faz referências a uma cultura do narcisismo que “põe em primeiro plano uma visão da sociedade fundada na superestimação da figura imaginária de um sujeito desprovido de sentido histórico, atemporal, sem passado nem futuro; limitado ao claustro de sua imagem no espelho.” (p.51). Salientamos que diversos autores têm procurado apreender o sujeito no quadro da contemporaneidade. Lasch4 (1983, 1986) em suas obras ressaltou o narcisismo e o consumismo como produtos de uma sociedade burguesa. Debord 5 (1997) formula a tese que não é simplesmente nossa cultura que se organiza na forma de espetáculo, mas que o próprio espetáculo enquanto prática social tornouse inteiramente apagado pela lógica do consumo. Esse autor define espetáculo como um apagamento dos limites do eu e do mundo pelo esmagamento do eu, que a presença-ausência do mundo assedia. Bauman6 (1998), ao abordar o tema da pós – modernidade constrói diversas reflexões acerca da sociedade pósmoderna enfatizando a universalização do medo ou das perdas derivadas da troca da ordem pela busca da liberdade. Esses autores consideram que nossa sociedade capitalista contemporânea caracteriza-se por uma exacerbação do hedonismo, ou seja, pelo aumento sem precedentes da busca incessante e imediata de prazeres individuais, tornados princípio e fim da vida moral. Apesar de essa ser uma definição aparentemente coerente com a autonomia, a liberdade e a felicidade amplamente difundidas nos dias atuais como sendo necessárias para todos os indivíduos da nossa sociedade, a psicanálise, por intermédio da perspectiva lacaniana vem a explicitar que, na realidade, o hedonismo é uma forma de apatia e que o correlato do individualismo 4 LASCH, C. O Mínimo Eu: Sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo: Brasiliense, 1986 ______. A cultura do Narcisismo: A vida americana numa era de esperanças em declínio 5 DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 6 BAUMAN, Z. O Mal-Estar na pós-modernidade Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998. 9 e da liberação desmedida dos costumes, tal como vem sendo promovidos nos últimos tempos, nada mais é do que o tédio Esses sintomas ditos contemporâneos são associados por alguns pensadores como resultantes do que eles chamam de uma inflação narcísica própria da nossa sociedade contemporânea Lasch, (1980,1983), Lipovetsky, 1983,1989)7. No entanto, gostaríamos de ressaltar aqui que, se retomarmos rigorosamente a noção metapsicológica do conceito de narcisismo tal qual desenvolvido por Freud e retomado por Lacan, podemos perceber que o abandono à morte que, em última instância se encontra no horizonte desses chamados sintomas atuais, aproxima-se muito mais de uma degradação do eu do que de sua exaltação e/ou inflação. Sendo assim, o movimento em direção à morte e ao gozo mortífero propiciado pela relação com a droga nas toxicomanias e, em especial, nos casos de overdoses, parece caracterizar muito mais o triunfo da pulsão de morte em relação ao narcisismo e ao eu do que o contrário. Em âmbito nacional Pacheco Filho (2005)8, considera que só faz sentido empregarmos o termo narcisista para referir-se ao sujeito da nossa cultura atual se não fizermos uso stricto sensu desse conceito psicanalítico, mas, muito pelo contrário, apenas se levarmos em consideração que a busca de ideais e modelos de perfeição pela via dos objetos de consumo tal como vemos na atualidade é respaldado pelo valor que os outros e a sociedade como um todo conferem aos mesmos. Isto nos permite dizer que no horizonte destes sintomas, também denominados de narcísicos ou contemporâneos, estão os outros e o Outro como orientador do ideal de eu e do eu ideal. Birman9 (1999) aponta que vivemos em tempos de drástica transformação na sociedade. Essas mudanças afetam os modelos instituídos de subjetividade. Para o autor, a modernidade, em sua apresentação atual, impõe novas exigências para a subjetividade que deve ser permanentemente remodelada em função das transformações contínuas. O mundo adquire uma dimensão de infinitude, já que 7 LIPOVETSKY,G. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo Lisboa:Relógio dágua,1983. 8 PACHECO FILHO, R. A. . O capitalismo neoliberal e seu sujeito. Mental: Revista de Saúde Mental e Subjetividade da UNIPAC, Barbacena (MG): UNIPAC, v. 3, n. 4, p. 155-173, 2005. 9 BIRMAN, J. Mal-Estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 10 os rígidos traçados do mundo tradicional perdem suas linhas claras. Nesse quadro a insegurança e a angústia se multiplicam e o desamparo do sujeito se incrementa. Roudinesco (2006) faz referências ao mito de narciso ao caracterizar nossa sociedade como sem interdito e fascinada pelo poder ilimitado do eu. Narciso, segundo a autora, é aquele que não pode aceitar a velhice, nem a transmissão genealógica, nem a identificação com o sucesso do outro. Há cerca de vinte anos o culto de si e o cuidado terapêutico com o corpo tornaram-se os grandes modelos de organização da sociedade ocidental. Esse culto é acompanhado de vasta gama de terapias tais como sofrologia, grito primal, terapia das cores entre outras, além de um grande incremento de inscrições corporais. Quanto mais o chamado “sonho americano” prolifera por intermédio da unificação do mundo pela economia de mercado e pelas ilusões de uma universalidade enganadora, mais a afirmação narcísica se faz presente como uma tentativa do eu se diferenciar da massa. Marcamos aqui um paradoxo com uma semelhança significativa com a adolescência. O sujeito adolescente tem sua inserção na sociedade caracterizada pelo narcisismo e pelo consumo, como forma de se diferenciar da massa. Para se diferenciar da massa face imperativo atos cada vez mais arriscados. Estamos falando de um agir de alto risco ancorado no imaginário ali, onde ele toca o real, e não pode ser convertido em realidade e seu correlativo reconhecimento social. Aspecto semelhante é abordado por Bezerra Jr. (2002) que nos lembra que não é pequeno o desafio com o qual se confronta a psicanálise contemporânea: nascida a partir do evento da modernidade, como experiência relativa a uma interioridade conflituada, na busca de um sentido singular para sua existência, vêse hoje uma subjetividade exteriorizada, desprovida de introspecção e conflitos externos. Lembramos que nossa proposta é articular singular e coletivo. Lacan (1966/1998) explicita que o sujeito é marcado não somente por seus pais, mas também pelas representações sociais, bem como pela história. 11 Assim, acreditamos que as modificações corporais ou, nos termos de Fakir Musafar, jogos com o corpo está diretamente associada com a evacuação do lugar do impossível e com a conseqüente perda de limites. Pires (2005) ao comentar essas práticas denomina jogos corporais as intervenções que acontecem em rituais ou em performances que deixam registros no corpo do indivíduo que somente ele será capaz de entendê-las. Koltai (2002) nos lembra que a tecnociência mudou nossa relação com o tempo. A questão é importante para o sujeito que se posiciona entre dois limites: tempo e espaço. Desta forma, o indivíduo contemporâneo, libertado dos sistemas de coerção e inscrição nas instâncias dos deveres coletivos não suporta os entraves de suas possibilidades e quer tudo agora e já. Nesse contexto temos a negação da castração por parte do sujeito e aquilo que permite, como uma miragem ofertada pela tecnociência, uma sociedade marcada pelos implícitos do discurso da ciência. Dessa forma a gradação dos jogos com o corpo apresentada por Musafar, na nossa concepção, representa o que Koltai (2002) denomina de cumplicidade da tecnociência com a pulsão de morte. Interessante notar que as descrições do “último e mais importante estágio” dos jogos com o corpo tem-se a justificativa que o praticante deve ter o “aprendizado corporal e até mesmo de ginástica como também possuir uma resistência à dor – que depende do tipo de intervenção, da região onde será efetuada, do volume que ocupa e da quantidade de marcas no corpo”. Nesse estágio inferimos que a negação da castração fica mais explícita, bem como a fuga do caráter decepcionante da ordem simbólica. Assim o sujeito contemporâneo passa a não distinguir as fatalidades modificáveis das inexoráveis. São homens capazes de desafiar a dor, a gravidade, sofrer perfurações sem que a conjectura da finitude e da morte estejam presentes. Referências: BEZERRA JR, B. O caso da interioridade e suas repercussões sobre a clínica. In PLASTINO, C.A Transgressões. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002. 12 BIRMAN, J. Ensaios de Teoria Psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1993. COSTA, A Tatuagens e Marcas Corporais: atualizações do sagrado. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. FERNANDES, M.H. Corpo São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003 FREUD, S. (1923) O ego e o id Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud Vol XIX Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. KOLTAI, C. Uma questão tão delicada... In Revista Psicologia Clínica. v.14, n.2, p.35-42, 2002. LACAN, J. (1953) Função e fala no campo da linguagem. In: Lacan J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p.238-324. LAZZARINI, E.R.; VIANA, T.Z O conceito psicanalítico de corpo ou, de que corpo se trata a psicanálise? Disponível em http://www.estadosgerais.org/encontro/IV/PT/ trabalhos/Eliana_Rigotto_Lazzarini_%20e_Terezinha_de_Camargo_Viana.pdf Acesso em 03/09/2007 PIRES,B.F. O corpo como suporte da arte: piercing, implante, escarificação, tatuagem. São Paulo:SENAC,2005. ROUDINESCO, E. A análise e o arquivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2006. TOEWS, J.E. Ter e ser: A evolução da teoria de Édipo como fábula moral. In ROTH, S. (org.) Freud conflito e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. p.63-75. 13