DOI: 10.4025/4cih.pphuem.592
LEPRA: REPRESENTAÇÕES DA DOENÇA E DOS DOENTES ATRAVÉS DE
DISCURSOS MÉDICO-CIENTÍFICOS E GOVERNAMENTAIS
Silvia Danielle Schneider
Mestranda em História/Bolsista da Capes/UNIOESTE
Yonissa Marmitt Wadi
Doutora em História/Pesquisadora do CNPq/Professora Adjunta da UNIOESTE
1. Introdução:
Este trabalho pretende abordar a questão da representação da doença e dos doentes de
lepra utilizando o “Manual de Leprologia”, publicado em 1960 pelo Serviço Nacional de
Lepra e Ministério da Saúde. Juntamente com este manual será analisado o “Guia de
Vigilância Epidemiológica”, produzido pelo Ministério da Saúde no ano de 2005. Outra obra
que será utilizada intilula-se "Clima & Saúde: introdução bio-geográfica à civilização
brasileira”, escrita em 1938 pelo professor de Higiente da Universidade do Rio de Janeiro,
Afranio Peixoto.
Estes materiais forcecem dados para persarmos como os doentes eram representados
através dos discursos médicos/científicos e também pelos órgãos governamentais. Estas obras
foram produzidas em diferentes espaços temporais, o que permite refletir como a doença foi
representada em temporalidades distintas.
2. Lepra:
Durante a Idade Média os leprosos deveriam ser mantidos fora dos muros da cidade,
separados dos não-doentes. Esta exclusão resultava na formação de duas “massas estranhas
uma à outra”1 – os doentes e os não-doentes. O indivíduo excluído passava a ser
desclassificado, tanto no sentido moral, como no jurídico e político.
O mandar para fora, banir do convívio social está presente em diferentes momentos
históricos quando nos referimos à lepra. Porém, as formas de realizar esse banimento ocorreu
de maneiras diversas. No Brasil, até meados do século XIX, o indivíduo que apresentava
sintomas da lepra era mandado para fora da cidade. Este não poderia mais permanecer no
local que vivera até então, passando a vagar pelos arredores das urbes. Algumas vezes iam até
2168
vilarejos, povoações, e a aproximação dos doentes era anunciada com o som de matracas, e
muitos depositavam esmolas na frente das casas e se fechavam até os doentes irem embora.
Comumente, a lepra é reconhecida como uma doença ligada à impureza espiritual, um
castigo divino, e as chagas são comparadas a manifestação desse mal. A lepra está associada
como sendo uma doença bíblica. Mas como observou Cunha2, muitas doenças de pele podem
ter se confundido com a lepra nesse período. Mesmo durante o século XX, os médicos não
sabiam identificar, ao certo, se o caso suspeito se tratava de lepra ou de outra doença
dermatológica.
Nas primeiras décadas do século XX a lepra tornou-se um problema de ordem social,
passando a ser controlada pelo Estado, que se apoiava nos discursos médicos para normatizar
a doença e os doentes. Com isso, diversos hospitais destinados aos leprosos foram construídos
nesse momento no Brasil, apoiados na idéia que a separação dos doentes dos demais sanaria a
questão da lepra.
Esses hospitais foram construídos como se fossem pequenas cidades, contando com
mercado, prefeitura, casas, cinema, quadra de esportes, entre outros. Ou seja, o hospital
possuia uma estrutura que garantia que os doentes, uma vez ali internados, não precisariam
mais deixar o local. O poder público se apoiava no discurso que enfatizava essas grandes
estruturas, falando que havia a preocupação com o bem estar desses doentes, e isso era visível
através das construções destinadas a eles.
No final do século XIX, o médico norueguês Gerhard Henrik Armauer Hansen
descobriu o agente causador da lepra, a bactéria Mycobacterium leprae. Alguns anos depois –
1897 - foi realizada em Berlim a 1° Conferência Internacional sobre a Lepra, e as
recomendações propostas por Hansen e outros médicos foi o isolamento dos doentes. Este
poderia ser feito em casa ou em estabelecimentos próprios, principalmente se houvessem
muitos doentes, mas cabia ao governo e as autoridades sanitárias tomar providências
adequadas.
As descobertas e debates que acorriam na Europa aportavam no Brasil trazendo novas
formas de cuidar da doença. Após a proclamação da República a legislação sanitária foi
reformulada. Segundo Ornellas, em 1903, quando Oswaldo Cruz assumiu a Diretoria Geral de
Saúde Pública, a “lepra ulcerada” era considerada uma doença de notificação compulsória,
obrigando o isolamento dos doentes e a desinfecção do ambiente que estes ocupavam.
2169
Ornellas cita, um relatório enviando por Oswaldo Cruz ao ministro da Justiça e Negócios
Interiores, em 1904: “Lepra – uma moléstia que está alastrando-se pela cidade, fazendo um
número crescente de vítimas [...].O leproso pode, durante anos, dedicar-se ao trabalho [...] sua
sequestração da sociedade deve ser feita não num hospital, mas em estabelecimentos
adequados, colônias de leprosos.”3
Deve-se notar, que até meados da década de 1920, o isolamento dos leprosos não era
compulsório. Estes iam até os hospitais voluntariamente, principalmente porque não tinham
meios de sobreviver. E estes hospitais eram modestos, nada comparados com a estrutura
desenvolvida nas primeiras décadas do século XX. Desta forma, em fins da década de 1920, o
modo de tratar a lepra assume novas formas, principalmente com a adoção do “modelo tripé”,
leprosário – onde deveriam ser internados os infectados pela doença; o dispensário – abrigaria
quem esteve em contato com um doente; e o preventório – que era destinado aos filhos dos
doentes. E ainda, foi instituída em 1926 uma lei que permitia que os doentes fossem
internados compulsoriamente, sendo revogada somente em 1962.
Dessa forma, durante as décadas de 1920, 1930 e 1940, foram contruídos vários
hospitais-colônias para abrigar as pessoas atingidas pela doença. De acordo com os dados da
Organização da História da Lepra (Global Project on the History of Leprosy)4, no ano de
1936, o Brasil contava com 40 leprosários.
Essas colônias-asilos ficavam fora do perímetro urbano. Um exemplo é o Leprosário
de Pirapitingui, hoje chamado de Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes, o qual se localiza na
cidade Itu/SP. Atualmente, em razão da expansão urbana este hospital não se encontra
isolado, mas durante o período de sua construção, década de 1930, ficava separado do contato
com o mundo “sadio”. O Hospital de Dematologia Sanitária do Paraná, antes denominado
Hospital São Roque, em Piraquara, município a 30 Km de Curitiba, foi inaugurado em 20 de
outubro de 1926. Assim como o Pirapitingui, o São Roque também foi pensado para ser
afastado do centro urbano.
Hospital-asilo, mais asilo-prisão que hospital, (...). A exclusão dos doentes de lepra e
seu confinamento asilar consubstanciaram um modelo de divisão binária entre
valores – puro e impuro, normal e anormal, perigoso e inofensivo, aplicando-o ao
binômio saúde e doença, e com especial vigor às doenças transmissíveis.5
Portanto, o isolamento fez com que os doentes fossem mantidos longe do contato
visual dos “sãos”, longe das cidades era como se o problema da lepra não existisse mais.
2170
Percebe-se assim, que o discurso de manutenção da ordem, da pureza prevalecem, e o que não
se encaixa nesses ideiais pré-concebidos são banidos do convívio social.
A partir da década de 1950, o regime de internamento nos hospitais-colônias passou a
ser cada vez mais questionado. O isolamento não estava resolvendo a questão da doença e os
números de infectados não havia diminuído. Nesse momento, novas formas de tratamento
estavam sendo adotadas. Até a década de 1940 era utilizado o óleo de chaulmoogra, que era
obtido através de uma planta medicinal, mas que não possuia o caráter curativo. A partir dessa
década – 1940 - passou-se a introduzir as sulfonas.
Atualmente, o tratamento da doença é feito através de uma associação de
medicamentos, chamado poliquimioterapia (PQT). Esses remédios matam o bacilo, impedem
que ocorra a transmissão e levam o paciente à cura. O PQT é uma combinação de substâncias,
como a rifampicina, dapsona e clofazimina. De acordo com o “Guia de Vigilância
Epidemiológica”, realizado pelo Ministério da Saúde em 2005, a doença é dividida em duas
categorias: paucibacilar e multibacilar. A primeira é considerada de pouca transmissibilidade,
já a segunda, possui uma maior carga bacilar, constituindo o grupo contagiante.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), alguns países registram a
hanseníase6 de forma endêmica, são eles: Angola, Brasil, República Centro-Africana,
República Democrática do Congo, Índia, Madagascar, Moçambique, Nepal e Tanzânia. No
começo de 2004, o Brasil registrou 79.908 novos casos da doença. A OMS, estabeleceu o
objetivo ao Brasil – assim como aos outros países citados acima – de reduzir os casos da
doença até 2010.
3. Debate Teórico:
Nas primeiras décadas do século XX, a lepra tornou-se uma questão de ordem social.
As políticas públicas que se estabeceram para cuidar da doença tinham a finalidade de
regulamentar, normatizar. Quanto a isso, Michel Foucault tece inúmeras considerações,
dicutindo sobre os micropoderes que permeiam todas as esferas sociais, os discursos médicos,
jurídicos, que tentam normatizar os indivíduos.
Dessa forma, ao discutir sobre a “loucura”, Foucault revela que os discursos médicosjurídicos não buscam tratar a doença, não respondem sobre o ato cometido pelo indivíduo
“louco”, simplesmente pretendem denunciar um aspecto do caso: o perigo eminente desse
2171
indivíduo. Assim, essas pessoas são excluídas, negando à elas o direito de ir e vir, como os
leprosos.
Em relação com os discursos médico-jurídicos – que ocupou grande parte das suas
pesquisas e questionamentos – ele coloca que essas instituições pretendem responder:
Não à doença exatamente, é claro, porque, se só se tratasse da doença, teríamos
instituições propriamente terapêuticas; tampouco respondem exatamente ao crime,
porque nesse caso bastariam instituições punitivas. Na verdade, todo esse
continuum, que tem seu pólo terapêutico e seu pólo judiciário, toda essa
miscibilidade institucional responde a quê? Ao perigo ora essa.7
Duas noções são importantes: “perversão” e “perigo”. Segundo Foucault, o perigo e a
perversão constituem o núcleo teórico do exame médico-legal. Em referência à loucura, o
autor aponta que em fins do século XVIII e início do XIX, o indivíduo “louco” passa a ser
tratado como tal, e a medicina o considera como doente que precisa de tratamento, e necessita
ser separado do corpo social. O “louco”comete um delito grave, o paradoxo da razão e da
desrazão. A reclusão desse indivíduo não é somente uma forma de exclusão, mas é também
uma tentativa de fazê-lo calar, já que pode instigar, com suas palavras, a dúvida.
Se tratando dos leprosos a reclusão era um modo de fazer com que esse “mal” não
atingisse outras pessoas. A lepra, como já foi apontado, era considerada um mal decorrente de
um pecado. Paradoxalmente, o medo do contágio demonstra também as dúvidas espirituais,
ou seja, o doente era julgado, tido como impuro, mas ao mesmo tempo o receio do contágio
também revelava uma dúvida entre os sãos, que se viam à mercê da doença.
Na obra “Vigiar e Punir”, Foucault discute as formas com que a disciplinarização, a
normatização são adotadas no interior do discurso jurídico. Essa normatização passou a tomar
formas no decorrer dos séculos XVIII e XIX. Os suplícios e a espetacularização em torno da
morte começaram a ser banidos, assumindo características cada vez mais veladas.
Essa nova concepção em torno das maneiras de punição observadas no decorrer desses
séculos, fez com que o próprio ato da punição fosse o castigo. As normas e a disciplina se
estenderam do corpo para a alma do condenado. Não havia necessidade de puní-lo
fisicamente com os espetáculos públicos de suplício, mas a condenação à reclusão já seria
suficiente.
2172
Foucault traça um paralelo entre a lepra e a peste. A primeira abrange a questão do
fechamento e a pretensão de uma comunidade pura; e a segunda, está relacionada com o bom
treinamento, com uma sociedade disciplinar. A lepra, quando descoberta, era considerada um
mal individual, e este infortúnio não podia chegar aos sãos. Para que isso não ocorresse a
reclusão tinha que ser adotada.
A peste deveria ser solucionada com a quarentena, sendo o estado de vigilância
constante e a disciplina agindo como fundamento essencial. Uma rede hierárquica se
estabelecia. As pessoas eram trancadas nas casas e todos os dias um inspetor passava para
fazer a vistoria, para perceber se algum morador fora atingido pela doença. Cada membro da
família, ao ser chamado, deveria aparecer em uma janela, e a não apresentação supunha que a
peste havia chegado àquela residência.
Foucault complementa,
Esquemas diferentes, portanto, mas não incompatíveis. Lentamente, vemo-los se
aproximarem; e é próprio do século XIX ter aplicado ao espaço de exclusão de que o
leproso era o habitante simbólico, a técnica de poder própria do ‘quadriculamento’
disciplinar. Tratar os ‘leprosos’ como ‘pestilentos’, projetar recortes finos da
disciplina sobre o espaço confuso do internamento, trabalhá-lo com os métodos de
repartição analítica do poder, individualizar os excluídos, mas utilizar processos de
individualização para marcar exclusões (...).8
Assim, percebemos que as normas e a disciplina são partes do espaço hospitalar, que
assim como as penitenciárias, escolas, visam formar indivíduos dóceis. O discurso também
regula e organiza. Assim o fez o discurso médico em relação à lepra. As formas de tratamento
não eram conhecidas, mas o isolamento era defendido, e mais do que uma forma de tratar, era
uma maneira de afastar a doença e os doentes do convívio com os “sadios”. Portanto, os
leprosos avançavam para além da categoria da exclusão, comportando também a reclusão.
Sobre o discurso Foucault coloca que ele nada mais é do que a “reverberação de uma
verdade”. A “vontade de verdade”, buscada desde a Grécia Antiga, atua em conjunto com os
dicursos, que devem ser autorizados, fundamentados na verdade, em suma, devem ecoar a
veracidade.
Para isso, órgãos governamentais – como o Serviço Nacional de Lepra (SNL) –
apoiaram-se em discursos científicos, que refletiam, por exemplo, descobertas no campo da
bacteriologia, para fundamentar o tratamento da lepra.
2173
4. Fontes Analisadas:
A obra "Clima & Saúde: introdução bio-geográfica à civilização brasileira", do
professor de Higiene da Universidade do Rio de Janeiro, Afranio Peixoto, editado em 1938,
defende a construção de leprosários, a medicalização da população e a resolução da questão
sanitária do país. O tom nacionalista adotado pelo autor é percebido durante toda a obra,
refletindo o momento político vivenciado pelo Brasil naquele momento.
No capítulo IX da obra – “Clima e salubridade: epidemias e endemias” – Peixoto faz
as seguintes observações em relação a lepra,
Lepra – ainda um mal importado, e importado pelos brancos colonizadores, que a
disseminaram, nestes três séculos, por todo o Brasil, especialmente no norte, no
Amazonas, Pará, Maranhão, onde, no dizer de Nina Rodrigues, é todo o problema
sanitário. O cálculo de 5.000 leprosos existentes no Brasil, segundo Octávio Freitas
é optimista; se São Paulo tem mais de 2.000 autênticos, por numeração direta, Lutz
os avalia, os do Brasil, em 10.000, em 12.000 Fernando Terra; Belmiro Valverde,
15.000, e Adolfo Lindenberg, mesmo em 30.000. Ainda descontando no
proselitismo sanitário ficam bastantes... (...) E contra isto temos feito muito pouco
mais de uma leprosaria modelo em São Paulo, e promessas e construções incipientes
pelo norte...9
E na conclusão “A higiene, arte de suprimir o clima”, Peixoto coloca,
Falta ainda muito; falta educação higiênica do povo, falta competência
administrativa e técnica aos governos. (...) Para citar um exemplo, simbólico: a luta
contra a ancilostomose. Que importam os trabalhos da comissão Rockefeler, dos
governos dos Estados, da Profilaxia Rural, dando quenopódio, timol ou naftol-beta,
aos opilados, tratando-os e lhes restituindo a saúde? ... Como não lhes podem dar, e
não dão, educação, instrução, hábitos higiênicos, calçados e privadas...a reinfecção é
fatal, e começa no dia imediato à cura conseguida assim efêmera e malograda.10
Desta forma, percebe-se o discurso utilizado por Peixoto, defendendo, acima de tudo a
questão da higiene. A lepra e tantas outras doenças apontadas pelo autor, como a malária, a
febre amarela, tuberculose, varíola, etc, deveriam ser combatidas através da educação
sanitária. Questões como a falta de conhecimentos em relação a lepra pela classe médica, por
exemplo, não são apontados de forma clara pelo médico, que defende a sua posição como
professor de Higiene na Universidade do Rio de Janeiro.
A conotação com o momento político em que o Brasil se encontrava no período é
visível no decorrer do texto de Peixoto, que coloca a lepra como um mal importado dos
colonizadores brancos, ou seja, é uma doença que veio de fora, algo que não pertence ao
Brasil e aos brasileiros. O Estado Novo exaltava o discurso nacionalista, colocava a figura de
2174
Getúlio Vargas como paternal e afável, e em relação a lepra foram contruídos, na década de
1930, cerca de 20 instituições que se encarregaram da doença.
O “Manual de Leprologia” foi editado em 1960 pelo Ministério da Saúde,
Departamento Nacional de Saúde e Serviço Nacional de Lepra, apresenta-se com o objetivo
de colocar ao alcance dos interessados um manual prático sobre lepra, destinando-se a todos
os médicos, não somente aos hansenologistas. A participação da classe médica se faz presente
em toda a elaboração do Manual. O Serviço Nacional de Lepra incentivou a realização de
cursos intensivos sobre a doença nas Faculdades de Medicina.
Assim é de se esperar que êste livro preencha os objetivos para os quais foi
projetado e contribua para a formação de uma numerosa equipe de colaboradores
desta obra de medicina preventiva e assistencial, tornando mais segura a ação dos
que se devotam especificamente à causa de promover a saúde e o bem estar do povo
brasileiro.11
Este trecho da apresentação demonstra os discursos governamentais e médicos
atuando em conjunto para sanar a questão da lepra no Brasil. O discurso médico servia como
sustentação para que o Estado adotasse políticas públicas em relação a doença, como a
construção dos leprosários e os internamentos compulsórios.
Os doentes de lepra apresentam, comumente, um estado geral satisfatório e boas
condições físicas que lhes permitem exercer várias atividades, mesmo as mais
árduas. Como o homem é o único repositário conhecido do ‘Mycobacterium leprae’,
causador da lepra humana, a doença é transmitida aos que convivem com o doente.12
De acordo com a citação, percebe-se que a sequestração dos doentes para interná-los
em hospitais adequados é a forma que deveria ser adotada para evitar a transmissão. Em
relação ao trabalho, coloca-se que o dooente poderia exercer as atividades normalmente,
mesmo as mais árduas. No interior dos leprosários, por exemplo, os doentes trabalhavam,
tanto em atividades mais pesadas, como em construções, na agricultura, como também na
enfermaria cuidando de outros doentes.
Por muitos anos os poderes públicos da União, Estados e Distrito Federal, não
tomavam conhecimento do progresso da endemia no Brasil. A assistência ao doente
de lepra estava a cargo da caridade pública. A única medida posta em prática era o
asilamento dos doentes, sendo a sua manutenção feita por instituições particulares.
Nos arredores das cidades e vilas alojavam-se doentes que em determinados dias da
semana saíam para mendigar. Outros viviam em barracas e levavam vida nômade,
esmolando ao longo das estradas.13
2175
Assim, a construção de leprosários e os internamentos compulsórios eram colocados
como uma atividade de assistência. Nos hospitais os doentes poderiam ser tratados de forma
correta. Em outro ponto da obra, é importante perceber a forma com que o doente de lepra é
definido, sendo visível – como colocou Foucault – que não se trata somente de questões
terapêuticas, mas esses indivíduos são classificados, julgados.
O psiquismo dos leprosos está quase sempre modificado. Êles são, em geral,
irritáveis, egoistas e sobretudo indisciplinados. O suícidio de leprosos é raro em
relação ao número dêles. Os desvios psíquicos podem ser explicados sobretudo
pelos desajustamentos ambientais.14
Aqui também aparece a questão da higiene, que intensifica os casos da doença. A lepra
é apontada como uma “doença educativa”, sendo consequência de ambiente sanitário
inapropriado, da falta de higiene pessoal e da falta de conhecimentos da população sobre a
doença.
O “Guia de Vigilância Epidemiológica” editado pelo Ministério da Saúde, em 2005,
estabelece as formas com que os profissionais ligados à saude devem proceder diante de uma
série de doenças, entre as quais, a hanseníase. Esta intervenção estatal no controle das
doenças, como já pôde ser observado, iniciou-se no começo do século XX, orientadas pelas
descobertas no campo científico, como o avanço da bacteriologia, ocorrendo as intervenções
de campanhas sanitárias que visavam o controle de enfermidades.
Segundo o “Guia”, a Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), ocorrida entre os
anos de 1966 a 1973, atuou como um marco da institucionalização das ações de vigilância no
país,
(...) tendo fomentado e apoiado a organização de unidades de vigilância
epidemiológica na estrutura das secretarias estaduais de saúde. O modelo da CEV
inspirou a Fundação Serviços de Saúde Pública (FSESP) a organizar, em 1969, um
sistema de notificação semanal de doenças selecionadas e disseminar informações
pertinentes em um boletim epidemiológico de circulação quinzenal.15
A organização de meios para controle da doença e dos doentes são perceptíveis. A
hanseníase, e outras 35 doenças, como a cólera, a dengue, a poliomilite, a tuberculose, possui
notificação compulsória. A ocorrência dessas enfermidades deve ser comunicado para que as
medidas cabíveis sejam realizadas.
2176
Ao se tratar da hanseníase é colocada a ficha de notificação correspondente a doença.
Nela devem ser anotadas todos os dados do paciente (idade, endereço, sexo, grau de
escolaridade, cor – de acordo com a declarada pela pessoa – pais, número de lesões cutâneas),
essas e outras informações são colocadas no registro.
O Guia se centra no “processo educativo” para controlar a hanseníase, visando
prevenir e tratar as incapacidades físicas. “Esse processo deve ter como referência as
experiências municipais de controle social”16. Todo o processo de cuidado com as doenças se
trata, também, de formas de controle, instituindo à população maneiras de agir.
Atualmente, os registros de casos de hanseníase no Brasil são ainda muito altos. A
OMS instituiu como data limite para erradicação da doença, no país, o ano de 2010. Desta
forma, mesmo com a adoção dos internamentos compulsórios, a reclusão dos doentes em
leprosários, não resultou no aniquilamento da doença. E percebemos que o controle social, se
tratando de casos de doença, é uma prática comum. E ainda, em períodos de epidemias,
momento em que alguma enfermidade se alastra na sociedade, as medidas tomadas são tidas,
de maneira geral, como justificáveis. Como apontou Serres, no tocante a lepra, tanto a
sociedade como o Estado podem ser responsabilizados pelas medidas segregacionistas. Nos
momentos de medo, crise, podemos perceber como funciona a dinâmica social.17
Notas
1
FOUCAULT, Michel. Os Anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes,
2001. p. 54.
2
CUNHA, Ana Zoé Schilling da. Hanseníase: aspectos da evolução do diagnóstico, tratamento e controle.
Ciência & Saúde Coletiva. 7(2), p. 235-242, 2002.
3
ORNELLAS, Cleuza Panisset. O Paciente Excluído: História crítica das práticas médicas de confinamento.
Rio de Janeiro: Revan, 1997. p. 76.
4
www.leprosyhistory.org
5
ORNELLAS, C.P. Op. Cit., p. 42.
6
Em 1976, a terminologia “lepra” foi mudada, passando a ser utilizada a nomenclatura “hanseníase”. Neste
momento, ocorrerram diversas discussões entre os leprologistas em relação a minimização do estigma causado
pela lepra, principalmente nos Congressos Internacionais de Lepra realizados em Havana – 1948, e no Rio de
Janeiro – 1963. Porém, apenas em 1995 o termo lepra foi banido principalmente pela pressão exercida pelo
Movimento de Reintegração das pessoas atingidas pela Hanseníase (Morhan). Informação obtida em:
OLIVEIRA, M. L. W.; MENDES, C. M.; TARDIN, R. T.; CUNHA, M. D.; ARRUDA, A. A representação
social da hanseníase trinta anos após a substituição da terminologia ‘lepra’ no Brasil. História, Ciências, Saúde
– Manguinhos. V. 10, suplemento 1, p. 41-48, 2003.
7
FOUCAULT, M. Os Anormais. Op. Cit. p. 42-43.
8
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2008. p 165.
9
PEIXOTO, Afranio. Clima & Saúde: introdução bio-geográfica à civilização brasileira. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1938. p. 204-05.
10
Idem, p. 290-01.
11
Ministério da Saúde. Manual de Leprologia. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Lepra, 1960. p. 6.
12
Idem, p. 14.
13
Idem, p. 15.
14
Idem, p. 72.
2177
15
Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de Vigilância Epidemiológica.6. ed. Brasília:
Ministério da Saúde, 2005. p. 19.
16
Idem, p. 394.
17
SERRES, Juliane C. Primon. Memórias do Isolamento: trajetórias marcadas pela experiência de vida no
Hospital Colônia Itapuã. Tese (História). São Leopoldo: UNISINOS, 2009.
Referências
CUNHA, Ana Zoé Schilling da. Hanseníase: aspectos da evolução do diagnóstico, tratamento
e controle. Ciência & Saúde Coletiva. 7(2), p. 235-242, 2002.
FOUCAULT, Michel. Os Anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2008.
______. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
Ministério da Saúde. Manual de Leprologia. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Lepra,
1960.
Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de Vigilância
Epidemiológica.6. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.
OLIVEIRA, M. L. W.; MENDES, C. M.; TARDIN, R. T.; CUNHA, M. D.; ARRUDA, A. A
representação social da hanseníase trinta anos após a substituição da terminologia ‘lepra’ no
Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. V. 10, suplemento 1, p. 41-48, 2003.
ORNELLAS, Cleuza Panisset. O Paciente Excluído: História crítica das práticas médicas de
confinamento. Rio de Janeiro: Revan, 1997.
PEIXOTO, Afranio. Clima & Saúde: introdução bio-geográfica à civilização brasileira. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.
SERRES, Juliane C. Primon. Memórias do Isolamento: trajetórias marcadas pela
experiência de vida no Hospital Colônia Itapuã. Tese (História). São Leopoldo: UNISINOS,
2009.
Download

trabalho completo