DOI: 10.4025/4cih.pphuem.592 LEPRA: REPRESENTAÇÕES DA DOENÇA E DOS DOENTES ATRAVÉS DE DISCURSOS MÉDICO-CIENTÍFICOS E GOVERNAMENTAIS Silvia Danielle Schneider Mestranda em História/Bolsista da Capes/UNIOESTE Yonissa Marmitt Wadi Doutora em História/Pesquisadora do CNPq/Professora Adjunta da UNIOESTE 1. Introdução: Este trabalho pretende abordar a questão da representação da doença e dos doentes de lepra utilizando o “Manual de Leprologia”, publicado em 1960 pelo Serviço Nacional de Lepra e Ministério da Saúde. Juntamente com este manual será analisado o “Guia de Vigilância Epidemiológica”, produzido pelo Ministério da Saúde no ano de 2005. Outra obra que será utilizada intilula-se "Clima & Saúde: introdução bio-geográfica à civilização brasileira”, escrita em 1938 pelo professor de Higiente da Universidade do Rio de Janeiro, Afranio Peixoto. Estes materiais forcecem dados para persarmos como os doentes eram representados através dos discursos médicos/científicos e também pelos órgãos governamentais. Estas obras foram produzidas em diferentes espaços temporais, o que permite refletir como a doença foi representada em temporalidades distintas. 2. Lepra: Durante a Idade Média os leprosos deveriam ser mantidos fora dos muros da cidade, separados dos não-doentes. Esta exclusão resultava na formação de duas “massas estranhas uma à outra”1 – os doentes e os não-doentes. O indivíduo excluído passava a ser desclassificado, tanto no sentido moral, como no jurídico e político. O mandar para fora, banir do convívio social está presente em diferentes momentos históricos quando nos referimos à lepra. Porém, as formas de realizar esse banimento ocorreu de maneiras diversas. No Brasil, até meados do século XIX, o indivíduo que apresentava sintomas da lepra era mandado para fora da cidade. Este não poderia mais permanecer no local que vivera até então, passando a vagar pelos arredores das urbes. Algumas vezes iam até 2168 vilarejos, povoações, e a aproximação dos doentes era anunciada com o som de matracas, e muitos depositavam esmolas na frente das casas e se fechavam até os doentes irem embora. Comumente, a lepra é reconhecida como uma doença ligada à impureza espiritual, um castigo divino, e as chagas são comparadas a manifestação desse mal. A lepra está associada como sendo uma doença bíblica. Mas como observou Cunha2, muitas doenças de pele podem ter se confundido com a lepra nesse período. Mesmo durante o século XX, os médicos não sabiam identificar, ao certo, se o caso suspeito se tratava de lepra ou de outra doença dermatológica. Nas primeiras décadas do século XX a lepra tornou-se um problema de ordem social, passando a ser controlada pelo Estado, que se apoiava nos discursos médicos para normatizar a doença e os doentes. Com isso, diversos hospitais destinados aos leprosos foram construídos nesse momento no Brasil, apoiados na idéia que a separação dos doentes dos demais sanaria a questão da lepra. Esses hospitais foram construídos como se fossem pequenas cidades, contando com mercado, prefeitura, casas, cinema, quadra de esportes, entre outros. Ou seja, o hospital possuia uma estrutura que garantia que os doentes, uma vez ali internados, não precisariam mais deixar o local. O poder público se apoiava no discurso que enfatizava essas grandes estruturas, falando que havia a preocupação com o bem estar desses doentes, e isso era visível através das construções destinadas a eles. No final do século XIX, o médico norueguês Gerhard Henrik Armauer Hansen descobriu o agente causador da lepra, a bactéria Mycobacterium leprae. Alguns anos depois – 1897 - foi realizada em Berlim a 1° Conferência Internacional sobre a Lepra, e as recomendações propostas por Hansen e outros médicos foi o isolamento dos doentes. Este poderia ser feito em casa ou em estabelecimentos próprios, principalmente se houvessem muitos doentes, mas cabia ao governo e as autoridades sanitárias tomar providências adequadas. As descobertas e debates que acorriam na Europa aportavam no Brasil trazendo novas formas de cuidar da doença. Após a proclamação da República a legislação sanitária foi reformulada. Segundo Ornellas, em 1903, quando Oswaldo Cruz assumiu a Diretoria Geral de Saúde Pública, a “lepra ulcerada” era considerada uma doença de notificação compulsória, obrigando o isolamento dos doentes e a desinfecção do ambiente que estes ocupavam. 2169 Ornellas cita, um relatório enviando por Oswaldo Cruz ao ministro da Justiça e Negócios Interiores, em 1904: “Lepra – uma moléstia que está alastrando-se pela cidade, fazendo um número crescente de vítimas [...].O leproso pode, durante anos, dedicar-se ao trabalho [...] sua sequestração da sociedade deve ser feita não num hospital, mas em estabelecimentos adequados, colônias de leprosos.”3 Deve-se notar, que até meados da década de 1920, o isolamento dos leprosos não era compulsório. Estes iam até os hospitais voluntariamente, principalmente porque não tinham meios de sobreviver. E estes hospitais eram modestos, nada comparados com a estrutura desenvolvida nas primeiras décadas do século XX. Desta forma, em fins da década de 1920, o modo de tratar a lepra assume novas formas, principalmente com a adoção do “modelo tripé”, leprosário – onde deveriam ser internados os infectados pela doença; o dispensário – abrigaria quem esteve em contato com um doente; e o preventório – que era destinado aos filhos dos doentes. E ainda, foi instituída em 1926 uma lei que permitia que os doentes fossem internados compulsoriamente, sendo revogada somente em 1962. Dessa forma, durante as décadas de 1920, 1930 e 1940, foram contruídos vários hospitais-colônias para abrigar as pessoas atingidas pela doença. De acordo com os dados da Organização da História da Lepra (Global Project on the History of Leprosy)4, no ano de 1936, o Brasil contava com 40 leprosários. Essas colônias-asilos ficavam fora do perímetro urbano. Um exemplo é o Leprosário de Pirapitingui, hoje chamado de Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes, o qual se localiza na cidade Itu/SP. Atualmente, em razão da expansão urbana este hospital não se encontra isolado, mas durante o período de sua construção, década de 1930, ficava separado do contato com o mundo “sadio”. O Hospital de Dematologia Sanitária do Paraná, antes denominado Hospital São Roque, em Piraquara, município a 30 Km de Curitiba, foi inaugurado em 20 de outubro de 1926. Assim como o Pirapitingui, o São Roque também foi pensado para ser afastado do centro urbano. Hospital-asilo, mais asilo-prisão que hospital, (...). A exclusão dos doentes de lepra e seu confinamento asilar consubstanciaram um modelo de divisão binária entre valores – puro e impuro, normal e anormal, perigoso e inofensivo, aplicando-o ao binômio saúde e doença, e com especial vigor às doenças transmissíveis.5 Portanto, o isolamento fez com que os doentes fossem mantidos longe do contato visual dos “sãos”, longe das cidades era como se o problema da lepra não existisse mais. 2170 Percebe-se assim, que o discurso de manutenção da ordem, da pureza prevalecem, e o que não se encaixa nesses ideiais pré-concebidos são banidos do convívio social. A partir da década de 1950, o regime de internamento nos hospitais-colônias passou a ser cada vez mais questionado. O isolamento não estava resolvendo a questão da doença e os números de infectados não havia diminuído. Nesse momento, novas formas de tratamento estavam sendo adotadas. Até a década de 1940 era utilizado o óleo de chaulmoogra, que era obtido através de uma planta medicinal, mas que não possuia o caráter curativo. A partir dessa década – 1940 - passou-se a introduzir as sulfonas. Atualmente, o tratamento da doença é feito através de uma associação de medicamentos, chamado poliquimioterapia (PQT). Esses remédios matam o bacilo, impedem que ocorra a transmissão e levam o paciente à cura. O PQT é uma combinação de substâncias, como a rifampicina, dapsona e clofazimina. De acordo com o “Guia de Vigilância Epidemiológica”, realizado pelo Ministério da Saúde em 2005, a doença é dividida em duas categorias: paucibacilar e multibacilar. A primeira é considerada de pouca transmissibilidade, já a segunda, possui uma maior carga bacilar, constituindo o grupo contagiante. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), alguns países registram a hanseníase6 de forma endêmica, são eles: Angola, Brasil, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Índia, Madagascar, Moçambique, Nepal e Tanzânia. No começo de 2004, o Brasil registrou 79.908 novos casos da doença. A OMS, estabeleceu o objetivo ao Brasil – assim como aos outros países citados acima – de reduzir os casos da doença até 2010. 3. Debate Teórico: Nas primeiras décadas do século XX, a lepra tornou-se uma questão de ordem social. As políticas públicas que se estabeceram para cuidar da doença tinham a finalidade de regulamentar, normatizar. Quanto a isso, Michel Foucault tece inúmeras considerações, dicutindo sobre os micropoderes que permeiam todas as esferas sociais, os discursos médicos, jurídicos, que tentam normatizar os indivíduos. Dessa forma, ao discutir sobre a “loucura”, Foucault revela que os discursos médicosjurídicos não buscam tratar a doença, não respondem sobre o ato cometido pelo indivíduo “louco”, simplesmente pretendem denunciar um aspecto do caso: o perigo eminente desse 2171 indivíduo. Assim, essas pessoas são excluídas, negando à elas o direito de ir e vir, como os leprosos. Em relação com os discursos médico-jurídicos – que ocupou grande parte das suas pesquisas e questionamentos – ele coloca que essas instituições pretendem responder: Não à doença exatamente, é claro, porque, se só se tratasse da doença, teríamos instituições propriamente terapêuticas; tampouco respondem exatamente ao crime, porque nesse caso bastariam instituições punitivas. Na verdade, todo esse continuum, que tem seu pólo terapêutico e seu pólo judiciário, toda essa miscibilidade institucional responde a quê? Ao perigo ora essa.7 Duas noções são importantes: “perversão” e “perigo”. Segundo Foucault, o perigo e a perversão constituem o núcleo teórico do exame médico-legal. Em referência à loucura, o autor aponta que em fins do século XVIII e início do XIX, o indivíduo “louco” passa a ser tratado como tal, e a medicina o considera como doente que precisa de tratamento, e necessita ser separado do corpo social. O “louco”comete um delito grave, o paradoxo da razão e da desrazão. A reclusão desse indivíduo não é somente uma forma de exclusão, mas é também uma tentativa de fazê-lo calar, já que pode instigar, com suas palavras, a dúvida. Se tratando dos leprosos a reclusão era um modo de fazer com que esse “mal” não atingisse outras pessoas. A lepra, como já foi apontado, era considerada um mal decorrente de um pecado. Paradoxalmente, o medo do contágio demonstra também as dúvidas espirituais, ou seja, o doente era julgado, tido como impuro, mas ao mesmo tempo o receio do contágio também revelava uma dúvida entre os sãos, que se viam à mercê da doença. Na obra “Vigiar e Punir”, Foucault discute as formas com que a disciplinarização, a normatização são adotadas no interior do discurso jurídico. Essa normatização passou a tomar formas no decorrer dos séculos XVIII e XIX. Os suplícios e a espetacularização em torno da morte começaram a ser banidos, assumindo características cada vez mais veladas. Essa nova concepção em torno das maneiras de punição observadas no decorrer desses séculos, fez com que o próprio ato da punição fosse o castigo. As normas e a disciplina se estenderam do corpo para a alma do condenado. Não havia necessidade de puní-lo fisicamente com os espetáculos públicos de suplício, mas a condenação à reclusão já seria suficiente. 2172 Foucault traça um paralelo entre a lepra e a peste. A primeira abrange a questão do fechamento e a pretensão de uma comunidade pura; e a segunda, está relacionada com o bom treinamento, com uma sociedade disciplinar. A lepra, quando descoberta, era considerada um mal individual, e este infortúnio não podia chegar aos sãos. Para que isso não ocorresse a reclusão tinha que ser adotada. A peste deveria ser solucionada com a quarentena, sendo o estado de vigilância constante e a disciplina agindo como fundamento essencial. Uma rede hierárquica se estabelecia. As pessoas eram trancadas nas casas e todos os dias um inspetor passava para fazer a vistoria, para perceber se algum morador fora atingido pela doença. Cada membro da família, ao ser chamado, deveria aparecer em uma janela, e a não apresentação supunha que a peste havia chegado àquela residência. Foucault complementa, Esquemas diferentes, portanto, mas não incompatíveis. Lentamente, vemo-los se aproximarem; e é próprio do século XIX ter aplicado ao espaço de exclusão de que o leproso era o habitante simbólico, a técnica de poder própria do ‘quadriculamento’ disciplinar. Tratar os ‘leprosos’ como ‘pestilentos’, projetar recortes finos da disciplina sobre o espaço confuso do internamento, trabalhá-lo com os métodos de repartição analítica do poder, individualizar os excluídos, mas utilizar processos de individualização para marcar exclusões (...).8 Assim, percebemos que as normas e a disciplina são partes do espaço hospitalar, que assim como as penitenciárias, escolas, visam formar indivíduos dóceis. O discurso também regula e organiza. Assim o fez o discurso médico em relação à lepra. As formas de tratamento não eram conhecidas, mas o isolamento era defendido, e mais do que uma forma de tratar, era uma maneira de afastar a doença e os doentes do convívio com os “sadios”. Portanto, os leprosos avançavam para além da categoria da exclusão, comportando também a reclusão. Sobre o discurso Foucault coloca que ele nada mais é do que a “reverberação de uma verdade”. A “vontade de verdade”, buscada desde a Grécia Antiga, atua em conjunto com os dicursos, que devem ser autorizados, fundamentados na verdade, em suma, devem ecoar a veracidade. Para isso, órgãos governamentais – como o Serviço Nacional de Lepra (SNL) – apoiaram-se em discursos científicos, que refletiam, por exemplo, descobertas no campo da bacteriologia, para fundamentar o tratamento da lepra. 2173 4. Fontes Analisadas: A obra "Clima & Saúde: introdução bio-geográfica à civilização brasileira", do professor de Higiene da Universidade do Rio de Janeiro, Afranio Peixoto, editado em 1938, defende a construção de leprosários, a medicalização da população e a resolução da questão sanitária do país. O tom nacionalista adotado pelo autor é percebido durante toda a obra, refletindo o momento político vivenciado pelo Brasil naquele momento. No capítulo IX da obra – “Clima e salubridade: epidemias e endemias” – Peixoto faz as seguintes observações em relação a lepra, Lepra – ainda um mal importado, e importado pelos brancos colonizadores, que a disseminaram, nestes três séculos, por todo o Brasil, especialmente no norte, no Amazonas, Pará, Maranhão, onde, no dizer de Nina Rodrigues, é todo o problema sanitário. O cálculo de 5.000 leprosos existentes no Brasil, segundo Octávio Freitas é optimista; se São Paulo tem mais de 2.000 autênticos, por numeração direta, Lutz os avalia, os do Brasil, em 10.000, em 12.000 Fernando Terra; Belmiro Valverde, 15.000, e Adolfo Lindenberg, mesmo em 30.000. Ainda descontando no proselitismo sanitário ficam bastantes... (...) E contra isto temos feito muito pouco mais de uma leprosaria modelo em São Paulo, e promessas e construções incipientes pelo norte...9 E na conclusão “A higiene, arte de suprimir o clima”, Peixoto coloca, Falta ainda muito; falta educação higiênica do povo, falta competência administrativa e técnica aos governos. (...) Para citar um exemplo, simbólico: a luta contra a ancilostomose. Que importam os trabalhos da comissão Rockefeler, dos governos dos Estados, da Profilaxia Rural, dando quenopódio, timol ou naftol-beta, aos opilados, tratando-os e lhes restituindo a saúde? ... Como não lhes podem dar, e não dão, educação, instrução, hábitos higiênicos, calçados e privadas...a reinfecção é fatal, e começa no dia imediato à cura conseguida assim efêmera e malograda.10 Desta forma, percebe-se o discurso utilizado por Peixoto, defendendo, acima de tudo a questão da higiene. A lepra e tantas outras doenças apontadas pelo autor, como a malária, a febre amarela, tuberculose, varíola, etc, deveriam ser combatidas através da educação sanitária. Questões como a falta de conhecimentos em relação a lepra pela classe médica, por exemplo, não são apontados de forma clara pelo médico, que defende a sua posição como professor de Higiene na Universidade do Rio de Janeiro. A conotação com o momento político em que o Brasil se encontrava no período é visível no decorrer do texto de Peixoto, que coloca a lepra como um mal importado dos colonizadores brancos, ou seja, é uma doença que veio de fora, algo que não pertence ao Brasil e aos brasileiros. O Estado Novo exaltava o discurso nacionalista, colocava a figura de 2174 Getúlio Vargas como paternal e afável, e em relação a lepra foram contruídos, na década de 1930, cerca de 20 instituições que se encarregaram da doença. O “Manual de Leprologia” foi editado em 1960 pelo Ministério da Saúde, Departamento Nacional de Saúde e Serviço Nacional de Lepra, apresenta-se com o objetivo de colocar ao alcance dos interessados um manual prático sobre lepra, destinando-se a todos os médicos, não somente aos hansenologistas. A participação da classe médica se faz presente em toda a elaboração do Manual. O Serviço Nacional de Lepra incentivou a realização de cursos intensivos sobre a doença nas Faculdades de Medicina. Assim é de se esperar que êste livro preencha os objetivos para os quais foi projetado e contribua para a formação de uma numerosa equipe de colaboradores desta obra de medicina preventiva e assistencial, tornando mais segura a ação dos que se devotam especificamente à causa de promover a saúde e o bem estar do povo brasileiro.11 Este trecho da apresentação demonstra os discursos governamentais e médicos atuando em conjunto para sanar a questão da lepra no Brasil. O discurso médico servia como sustentação para que o Estado adotasse políticas públicas em relação a doença, como a construção dos leprosários e os internamentos compulsórios. Os doentes de lepra apresentam, comumente, um estado geral satisfatório e boas condições físicas que lhes permitem exercer várias atividades, mesmo as mais árduas. Como o homem é o único repositário conhecido do ‘Mycobacterium leprae’, causador da lepra humana, a doença é transmitida aos que convivem com o doente.12 De acordo com a citação, percebe-se que a sequestração dos doentes para interná-los em hospitais adequados é a forma que deveria ser adotada para evitar a transmissão. Em relação ao trabalho, coloca-se que o dooente poderia exercer as atividades normalmente, mesmo as mais árduas. No interior dos leprosários, por exemplo, os doentes trabalhavam, tanto em atividades mais pesadas, como em construções, na agricultura, como também na enfermaria cuidando de outros doentes. Por muitos anos os poderes públicos da União, Estados e Distrito Federal, não tomavam conhecimento do progresso da endemia no Brasil. A assistência ao doente de lepra estava a cargo da caridade pública. A única medida posta em prática era o asilamento dos doentes, sendo a sua manutenção feita por instituições particulares. Nos arredores das cidades e vilas alojavam-se doentes que em determinados dias da semana saíam para mendigar. Outros viviam em barracas e levavam vida nômade, esmolando ao longo das estradas.13 2175 Assim, a construção de leprosários e os internamentos compulsórios eram colocados como uma atividade de assistência. Nos hospitais os doentes poderiam ser tratados de forma correta. Em outro ponto da obra, é importante perceber a forma com que o doente de lepra é definido, sendo visível – como colocou Foucault – que não se trata somente de questões terapêuticas, mas esses indivíduos são classificados, julgados. O psiquismo dos leprosos está quase sempre modificado. Êles são, em geral, irritáveis, egoistas e sobretudo indisciplinados. O suícidio de leprosos é raro em relação ao número dêles. Os desvios psíquicos podem ser explicados sobretudo pelos desajustamentos ambientais.14 Aqui também aparece a questão da higiene, que intensifica os casos da doença. A lepra é apontada como uma “doença educativa”, sendo consequência de ambiente sanitário inapropriado, da falta de higiene pessoal e da falta de conhecimentos da população sobre a doença. O “Guia de Vigilância Epidemiológica” editado pelo Ministério da Saúde, em 2005, estabelece as formas com que os profissionais ligados à saude devem proceder diante de uma série de doenças, entre as quais, a hanseníase. Esta intervenção estatal no controle das doenças, como já pôde ser observado, iniciou-se no começo do século XX, orientadas pelas descobertas no campo científico, como o avanço da bacteriologia, ocorrendo as intervenções de campanhas sanitárias que visavam o controle de enfermidades. Segundo o “Guia”, a Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), ocorrida entre os anos de 1966 a 1973, atuou como um marco da institucionalização das ações de vigilância no país, (...) tendo fomentado e apoiado a organização de unidades de vigilância epidemiológica na estrutura das secretarias estaduais de saúde. O modelo da CEV inspirou a Fundação Serviços de Saúde Pública (FSESP) a organizar, em 1969, um sistema de notificação semanal de doenças selecionadas e disseminar informações pertinentes em um boletim epidemiológico de circulação quinzenal.15 A organização de meios para controle da doença e dos doentes são perceptíveis. A hanseníase, e outras 35 doenças, como a cólera, a dengue, a poliomilite, a tuberculose, possui notificação compulsória. A ocorrência dessas enfermidades deve ser comunicado para que as medidas cabíveis sejam realizadas. 2176 Ao se tratar da hanseníase é colocada a ficha de notificação correspondente a doença. Nela devem ser anotadas todos os dados do paciente (idade, endereço, sexo, grau de escolaridade, cor – de acordo com a declarada pela pessoa – pais, número de lesões cutâneas), essas e outras informações são colocadas no registro. O Guia se centra no “processo educativo” para controlar a hanseníase, visando prevenir e tratar as incapacidades físicas. “Esse processo deve ter como referência as experiências municipais de controle social”16. Todo o processo de cuidado com as doenças se trata, também, de formas de controle, instituindo à população maneiras de agir. Atualmente, os registros de casos de hanseníase no Brasil são ainda muito altos. A OMS instituiu como data limite para erradicação da doença, no país, o ano de 2010. Desta forma, mesmo com a adoção dos internamentos compulsórios, a reclusão dos doentes em leprosários, não resultou no aniquilamento da doença. E percebemos que o controle social, se tratando de casos de doença, é uma prática comum. E ainda, em períodos de epidemias, momento em que alguma enfermidade se alastra na sociedade, as medidas tomadas são tidas, de maneira geral, como justificáveis. Como apontou Serres, no tocante a lepra, tanto a sociedade como o Estado podem ser responsabilizados pelas medidas segregacionistas. Nos momentos de medo, crise, podemos perceber como funciona a dinâmica social.17 Notas 1 FOUCAULT, Michel. Os Anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 54. 2 CUNHA, Ana Zoé Schilling da. Hanseníase: aspectos da evolução do diagnóstico, tratamento e controle. Ciência & Saúde Coletiva. 7(2), p. 235-242, 2002. 3 ORNELLAS, Cleuza Panisset. O Paciente Excluído: História crítica das práticas médicas de confinamento. Rio de Janeiro: Revan, 1997. p. 76. 4 www.leprosyhistory.org 5 ORNELLAS, C.P. Op. Cit., p. 42. 6 Em 1976, a terminologia “lepra” foi mudada, passando a ser utilizada a nomenclatura “hanseníase”. Neste momento, ocorrerram diversas discussões entre os leprologistas em relação a minimização do estigma causado pela lepra, principalmente nos Congressos Internacionais de Lepra realizados em Havana – 1948, e no Rio de Janeiro – 1963. Porém, apenas em 1995 o termo lepra foi banido principalmente pela pressão exercida pelo Movimento de Reintegração das pessoas atingidas pela Hanseníase (Morhan). Informação obtida em: OLIVEIRA, M. L. W.; MENDES, C. M.; TARDIN, R. T.; CUNHA, M. D.; ARRUDA, A. A representação social da hanseníase trinta anos após a substituição da terminologia ‘lepra’ no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. V. 10, suplemento 1, p. 41-48, 2003. 7 FOUCAULT, M. Os Anormais. Op. Cit. p. 42-43. 8 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2008. p 165. 9 PEIXOTO, Afranio. Clima & Saúde: introdução bio-geográfica à civilização brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. p. 204-05. 10 Idem, p. 290-01. 11 Ministério da Saúde. Manual de Leprologia. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Lepra, 1960. p. 6. 12 Idem, p. 14. 13 Idem, p. 15. 14 Idem, p. 72. 2177 15 Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de Vigilância Epidemiológica.6. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2005. p. 19. 16 Idem, p. 394. 17 SERRES, Juliane C. Primon. Memórias do Isolamento: trajetórias marcadas pela experiência de vida no Hospital Colônia Itapuã. Tese (História). São Leopoldo: UNISINOS, 2009. Referências CUNHA, Ana Zoé Schilling da. Hanseníase: aspectos da evolução do diagnóstico, tratamento e controle. Ciência & Saúde Coletiva. 7(2), p. 235-242, 2002. FOUCAULT, Michel. Os Anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2001. ______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2008. ______. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. Ministério da Saúde. Manual de Leprologia. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Lepra, 1960. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de Vigilância Epidemiológica.6. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2005. OLIVEIRA, M. L. W.; MENDES, C. M.; TARDIN, R. T.; CUNHA, M. D.; ARRUDA, A. A representação social da hanseníase trinta anos após a substituição da terminologia ‘lepra’ no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. V. 10, suplemento 1, p. 41-48, 2003. ORNELLAS, Cleuza Panisset. O Paciente Excluído: História crítica das práticas médicas de confinamento. Rio de Janeiro: Revan, 1997. PEIXOTO, Afranio. Clima & Saúde: introdução bio-geográfica à civilização brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. SERRES, Juliane C. Primon. Memórias do Isolamento: trajetórias marcadas pela experiência de vida no Hospital Colônia Itapuã. Tese (História). São Leopoldo: UNISINOS, 2009.