ID: 58607000
31-03-2015
Tiragem: 34477
Pág: 26
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 25,70 x 29,97 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 3
Afinal,
a lepra é
provocada
por duas
bactérias
Sete anos depois de uma segunda espécie de bactéria
da lepra ter sido isolada num doente mexicano, o seu genoma
foi sequenciado. A Mycobacterium lepromatosis separou-se
da bactéria mais comum da lepra há quase 14 milhões de anos
Nicolau Ferreira
P
ara uma doença já
famosa no tempo de
Jesus Cristo, ainda
há muitos aspectos
desconhecidos sobre a lepra. Até há
poucos anos, apenas se conhecia uma
bactéria que originava esta doença, o
bacilo Mycobacterium leprae. Mas
em 2008 encontrou-se um outro
bacilo num doente com lepra oriundo do México, o Mycobacterium lepromatosis. Uma equipa de cientistas sequenciou agora o genoma da
nova espécie e comparou-o com o
da antiga. Os resultados mostram
que os dois bacilos são semelhantes, embora se tenham separado na
árvore evolutiva há quase 14 milhões
de anos, adianta um artigo na revista
norte-americana Proceedings of the
National Academy of Sciences (PNAS).
“Para nosso espanto, descobrimos
que, estruturalmente, os dois genomas são muito semelhantes, apesar
de terem divergido há muito tempo”,
diz ao PÚBLICO Andrej Benjak, investigador da Escola Politécnica Federal
de Lausana, na Suíça, e um dos autores do artigo publicado pela equipa
liderada por Stewart Cole, que fez a
sequenciação do genoma.
Esta informação sobre o genoma é importante. Quando se identifica uma bactéria nova associada
a uma doença antiga, é necessário compreender se essa bactéria
está, de facto, a originar a mesma
doença ou uma doença semelhante. A descodificação do genoma
— ao mostrar as características da
bactéria, como o tipo de células
humanas que é capaz de infectar
— ajuda a desvendar esta questão.
No caso da lepra, tudo aponta
para ambos os bacilos causarem a
doença, explica Andrej Benjak: “As
duas espécies não só são semelhantes em relação ao tamanho do genoma, como também têm os mesmos
grupos de genes. Isto significa que,
provavelmente, a biologia das duas
espécies é muito semelhante.”
A lepra é uma doença infecciosa
crónica e muito antiga. Terá surgido por volta de 2400 a.C., no Médio
Oriente. O caso mais antigo de lepra
que se conhece é o de um homem
que viveu entre 1 e 50 anos d.C., cujo
corpo foi encontrado nos arredores
da cidade de Jerusalém. Análises ao
ADN dos vestígios mostraram que o
indivíduo tinha tido lepra. Ao longo
dos séculos, a doença espalhou-se
pelo mundo, estando associada à
pobreza. Os leprosos, devido à sua
aparência impressionante e por
transmitirem uma doença então incurável, foram muitas vezes isolados
e ostracizados.
Em 1873, Gerhard Armauer Hansen, um médico norueguês, identificou o agente patogénico que causa a lepra. A Mycobacterium leprae
tornou-se então a primeira bactéria
a ser associada a uma doença humana. E a lepra passou a ser também
conhecida pela doença de Hansen,
em referência ao médico.
Hoje, sabe-se que esta bactéria se
multiplica muito lentamente e ataca
os nervos periféricos, mais especificamente as células de Schwann.
Estas células, que dão apoio ao sistema nervoso, envolvem as células
nervosas com camadas de mielina,
uma substância rica em gordura
que permite a rápida propagação
dos impulsos nervosos. Quando
atacadas pelas bactérias, as células
de Schwann morrem, o sistema nervoso começa a deixar de funcionar e
os doentes começam a deixar de ter
sensações em determinadas regiões
da pele. E o resultado é uma neuropatia periférica. Um dos testes que
ajuda a diagnosticar esta doença afere a sensibilidade das pessoas em zonas da pele onde surgem manchas.
Mas, além da pele, a doença afecta
também as mucosas das vias respiratórias superiores e os olhos.
Depois de alguém ficar infectado
pela bactéria, pode passar um grande período sem que a doença se manifeste. O período de incubação médio é cerca de cinco anos, mas os sintomas podem demorar 20 anos ou
mais a surgir. Quando não é tratada,
a doença causa danos permanentes
ID: 58607000
31-03-2015
Tiragem: 34477
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País: Portugal
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Period.: Diária
Área: 25,70 x 29,83 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 2 de 3
JOE CHAN/REUTERS
na pele, nos nervos, nas mãos e nos
pés, e nos olhos, descaracterizando
as pessoas, e destruindo os dedos.
Os doentes acabam por ficar dependentes de terceiros para fazerem a
sua vida diária.
Desde a década de 1960 que há vários antibióticos para tratar a doença.
Em 1995, a Organização Mundial da
Saúde (OMS) passou a distribuir de
forma gratuita o tratamento à base
de três antibióticos, o que permitiu
reduzir muito a prevalência da lepra.
Nos últimos 20 anos, 14 milhões
de doentes com lepra foram curados. Em muitos países, a lepra foi
erradicada — a OMS considera que
um país deixa de ter lepra quando
há menos de um caso por 10.000
habitantes. Em Portugal, entre 2009
e 2012, houve 31 casos importados
de lepra, segundo o relatório Doenças de Declaração Obrigatória 2009-
2012, da Direcção-Geral da Saúde.
Ainda assim, todos os anos, há
mais de 200.000 novos casos a nível
mundial. E a doença é um problema em países como Angola, Brasil,
República Democrática do Congo,
Índia, Indonésia, Madagáscar, Moçambique, Nepal, Nigéria ou Sudão.
Só a Índia teve mais de 127.000 novos doentes em 2011.
Bacilos incultiváveis
“Em 2008, uma nova espécie de micobactéria chamada Mycobaterium
lepromatosis foi identificada numa
autópsia de um sem-abrigo mexicano, que morreu no Arizona, Estados
Unidos, com lepra do tipo lepromatosa difusa”, lê-se no novo artigo da
PNAS, que tem ainda como autores
investigadores da Universidade de
Tubinga e do Instituto Max Planck
para a Investigação da História Hu-
mana, em Jena, ambos na Alemanha,
e da Universidade Autónoma de Nuevo Leon, no México. A lepromatosa
difusa é uma forma mais grave de
lepra, comum na região ocidental do
México e na região das Caraíbas.
A equipa de Stewart Cole foi investigar melhor a nova espécie de
bactéria. Uma das dificuldades do
estudo dos dois bacilos — tanto do
Mycobacterium leprae como do novo
Mycobaterium lepromatosis — é que
não é possível cultivá-los no laboratório. “O genoma [destas bactérias]
perdeu todos os genes que são necessários para elas sobreviverem fora das células hospedeiras”, explica
Andrej Benjak.
Esta impossibilidade dificulta a investigação destas bactérias. Há ainda
muitas perguntas sobre a lepra. Por
exemplo, não se sabe como é que
os bacilos conseguem fugir ao nos-
31
pessoas foram diagnosticadas
com lepra em Portugal entre
2009 e 2012, todas elas
infectadas fora do país
so sistema imunitário, nem como e
quando é que infectaram a espécie
humana. Também não se explicou
ainda por que é que o período de
incubação é tão variável (há casos de
bebés em que a lepra aparece poucos meses depois de terem estado
em contacto com alguém infectado),
nem se compreendeu completamente como é que as bactérias se transmitem. No seu site, a OMS refere que,
apesar de não ser muito infecciosa,
a lepra é transmitida pelas gotículas
do nariz ou da boca de um doente,
que não está a ser tratado, quando
contacta com alguém saudável.
Com a descoberta da nova bactéria em 2008, surgiram ainda mais
dúvidas, diz Andrej Benjak: “Ainda
não sabemos se a Mycobacterium
lepromatosis pode causar outras
formas de lepra, ou se pode causar sintomas novos que nunca foram identificados ou nunca foram
associados à lepra.”
Por isso, foi necessário sequenciar o genoma da Mycobacterium lepromatosis. “O primeiro passo para
compreender um novo microorganismo é sequenciar o seu genoma
e, se tal for possível, compará-lo
com um genoma que esteja relacionado a nível evolutivo”, explica
Andrej Benjak. Para tal, houve que
utilizar o ADN do novo bacilo obtido numa biópsia de um doente do
México, e ampliá-lo com técnicas
de engenharia genética.
Ao compararem os genomas da
Mycobacterium leprae e da Mycobaterium lepromatosis, os cientistas
chegaram à conclusão de que 92%
dos genes das duas bactérias são
iguais, o que as torna muito semelhantes. Além disso, estimaram que
as duas espécies se separaram há
13,9 milhões de anos. O antepassado comum destas bactérias foi perdendo a função de muitos genes, e
os dois bacilos continuaram esse
processo depois de se separarem
em duas espécies, embora essa perda posterior tenha ocorrido em regiões diferentes do genoma de cada
uma das espécies.
Os investigadores confirmaram
ainda que o novo bacilo tem todos
os genes necessários para infectar
as células de Schwann. “Isto significa que é capaz de causar neuropatia periférica em humanos, a característica principal da lepra”, diz
Andrej Benjak, explicando que, se
a Mycobacterium lepromatosis não
infectasse aquelas células, apenas
causaria uma doença de pele e não
a lepra.
Por agora, a equipa só encontrou
a nova bactéria em doentes do México, embora também a tenham
procurado em doentes do Brasil,
do Mali e da Venezuela. Segundo
Andrej Benjak, o próximo passo
é tentar fazer um mapa-múndi da
nova espécie: “Primeiro, queremos
analisar mais amostras [de tecidos
com bactérias] do México e da área
envolvente. Depois, gostaríamos de
fazer um mapa geográfico da Mycobacterium lepromatosis para ver a
distribuição mundial deste agente
patogénico. Isto contribuirá para
compreender a evolução tanto da
Mycobacterium lepromatosis como
da Mycobacterium leprae. Estes novos conhecimentos poderão ajudar
a desenvolver estratégias mais eficazes de monitorizar e prevenir
esta doença.”
ID: 58607000
31-03-2015
Tiragem: 34477
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País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 5,17 x 3,66 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 3 de 3
Afinal, a lepra
é provocada por
duas bactérias
Sete anos depois de ter sido
isolado, foi sequenciado
o genoma do 2.º bacilo p26/27
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Sete anos depois de uma segunda espécie de bactéria da lepra ter