O ENSINO DE FILOSOFIA POR MEIO DO CORDEL Diego de Sousa Dantas Armando Sampaio de Rezende PIBID\CAPES\MACKENZIE. Resumo O projeto visa o ensino e expansão da filosofia através da literatura de cordel. Por ser uma forma literária popular, o cordel ajuda a compreensão de todos os campos abrangidos pela filosofia através de uma linguagem e leitura acessível a todos. A literatura de cordel tem a vantagem de absorver todo o contexto social e cultural em que o educando está inserido, desse modo utiliza todos os costumes e linguagem ao seu redor, traduzindo qualquer texto filosófico à realidade do aluno e da comunidade, aproximando-os de temas sociais, como também, de temas importantes, estudados durante toda a humanidade. Além do aprendizado de filosofia e consequentemente a conscientização social que o projeto desenvolve, promovemos também a autonomia do educando através do exercício criativo da sua imaginação que envolve o processo de criação de um folheto, ajudando também na interpretação e análise de textos, contribuindo contra o analfabetismo funcional que tanto assola nossa educação atual. O cordel também abrange a pintura e o desenho através de sua principal ferramenta de ilustração: a xilogravura, que se torna mais uma ferramenta de leitura e interpretação, ajudando os alunos a terem uma leitura visual e mais uma vez exercendo a criatividade. Deste modo o projeto une arte, literatura, filosofia e conscientização onde o aluno toma parte desse processo participando ativamente dele, exercitando sua autonomia que é um dos principais objetivos da filosofia. Tudo isso de uma maneira acessível a todos, que provém de uma linguagem popular, além de toda a liberdade poética que o cordel permite exercer. O cordel De origem popular, o cordel quase sempre se caracterizou por uma escrita coloquial, transmitindo e contando histórias com uma linguagem repleta de termos regionais. Sua característica fundamental são as rimas e os versos, que são escritos pensando-se em um ouvinte, pois muitas vezes o cordel é lido junto com música em forma de repente. Outro fato importante é que em seu inicio o cordel costumava ser lido para várias pessoas. O vendedor do cordel, que geralmente era o próprio autor, lia os versos em voz alta nas feiras onde eram vendidos para chamar a atenção das pessoas ao redor. Esse costume tinha ainda outra importância antigamente, quando a maioria das pessoas era analfabeta, e só tinha acesso à literatura desta forma. 2 Os temas dos versos de cordel variam muito, contam desde histórias populares transmitidas de geração a geração oralmente, até fatos políticos, acontecimentos locais e fusões entre povos, temas, história. A licença poética é muito bem aproveitada no cordel, tornando os seus escritos ricos e livres de fronteiras. É comum vermos historias onde personagens do passado dialogam com personagens do presente, ou personagens de outros países não diferem em nada do contexto cultural do autor do cordel. O termo literatura de cordel dá-se ao fato dos folhetos serem vendidos pendurados em cordas, mas nem sempre ele era exposto deste modo e em alguns lugares eram conhecidos apenas como folhetos, versos etc. Por ser de origem extremamente popular, os modos de formatação e os nomes que davam a esses versos diferiam muito de região para região, tendo em comum as rimas e estrofes bem marcadas. O formato mais popular do cordel são os folhetos, que são caracterizados por uma folha colorida como capa que tem impressa sobre ela uma xilogravura. A xilogravura é feita a partir de um pedaço de madeira onde o artesão entalha o desenho que depois de pronto recebe tinta e “carimba” a imagem. Também é comumente impresso em papel jornal para baratear o custo. É interessante ressaltar que nem sempre o cordel atende exatamente todas essas características de formatação. Elas são apenas as mais “comuns” ou as mais difundidas e isso tem explicações: o barateamento dos custos e os meios que dispunham os escritores. Antes da xilogravura os folhetos também tinham fotografias e outros meios de impressão (até mesmo as capas cegas, que não tinham ilustrações), mas como nem todos tinham acesso a esses modos, a xilogravura tornou-se um meio de ilustração para vários autores, por ser um meio artesanal. Hoje a xilogravura está intensamente ligada ao cordel e tornou-se uma identidade do mesmo, apesar de o cordel não precisar tê-la obrigatoriamente. Um exemplo claro sobre o tipo de escritor rural, que fazia artesanalmente seus folhetos, é Minelvino Francisco da Silva, que nasceu em 1926 em uma fazenda na Bahia. Ele foi criado em uma cidade muito rica em pedras preciosa chamada Jacobina, também na Bahia. Lá ele foi garimpeiro e teve seu primeiro contato com o cordel na adolescência, quando ouviu O romance do pavão misterioso. Encantado com a poesia, conseguiu um exemplar do folheto e a partir daí pôs-se a aprender a ler, e, influenciado pelos cordelistas começou a compor várias histórias, chegando a vencer competições de cordel. Minelvino também adentrou na arte da xilogravura e fez suas próprias ilustrações para suas histórias. Ele é considerado o introdutor da xilogravura na Bahia. Também imprimia seus próprios folhetos, inicialmente com uma máquina manual de 3 topografia que mais tarde foi substituída por uma máquina elétrica onde perdeu alguns dedos: Um acidente com a impressora elétrica, em 1979, danificou-lhe uma das mãos. Três de seus dedos ficaram inutilizados. Com os dois dedos que lhe restaram, Minelvino continuou mesmo assim a trabalhar, aperfeiçoando cada vez mais sua técnica, a ponto de já não sentir a falta dos dedos que perdera. Imperturbável, manipulava com destreza sua impressora elétrica: No dia dez de outubro Compus uma oração Botei na máquina impressora Para fazer a impressão, Em vez de imprimir o papel Errei e imprimi a mão. (SILVA, 2005, p. 25) Quanto à composição dos versos, as estrofes mais comuns do cordel são compostas em sextilhas (seis versos) e cada verso é composto de sete sílabas poéticas como vê-se a seguir: A/Val/di/vi/noo/bri/garam 1 2 3 4 5 6 7 (Na silaba poética “noo” juntam-se as vogais) Ca/ir/na/de/so/la/ção 1 2 3 4 5 6 7 Por/fi/car/es/cra/vi/zado 1 2 3 4 5 6 7 Sem/ter/mais/li/ber/ta/ção ( No “mais” não se separa as vogais) 1 2 3 4 5 6 7 Só/fal/ta/vaem/lou/que/cer 1 2 3 4 5 6 7 (Do mesmo modo, em “vaem”, juntam-se as vogais) Sem/a/char/com/so/la/ção 1 2 3 4 5 6 7 Esse é o universo do cordel, cheio de contratempos e dificuldades, em um povo que não dispunham de muitos meios, mas encontravam modos de fazer sua arte. Hoje o cordel avançou junto com a tecnologia e já encontramos livros digitalizados com os versos, vendidos em livrarias, bem diferente do vendedor que em meio a feira livre recitava os versos ou o expunha em banquinhas. É claro que isso não desapareceu de todo e ainda temos esse cenário em alguns lugares, mas o cordel toma diferentes rumos, como sempre fez, adaptando-se a realidade de cada povo, lugar e pessoa. 4 A filosofia O papel da filosofia oscila entre explicar e duvidar de tudo, e isso revela muito de sua natureza. Figuras como Sócrates e Nietzsche são retratadas, mesmo quando caricatas, como personagens que vivem a questionar tudo e todos, e isso não é por acaso. O trabalho do filósofo sempre foi o de lançar as perguntas a serem respondidas. “Qual é o princípio de todas as coisas?” Perguntas como esta obrigam a humanidade a deixar a comodidade da ignorância para se lançar ao esclarecimento. Assim como a vontade de ter mais, a vontade de saber mais traçou diversos caminhos através da História; a Teologia, a Matemática, a Física, a Geografia e a Historiografia estão entre eles. Sócrates era conhecido em Atenas como Zangão, porque vivia a ferroar os outros com perguntas indesejadas. Mas se o eram, era porque punham em xeque certezas convenientes. Nos famosos diálogos, escritos por seu aluno Platão, Sócrates geralmente encontra por acaso algum conhecido que está plenamente convencido de algo, e após uma série de questionamentos, toda aquela antiga certeza vem abaixo para dar lugar a uma nova, não mais pautada na opinião vã (doxa), mas construída no solo firme do conhecimento (epistéme). Muitos e muitos séculos mais tarde, Nietzsche, outro contestador, questiona o questionador Sócrates, dando continuidade à tradição questionadora. É de fundamental importância distinguir um questionamento filosófico de um ceticismo vazio, que questiona tudo automaticamente. Um questionamento saudável é fruto de extensa investigação e profunda reflexão, e deve estar baseado em argumentos sólidos, para superar os limites da doxa. Mas, como o próprio Nietzsche dizia, não há fatos, somente interpretações, assim, a filosofia é uma eterna disputa de interpretações, e o papel do professor de filosofia é capacitar o seu aluno a disputar também, a questionar também. E o conteúdo sistemático das aulas deve abranger as diversas habilidades requeridas no exercício do pensamento filosófico. Dentre as atividades do amante da sabedoria está, por exemplo, o exame do próprio discurso filosófico, seja para corrigir a resposta dada, seja para corrigir a pergunta. É fundamental para o exercício da filosofia a precisão na leitura e na escrita, e o ensino de filosofia está estritamente ligado a estas capacidades comunicativas. O ensino de filosofia não pode, de maneira alguma, desvincular-se do texto. É óbvio que no Ensino Médio não há a estrita necessidade da leitura dos clássicos, entretanto, a 5 leitura de textos filosóficos e a leitura filosófica de textos ordinários é fundamental para inclusive cumprir os objetivos da legislação. As Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006, p. 15), evidenciam o fato de os debates públicos e discussões filosóficas fazerem parte do cotidiano das pessoas, através das mídias, que mesmo que unilateralmente ou superficialmente, levam ideias de cunho filosófico ao publico. Isso justifica a importância do ensino de filosofia, pois ela é uma ferramenta importantíssima para a vida em sociedade e para o exercício da cidadania. As orientações apontam ainda as competências que devem-se desenvolver a partir da filosofia: Trata-se da criatividade, da curiosidade, da capacidade de pensar múltiplas alternativas para a solução de um problema, ou seja, do desenvolvimento do pensamento crítico, da capacidade de trabalhar em equipe, da disposição para procurar e aceitar criticas, da disposição para o risco, de saber comunicar-se, da capacidade de buscar conhecimentos. De forma um tanto sumária, pode-se afirmar que se trata tanto de competências comunicativas, que parecem solicitar da Filosofia um refinamento do uso argumentativo da linguagem, para o qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da Filosofia, quanto de competências, digamos, cívicas, que podem fixar-se igualmente à luz de conteúdos filosóficos. (Idem, p. 30). A Filosofia e o Cordel É sabendo do compromisso que a filosofia tem com a reflexão e do papel do professor em ensinar como pensar filosoficamente que foi desenvolvido esse projeto. Nele o aluno fará parte da produção de conteúdo junto com o professor. O cordel também possibilita uma melhor compreensão do conteúdo filosófico já que utiliza uma linguagem popular ao alcance de todos. No processo de criação do cordel, o aluno também revisa mentalmente o conteúdo estudado e absorve melhor as informações. Faz-se também uma ponte entre a filosofia e a literatura, promovendo assim a interdisciplinaridade e a contextualização do conteúdo com a realidade do aluno além de ajudar na interpretação de texto, e, através dela, na compreensão da vida. A capacidade de compreensão é necessária em todas as atividades humanas, especialmente nas intelectuais, onde os símbolos são utilizados de maneira complexa, exigindo um esforço muito grande de renovação na maneira de compreender e fazer 6 compreender. Acredita-se que a capacidade de “compreender os elementos cognitivos, afetivos, sociais e culturais que constituem a identidade própria e a dos outros” (Parecer nº 15/98, Resolução nº 3/98) só pode ser de fato efetivada a partir do desenvolvimento de uma competência comunicativo-lingüística. Essa competência consiste na capacidade de decodificação dos significados que constituem a comunidade, isto é, a vida em comum. O ato contínuo de recodificá-los e ressignificá-los é o processo de formação de uma identidade própria, que fica, desta maneira, diretamente ligada ao outro. Esta competência comunicativa é o que denomina-se leitura. A atividade filosófica, cuja tradição é a própria renovação dos questionamentos buscando superar definições insuficientes através da dúvida, o páthos da perplexidade, que exige uma capacidade de superação intelectual, que deve ser exercitada através da leitura e da produção de textos. E levando em conta a atual conjuntura da erudição média brasileira, é necessário um cuidado com a metodologia e o material didático utilizados, em especial em matérias que requerem um grau de abstração e contextualização histórica mais elevado para sua significação. O cordel atende à demanda por um veículo literário de fácil e livre produção, abrindo ricas possibilidades de trabalho e crescimento. É imprescindível, porém, a fidelidade ao rigor filosófico, principalmente quando se trata de formas populares de expressão, e da produção do aluno em especial. Não se deve jamais abrir mão dos conteúdos sistematizados em prol da facilidade na produção dos versos, porque de outro modo, não há produção filosófica. Atende-se, assim, aos pressupostos do ensino de filosofia quanto à capacidade der olhar criticamente para o mundo. Desenvolvimento do projeto O projeto é desenvolvido da seguinte forma: • O professor apresenta o tema que irá trabalhar com os alunos. Pode ser sobre um ou vários autores, temas filosóficos, história da filosofia e etc.; • Ele apresenta a literatura de cordel à turma, explicando primeiramente a origem e a história do cordel; • Ensina a estrutura do cordel (esquema de rimas, parágrafos, métrica); • Auxilia os alunos na produção do cordel, ajudando-os a transformar o tema estudado; 7 • O professor pode optar em produzir xilogravuras com os alunos, de acordo com os recursos disponíveis, viz. o isopor; • Os alunos podem ser divididos em grupos para a produção do cordel, pois isso facilita a criatividade e viabiliza o auxilio do professor; • Pode-se organizar uma exposição dos trabalhos na escola, levando assim a outros alunos a oportunidade de conhecer o cordel e a filosofia, além de prestigiar os alunos produtores dos trabalhos. Conclusão Tão importante, no âmbito social, quanto a reflexão filosófica é a sua disseminação, pois somente uma sociedade imbuída da capacidade de pensar livremente pode esclarecer-se. “Esclarecimento (Aufklärung) é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é o próprio culpado” (KANT, 2005, p. 63). Essa menoridade da qual fala Kant é a incapacidade de pensar por si, é a dependência de outrem para tomar decisões. Para que um homem e uma sociedade passem ao esclarecimento é preciso estar difundido o hábito de filosofar, para que forme-se ética e intelectualmente, desenvolvendo um pensamento autônomo e crítico. Apesar das peculiaridades de cada autor, “a saída da caverna” descrita por Platão n’A República possui a mesma orientação: a compreensão da realidade por si só. Quando o prisioneiro encontra-se livre e, ao invés das sombras, passa a ver a realidade, ele passa a compreendê-las verdadeiramente; esta libertação é a filosofia. “(...) a importância pública de uma formação, ainda que elementar, em filosofia é a possibilidade de ganhar autonomia para pensar por si, com, rigor, em problemas complexos e difíceis” (MURCHO, 2012, p. 9). A diversidade na transmissão de temas filosóficos é uma ferramenta indispensável em sala de aula, e o cordel é uma opção eficiente, pois desperta o interesse e possibilita ao aluno o exercício da criatividade. O desenvolvimento de cordéis com temáticas filosóficas funciona como meio de significação do conteúdo, promovendo a interdisciplinaridade, que deve ser o eixo da estruturação curricular do Ensino Médio, contribuindo para uma formação crítica e emancipadora. 8 A exposição em verso requer um domínio do assunto e favorece as associações entre os conceitos dados. A simplicidade do cordel permite uma introdução à produção literária, que pode ocorrer em sala de aula com o auxílio do professor, sendo uma ótima ferramenta na significação do processo ensino-aprendizagem. Desta forma, a produção de cordel pode ser, se respeitado o rigor teórico exigido pelo pensamento filosófico, uma ponte para o esclarecimento. 1 1 Este artigo foi desenvolvido a partir do subprojeto de PIBID\CAPES\Mackenzie, coordenados pelos profs.: Marcelo Martins Bueno e Marili Vieira. Orientação: profa. Angela Zamora Cilento. 9 Referencia bibliográfica BRASIL. Orientações curriculares para o Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica, 2006. KANT, Imanuel. Resposta à pergunta: Que é “esclarecimento”? (Aufklärung). In: Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 2012. MURCHO, Desidério. Filosofia ao vivo. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2005. NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Hemus, 1995. SILVA, Minelvino Francisco. Cordel. São Paulo: Hedra, 2005. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/cienciah.pdf Anexos Anexos 1. O valente sertanejo Zé Garcia. Folheto dos anos 70. (Acervo pessoal) 10 2. Folheto atual; Ilustração em desenho. (Acervo pessoal) 3. Folheto atual; Ilustrado com fotografia. (Acervo pessoal) 11 4. Folheto dos anos 80; outro formato muito difundido pela editora Luzeiro. (Acervo pessoal) 5. Ilustração feita em xilogravura por Minelvino. (SILVA, 2005. Pg, 73)