1. O Ossuário; 2. O Éter; 3. A Maçã; 4. A orquídea; 5. A palavra; 6. A praia ; e 7. O mundo de Francisca. TEMPO Cronológico Getúlio Vargas Juscelino Kubitscheck Jânio Quadros João Goulart +/- 10 anos Médici Costa e Silva Narrativa Linear Discurso Indireto-Livre Publicado em 1967 Narrador Onipresente Inserido na 3ª geração Modernista Descritivismo Existencialismo Politização Subjetivismo Debate de Gênero Surrealismo/Cubismo Desconstrução da Nacionalidade Nando tinha cartas de Francisca à sua espera. Foi tirando dos envelopes as cartas e segurou-as nas palmas abertas como se fossem azulejos. Sua primeira idéia foi colecioná-las em número suficiente para forrar as paredes da casa. Não tanto pela escrita regular em tinta azul no papel branco: o que contava era o cozimento de ternura esmaltando as folhas. "Na última aula nosso modelo vivo era alto, anguloso e louro mas à medida que eu o desenhava com a maior boa fé ia saindo você, meu bem, a ponto de me deixar confusa. Sempre que eu vinha à Europa era aquele desânimo de calcular o tempo que levaria o Brasil para criar essa doçura que se estende em tudo aqui como a superfície de uma pintura antiga. Agora a tua ausência anda fendendo paisagens e ruas que eram perfeitas. O antigo ficou velho. Vem depressa antes que o meu querido quadro a óleo rache de todo. Ficando aí você me destrói a Europa, entendeu?" E depois o apelo raciocinado: "O tempo que fiquei no Manicômio da Tamarineira e as horas que passei de interrogatórios embrutecedores me convenceram de que é mesmo preciso adiar o Brasil, Nando. Ficar aí é adiar a vida da gente. Principalmente a minha. A nossa... Eles estão facilitando o asilamento e fuga de todos os que estiveram presos. Foge para mim, Nando, eu sei que para você eu valho uma pátria, não valho?" Valia, valia todas as pátrias, valia o risco de uma vida duvidosa na Europa, da procura de sabe Deus que emprego. Tudo era preferível a saber Francisca longe e a chamá-lo com insistência e ignorar esse chamamento. Nando planejou embarcar de navio mas a Polícia recusou-lhe o passaporte. Estava amarrado ao ipm do Pc e da Liga. Não podia deixar o país. Subjetivismo Maria do Egito Ligas Camponesas Igreja - Eu vou à casa da mocinha, a Maria do Egito disse Winifred. - Vê se não sermoniza o Nando demais. Leslie despediu Winifred com um gesto impaciente. - Venha comigo, Nando disse ele. - O desamparo não é apenas social. É religioso também. Você não encontra um padre aqui, preocupado com essa gente. Os doentes em geral morrem sem extrema-unção. Ou morrem de sair da cama para irem em busca de padre que lhes dê a extrema-unção. - Mas o engenho tem sua capela disse Nando apontando-a. - Há três anos sem padre disse Leslie. - E sem nenhuma lei. Essa gente, a quem nem o Estado nem a Igreja jamais deram coisa alguma, está sendo trabalhada pela Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores, que é em grande parte obra de Januário. A Sociedade os arregimentou para apoiarem com um desfile a candidatura de um prefeito que promete socorrer os camponeses. Pois os camponeses desceram e foram dispersos aos trancos e coronhadas pela Polícia. Voltaram para suas casas, meio tontos de medo e de pancada, mas a Polícia insistiu na perseguição, veio mais tarde varejar as choupanas, prendendo os mais valentes, os mais dignos. Prendendo e de novo batendo. Os jomais deram três linhas ao caso. Leslie acenou para um camponês. - Lázaro, venha cá. - Sim, seu Lelo disse Lázaro. - Conta aqui ao Padre Nando, lá do Mosteiro, como é que te trataram na Polícia. - Ah, eu guardei a cara do sargento que me cuspiu em cima. Aquele eu corto de peixeira um dia. Os que me bateram ainda vai. Mas foi por nada, Seu Padre. Eu sou homem temente a Deus e nunca tinha tido conhecimento de Polícia. Mas o sargento me cuspiu. Feito eu fosse uma poça d'água na rua que a gente cospe assim de desafogo, pra ver se acerta. Eu corto ele, Seu Padre. - Você não deve lutar com as mesmas armas disse Nando. -Lute pelos seus direitos mas perdoe quem lhe ofendeu pessoalmente. Impaciente, vermelho, pronunciando os nomes de qualquer jeito Leslie demonstrava conhecimento íntimo da situação. - Conta aqui ao Padre Nando, Nequinho disse Leslie a história da desonra de tua filha pelo capataz. - Eu conto mas Jesus Cristo já me falou. Já me esclareceu para corrigir os malfeitos. Bença, Padre. - Deus te abençoe disse Nando. - Desgraçaram tua menina? - Quase na cara da gente. Aquele porco. Não tinha dez braças da casa de farinha. Houve até quem escutou um grito da menina antes dele tapar a boca dela. Grito pertinho. E depois a gente ainda ouvia o galope do cavalo dele quando Maria do Egito já estava na porta de casa toda molhada de lágrima e com o sanguinho ainda quente no vestido dela. Nando fez o sinal-da-cruz, num momento de genuíno horror. - Que Deus perdoe este monstro. Você deu parte dele, Nequinho? - Deu disse Leslie mas ainda não aconteceu coisa nenhuma. O capataz é o braço direito do senhor de engenho, que deve ter achado a história compreensível, até corriqueira. E são os dois que chamam a Polícia para prender os que se filiaram à Sociedade dos Plantadores e quiseram prestigiar com sua passeata o candidato esquerdista. E só prestigiar, porque votar não podem, pela lei brasileira. Você sabe ler e escrever, Nequinho? - Sei não senhor disse Nequinho. - Mas sei ouvir. E o Senhor me falou. - É preciso estudar os meios, Nando, de efetivamente informar o Estado e o país do que acontece nesses engenhos. - Sem dúvida disse Nando e tenho certeza de que as reportagens que você e Winifred vão fazer terão a maior repercussão. - Mas vocês, brasileiros, é que precisam fazer alguma coisa a respeito disse Leslie. - É essa a moça? disse Nando ao chegar com Leslie à choupana de Nequinho. - Sim disse Winifred. Pobrezinha. - Só mesmo a morte desse homem poderia consolar uma família humilhada e ofendida assim disse Leslie. - É incrível que isto aconteça em nossos dias. - O pior disse Winifred - é que o Nequinho parece que ficou meio doido. Diz coisas terríveis à filha. Cada uma sentada no seu banco ao pé da mesa tosca, mãe e filha estavam mudas. As outras crianças de Nequinho brincavam pelos cantos, mas mãe e filha tinham sido visitadas pela tragédia. Estavam de nojo. - Deus que ajude a gente, Seu Padre disse a mãe a Nando. - Só mesmo Deus Nosso Senhor. O pai de Maria do Egito não fala mais com sua filha. - Não fala com a moça por quê? disse Leslie. -Vai aguardar até a lua trazer o sangue natural de Maria do Egito disse a velha. – Falou que se a semente do capataz Belmiro tiver barrado o sangue dela ele mata Maria do Egito e o capataz Belmiro. - Eu vou conversar com seu pai, minha filha disse Nando a Maria do Egito. A menina meneou afirmativamente a cabeça. Abúlica. Teria uns dezesseis anos, pensou Nando. Negro cabelo espichado de índia. Em pouco estaria desbotada, baia como as caboclas mais velhas. Como estava agora ainda podia ter sido mãe de heróis nos Povos de João Batista, Nicolau, Luís Gonzaga, Lourenço, Miguel, Borja e Ângelo. Nequinho assomou à porta. Nando travou do braço dele e o foi levando para fora, seguido de Leslie. - Você sabe, Nequinho, que nem em todo o resto da vida dela tua filha Maria vai precisar mais de você do que agora? disse Nando. - Deus já me falou o que é que eu tenho que obrar no caso de Maria do Egito disse Nequinho. - Ele me falou na noite do estupro dela. - E o que foi que Deus te disse? - Ele falou: se a sustância que o Belmiro deixou no ventre da Maria começar a virar gente tu sacrifica o Belmiro e a sucessão do Belmiro no ventre da Maria. Tenho que matar a filha e o genro que o diabo me mandou. - Deus não pode ter dado um conselho criminoso a você disse Nando. - Foi sua própria e justa cólera contra Belmiro que falou, Deus já sabe se Maria do Egito vai ou não vai ficar grávida de Belmiro. E se ela ficar, cumpra-se a vontade de Deus. - Deus não pode ter essa vontade não senhor, com seu perdão e sua bênção disse Nequinho. - E foi a voz dele que me falou. - Pois Deus me mandou aqui hoje disse Nando para desfazer essa medonha intriga do demônio. Se Maria do Egito tiver filho, o filho será do Mosteiro. Nós mesmos cria mos a criança se for menino e daremos a criança às freiras se for menina. Nequinho abaixou a cabeça. - Não tinha dez braças da casa de farinha disse Nequinho. - Pra todo o mundo conhecer o fato. Sanguinho novo no vestido amarelo. Mais dois, três dias a gente sabe se Deus perdoou. É tempo do outro sangue. - Pois então você não está vendo disse Nando que Deus não ia querer que você matasse sua própria filha, e filha que está sofrendo tanto? - Então por que é que ele me falou? disse Nequinho. - Deus não manda matar, manda amar, manda perdoar. Você não vê que não pode ter sido a voz de Deus? Deus mandou Abraão sacrificar o filho dele, mas susteve o braço de Abraão. Deus queria apenas experimentar a fé de Abraão disse Nando. - Se o Senhor travar do meu braço eu também não sacrifico Maria do Egito-disse Nequinho. -Até antes disso eu posso ter o sinal. Se Deus derramar o sangue do ventre dela na lua certa está falado comigo. Nando ficou um instante atônito. - Nequinho eu compreendo teu sofrimento de pai e esta loucura _que o sofrimento te dá. Mas Deus disse "Não matarás!" Se matares tem prisão dos homens e tem inferno de Deus. Nequinho olhou Nando longamente. - Com sua bênção e com sua permissão disse Nequinho. - É a primeira vez que Seu Padre vem por estas bandas, não é? - Sim disse Nando. Nequinho virou as costas e foi andando. Leslie botou a mão no ombro de Nando. - Eles se habituaram a falar diretamente com Deus disse Leslie. – Sem intermediários. Getúlio Politicagem Crítica aos Dirigentes Crítica ao Projeto de País A visão sobre o Indígena - Eu não vejo nenhum inconveniente no plano dos padres, Fontoura disse Ramiro. - Você vê? -Vejo disse Fontoura. - Sempre achei uma besteira esse negócio de pendurar com barbante em pescoço de índio uma Nossa Senhora Auxiliadora de alumínio. - Bem, Fontoura, vamos devagar com o andor disse Ramiro brusco. - Os padres são gente séria e fazem trabalho importante no mundo inteiro. O que a gente tem que ver é que espécie de ajuda eles podem nos dar e que ajuda nós podemos dar a eles. O que queremos, eles e nós, é servir o indígena. - Eu devia falar com mais diplomacia disse o Fontoura. - Mas a verdade, Dr. Ramiro, é que não queremos fazer sacristães. Queremos preservar índios. Essa foi sempre a orientação do Serviço, desde os tempos heróicos de Rondon e de Pireneus de Souza. - Está bem, está bem disse Ramiro. - Esses foram os tempos do positivismo no Brasil. O positivismo já acabou e a religião católica continua como sempre, graças a Deus. Veja a Liga Eleitoral Católica. - Índio não vota disse o Fontoura. -Mas eu já lhe disse mil vezes que um bom trabalho no Ministério da Agricultura resulta em votos. Analfabeto também não vota e o Governo vive socorrendo nordestino e favelado. Nossas verbas são ínfimas, como você sabe muito bem. Não devemos e não podemos desprezar auxílio, de onde quer que venha. Só muito de início. Ramiro Castanho estava sério e grave, expondo a Nando seus planos à frente do Serviço. Os demais eram quase todos empregados seus, por isso não riram nem estranharam a preleção, destinada a impressionar Nando. É bem verdade que Vanda, quando Ramiro começou a exposição, piscou o olho para Nando e Otávio, que estavam diante dela. Lídia não prestava nenhuma atenção. Fumava, bebia e estudava Nando. Sônia só fumava e bebia. A chegada do Falua é que acabou com a penosa hora do aperitivo, um severo martíni adocicado de que ninguém parecia gostar. Quando Falua entrou Vanda lhe fez, com grande seriedade aparente, sinal para que se sentasse e não interrompesse Ramiro. - De maneira que o seu plano me deu essa idéia. Por que continuarmos a tentar atingir paralelamente um mesmo ponto, que assim jamais atingiremos? - Só nos sem-fins do infinito disse o Falua dando um beijo em Sônia e provando o martíni dela com uma careta. - É incrível que o Estado e a Igreja não se houvessem unido há mais tempo, de forma indissolúvel, para resolver a questão do índio disse Ramiro. - Perdão disse Otávio se sirvo um pouco de advogado do Fontoura e do diabo. A Igreja e o Estado são separados no Brasil e estou certo de que jamais poderíamos aceitar, como temos feito, certo tipo de auxílio das missões protestantes, que são muito eficientes, se estivéssemos indissoluvelmente ligados aos padres católicos. -Mas tenho certeza disse Nando de que não há na igreja Católica do Brasil o menor desejo de impedir que as seitas protestantes prestem também sua ajuda. Chegada de Nando ao Xingu A relação com o índio O caso de Aicá Fragmentação do sujeito moderno Identidade em crise (Nando/nação) Sociedades híbridas Identidade cultural X Identidade nacional Anta abriu os olhos, viu Sônia, riu, quis logo puxar ela para a rede. - Levanta, preguiçoso, vamos embora disse Sônia. - Ir onde? - Embora. Longe. Ramiro vai dizer ao Falua que sou mulher do Anta. Vai dar encrenca. - Eu dou noiva, Matsune. Entra na rede. Matsune não serve não, Anta. Falua vai ficar brabo. Ramiro vai dar fotografia de nós dois na rede ao Pai dos índios, no Rio. Muita encrenca. Vamos fugir daqui. - Encrenca riu Anta. Saltou lépido da rede, que desatou dos mourões, embrulhou nela espelho, camisa velha, machadinha, pegou arco e flecha. - Vamos disse Anta. Do lado de fora da maloca o Anta tomou o caminho do Tuatuari. Sônia ficou em dúvida. Ele teria entendido bem? - Onde é que a gente vai, Anta? - disse Sônia. - Tuatuari. Na outra beira. Tem meinaco e cuicuro muito amigo. Muito longe. Sônia ainda ia fazer perguntas mas Anta andava como quem sabe onde vai e foi com um suspiro de alívio que ela saiu atras dele, quieta e satisfeita sentindo nos pés nus e nas canelas o capim orvalhado. O esturro lá longe da onça sem sono fez Anta passar para ela o embrulho da rede para ele ficar de mãos livres no arco. Atravessaram de ubá o riozinho e foram andando, andando, Sônia com a rede de buriti cheirando a índio, jenipapo, mandioca. Mato preto começou a verdear, uma garça abriu picada branca no ar cinzento. O ruído do quarup, que Sônia e o Anta não ouviam mais há muito chão, subiu de novo nos ares com grande esforço para galgar tamanho mundo de espaço. Mas ninguém. Ninguém no terreiro. Ninguém à beira do rio. Ninguém diante de qualquer maloca que fosse. Ninguém em parte nenhuma. Nando foi andando para a construção do Posto com o coração batendo fundo, a longos intervalos. Que castigo seria aquele, Senhor? Que poderia ter acontecido? Que esconderia a porta do telheiro, por trás da sua varanda onde havia redes? Redes mas vazias. Todas vazias. Estava Nando a uns vinte metros quando de dentro da casa saiu um casal de índios. Um belo casal de índios. Seu primeiro casal de índios. Nus. Ela apenas com seu uluri, ele apenas com um fio de miçangas na cintura. Deram dois passos para fora da casa. Voltaram-se um para o outro. Nando, que estacara, viu então que a mulher tinha na mão direita uma maçã, que oferecia ao companheiro. O índio fez que não com a cabeça. Ela mordeu a maçã. E então, virando-se para Nando, foi lentamente andando em sua direção, a maçã na mão estendida em oferta. Nando, confuso, pôs a mala no chão, estirou a mão. Uma risada estourou atrás de Nando, outra ao seu lado, e das malocas saíram em chusma índios rindo e gritando, homens e mulheres e crianças. Agora, sim, Nando se viu no meio de uns cinqüenta índios. A mão de Olavo, que rira por trás dele, caiu-lhe afetuosa no ombro. - Desculpe o mau jeito. Mas o Fontoura me fez prometer que eu ajudava a lhe pregar uma peça. A peça aliás foi encomendada pela Lídia, do Otávio. Nando riu e deu um assobio de alívio. - Os índios estão quase mortos disse Fontoura. - O importante é que não morram todos. A única coisa que importa é dar a eles os meios para sobreviver. - Exatamente disse Nando. - Eu tenho a impressão de que o que desagrada você é a idéia de integrar o índio nas populações do interior, não é? Eles se despersonalizariam, desapareceriam como índios. Fontoura assentiu com a cabeça. - Portanto continuou Nando se entusiasmando o que se pode fazer é educá-los de modo a que contribuam para o seu sustento com a pesca, a caça, a lavoura, as artes plumárias continuando a se desenvolver como índios. Poderíamos montar aqui peixarias, serrarias... Fontoura fez que não com - Não? disse Nando. - Não, nunca. Fontoura se levantou da rede, foi até ao escritório e de lá voltou com um sovado mapa de Mato Grosso onde se delimitara, a lápis de cor vermelho, o Parque Nacional do Xingu, entre 10 e 12 graus de latitude Sul e 53 e 54 graus de longitude Oeste de Greenwich. A forma inclinada acompanhava o curso do Xingu, das cabeceiras dos seus três formadores até a Cachoeira de Pedras. - Este - disse o Fontoura batendo com o dedo em cima da área do Parque - é o Estado dos Índios. Montoya, Cataldino, Rodrigues, pensou Nando, o coração a lhe bater apressado. Ave, República dos Guaranis. - Magnífico - disse ele - o Estado Indígena. - Sim, magnífico - disse o Fontoura - se fosse realizável. E se fosse possível, de acordo com meus sonhos, estender aqui e seu dedo passou como se abrisse uma vala pelo contorno do Parque uma cerca de arame farpado. - Arame farpado? disse Nando. - Sim - disse Fontoura. - Eletrificado. Contra o Brasil. - E educar os índios de que maneira? Que fazer deles? Que espécie de gente? - O Estado seria de índios, de bugres, do que eles são - disse Fontoura martelando as sílabas. - Eu não quero transformar índios em nada. Parques imensos, cuidadosamente vigiados, fizeram os ingleses para girafas e zebras em Quênia e Tanganica. Não para educar girafas ou zebras. Para preservá-las vivas. - Mas os índios têm como nós uma alma imortal disse Nando. - Os índios não sei se têm. Ou se ainda têm. Nós eu sei que não temos. No mundo inteiro as reservas indígenas são simples arapucas para extermínio de índios. Adiantava contar a Ramiro o caso de Aicá? -Você não avalia o que podem sofrer os índios - disse Nando. Aqui mesmo existe um caso horrível de fogo selvagem. - Não me diga que é o tal de Aicá - disse Ramiro. - Isto mesmo - disse Nando com espanto - Não imaginei que fosse do seu conhecimento. - Esse bugre me deu mais trabalho do que uma tribo inteira. Quando proibi o Fontoura de levá-lo de novo ao Rio, depois de esgotados os recursos de curá-lo, Fontoura resolveu fazer mais uma tentativa por conta própria. Hospedou-se numa pensão com Aicá. No mesmo quarto. Imagine que porcaria. Só para levá-lo a um dermatologista que garantia a cura de qualquer tipo de pênfigo. Fontoura não ama a doença, ama os doentes o que é uma forma de pieguice decadente. - Quer dizer - disse Nando mais a si mesmo que a Ramiro - que os ateus podem ser santos. - Claro que não - disse Ramiro grave - Fora da Igreja não há salvação. Fontoura esteve o tempo todo de porre enquanto passeava Aicá pelo Rio. Bêbado e de morfético em punho. Uma calamidade. - Claro que não - disse Ramiro grave - Fora da Igreja não há salvação. Fontoura esteve o tempo todo de porre enquanto passeava Aicá pelo Rio. Bêbado e de morfético em punho. Uma calamidade. - Não estamos mais numa brenha sem história - disse Nando. - A história desta droga vai começar conosco - disse Ramiro. - Nós é que vamos inaugurar os índios, o Xingu, o parque. - A história começa pela caridade - disse Nando. - Deixe de pias asneiras. Começa com visitas oficiais. De imperador ou Presidente da República. Com fitinhas cortadas a tesoura. Começa com verbas que dêem utilidade ao trabalho de tipos desregrados como Fontoura. Quando se afastavam suficientemente do Posto, Nando e Vanda davam-se as mãos e caminhavam até a árvore oca onde tinham escondida a rede que abriam nos buritizais ou nas angrinhas do Tuatuari. - Tudo para você disse Nando. - Icatu - disse Aicá. Por um instante, diligente como todos os índios, Aicá examinou os presentes, testou com as duas mãos, olhos faiscantes, a linha de náilon. Depois retirou a faca da bainha de couro, descolou da lâmina cheio de cuidado o papel besuntado de graxa e com o indicador experimentou o fio acerado. - Icatu - disse. Em seguida retomou o papel, enrolou a lâmina, enfiou a faca na bainha. Puxou de baixo da rede uma velha mala onde havia outros facões e facas, machadinhas, canivetes, linhas de pesca e caixas de anzóis. Os novos presentes juntaram-se aos demais, fechou-se a mala. - Icatu - disse Aicá. Era um agradecimento e uma despedida. Aicá curvou-se para aviventar o foguinho que queimava sob a rede. Nando revolvia na cabeça histórias de santos, de leprosos, de ungüentos. A pequena flama subiu na encruzilhada das quatro achas e Aicá se recostou na rede, pernas pendentes dum lado só, olhos de novo perdidos no alto. E se pôs a tremer, os braços vibrando, os dentes se entrechocando. Puxou contra o peito um velho cobertor mas de leve como se tivesse medo de descascar as feridas mal curadas. - Está com a febre? - disse Nando. - Febre - disse Aicá. - Já tomou remédio? - já tomou. Aralém. Nando fez um esforço grande para sair, ir embora, mas seus pés tinham deitado raiz no chão. Aicá sem olhá-lo tremia pacientemente em todos os membros. Nando colocou a mão direita na testa de Aicá e sentiu a pele grossa como a de um lagarto. - Está com febre alta - disse Nando. - Por isso é que você tem muito frio. - Muito frio - disse Aicá sem olhar Nando. - Deixe que eu te aqueça. Aicá não parecia ter entendido. Não respondeu. - Você precisa de calor - disse Nando. - Calor - disse Aicá indiferente. Nando passou a mão pelos ombros e pelo peito de Aicá, sentindo o coscorão da pele, botou para dentro da rede as pernas pendentes de Aicá cobertas de um palimpsesto grosso onde se adivinhavam debaixo das cascas e sânies das feridas recentes as duras crateras de chagas extintas. Despiu a própria camisa. Em seguida estirou-se na rede ao lado de Aicá e o estreitou contra si, peito nu em peito nu, face direita contra face direita, seus lábios apertados contra o pescoço rugoso de Aicá. Assim ficaram os dois um minuto, imóveis, Nando sentindo bater de encontro ao peito o coração de Aicá. Finalmente Aicá sorriu vago e se desvencilhou de Nando, sentando-se na rede, tiritante. Nando se levantou, apanhou a camisa e saiu ligeiro como um ladrão.