•Aprofundando as raízes nacionais •Nando e o amor de Francisca •Afastamento da Igreja Visão do índio •Os Cren-Acárore •Renúncia de Jânio Políticas de reparação indígena Nando volta ao Recife com Francisca Camponeses Cangaço Banditismo Politização Religião Alienação Ditadura Censura Lá estava Jubé na posição em que caíra morto, todo o lado direito da cara fraturado pela bordunada, na frente do corpo tombado de lado, meio juntas, as mãos sujas de peixe. - Alguém viu os índios? - disse Nando. - Eu - disse Ramiro. - Eram altos, magros. -Você disse muito altos - disse Lauro -, diferentes de todo e qualquer índio dos que você conhece. - Nunca vi nada mais magro, é verdade disse Ramiro. - Impressionante. Deve ser uma raça de ascetas. Religiosos talvez. - Guardiães da deusa Sônia, sem dúvida disse Olavo. - Vão é esmigalhar o crânio de todos nós. -Vai ver que são os tais que encolhem a cabeça do inimigo morto - disse Lauro. - Não temos índios com esse costume no Brasil - disse Vilaverde. - Não, não - disse Lauro - os índios brasileiros são umas tetéias. Umas flores, como dizia Fontoura dos cren. Olha como se tratam uns aos outros. E apontou no chão o juruva trucidado. - Não digo que sejam anjos - disse Vilaverde - só estou informando que nunca se soube no Brasil de índios que fizessem encolher cabeça de inimigo. - E cabeças há que encolher muito não podem - disse Fontoura. Fontoura estava sentado numa arca comprida, de madeira leve, que guardava os fuzis da Expedição. Como se Fontoura não tivesse dito nada Lauro respondeu: - E quem é que conhece os cren-acárore, Vilaverde? Podem até ser canibais. Você fala de índio como se não tivesse apelação do que você diz. Sabe tudo. Vilaverde não respondeu. Olhou o juruva aos seus pés. Olhou Pauadê, o juruva sobrevivente. - Vamos tratar de enterrar Jubé - disse Vilaverde. - Isto é hora de deixar que os mortos enterrem seus mortos disse Lauro - Ou então façam logo uma cova onde caiba a Expedição toda. Nós não vamos fugir dessa arapuca? - Vamos - disse Vilaverde -, mas agora é imprudente. Está quase caindo a noite e não temos idéia de onde possam estar os cren-acárore. Vamos fazer o que você queria, Lauro. Andaremos pela beira do rio. Mas amanhã de manhã. [...] - Famintos! - disse Fontoura. -Mas não é só isto - disse Vilaverde. - Estão morrendo de alguma outra coisa também. Outros cren-acárore chegavam, arcos arriados, e os que haviam comido se afastaram rápidos para a mata em sombra total e do acampamento se ouviam os ruídos intestinais de um concerto comum de disenteria. - Doentes - disse Fontoura - todos doentes. Lanterna elétrica na mão Ramiro passava os cren-acárore em revista, procurando e procurando entre as mulheres horrendas e chupadas pela moléstia, em cada peito de osso dois canudos de pelanca terminados em bico de seio. - Mulher branca? - disse Ramiro. A índia com quem ele falava metia os dedos de puro osso nos bolsos de Ramiro em busca de alguma comida. - Não deixe que te toquem! - disse Lauro. Lauro tinha na mão uma vara comprida com a qual mantinha os índios à distância. - Estão morrendo de alguma peste - disse Lauro. - Era esse o pavor dos txukarramãe - disse Nando. - Medo da moléstia. -O que é que eles têm? - disse Lauro - Lepra? - Têm o que você já teve - disse Fontoura. - O que toda criança tem. Ramiro, iluminando mais caras com a lanterna elétrica, disse: - É sarampo, não é? - Sarampo - disse Fontoura. - E quase todos vão morrer de febre e disenteria. - Sarampo? - disse Lauro. - Vocês têm certeza? Quando um claro cordão de lua ressurgiu livre da sombra os índios moribundos saudaram o milagre com mais algumas flechas ao menos para estabelecer que as primeiras haviam contribuído para restaurar a lua. Depois sentaram-se em torno do acampamento, moribundos e malcheirosos, como se o resto de vigor da tribo se houvesse concentrado na paulada que dera cabo do juruna jubé enterrado no seu monte. Falavam pouco entre si e a todo instante buscavam o primeiro fiapo de mata para se dessorarem um pouco mais em_fezes e depois iam de novo fuçar as latas à procura de algum farelo de biscoito ou as panelas na esperança de um último osso. Incapazes de caça ou pesca. Na total panemice. Quando a luz da lua voltou Lauro.disse o que todos agora desejavam ouvir e fazer: - Pelo amor de Deus, vamos embora. Vamos sair daqui. - O que é que você acha, Fontoura? Na minha opinião, devemos ir disse Vilaverde. - Não temos remédios. Não temos comida. Talvez, quem sabe, a gente possa voltar depois. Fontoura balançou a cabeça afirmativamente. Foram todos aos fardos, ao pouco que ainda havia a carregar. Só Fontoura continuava com seu fuzil na mão. Pauadê botou a arca das armas na cabeça. Mas quando iniciaram a marcha primeiro se aproximou um cren-acárore inquieto, cara irada. Depois outro. Depois da mata em torno veio o grosso da tribo. Em breve estava a Expedição com o rio por trás e uma ferradura de esqueletos pela frente. Os brancos instintivamente recuaram e os cren fecharam em torno deles o círculo como se temessem que a presa se atirasse ao rio para a fuga. Ao redor da Expedição fechava-se um anel de ossos. Os brancos depuseram os fardos. Olavo com mão trêmula atirou achas de lenha ao fogo para reavivá-lo. Os índios que tinham empunhado e armado o arco deixaram cair os braços. Lauro se aproximou da arca que Fontoura vigiava. Apontou-a, falando aos companheiros em voz não muito alta, mas tensa: - Olha aqui, eu quero dizer uma coisa a vocês. Um punhado de brancos, com fuzis e balas, imobilizados por índios semimortos, é coisa que nunca se viu. Ouviram bem? Nunca. E não tem no mundo inteiro quem ache razoável uma palhaçada destas. Em nome de nada, de coisa nenhuma. - Cala-a boca, burro - disse Fontoura, sentado em cima da arca. - Esse é outro moribundo. De qualquer jeito acaba junto com os índios. E só não trata bugre como bugre por falta de culhão. - O Jânio Quadros renunciou velhinho. Você nem imagina que corre-corre e... - Renunciou? Mas como? Derrubaram ele? - disse Olavo. - Que nada! Ou pelo menos parece que não. Ninguém sabe. Acho que nem o Jânio. Primeiro surgiram milhões de explicações. Uma confusão de todos os diabos. Tinha sido o Exército. Tinham sido os americanos... O Major Norry, que fotografava tudo e todos com uma Leica, riu: - Os americanos não se metem não. - E afinal? - disse Olavo. - Afinal o Jânio viajou. Pôs-se à fresca. Esteve refugiado na Base Aérea de Cumbica durante a noite do eclipse e no dia seguinte se eclipsou. Fez a pista. O americano não tinha conseguido fotografar Lauro, que se metera na rede, e nem Francisca, ainda inchada das ferroadas de formiga. - Você é bonita mesmo assim - disse o Major Norry. - Meta-se naquele formigueiro e veja se você tem vontade de tirar retrato depois - falou Nando. O americano riu e se meteu no formigueiro para tirar um Glose do padrão e da cruz de Fontoura. Francisca disse a Nando: - Mas que coisa, o Jânio! Ele tinha o quê? Meses de governo, não? - Sete meses - disse Nando - e aquela gana toda. Eu estou começando a entender a História do Brasil. São uns apressados, Francisca. - Como apressados? - Veja o Jânio. Gozou depressa demais. Fica a Pátria sempre nessa aflição, esperando, esperando, insatisfeita, neurótica. Olavo perguntou ao piloto Amaral: - Você se lembrou de trazer uma bandeira? - Bandeira? - disse Amaral. - Sim. O pavilhão nacional - disse Olavo. - Nós armamos o mastro, preparamos tudo e só então vimos que não veio bandeira na bagagem. Só muito mais tarde é que Nando localizou no dia da lição do cla, cle, cli o princípio da diluição da noz de egoísmo que no seu peito era a pequena mas portentosa usina de atrair Francisca. No momento foi assim feito uma vertigem. A salinha escura. O projetor jorrando luz na parede caiada, na mão de Francisca que mudava um slide, no cabelo de Francisca. A luz do projetor de volta da parede acendendo a cara dos camponeses. Repetindo por fora o trabalho de escultura que a palavra fazia por dentro. - Cla - disse o camponês. - Classe clamor - disse Francisca. - Cle. - Clemência. - Cli. - Clima. - Clu. - Clube. Francisca tirou um slide de fora da série. A palavra de duas letras mas grande na parede. Vários camponeses leram juntos: - Eu. Outro slide e disseram: - Re. - Pensem em classe e clamor - disse Francisca, enquanto colocava o slide com o pronome e o verbo. - Eu re - disse um camponês. - Eu remo! - disse outro. - Eu clamo - disse outro. - Eu sei, professora, eu sei, Dona Francisca. Eu RECLAMO! Mesmo agora, já habituado a assistir e a ensinar ele próprio, Nando sentia os olhos cheios d'água, quando diante de um camponês uma coisa ou uma ação virava palavra. A criança tantas vezes vai fazer a coisa a comando da palavra. Para aqueles camponeses tudo já existia menos a palavra. - De - disse um camponês. - Clã - disseram todos. - Ra - disse um camponês. - DECLARAÇÃO! - disse outro. Como se visse entrar num alçapão um pássaro palpitante, pensou Nando. E lembrou os possantes dentes alvos e quadrados do Padre Gonçalo quando riu da emoção de Nando ao assistir a primeira aula. "É o porre do Verbo, Seu Nando!“ - Reclamar vocês todos sabem o que é - disse Francisca. Os camponeses riram. - Só que precisam reclamar cada vez mais. Reclamar tudo a que vocês têm direito. Direito também vocês sabem o que é. Direito que todo homem tem de comer, de ganhar dinheiro pelo trabalho que faz, de votar em quem quiser em dia de eleição. - O voto é do povo - disse um camponês. - O pão é do povo - disse outro. - O pão dá vida e saúde ao povo - disse outro. - Isto mesmo - disse Francisca -, mas vamos deixar as lições passadas e aprender a de hoje. Nosso Estado tem um... - Governador - disse um camponês. - E o Brasil - disse Francisca - tem um... - Presidente da República. -Muito bem. Todo país tem seus Governadores e tem um Presidente. Mas agora o mundo tem um Governo que conversa com todos os Governos. O Governo dos Governos se chama Nações Unidas, quer dizer a União de todas essas Nações. Cada nação tem uma lei, que manda em todos, e que se chama... Quem é que se lembra? - Lei Áurea - disse um camponês. - Não - disse Francisca. - Essa não foi a que acabou com os escravos? - disse um camponês. - Isto mesmo - disse Francisca - a Lei Áurea foi o decreto da Abolição, quer dizer, que aboliu, acabou a escravidão dos negros no Brasil. Mas tem uma lei que governa todos nós... A Cons... - Constituição - disse um camponês. - Muito bem - disse Francisca - cada país tem sua Constituição. Mas as Nações Unidas, que é o Governo de todos os países, tem uma DECLARAÇÃO. Chama-se Declaração dos Direitos do Homem. E está ali escrito tudo a que os homens têm direito, que é coisa feito pão, saúde, educação, voto. - O senhor sabe, Seu Nando, primo Leôncio também não mudou de profissão. Meu tio pai dele, e o tio dele, quer dizer meu pai, e meu avô e o avô dele era gente desembestada, Seu Nando. Gente boa e temente de Deus, Seu Nando, disso não tinha dúvida não. Mas era gente jagunça, gente de a-cavalo. E quando tinha um torto a endireitar não adiantava botar a Polícia atrás deles não. Era gente de fazer o que tinha que fazer e sumir com a família inteira. Naquele tempo ninguém achava ninguém na caatinga não. Agente acabava botando a justiça de Deus nesta terra, a cavalo. - Agora a gente bota, Manuel, de caminhão, de trem, de jipe, de tudo que anda depressa. A justiça de Deus está vindo tarde, por isso mesmo precisa andar ligeira. - E o senhor acha que os donos da terra vão mudar de profissão, Seu Nando? Seu Januário diz que a terra é de todo o mundo. Isto não tem dono de terra que concorde. Não tem mesmo. Eu posso aprender a ler tudo quanto é tijolo e enxada que Dona Francisca ensina, mas isto não tem palavra que ensine não, Seu Nando. - Mas o Padre André falou que a gente não precisa mais de Sindicato, nem de Liga nem de nada - disse o camponês. - Nem de família. O Cristo já voltou e ele vai levar a gente para o Cristo, nas jangadas. - O Padre André é maluco - disse Libânio. - Quem é que não sabe disso ainda? Saiu da Igreja para o hospício. Não é mais nem padre da Igreja. - Padre da Igreja - disse Otávio - é Padre Gonçalo, e foi ele quem fundou o Sindicato. O que é mais que vocês querem? O camponês pregou teimoso os olhos no chão. - A gente quer o Cristo Jesus, Nosso Senhor. - Então entra para o Sindicato - disse Otávio. - Jesus Cristo andava entre homens feito vocês, defendia homens feito vocês. É isso que a gente está querendo fazer. Cristo está com Padre Gonçalo, que é são de espírito, como estava antigamente com o Padre Cícero. Você não vê que é pecado pensar que Jesus está na cabeça de um doido? Vocês vêm na reunião do Sindicato domingo, não vêm? - Padre André disse que até sábado a gente embarcava nas jangadas, Seu Otávio. - Então vamos fazer um trato - disse Otávio. - Se as jangadas não saírem, vocês vêm e entram para o Sindicato. Está fechado? O camponês pensou, rodando o chapéu na mão. Depois assentiu com a cabeça, pensativo. Partiu com os demais. Libânio foi com eles. Otávio se voltou, viu Nando e as duas mulheres. - Puxa - disse Otávio - vocês aí me espionando, hem. - O olho de Moscou - disse Nando. - Você estava com uns ares de padre - disse Lídia principalmente quando falava no camarada Gonçalo. Otávio riu. - Januário fez as Ligas, a Igreja fez os SIndicatos e o Partido fornece os quadros às Ligas e Sindicatos. A coisa é simples. - E o Governador - disse Francisca. - O que é que diz isto? - O Governador acha que controla inclusive o Pc. - Acha? - disse Nando. - Ou controla, até certo ponto, sei lá. Eu sou fundador do Partido no Brasil e pretendo morrer membro do Partido. Mas aqui entre nós que ninguém nos ouça, o Partido tem feito tão pouco no Brasil que o único jeito era empurrar a culpa para cima do Brasil. O Governador está mostrando do que é que o Brasil é capaz. • As mulheres • O caso de Amaro • Introspecção política • Jantar = Quarup • Ditadura • Escapismo - Está na hora de você ir para casa, Júlia. - Por quê? Tem alguma outra chegando agora? - Não sei. Pode ser. Ninguém tem hora marcada nesta Mas você tem hora de chegar à sua. - E se eu me instalar aqui? - Eu me mudo. - Então vamos para a sua rede, como outro dia. - Não. Você hoje não quer amor, quer assegurar um direito de propriedade. A mulher se ensombreceu. Amaro trazia a rede jogada por cima do ombro e a usava para transportar umas mudas de calças e camisas de pano de saco de farinha, um lampião, uma peixeira e, num cuidado embrulho de papel marrom, um terno de sarjão azulmarinho, camisa branca, um par de sapatos de verniz. - Que é isso? - disse Nando - Vai viajar? - Vou pedir sua permissão para deixar minha matalotagem aqui uns dias. Eu disse lá em casa que não ia mais ser pescador e meu pai me correu de casa. Ele ainda pesca. - Mas você disse só que não ia mais pescar? Falou em fazer alguma outra coisa? Amaro ficou em silêncio, ainda segurando sobre o ombro a rede onde trazia os haveres. -Você disse que não ia mais trabalhar? -A coisa se passou assim, Nando. Eu não tenho ido pescar estes dias e de primeiro minha velha me defendeu. Disse que eu andava mesmo cansado e que se o velho me deixasse em paz eu saía pro mar outra vez. Mas o velho é desconfiado e parece que andou me vigiando. Veio dizer que eu andava é de farra com vagabundas. Que tinha que voltar pro mar já já ou ficava sem teto. Eu disse que não ia mais pescar o dia inteiro por dinheiro nenhum deste mundo. Aí ele perguntou se eu queria ficar de fornicação o tempo todo. Eu então respondi que queria sim, que era isso que eu queria fazer como ofício. - E ele falou o quê? - Ele de primeiro não falou nada não, ficou assim mudo mesmo, acho que esperando que eu fosse dizer perdão ou explicar outra coisa qualquer. Mas quando viu que não vinha nada levantou a mão bem devagar e me deu uma lapada aqui pelo oitão da cara. Amaro virou o rosto de lado e Nando viu a orelha inchada e vermelha. - Na cozinha tem um baú vazio. Bota tuas coisas lá dentro. Arma tua rede no quarto pegado, ou neste mesmo se preferir. Vai comprar pão para a gente enquanto eu faço o café. Amaro arriou lépido seu peso no chão. - Vou primeiro comprar o pão para a gente tomar café. E escute, Nando, eu vou arranjar um trabalho que me ocupe menos tempo e me mudo logo daqui. - Não, você fica aqui mesmo. Já tenho trabalho para você. Vai buscar o pão que depois a gente conversa. - Posso ficar de vez? - disse Amaro esperançoso e incrédulo. - De vez - disse Nando - o quarto é seu. Chegou finalmente o dia da festa. As mesas das pensões de mulheres emendavam uma na outra mas enviesavam ao sabor da posição de braseiros de tijolos, grelhas de moquém e espiriteiros que agüentavam as sobras da trabalheira dos fogões grandes arquejando contra o muro do fundo e entre os coqueiros. Mulatas, negras e Brancas ainda jogavam pitadas de tempero nas moquecas de peixe fresco, nas postas de atum, nas frigideiras de camarão e de siri, nas bolas de inhame, no feijão de azeite, no caruru. Remexiam paçoca de milho, cuscuz, tapioca. Juntou gente na porta da casa de Nando para ver a chegada dos convidados. Arlete que tinha dito que só no Rio se servia pescado com classe trouxe pronto na hora um Dourado à Ia Conde Lage com o despropósito de peixe deitado numa canoa de barro à sombra de uma construção em pasta de amêndoas que representava a saudosa Pensão Imperial. Peito de Pomba, paraense, trouxe a tartaruga. Manuel Tropeiro descarregou das bruacas do jegue lagostas vivas e pitus de água doce e Cristiana parecia distribuir jóias quando abriu seu cesto de guaiamus azuis. Mariana trouxe licor de jenipapo. Júlia, licor de umbu. Odília Beirão, licor de araçá. Marta Preta de groselha. Ernestina de cacau. Vitoriana de anis. E quem senão Raimunda havia de vir lá de Jaboatão com seu turco e trazendo uma toalha de renda de bilros que era um nevoeiro em cima da mesa. Benedita trouxe bom-bocado. Libânio com a mulher e Severino Gonçalves com a dele trouxeram cachaça. Bonifácio Torgo com a mulher trouxe doce de buriti. Firmino Campelo trouxe beiju. Os jangadeiros puseram rolos da areia até a varanda e para lá rolaram uma jangada carregada de frutas de Itamaracá. Quando copos eram esvaziados, mas ainda não tinha começado a comedoria, Nando falou: - Estamos aqui reunidos em espírito de festa para relembrar o único brasileiro morto em luta por uma idéia. Brasilidade é o encontro marcado com o câncer. Brasilidade é a espera paciente da tuberculose. Brasilidade é morrer na cama. À frente de um grupo de camponeses, morrendo pelo salário do camponês, Levindo morreu uma bela morte estrangeira. Estamos hoje aqui para comer o sacrifício de Levindo, comer sua coragem e beber seu rico sangue de brasileiro novo. Nando levantou o copo no ar e disse: - Levindo! E toda aquela multidão levantou copos, cálices e canecos ribombando em resposta como se os grandes cartazes se tivessem posto a gritar: - LEVINDO! LEVINDO! - E é só - disse Nando - Agora, é beber e comer. - O que é que você está fazendo, Nando? Juro que não entendo nada. Estive com Jorge, que também não entende. Era preciso paciência, pensou Nando. Os homens convictos do que fazem falam, falam muito, se explicam para quem quiser ouvir. O que faltava a ele era convicção? Por que não falava e falava? Ou era a inutilidade de procurar se fazer entender pelas pessoas do seu nível de educação e que prezavam demais o que tinham aprendido? Nando sabia que ia perder tempo com aquela Lídia atônita e sem dúvida armada em guerra. - Estou voltando às origens dos erros - disse Nando - aprendendo a viver em camadas mais significativas. Ensinando as pessoas a amarem, eu que aprendi, como você sabe, a duras penas. - Não exagere - disse Lídia. - É que você era muito perfeccionista. E é capaz de ficar inteiramente acadêmico. Você não pensa em fundar uma academia? - Você troça de mim, mas a idéia não seria tão má assim. A de escolher um belo lugar no interior e organizar uma escola completa de instrução amorosa. -Anda depressa - disse Lídia - que os anos estão passando. Daqui a pouco você só tem a teoria. Nando ia responder, mas Lídia impediu que ele falasse, as mãos juntas como quem implora. - Por favor, Nando, vamos deixar as frivolidades para outra vez. Otávio fugiu para o interior. - Ele não tinha se asilado? - disse Nando. - Não tinha fugido em seguida para o estrangeiro? - Não sei ao certo. Perdi contato com ele durante muito tempo. Mas agora sei que está no Brasil. Está organizando a revolta. - É o que ele faz desde os dias da Coluna. - O que é muito melhor do que passar o dia inteiro falando em mulheres e na arte de amar e não sei mais que tolices. Nando acariciou a cabeça de Lídia. - Você imaginou ironia no que eu disse porque está com raiva de mim. Eu admiro a vida de Otávio como a gente só admira o que está além das possibilidades da gente. Palavra. - Desculpe, Nando, mas então vai ao encontro dele. Ou colabora com Jorge aqui. Ou segue para o interior do Estado. Você não pode continuar fazendo nada. - O que é que se pode fazer no exílio, Lídia? O jeito é aproveitar o tempo e cavarmos em nós mesmos. Às vezes a gente acha alguma coisa. - Exílio é no estrangeiro, Nando. - Quando é a pátria da gente que viaja, não. - Otávio, por exemplo, foi ao encontro dela, onde ela ainda existe de certa forma, onde ela pode nascer de novo. - Escute, Lídia - disse Nando - qualquer movimento, qualquer levante me encontrará a postos. Mas como eu não creio que seja possível fazer nada de útil no país agora, fico esperando. Aqui me encontrarão, mas não peçam que eu me mova antes. Nando já a cavalo mal ouvia Manuel Tropeiro. Sentia que vinha vindo a grande visão. Sua deseducação estava completa. O ar da noite era um escuro éter. A sela do cavalo um alto pico. Da sela Nando abrangia a Mata, o Agreste e sentia na cara o sopro do fim da terra saindo das furnas de rocha quente. E viu: aquele mundo todo com sua cana, suas gentes e seus gados era Francisca molhando os pés na praia e de cabelos ardendo no Sertão. - Manuel - disse Nando - eu vou para ficar. - Assim tenho pedido a Deus que seja a sua resolução. Já em plena estrada, os cavalos marchadores deixando muito chão para trás, Manuel voltou a falar: - Tinha carta de Dona Francisca? - Tinha, Manuel. Mas não é mais preciso. Sabe o que é que eu descobri? - Diga, Seu Nando. - Que Francisca é apenas o centro de Francisca. Nando ia dizer mais alguma coisa, mas se calou. Se Manuel não tinha entendido ia em breve entender por si mesmo. Andavam agora num meio galope, Nando relembrando coisas da vida inteira, mas sem sentir nenhuma ligação com os pensamentos e sentimentos que tivera: como homem feito que encontra um dia numa gaveta cadernos de colégio. Estava descontínuo, leve, vivendo de minuto a minuto. Só tinha como sensação de continuidade o fio de ouro de Francisca, assim mesmo porque era um fio fiado com astúcia na trama do mundo a vir. Não vinha propriamente do passado. Bateu alegre no peito com a mão direita, sustentando as rédeas na esquerda. - Boa essa roupa, Manuel. Manuel Tropeiro falou com sua ironia sem malícia: - Com seu perdão, Seu Nando, a roupa preta não fez o senhor padre. Esse gibão de couro não vai fazer o senhor cangaceiro não. Nando riu: - Não se assuste, Manuel. Eu agora viro qualquer coisa. - Eu vou perfilhar o nome de Adolfo para me esconder nele, Seu Nando. Não tem um som de gente forte? Adolfo? -Você é que é forte e que vai fazer a força do nome. De qualquer nome. - Sempre ouvi meu pai falar num tal de Adolfo Meia-Noite, cangaceiro importante - disse Manuel. - E o seu nome qual vai ser? Já pensou? - Já. - disse Nando - Meu nome vai ser Levindo. E Nando viu o fio fagulhar ligeiro entre as patas do cavalo como uma serpente de ouro em relva escura.