•Aprofundando as raízes nacionais
•Nando e o amor de Francisca
•Afastamento da Igreja
Visão do índio
•Os Cren-Acárore
•Renúncia de Jânio
Políticas de
reparação indígena
Nando volta ao Recife com Francisca
Camponeses
Cangaço
Banditismo
Politização
Religião
Alienação
Ditadura
Censura
Lá estava Jubé na posição em que caíra
morto, todo o lado direito da cara
fraturado pela bordunada, na frente do
corpo tombado de lado, meio juntas, as
mãos sujas de peixe.
- Alguém viu os índios? - disse Nando.
- Eu - disse Ramiro. - Eram altos, magros.
-Você disse muito altos - disse Lauro -,
diferentes de todo e qualquer índio dos
que você conhece.
- Nunca vi nada mais magro, é verdade disse Ramiro. - Impressionante. Deve ser
uma raça de ascetas. Religiosos talvez.
- Guardiães da deusa Sônia, sem dúvida disse Olavo.
- Vão é esmigalhar o crânio de todos nós.
-Vai ver que são os tais que encolhem a
cabeça do inimigo morto - disse Lauro.
- Não temos índios com esse costume no Brasil - disse
Vilaverde.
- Não, não - disse Lauro - os índios brasileiros são umas
tetéias. Umas flores, como dizia Fontoura dos cren. Olha
como se tratam uns aos outros. E apontou no chão o juruva
trucidado.
- Não digo que sejam anjos - disse Vilaverde - só estou
informando que nunca se soube no Brasil de índios que
fizessem encolher cabeça de inimigo.
- E cabeças há que encolher muito não podem - disse
Fontoura.
Fontoura estava sentado numa arca comprida, de madeira
leve, que guardava os fuzis da Expedição. Como se Fontoura
não tivesse dito nada Lauro respondeu:
- E quem é que conhece os cren-acárore, Vilaverde? Podem
até ser canibais. Você fala de índio como se não tivesse
apelação do que você diz. Sabe tudo.
Vilaverde não respondeu. Olhou o juruva aos seus pés.
Olhou Pauadê, o juruva sobrevivente.
- Vamos tratar de enterrar Jubé - disse Vilaverde.
- Isto é hora de deixar que os mortos enterrem seus mortos disse Lauro - Ou então façam logo uma cova onde caiba a
Expedição toda. Nós não vamos fugir dessa arapuca?
- Vamos - disse Vilaverde -, mas agora é imprudente. Está
quase caindo a noite e não temos idéia de onde possam estar
os cren-acárore. Vamos fazer o que você queria, Lauro.
Andaremos pela beira do rio. Mas amanhã de manhã.
[...]
- Famintos! - disse Fontoura.
-Mas não é só isto - disse Vilaverde. - Estão morrendo de
alguma outra coisa também.
Outros cren-acárore chegavam, arcos arriados, e os que
haviam comido se afastaram rápidos para a mata em sombra
total e do acampamento se ouviam os ruídos intestinais de
um concerto comum de disenteria.
- Doentes - disse Fontoura - todos doentes. Lanterna elétrica
na mão Ramiro passava os cren-acárore em revista,
procurando e procurando entre as mulheres horrendas e
chupadas pela moléstia, em cada peito de osso dois canudos
de pelanca terminados em bico de seio.
- Mulher branca? - disse Ramiro.
A índia com quem ele falava metia os dedos de puro osso
nos bolsos de Ramiro em busca de alguma comida.
- Não deixe que te toquem! - disse Lauro.
Lauro tinha na mão uma vara comprida com a qual mantinha
os índios à distância.
- Estão morrendo de alguma peste - disse Lauro.
- Era esse o pavor dos txukarramãe - disse Nando. - Medo da
moléstia.
-O que é que eles têm? - disse Lauro - Lepra?
- Têm o que você já teve - disse Fontoura. - O que toda
criança tem.
Ramiro, iluminando mais caras com a lanterna elétrica, disse:
- É sarampo, não é?
- Sarampo - disse Fontoura. - E quase todos vão morrer de
febre e disenteria.
- Sarampo? - disse Lauro. - Vocês têm certeza? Quando um
claro cordão de lua ressurgiu livre da sombra os índios
moribundos saudaram o milagre com mais algumas flechas
ao menos para estabelecer que as primeiras haviam
contribuído para restaurar a lua. Depois sentaram-se em
torno do acampamento, moribundos e malcheirosos, como
se o resto de vigor da tribo se houvesse concentrado na
paulada que dera cabo do juruna jubé enterrado no seu
monte. Falavam pouco entre si e a todo instante buscavam o
primeiro fiapo de mata para se dessorarem um pouco mais
em_fezes e depois iam de novo fuçar as latas à procura de
algum farelo de biscoito ou as panelas na esperança de um
último osso. Incapazes de caça ou pesca. Na total panemice.
Quando a luz da lua voltou Lauro.disse o que todos agora
desejavam ouvir e fazer:
- Pelo amor de Deus, vamos embora. Vamos sair daqui. - O que
é que você acha, Fontoura? Na minha opinião, devemos ir disse Vilaverde. - Não temos remédios. Não temos comida.
Talvez, quem sabe, a gente possa voltar depois. Fontoura
balançou a cabeça afirmativamente. Foram todos aos fardos, ao
pouco que ainda havia a carregar.
Só Fontoura continuava com seu fuzil na mão. Pauadê botou a
arca das armas na cabeça. Mas quando iniciaram a marcha
primeiro se aproximou um cren-acárore inquieto, cara irada.
Depois outro. Depois da mata em torno veio o grosso da tribo.
Em breve estava a Expedição com o rio por trás e uma ferradura
de esqueletos pela frente. Os brancos instintivamente recuaram
e os cren fecharam em torno deles o círculo como se temessem
que a presa se atirasse ao rio para a fuga. Ao redor da
Expedição fechava-se um anel de ossos. Os brancos
depuseram os fardos. Olavo com mão trêmula atirou achas de
lenha ao fogo para reavivá-lo. Os índios que tinham empunhado
e armado o arco deixaram cair os braços. Lauro se aproximou
da arca que Fontoura vigiava. Apontou-a, falando aos
companheiros em voz não muito alta, mas tensa:
- Olha aqui, eu quero dizer uma
coisa a vocês. Um punhado de
brancos, com fuzis e balas,
imobilizados por índios
semimortos, é coisa que nunca
se viu. Ouviram bem? Nunca. E
não tem no mundo inteiro quem
ache razoável uma palhaçada
destas. Em nome de nada, de
coisa nenhuma.
- Cala-a boca, burro - disse
Fontoura, sentado em cima da
arca.
- Esse é outro moribundo. De
qualquer jeito acaba junto com
os índios. E só não trata bugre
como bugre por falta de culhão.
- O Jânio Quadros renunciou velhinho. Você nem imagina que
corre-corre e...
- Renunciou? Mas como? Derrubaram ele? - disse Olavo.
- Que nada! Ou pelo menos parece que não. Ninguém sabe.
Acho que nem o Jânio. Primeiro surgiram milhões de
explicações. Uma confusão de todos os diabos. Tinha sido o
Exército. Tinham sido os americanos...
O Major Norry, que fotografava tudo e todos com uma Leica, riu:
- Os americanos não se metem não.
- E afinal? - disse Olavo.
- Afinal o Jânio viajou. Pôs-se à fresca. Esteve refugiado na
Base Aérea de Cumbica durante a noite do eclipse e no dia
seguinte se eclipsou. Fez a pista.
O americano não tinha conseguido fotografar Lauro, que se
metera na rede, e nem Francisca, ainda inchada das ferroadas
de formiga.
- Você é bonita mesmo assim - disse o Major Norry.
- Meta-se naquele formigueiro e veja se você tem vontade de
tirar retrato depois - falou Nando.
O americano riu e se meteu no formigueiro para tirar um
Glose do padrão e da cruz de Fontoura. Francisca disse a
Nando:
- Mas que coisa, o Jânio! Ele tinha o quê? Meses de governo,
não?
- Sete meses - disse Nando - e aquela gana toda. Eu estou
começando a entender a História do Brasil. São uns
apressados, Francisca.
- Como apressados?
- Veja o Jânio. Gozou depressa demais. Fica a Pátria sempre
nessa aflição, esperando, esperando, insatisfeita, neurótica.
Olavo perguntou ao piloto Amaral:
- Você se lembrou de trazer uma bandeira?
- Bandeira? - disse Amaral.
- Sim. O pavilhão nacional - disse Olavo.
- Nós armamos o mastro, preparamos tudo e só então vimos
que não veio bandeira na bagagem.
Só muito mais tarde é que Nando localizou no dia da lição do cla, cle, cli o
princípio da diluição da noz de egoísmo que no seu peito era a pequena
mas portentosa usina de atrair Francisca. No momento foi assim feito
uma vertigem. A salinha escura. O projetor jorrando luz na parede caiada,
na mão de Francisca que mudava um slide, no cabelo de Francisca. A luz
do projetor de volta da parede acendendo a cara dos camponeses.
Repetindo por fora o trabalho de escultura que a palavra fazia por dentro.
- Cla - disse o camponês.
- Classe clamor - disse Francisca.
- Cle.
- Clemência.
- Cli.
- Clima.
- Clu.
- Clube.
Francisca tirou um slide de fora da série. A palavra de duas letras mas
grande na parede. Vários camponeses leram juntos:
- Eu.
Outro slide e disseram:
- Re.
- Pensem em classe e clamor - disse Francisca, enquanto colocava o
slide com o pronome e o verbo.
- Eu re - disse um camponês.
- Eu remo! - disse outro.
- Eu clamo - disse outro.
- Eu sei, professora, eu sei, Dona Francisca. Eu RECLAMO!
Mesmo agora, já habituado a assistir e a ensinar ele próprio,
Nando sentia os olhos cheios d'água, quando diante de um
camponês uma coisa ou uma ação virava palavra. A criança tantas
vezes vai fazer a coisa a comando da palavra. Para aqueles
camponeses tudo já existia menos a palavra.
- De - disse um camponês.
- Clã - disseram todos.
- Ra - disse um camponês.
- DECLARAÇÃO! - disse outro.
Como se visse entrar num alçapão um pássaro palpitante, pensou
Nando. E lembrou os possantes dentes alvos e quadrados do
Padre Gonçalo quando riu da emoção de Nando ao assistir a
primeira aula. "É o porre do Verbo, Seu Nando!“
- Reclamar vocês todos sabem o que é - disse Francisca.
Os camponeses riram.
- Só que precisam reclamar cada vez mais. Reclamar tudo a que
vocês têm direito. Direito também vocês sabem o que é. Direito
que todo homem tem de comer, de ganhar dinheiro pelo trabalho
que faz, de votar em quem quiser em dia de eleição.
- O voto é do povo - disse um camponês.
- O pão é do povo - disse outro.
- O pão dá vida e saúde ao povo - disse outro.
- Isto mesmo - disse Francisca -, mas vamos deixar as lições
passadas e aprender a de hoje.
Nosso Estado tem um...
- Governador - disse um camponês.
- E o Brasil - disse Francisca - tem um...
- Presidente da República.
-Muito bem. Todo país tem seus Governadores e tem um
Presidente. Mas agora o mundo tem um Governo que conversa
com todos os Governos. O Governo dos Governos se chama
Nações Unidas, quer dizer a União de todas essas Nações. Cada
nação tem uma lei, que manda em todos, e que se chama... Quem é
que se lembra?
- Lei Áurea - disse um camponês.
- Não - disse Francisca.
- Essa não foi a que acabou com os escravos? - disse um
camponês.
- Isto mesmo - disse Francisca - a Lei Áurea foi o decreto da
Abolição, quer dizer, que aboliu, acabou a escravidão dos negros
no Brasil. Mas tem uma lei que governa todos nós... A Cons...
- Constituição - disse um camponês.
- Muito bem - disse Francisca - cada país tem sua Constituição.
Mas as Nações Unidas, que é o Governo de todos os países, tem
uma DECLARAÇÃO. Chama-se Declaração dos Direitos do
Homem. E está ali escrito tudo a que os homens têm direito, que é
coisa feito pão, saúde, educação, voto.
- O senhor sabe, Seu Nando, primo Leôncio também não mudou
de profissão. Meu tio pai dele, e o tio dele, quer dizer meu pai, e
meu avô e o avô dele era gente desembestada, Seu Nando.
Gente boa e temente de Deus, Seu Nando, disso não tinha
dúvida não. Mas era gente jagunça, gente de a-cavalo. E quando
tinha um torto a endireitar não adiantava botar a Polícia atrás
deles não. Era gente de fazer o que tinha que fazer e sumir com
a família inteira. Naquele tempo ninguém achava ninguém na
caatinga não. Agente acabava botando a justiça de Deus nesta
terra, a cavalo.
- Agora a gente bota, Manuel, de caminhão, de trem, de jipe, de
tudo que anda depressa. A justiça de Deus está vindo tarde, por
isso mesmo precisa andar ligeira.
- E o senhor acha que os donos da terra vão mudar de
profissão, Seu Nando? Seu Januário diz que a terra é de todo o
mundo. Isto não tem dono de terra que concorde. Não tem
mesmo. Eu posso aprender a ler tudo quanto é tijolo e enxada
que Dona Francisca ensina, mas isto não tem palavra que
ensine não, Seu Nando.
- Mas o Padre André falou que a gente não precisa mais de
Sindicato, nem de Liga nem de nada - disse o camponês.
- Nem de família. O Cristo já voltou e ele vai levar a gente para o
Cristo, nas jangadas.
- O Padre André é maluco - disse Libânio.
- Quem é que não sabe disso ainda? Saiu da Igreja para o
hospício. Não é mais nem padre da Igreja.
- Padre da Igreja - disse Otávio - é Padre Gonçalo, e foi ele quem
fundou o Sindicato. O que é mais que vocês querem?
O camponês pregou teimoso os olhos no chão.
- A gente quer o Cristo Jesus, Nosso Senhor.
- Então entra para o Sindicato - disse Otávio. - Jesus Cristo
andava entre homens feito vocês, defendia homens feito vocês.
É isso que a gente está querendo fazer. Cristo está com Padre
Gonçalo, que é são de espírito, como estava antigamente com o
Padre Cícero. Você não vê que é pecado pensar que Jesus está
na cabeça de um doido? Vocês vêm na reunião do Sindicato
domingo, não vêm?
- Padre André disse que até sábado a gente embarcava nas
jangadas, Seu Otávio.
- Então vamos fazer um trato - disse Otávio. - Se as jangadas
não saírem, vocês vêm e entram para o Sindicato. Está
fechado?
O camponês pensou, rodando o chapéu na mão. Depois
assentiu com a cabeça, pensativo. Partiu com os demais.
Libânio foi com eles. Otávio se voltou, viu Nando e as duas
mulheres.
- Puxa - disse Otávio - vocês aí me espionando, hem.
- O olho de Moscou - disse Nando.
- Você estava com uns ares de padre - disse Lídia principalmente quando falava no camarada Gonçalo.
Otávio riu.
- Januário fez as Ligas, a Igreja fez os SIndicatos e o Partido
fornece os quadros às Ligas e Sindicatos. A coisa é simples.
- E o Governador - disse Francisca. - O que é que diz isto?
- O Governador acha que controla inclusive o Pc.
- Acha? - disse Nando.
- Ou controla, até certo ponto, sei lá. Eu sou fundador do
Partido no Brasil e pretendo morrer membro do Partido. Mas
aqui entre nós que ninguém nos ouça, o Partido tem feito tão
pouco no Brasil que o único jeito era empurrar a culpa para
cima do Brasil. O Governador está mostrando do que é que o
Brasil é capaz.
• As mulheres
• O caso de Amaro
• Introspecção política
• Jantar = Quarup
• Ditadura
• Escapismo
- Está na hora de você ir para casa, Júlia.
- Por quê? Tem alguma outra chegando agora?
- Não sei. Pode ser. Ninguém tem hora marcada nesta
Mas você tem hora de chegar à sua.
- E se eu me instalar aqui? - Eu me mudo.
- Então vamos para a sua rede, como outro dia.
- Não. Você hoje não quer amor, quer assegurar um
direito de propriedade.
A mulher se ensombreceu.
Amaro trazia a rede jogada por cima do ombro e a usava para transportar
umas mudas de calças e camisas de pano de saco de farinha, um lampião,
uma peixeira e, num cuidado embrulho de papel marrom, um terno de sarjão
azulmarinho, camisa branca, um par de sapatos de verniz.
- Que é isso? - disse Nando - Vai viajar?
- Vou pedir sua permissão para deixar minha matalotagem aqui uns dias. Eu
disse lá em casa que não ia mais ser pescador e meu pai me correu de casa.
Ele ainda pesca.
- Mas você disse só que não ia mais pescar? Falou em fazer alguma outra
coisa?
Amaro ficou em silêncio, ainda segurando sobre o ombro a rede onde trazia os
haveres.
-Você disse que não ia mais trabalhar?
-A coisa se passou assim, Nando. Eu não tenho ido pescar estes dias e de
primeiro minha velha me defendeu. Disse que eu andava mesmo cansado e
que se o velho me deixasse em paz eu saía pro mar outra vez. Mas o velho é
desconfiado e parece que andou me vigiando. Veio dizer que eu andava é de
farra com vagabundas. Que tinha que voltar pro mar já já ou ficava sem teto.
Eu disse que não ia mais pescar o dia inteiro por dinheiro nenhum deste
mundo. Aí ele perguntou se eu queria ficar de fornicação o tempo todo. Eu
então respondi que queria sim, que era isso que eu queria fazer como ofício.
- E ele falou o quê?
- Ele de primeiro não falou nada não, ficou assim mudo mesmo, acho
que esperando que eu fosse dizer perdão ou explicar outra coisa
qualquer. Mas quando viu que não vinha nada levantou a mão bem
devagar e me deu uma lapada aqui pelo oitão da cara.
Amaro virou o rosto de lado e Nando viu a orelha inchada e vermelha.
- Na cozinha tem um baú vazio. Bota tuas coisas lá dentro. Arma tua
rede no quarto pegado, ou neste mesmo se preferir. Vai comprar pão
para a gente enquanto eu faço o café.
Amaro arriou lépido seu peso no chão.
- Vou primeiro comprar o pão para a gente tomar café. E escute,
Nando, eu vou arranjar um trabalho que me ocupe menos tempo e me
mudo logo daqui.
- Não, você fica aqui mesmo. Já tenho trabalho para você. Vai buscar o
pão que depois a gente conversa.
- Posso ficar de vez? - disse Amaro esperançoso e incrédulo.
- De vez - disse Nando - o quarto é seu.
Chegou finalmente o dia da festa. As mesas das pensões de mulheres
emendavam uma na outra mas enviesavam ao sabor da posição de braseiros
de tijolos, grelhas de moquém e espiriteiros que agüentavam as sobras da
trabalheira dos fogões grandes arquejando contra o muro do fundo e entre os
coqueiros. Mulatas, negras e Brancas ainda jogavam pitadas de tempero nas
moquecas de peixe fresco, nas postas de atum, nas frigideiras de camarão e
de siri, nas bolas de inhame, no feijão de azeite, no caruru. Remexiam paçoca
de milho, cuscuz, tapioca.
Juntou gente na porta da casa de Nando para ver a chegada dos convidados.
Arlete que tinha dito que só no Rio se servia pescado com classe trouxe pronto
na hora um Dourado à Ia Conde Lage com o despropósito de peixe deitado
numa canoa de barro à sombra de uma construção em pasta de amêndoas
que representava a saudosa Pensão Imperial. Peito de Pomba, paraense,
trouxe a tartaruga. Manuel Tropeiro descarregou das bruacas do jegue
lagostas vivas e pitus de água doce e Cristiana parecia distribuir jóias quando
abriu seu cesto de guaiamus azuis. Mariana trouxe licor de jenipapo. Júlia, licor
de umbu.
Odília Beirão, licor de araçá. Marta Preta de groselha. Ernestina de cacau.
Vitoriana de anis. E quem senão Raimunda havia de vir lá de Jaboatão com
seu turco e trazendo uma toalha de renda de bilros que era um nevoeiro em
cima da mesa. Benedita trouxe bom-bocado. Libânio com a mulher e
Severino Gonçalves com a dele trouxeram cachaça. Bonifácio Torgo com a
mulher trouxe doce de buriti. Firmino Campelo trouxe beiju. Os jangadeiros
puseram rolos da areia até a varanda e para lá rolaram uma jangada carregada
de frutas de Itamaracá.
Quando copos eram esvaziados, mas ainda não tinha começado a comedoria,
Nando falou:
- Estamos aqui reunidos em espírito de festa para relembrar o único brasileiro
morto em luta por uma idéia. Brasilidade é o encontro marcado com o câncer.
Brasilidade é a espera paciente da tuberculose. Brasilidade é morrer na cama.
À frente de um grupo de camponeses, morrendo pelo salário do camponês,
Levindo morreu uma bela morte estrangeira. Estamos hoje aqui para comer o
sacrifício de Levindo, comer sua coragem e beber seu rico sangue de brasileiro
novo.
Nando levantou o copo no ar e disse:
- Levindo!
E toda aquela multidão levantou copos, cálices e canecos ribombando em
resposta como se os grandes cartazes se tivessem posto a gritar:
- LEVINDO! LEVINDO!
- E é só - disse Nando - Agora, é beber e comer.
- O que é que você está fazendo, Nando? Juro que não entendo nada. Estive
com Jorge, que também não entende.
Era preciso paciência, pensou Nando. Os homens convictos do que fazem
falam, falam muito, se explicam para quem quiser ouvir. O que faltava a ele era
convicção? Por que não falava e falava? Ou era a inutilidade de procurar se
fazer entender pelas pessoas do seu nível de educação e que prezavam
demais o que tinham aprendido? Nando sabia que ia perder tempo com aquela
Lídia atônita e sem dúvida armada em guerra.
- Estou voltando às origens dos erros - disse Nando - aprendendo a viver em
camadas mais significativas. Ensinando as pessoas a amarem, eu que aprendi,
como você sabe, a duras penas.
- Não exagere - disse Lídia.
- É que você era muito perfeccionista. E é capaz de ficar inteiramente
acadêmico. Você não pensa em fundar uma academia?
- Você troça de mim, mas a idéia não seria tão má assim. A de escolher um
belo lugar no interior e organizar uma escola completa de instrução amorosa.
-Anda depressa - disse Lídia - que os anos estão passando. Daqui a pouco
você só tem a teoria.
Nando ia responder, mas Lídia impediu que ele falasse, as mãos juntas como
quem implora.
- Por favor, Nando, vamos deixar as frivolidades para outra vez. Otávio fugiu
para o interior.
- Ele não tinha se asilado? - disse Nando. - Não tinha fugido em seguida para o
estrangeiro?
- Não sei ao certo. Perdi contato com ele durante muito tempo. Mas agora sei
que está no Brasil. Está organizando a revolta.
- É o que ele faz desde os dias da Coluna.
- O que é muito melhor do que passar o dia inteiro falando em mulheres e na
arte de amar e não sei mais que tolices.
Nando acariciou a cabeça de Lídia.
- Você imaginou ironia no que eu disse porque está com raiva de mim. Eu
admiro a vida de Otávio como a gente só admira o que está além das
possibilidades da gente.
Palavra.
- Desculpe, Nando, mas então vai ao encontro dele. Ou colabora com Jorge
aqui. Ou segue para o interior do Estado. Você não pode continuar fazendo
nada.
- O que é que se pode fazer no exílio, Lídia? O jeito é aproveitar o tempo e
cavarmos em nós mesmos. Às vezes a gente acha alguma coisa.
- Exílio é no estrangeiro, Nando.
- Quando é a pátria da gente que viaja, não.
- Otávio, por exemplo, foi ao encontro dela, onde ela ainda existe de certa
forma, onde ela pode nascer de novo.
- Escute, Lídia - disse Nando - qualquer movimento, qualquer levante me
encontrará a postos. Mas como eu não creio que seja possível fazer nada de
útil no país agora, fico esperando. Aqui me encontrarão, mas não peçam que
eu me mova antes.
Nando já a cavalo mal ouvia Manuel Tropeiro. Sentia que vinha vindo a grande
visão. Sua deseducação estava completa. O ar da noite era um escuro éter. A
sela do cavalo um alto pico.
Da sela Nando abrangia a Mata, o Agreste e sentia na cara o sopro do fim da
terra saindo das furnas de rocha quente. E viu: aquele mundo todo com sua
cana, suas gentes e seus gados era Francisca molhando os pés na praia e de
cabelos ardendo no Sertão.
- Manuel - disse Nando - eu vou para ficar.
- Assim tenho pedido a Deus que seja a sua resolução.
Já em plena estrada, os cavalos marchadores deixando muito chão para trás,
Manuel voltou a falar:
- Tinha carta de Dona Francisca?
- Tinha, Manuel. Mas não é mais preciso. Sabe o que é que eu descobri?
- Diga, Seu Nando.
- Que Francisca é apenas o centro de Francisca.
Nando ia dizer mais alguma coisa, mas se calou. Se Manuel não tinha
entendido ia em breve entender por si mesmo. Andavam agora num meio
galope, Nando relembrando coisas da vida inteira, mas sem sentir nenhuma
ligação com os pensamentos e sentimentos que tivera: como homem feito que
encontra um dia numa gaveta cadernos de colégio. Estava descontínuo, leve,
vivendo de minuto a minuto. Só tinha como sensação de continuidade o fio de
ouro de Francisca, assim mesmo porque era um fio fiado com astúcia na trama
do mundo a vir. Não vinha propriamente do passado. Bateu alegre no peito
com a mão direita, sustentando as rédeas na esquerda.
- Boa essa roupa, Manuel.
Manuel Tropeiro falou com sua ironia sem malícia:
- Com seu perdão, Seu Nando, a roupa preta não fez o senhor padre.
Esse gibão de couro não vai fazer o senhor cangaceiro não.
Nando riu:
- Não se assuste, Manuel. Eu agora viro qualquer coisa.
- Eu vou perfilhar o nome de Adolfo para me esconder nele, Seu Nando.
Não tem um som de gente forte? Adolfo?
-Você é que é forte e que vai fazer a força do nome. De qualquer nome.
- Sempre ouvi meu pai falar num tal de Adolfo Meia-Noite, cangaceiro
importante - disse Manuel.
- E o seu nome qual vai ser? Já pensou?
- Já. - disse Nando - Meu nome vai ser Levindo.
E Nando viu o fio fagulhar ligeiro entre as patas do cavalo como uma
serpente de ouro em relva escura.
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