Sysmex Educational Enhancement & Development Melhoramento e Desenvolvimento Educacional da Sysmex SEED-África Boletim Informativo | No 8 | 2011 Hemofilia – uma abordagem do laboratório de diagnóstico Coagulação O objectivo deste boletim informativo é fornecer uma visão geral da hemofilia e do papel que o laboratório tem no controlo desta doença. Palavras-chave: Hemofilia, factor VIII, factor IX, inibidores, hemorragia O que é a hemofilia? A hemostase é o equilíbrio biológico entre a coagulação e a hemorragia. A deficiência de um factor de coagulação altera este equilíbrio para uma tendência hemorrágica. A hemofilia é um distúrbio hemorrágico hereditário ligado ao sexo, causado pela deficiência do factor de coagulação VIII (FVIII) ou IX (FIX), denominado hemofilia A e B, respectivamente. Os genes do FVIII e FIX estão localizados no cromossoma X, o que significa que, com raras excepções, apenas os homens são afectados. Uma vez que as mulheres possuem dois cromossomas X, mesmo que um dos cromossomas seja portador da mutação da hemofilia, o segundo cromossoma normal é capaz de produzir quantidades suficientes de factor para que as mulheres portadoras permaneçam clinicamente assintomáticas. O padrão de hereditariedade da hemofilia encontra-se ilustrado na figura 1. No entanto, até um terço dos hemofílicos não possuem antecedentes familiares e resultam de mutação espontânea. Pai sem hemofilia Mãe portadora X Y X X X X X X X Y Mulher saudável Mulher portadora Homem saudável X Gene normal no cromossoma X X Gene de hemofilia no cromossoma X Figura 1 padrão hereditário da hemofilia X Y Homem com hemofilia A hemofilia é frequente? A hemofilia A é a mais frequente das deficiências hereditárias dos factores de coagulação, ocorrendo em cerca de 1 em 5000 nados vivos do sexo masculino. A hemofilia B é menos frequente, com uma prevalência de cerca de 1 em 30.000 nados- vivos do sexo masculino. A apresentação clínica, o diagnóstico laboratorial e o controlo da hemofilia A e B são idênticos. Para maior facilidade de leitura, este boletim informativo irá focar-se na hemofilia A e no FVIII, uma vez que é a mais frequente. No entanto, todas as referências ao FVIII podem ser substituídas pelo FIX para serem aplicáveis à hemofilia B. Quando se deve suspeitar que um doente pode ter hemofilia? Deve suspeitar-se de hemofilia em doentes do sexo masculino que apresentam o seguinte: n Antecedentes de episódios hemorrágicos que se tornaram evidentes pela primeira vez durante a infância na altura em que a criança se começou a movimentar n Antecedentes ao longo da vida de facilidade em desenvolver hematomas n Hemorragia espontânea nas articulações e nos tecidos moles subcutâneos n Antecedentes familiares de hemorragia, particularmente nos homens, apesar de estes poderem não existir 2/6 SEED-África Boletim Informativo | No 8 | 2011 Melhoramento e Desenvolvimento Educacional da Sysmex Quais são as manifestações clínicas da hemofilia? Como se diagnostica a hemofilia? Os principais sintomas clínicos da hemofilia são episódios hemorrágicos recorrentes. A gravidade da hemorragia está directamente relacionada com o nível de FVIII no plasma. Assim, os doentes com o nível mais baixo de FVIII terão uma maior tendência para a hemorragia e um quadro clínico agravado. Os doentes com hemofilia grave têm hemorragias mais frequentes com um grau e uma gravidade maior de complicações. Inversamente, os doentes com hemofilia ligeira têm bastante menos hemorragias com poucas ou nenhumas complicações. Os doentes com hemofilia moderada apresentam um quadro clínico intermédio. As crianças pequenas podem apresentar hemorragia profusa pós-circuncisão, hemorragias dos tecidos moles e hematomas excessivos, especialmente quando começam a gatinhar. Hemorragias espontâneas recorrentes das articulações e hematomas musculares são uma complicação frequente, podendo as articulações, se deixadas por tratar, desenvolver artrite crónica que conduz progressivamente à incapacidade. Podem surgir complicações de hemorragias incontroláveis durante um trauma mais importante ou cirurgia. O prolongamento do tempo dos testes de rastreio da coagulação iniciais identifica um doente com uma deficiência dos factores de coagulação. São necessários ensaios específicos do factor de coagulação para identificar o factor específico que é deficiente. As conclusões previstas dos resultados do teste de coagulação num doente com hemofilia são apresentadas na tabela 2. Tabela 2 previstas para os testes laboratoriais iniciais em hemofilia Tempo de protrombina (PT) Normal Tempo de tromboplastina parcial activada (APTT) Prolongado Tempo de trombina (TT) Normal Fibrinogénio Normal Contagem plaquetária Normal VIA EXTRÍNSECA VIA INTRÍNSECA Tabela 1 Classificação clínica de hemofilia de acordo com a actividade PT do factor Actividade do factor VIII Gravidade da hemofilia Manifestações clínicas <1% Hemofilia grave n >1% - < 5% Hemofilia moderada n 5% -30% Hemorragia ligeira Hemorragias espontâneas frequentes Hemorragia póstraumática n Hemorragias espontâneas ocasionais n Hemorragia póstraumática n Hemorragias espontâneas raras APTT FXII FXI TF/FVII FIX (FVIII) FX (FV) VIA COMUM Protrombina Fibrinogénio Figura 2 Via de coagulação apresentando os factores medidos pelo APTT e o papel do FVIII. Uma deficiência do FVIII prolonga o tempo de coagulação do APTT acima do intervalo normal. 3/6 SEED-África Boletim Informativo | No 8 | 2011 Melhoramento e Desenvolvimento Educacional da Sysmex Quando o APTT está prolongado, devem ser realizados estudos de correcção misturando o plasma do doente com reservas de plasma normal numa relação de 50:50. Este estudo, denominado estudo de mistura ou de correcção, é utilizado para determinar se o prolongamento do APTT se deve a uma deficiência dos factores ou a um inibidor, como a heparina. Se o prolongamento se deve a uma deficiência dos factores, a adição de reservas de plasma normal substitui os factores em falta no plasma do doente e, consequentemente, "corrige" o APTT para o intervalo normal. Ao contrário, se o APTT prolongado se deve a um inibidor, não haverá qualquer “correcção”. coagulação estão normalizados, excepto o FVIII que é a quantidade desconhecida em investigação. Assim, qualquer prolongamento do APTT pode ser unicamente atribuído à concentração do FVIII na amostra do doente. Como se confirma um diagnóstico de suspeita de hemofilia? n Plasma de referência – este plasma de referência (Standard Human Plasma©), que contém uma quantidade conhecida de FVIII, é utilizado para criar uma curva padrão (curva de calibração) contra a qual o tempo de coagulação da amostra do doente é comparado e convertido num valor absoluto (%). n Plasma deficiente em factor VIII – este plasma contém quantidades normais de todos os factores de coagulação, mas é completamente deficiente em FVIII. n Controlos normais e anormais – Control Plasma N© e Control Plasma P© (Os nomes acima seguidos por “©” são nomes comerciais de reagentes da Siemens, utilizados para o ensaio de FVIII nos analisadores Sysmex) Devem ser realizados ensaios dos factores individuais para confirmar um diagnóstico de hemofilia. Como a hemofilia A é cinco vezes mais frequente que a hemofilia B seria economicamente mais rentável realizar primeiro um ensaio de FVIII, seguido por um ensaio de FIX se o nível de FVIII estiver normal. O princípio e o método do teste são essencialmente os mesmos para ambos os factores, com a excepção que é utilizado plasma com deficiência de FIX no ensaio de FIX. a) Princípio de teste do ensaio de FVIII O tempo de tromboplastina parcial activada (APTT) avalia a função colectiva dos factores de coagulação que constituem a via intrínseca e a via de coagulação comum (FXII, FXI, FIX, FVIII, FX, FV, FII, fibrinogénio). Para que o APTT se situe no intervalo normal, todos os factores participantes têm de estar presente em quantidades normais ou quase normais. Como todos os factores são essenciais para a criação final de um coágulo de fibrina, uma deficiência de qualquer um deles resulta num APTT prolongado. O tempo de coagulação do APTT estará prolongado em proporção directa com a extensão da deficiência, i.e., quanto mais baixo o nível de factor, mais longo o tempo de coagulação. Por isso, se a única variável a alterar o APTT da amostra de um doente é o nível de um factor de coagulação específico, nesse caso, o valor do APTT pode ser utilizado para calcular a concentração do factor deficiente. No ensaio de FVIII, a amostra do doente com um nível de FVIII desconhecido é misturada com um plasma de referência, que contém quantidades normais de todos os factores de coagulação, excepto o factor que está a ser medido, i.e., FVIII neste caso. Este plasma é referido como plasma deficiente em FVIII. Ao efectuar esta mistura, todos os níveis dos factores de b) Reagentes e controlos necessários para o ensaio de FVIII n Reagentes de APTT – os mesmos reagentes que são utilizados para o teste de APTT inicial são necessários para o factor de coagulação da via intrínseca, nomeadamente o reagente de APTT (Actin FS©) e cloreto de cálcio. c) Análise automática de FVIII nos analisadores Sysmex Os ensaios individuais dos factores de coagulação podem ser realizados em todos os analisadores de coagulação Sysmex. O analisador tem de ser calibrado com Standard Human Plasma© sempre que muda o número de lote dos reagentes. Consulte as instruções de utilização ou consulte o seu representante Sysmex local. d) Interpretação dos resultados Os resultados do FVIII são comunicados na forma de um valor percentual. O intervalo de referência normal pode ser bastante amplo (~50 – 150%), o que não é relevante para o diagnóstico da hemofilia. Conforme indicado na tabela 1, o diagnóstico da hemofilia requer que exista um nível isolado de FVIII inferior a 30% num doente do sexo masculino. O nível de factor determina a gravidade clínica e, consequentemente, a abordagem do tratamento. 4/6 SEED-África Boletim Informativo | No 8 | 2011 Melhoramento e Desenvolvimento Educacional da Sysmex Como são tratados os episódios hemorrágicos em doentes hemofílicos? a) Restaurar o equilíbrio hemostático Os hemofílicos têm hemorragias porque apresentam uma ausência parcial ou total de um único factor de coagulação, nomeadamente FVIII ou FIX. Por isso, não é surpreendente que a base do tratamento dos episódios hemorrágicos seja a reposição do factor de coagulação omisso. Este é administrado na forma de concentrado de um único factor (FVIII ou FIX), derivado do sangue humano através de um processo de purificação ou fabricado por meio de engenharia genética - o chamado factor recombinante. É preferida a utilização de produtos recombinantes, uma vez que são completamente livres de risco de infecções associadas à transfusão, tais como VIH e hepatite B e C, que, apesar de extremamente raros, não podem ser totalmente eliminados de qualquer produto derivado do sangue, mesmo em países com os mais elevados padrões de segurança da transfusão sanguínea. Os produtos recombinantes são, no entanto, caros e não estão amplamente disponíveis, por isso, os concentrados de factor ou mesmo plasma fresco congelado, ambos obtidos a partir de serviços de transfusão sanguínea, são utilizados para o tratamento na maioria dos produtos. A quantidade de factor que tem de ser administrada depende da gravidade da hemorragia. Para as hemorragias espontâneas, um nível de 30 - 50% é normalmente adequado, mas para um trauma mais grave ou cirurgia é necessário um nível de 100%. Logo que a hemorragia tenha parado, os níveis de FVIII devem ser mantidos a cerca de 50% até à ocorrência da cura. b) Medidas gerais Tal como no caso de não hemofílicos, as medidas padrão de compressão externa no local da hemorragia, descanso e elevação são aplicadas para minimizar a extensão da hemorragia. c) Medidas preventivas Os doentes com hemofilia são aconselhados a não tomarem aspirina ou fármacos anti-inflamatórios não esteróides para o alívio da dor. Estes fármacos podem agravar a hemorragia, afectando a função plaquetária. As injecções intramusculares também devem ser evitadas, uma vez que podem precipitar a hemorragia. d) Terapêutica profiláctica de substituição do factor De forma ideal, os hemofílicos devem receber regularmente substituição do factor para evitar a hemorragia em vez de ser administrado depois de a hemorragia já ter ocorrido. Ficou provado que tal é altamente eficaz na prevenção de complicações a longo prazo, mas é exorbitantemente dispendioso e, por isso, é um objectivo inatingível para a vasta maioria dos doentes hemofílicos, mesmo nos países do primeiro mundo. Qual é o papel do laboratório no tratamento da hemofilia? O ensaio de FVIII não só é essencial para a confirmação do diagnóstico, como também é um componente essencial do tratamento contínuo da hemofilia. Conforme anteriormente mencionado, a infusão de concentrado de factor é a base do tratamento, mas os níveis têm de alcançar um determinado nível mínimo para que a hemostase seja efectivamente restaurada. É por isso vital que os níveis de factor sejam verificados em intervalos de tempo específicos depois da administração do factor. Existem algoritmos que ajudam na determinação de quantas unidades de FVIII têm de ser perfundidas. A fórmula utiliza o nível de FVIII inicial, assim como o peso corporal. Esta é utilizada para determinar a dose inicial, mas a resposta ao tratamento tem de ser confirmada através da repetição do ensaio do factor pós-perfusão. Se a recuperação do nível do factor for baixa, deve ser administrada uma dose de carga, especialmente se ainda existirem sinais clínicos de hemorragia. Se os doentes não responderem conforme o previsto ou necessitarem de doses cada vez mais elevadas para controlar a hemorragia, comparativamente com antes, deve ser explorada a possibilidade de se terem desenvolvido inibidores. 5/6 50 75 100 25 Uma das complicações mais graves resultantes do tratamento da hemofilia é o desenvolvimento de anticorpos (inibidores) contra o FVIII perfundido. Isto tende a ocorrer apenas em doentes com hemofilia grave como no caso da existência de menos de 1% ou mesmo ausência total de FVIII. Como o doente possui virtualmente nenhum FVIII endógeno, todo o FVIII exógeno perfundido é considerado pelo corpo como uma substância estranha contra a qual são produzidos anticorpos. Estes anticorpos são referidos como inibidores, uma vez que se ligam ao factor perfundido e evitam que este participe na cascata de coagulação. Isto significa que são necessárias maiores quantidades de factor perfundido para sustentar a coagulação. Isto ocorre em, aproximadamente, 5 a 10% dos doentes com hemofilia A grave e 2% a 4% em doentes com hemofilia B grave. 0 O que são inibidores? Actividade residual do factor VIII (%) SEED-África Boletim Informativo | No 8 | 2011 Melhoramento e Desenvolvimento Educacional da Sysmex 0 0.5 1.0 1.5 2.0 1.1µ Actividade do inibidor (unidades Bethesda) Figura 3 O factor VIII residual mais próximo de 50% é utilizado para ler a actividade do inibidor no gráfico. Neste exemplo o nível de factor VIII residual foi de 45%. Como se testam os inibidores em laboratório? Os inibidores do FVIII tendem a ser dependentes do tempo, por isso, quando uma mistura de plasma normal e plasma de doente contendo um inibidor é incubada, o inibidor neutraliza gradualmente o FVIII ao longo do tempo. Se a actividade do FVIII no plasma normal e o tempo de incubação forem conhecidos, a potência do inibidor pode ser determinada. Os ensaios de FVIII são realizados num conjunto de amostras de plasma de doentes que foram diluídas em série com plasma normal com uma quantidade conhecida de FVIII. O valor de diluição da amostra que cria um nível residual de FVIII que seja o mais aproximado a 50% é utilizado para calcular a quantidade de inibidor presente, comunicado em unidades Bethesda. Uma unidade Bethesda é a quantidade de inibidor que pode inactivar 50% de 1 unidade de FVIII numa reserva de plasma normal após 120 minutos de incubação a 37 °C. A actividade do inibidor é, então, lida no gráfico utilizando o valor residual de FVIII (ver figura 3). As unidades Bethesda finais são calculadas através da multiplicação da actividade do inibidor pelo factor de diluição dos resultados. Todos os valores superiores a 80% de FVIII residual são considerados negativos para inibidores. Como é o tratamento afectado pela presença de inibidores? Por regra, um doente com uma unidade Bethesda de inibidor necessita do dobro da quantidade normal de factor do que seria necessário se o doente não tivesse um inibidor. À medida que os níveis de inibidores aumentam, os concentrados de factor tornamse progressivamente ineficazes no controlo dos episódios hemorrágicos. Quando isso acontece, são necessários produtos alternativos, tais como factor VIIa recombinante, que actua directamente no factor X, ultrapassando a necessidade de FVIII (ver diagrama da cascata de coagulação no folheto informativo SEED #1). Este produto é proibitivamente dispendioso e não está amplamente disponível, pelo que a única alternativa para a maioria dos doentes é utilizar quantidades maciças de concentrados de factor enquanto se visa simultaneamente a produção de inibidor utilizando tratamentos baseados no sistema imunitário e, ocasionalmente, quimioterapia. SEED-África Boletim Informativo | No 8 | 2011 Melhoramento e Desenvolvimento Educacional da Sysmex Mensagem final A hemofilia pode ser relativamente pouco frequente em termos de número de doentes infectados. No entanto, como estes doentes tendem a ter acontecimentos hemorrágicos frequentes ao longo das suas vidas, associados à necessidade de testar amostras de sangue no prazo de 2 horas após a colheita para que os níveis de FVIII sejam precisos, existe uma necessidade significativa de ensaios de FVIII e FIX. A disponibilidade generalizada de serviços laboratoriais fiáveis que possam realizar testes de FVIII e FIX é, assim, um componente essencial para qualquer programa de tratamento da hemofilia, mesmo em países com falta de recursos. Compilado por Sylvia Mothabeng Sysmex South Africa (Pty) Ltd. Fernridge Office Park – Block 2, 5 Hunter Avenue, Ferndale, Randburg 2194 · Phone +27 11 329 9480 · Fax +27 11 789 9276 · [email protected] · www.sysmex.co.za 6/6