A AUTORIA DE SITUAÇÕES PROBLEMAS EM UM
CENTRO DE SOCIOEDUCAÇÃO, UM DESLIZAMENTO DE
SENTIDOS ENTRE AS MATEMÁTICAS E A MATEMÁTICA
CURRICULAR
Lucilene Lusia Adorno de Oliveira
UEM/SEED
[email protected]
Clélia Maria Ignatius Nogueira
UEM
[email protected]
Resumo:
O presente trabalho retrata parte de uma pesquisa de doutorado desenvolvida em um Centro de
Socioeducação, no qual uma das pesquisadoras trabalha como professora de matemática.
Elegemos por objetivo, deste artigo, buscar compreender entre as palavras do adolescente sobre
seu entendimento das Matemáticas e a matemática curricular, ensinada nas escolas como
disciplina essencial, aquilo que produz sentido, que baliza a produção de conhecimento. Para
isso, utilizamos a Análise de Discurso Materialista, lançando um olhar sobre a produção de suas
“histórias de vida”, as quais são marcadas por contradições que são do dizer, que são da
ideologia. Trazemos também Chevallard a fim de pensar essa relação institucional, que o autor
chama de transposição didática entre o conhecimento produzido cientificamente e o
conhecimento escolar.
Palavras-chave: Educação Matemática. Análise de Discurso. Socioeducação. Autoria de
Situações Problemas.
Introdução
Percorrer os caminhos da educação por mais de trinta anos, como professora de
matemática, nos fez conhecer muitas coisas novas e também seguir por uma busca que,
às vezes, pareceu-nos um tanto insípida, não porque deixássemos de encontrar grandes
motivos para continuar, mas porque aqueles que detêm o poder dos temperos, muitas
vezes os sonegam e fazem com que caminhemos, tentando encontrar novamente um
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bom aroma e, consequentemente, sentirmos o gosto daquilo que nos move: ensinar e
aprender.
Ao iniciarmos uma vida no magistério, dando aulas de matemática, dificilmente
suporíamos todas as dificuldades encontradas pelo caminho. Quando se é mais novo e
se têm muitos sonhos, vontade de mudar o rumo da história e, principalmente, provar a
todos que é possível aprender essa disciplina sem grandes sustos ou mistérios se quer,
quem sabe, provar sua própria capacidade e fazer com que os outros vejam o mundo
pelas lentes que você próprio usa. Passadas três décadas, os sonhos continuam, a
vontade de mostrar que a matemática pode ser encarada como algo que pode
simplesmente ser aprendido, independente da pessoa ter nascido gênio, também.
Contudo, tivemos uma grande mudança. Se até a pouco mais de três anos, o trabalho era
dedicado a crianças, adolescentes e jovens de escolas de periferia, expostos a riscos sim,
mas que podíamos lidar com esses riscos e atuar juntamente com as famílias,
comunidade, etc. agora, ficamos com aqueles que passaram por toda sorte de exclusão e
chegaram à internação, na Socioeducação.
Não é fácil chegar para dar aulas a um adolescente que não tem sonhos, muito
pelo contrário, tem desespero, vontade de sair do lugar no qual se encontra; está
passando por muitas situações vexatórias, encaradas, pelos que trabalham na
Socioeducação, como pequenos corretivos para que esse menino se endireite na vida e
tenha alguma chance lá fora. Entrar em uma sala de aula e perceber que, nos olhos
daqueles que estão ali, em sua frente, de certa forma, há o momento da mentira (para si
mesmo), muitas vezes, querendo se impor perante o restante do grupo, pagar de
bandido, como eles mesmos dizem e, outras vezes, presenciar o choro, a revolta, a
indignação, um quase querer abandonar a própria vida.
Encontramos nos depoimentos dos adolescentes histórias repletas de
sentimentos, muitas vezes demonstradas com palavras um tanto amargas, outras de
esperança, algumas de descrença, mas todas, sem exceção, marcadas por alguma(s)
perda(s), pela força e visivelmente pela marginalidade. Não que essa marginalidade
venha alcançar-nos como nas histórias de cinema, nas quais figuram o “polícia-ladrão”,
mas nessa realidade exposta, daqueles que estão à margem e a vida grita, pede socorro.
Não há como deixar de nos envolver com as histórias desses adolescentes, os quais
poderiam ser qualquer adolescente que conhecemos, com suas angústias, seus medos,
seus fantasmas, seus sonhos. Uma diferença é fundamental, o adolescente que cumpre
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medida socioeducativa de internação passou por várias situações de não pertencimento,
em diversas instituições como a família, a escola, a igreja e encontrou o seu
pertencimento em outros grupos, como por exemplo, com os traficantes e, com eles, a
“facilidade” de ganhar dinheiro e ter aquilo que eles mesmos chamam de “poder” e,
desta forma, chegarem à delinquência. Orlandi (2010a) utiliza o termo delinquência,
associando-o a “laço desfeito” (de-linquo), fazendo referência aos laços sociais, ao
modo como os sujeitos se subjetivam, individualizam-se. Os laços desfeitos do
adolescente em questão podem ser entendidos como um sujeito afetado pelo Estado, o
qual não consegue se identificar mesmo que esse sujeito apresente um sentido já
significado de algum lugar.
O presente trabalho retrata parte de uma pesquisa de doutorado desenvolvida em
um Centro de Socioeducação, no qual uma das pesquisadoras trabalha como professora
de matemática. Elegemos por objetivo, deste artigo, buscar compreender entre as
palavras do adolescente sobre seu entendimento das Matemáticas1 e a matemática2
curricular, ensinada nas escolas como disciplina essencial, aquilo que produz sentido,
que baliza a produção de conhecimento. Para isso, utilizamos a Análise de Discurso
Materialista, lançando um olhar sobre a produção de suas “histórias de vida”, as quais
são marcadas por contradições que são do dizer, que são da ideologia. Trazemos
também Chevallard a fim de pensar essa relação institucional, que o autor chama de
transposição didática entre o conhecimento produzido cientificamente e o conhecimento
escolar.
Os adolescentes em conflito com a lei, segundo os adolescentes em conflito com a
lei: um entrecruzamento de sentidos
Ao tomarmos os termos: “adolescente em conflito com a lei”; “menor infrator”;
“educação”, funcionando em textos – Leis, as quais vigoram no Brasil, desde o início do
século XX até os tempos atuais, que trazem uma formalização jurídica, podemos fazer
1
Assumimos o termo Matemáticas em nosso trabalho por entendermos que esta denominação traduz
melhor o entorno do qual estamos falando. Segundo Chevallard (2001), D'Ambrósio (2003), D'Ambrósio
(2001), o termo Matemáticas é assumido por aqueles que voltam suas pesquisas para compreensão das
diferentes maneiras nas quais os grupos humanos a utilizam. Na Educação Matemática, o termo é
habitualmente utilizado, especialmente na Didática Francesa.
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Matemática como conteúdo curricular.
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um trajeto pela discursividade e pensar sobre o que essas leis significam no mundo
daqueles que delas dependem: os adolescentes em conflito com a lei. Como afirma Suzy
Lagazzi (2010, p.75) [...] “a instância jurídica, uma das ordens de sentidos que
constituem a memória do dizer de nossa sociedade é configurada pela relação entre
direitos e deveres logicamente estabilizados”. Essa estabilização se dá na forma de leis
que são estudadas e aplicadas de acordo com a necessidade do Estado, entretanto, se a
necessidade é a do Estado, nem sempre é a do sujeito.
Para iniciar a conversa com nosso sujeito de pesquisa e dar significado a sua
versão sobre o que é a Socioeducação, a sua própria vida e as Matemáticas, iniciamos
nossa investigação com a aplicação de um questionário. Nele, além de alguns dados
pessoais, série e ano em que o adolescente parou de estudar, perguntamos sobre o que se
pensa da disciplina de matemática; sobre a sua participação nas aulas, na (s) escola(s)
que estudaram; no que ele utiliza a matemática; sobre o que ele gostaria de fazer quando
saísse do CENSE; e, sobre o que ele percebeu (aprendeu) depois que chegou na
Unidade. Pedimos também, ao adolescente, que escrevesse um pouco da sua história de
vida, a fim de que pudéssemos confrontar seus dizeres com alguns enunciados da lei.
A socioeducação faz parte de uma realidade na qual vivemos: o capitalismo.
Kashiura Junior (2009, p.29) mostra uma “outra” realidade, para além da aparência, mas
que é necessário que a compreendamos “[...] a igualdade jurídica não é simples ilusão
que encobre a desigualdade real dos homens – há, na própria “ilusão” da igualdade, algo
de essencial à “realidade” da desigualdade”. A fim de instalar uma igualdade jurídica
para as crianças e adolescentes foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
em 1990.
O ECA não chegou de repente e tão pouco foi escrito em uma única mão. A
história mostra que no período compreendido entre o final do século XVI e início do
século XVIII havia uma total ausência do poder governamental, no atendimento à
infância, no qual se apontava o tratamento ao adolescente, similar ao do ser adulto
(MOCELIN, 2007). Segundo a autora, baseada em Trindade (1999), durante o período
colonial, o abandono foi estimulado pela “Roda dos expostos3”.
As crianças
3
O nome roda se refere a um artefato de madeira fixado ao muro ou janela do hospital, no qual era
depositada a criança, sendo que ao girar o artefato a criança era conduzida para dentro das dependências
do mesmo, sem que a identidade de quem ali colocasse o bebê fosse revelada. A roda dos expostos, que
teve origem na Itália durante a Idade Média, aparece a partir do trabalho de uma Irmandade de Caridade e
da preocupação com o grande número de bebês encontrados mortos. Tal Irmandade organizou em um
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abandonadas eram denominadas “expostas” e “enjeitadas”, sendo que mais tarde
passam a ser chamadas por abandonadas, rejeitadas e recolhidas, confundindo-as com
órfãos.
Num excerto da história de vida de S-14, adolescente de 14 anos, não aparece a
roda dos expostos, mas um outro tipo de abandono que nos leva a pensar sobre o meio
no qual essas crianças estão crescendo. E ainda, se há coerência entre o que está
garantido na lei e como os fatos se dão nas ruas das cidades, entre o real da lei e o real
da história. “Quando eu tia 4 ano eu fu mora quão meu pai e ele não tia condisão de
cuda de min e me batia um e eu fugi para casa da minha mãe que vora em arapongas e
o conselho tutela me pego em mariava5 e levou e em arapongas porque fale que morava
la e mia mãe não quis e mando leva eu devota pá meu pai ai meu pai mado eu i pa casa
da minha vó”.
O ECA foi elaborado, baseado no artigo 2276 da Constituição Federal e,
aprovado por unanimidade, em 1990. Nele se encontra a regulamentação para os
adolescentes que infringiram a lei e são chamados legalmente de Adolescentes
Infratores e, nesta categoria, aqueles que cumprem medida socioeducativa, em última
instância, a internação em estabelecimento socioeducativo. Um adolescente é
caracterizado, pelo ECA, como pessoa entre 12 e 18 anos de idade. Este é passível de
cometer o ato infracional, entendido como a transgressão das normas estabelecidas, do
dever jurídico, que em face das peculiaridades que o cerca, não pode ser caracterizado
como crime. No caso dos adolescentes em conflito com a lei, dependendo do ato
hospital em Roma um sistema de proteção à criança exposta ou abandonada. As primeiras iniciativas de
atendimento à criança abandonada no Brasil se deram, seguindo a tradição portuguesa, instalando-se a
roda dos expostos nas Santas Casas de Misericórdia. Em princípio três: Salvador (1726), Rio de Janeiro
(1738), Recife (1789) e ainda em São Paulo (1825), já no início do império. Outras rodas menores foram
surgindo em outras cidades após este período. (Verbete elaborado por Jussara Galindo)
http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_roda_dos_expostos.htm (Acesso em
20/03/2014)
4
Denominamos nossos sujeitos de pesquisa por S-1; S-2;etc. Optamos por escrever as suas falas tal qual
eles escreveram, sem nenhum tipo de correção ou interferência.
5
Esse adolescente morava com o pai, na época, em Sarandi. O conselho tutelar o pegou próximo a
Marialva. A distância entre os dois locais é de aproximadamente 10 km.
6
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
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infracional cometido e do número de reincidências, eles podem ser julgados e, se
condenados, cumprir pena em regime de internação, por até três anos, mesmo que
completem a idade de 18 anos, durante o período de cumprimento dessa pena.
Conforme verificamos no art. 121 do ECA (1990) [...] “a internação constitui medida
privativa da liberdade, sujeita a princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à
condição peculiar da pessoa em desenvolvimento”. E ainda, segundo o art. 123,
parágrafo único, [...] “durante o período de internação, inclusive provisória, serão
obrigatórias atividades pedagógicas”.
Desde o início de 2012 foi instituída uma nova lei que regulamenta, parte do
ECA, tratando dos adolescentes infratores: o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo – SINASE (lei 12594/12). Essa lei prevê a “padronização” do
atendimento do adolescente em conflito com a lei, por meio de um conjunto de
princípios, regras e ações judiciais, políticas, pedagógicas, financeiras e administrativas,
que envolvem desde a investigação do ato infracional até a execução da medida
socioeducativa. O SINASE altera a Lei 8.089, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da
Criança e do Adolescente) e algumas outras anteriores que propunham mudanças para o
trabalho com a Socioeducação. O SINASE preconiza o desenvolvimento de uma ação
socioeducativa sustentada nos princípios dos direitos humanos.
Os planos e
atendimento socioeducativo deverão, obrigatoriamente, prever ações articuladas nas
áreas de educação, saúde, assistência social, cultura, capacitação para o trabalho e
esporte, para os adolescentes atendidos, em conformidade com os princípios elencados
na Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 (ECA). Os adolescentes têm o direito de serem
atendidos por profissionais com condições de articular essas ações.
No estado do Paraná, esses adolescentes são internados nas Unidades CENSE e
matriculados no Sistema de Educação de Jovens e Adultos (EJA), com atendimento em
turmas de cinco alunos em média, de acordo com a Casa7 em que vivem dentro da
Unidade. Esses adolescentes fazem parte de um universo maior de adolescentes
7
No CENSE-Maringá há 8 casas. Cada uma, com dez alojamentos individuais e uma "sala" comum.
Nesta sala há duas mesas e bancos de concreto, cinza, sem cor. Existe ainda uma pia (de cozinha), um
tanque, uma estante de concreto, um aparelho de TV. Os alojamentos individuais possuem um biombo de
concreto em forma de semi círculo com um vaso sanitário (de inox) um lavatório e uma ducha. O acesso
à água é feito por botões de pressão. No alojamento ainda há uma cama e uma escrivaninha (de
concreto), a cama é servida por um colchão. Os alojamentos são fechados com portas de aço e cadeados.
Quando os adolescentes não estão em atividades no prédio escola, eles ficam fechados em seus
alojamentos.
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brasileiros, mas que por não encontrarem-se de acordo com as regras impostas pelo
meio social são chamados de delinquentes. Orlandi (2009), ao realizar um estudo sobre
a delinquência, incluindo os meninos do tráfico, diz: “este sujeito se debate em uma
falta de sentidos que vêm do fato de que o Estado falha como lugar de articulação
simbólica” (ORLANDI, 2009, p.23).
As Matemáticas estão presentes na matemática curricular
A fim de entendermos um pouco mais sobre o início da educação formal como
conhecemos hoje, e dentro dela, sabermos a apresentação da matemática escolar,
buscamos um aporte teórico, o qual nos fizesse encontrar um fio condutor para
discutirmos sua importância.
Encontramos no estudo de Gomes (2008), que até o final do século XVIII, a
instrução primária estava sob a responsabilidade da Igreja Católica que ensinava leitura,
escrita e aritmética. Esta última só era introduzida às pessoas que já sabiam ler,
ensinando-se operações elementares. Segundo a autora, no Século das Luzes, Voltaire e
La Chalotais citavam exemplos, em seus estudos, sobre a oposição de alguns
obscurantistas, à expansão da educação nas camadas populares. A Companhia de Jesus
tinha um interesse maior no ensino secundário, não se importando com o ensino
primário, porque, segundo Compayre (1911, p.903 apud GOMES, 2008, p.36), para
eles, “[...] tudo se subordina à fé, e a fé do povo não tem melhor salvaguarda do que sua
ignorância”. Após o ensino da Companhia de Jesus ser proibido, em 1762, foram
criadas administrações para gerir os colégios, mas alguns foram fechados. Tendo como
pano de fundo este cenário, Gomes (2008) apresenta quatro pensadores iluministas:
Diderot, D‟Alembert, Condillac e Condorcet, os quais expressavam reivindicações de
reformas de uma sociedade, na França do século XVIII, defendendo a escola gerida pelo
Estado e fundamentada no predomínio do conhecimento científico.
Naquele século, a imperatriz, Catarina II, encomendou à Diderot, em 1775, um
plano de instrução pública para a Rússia. Ao apresentar sua proposta, Diderot o fez
colocando inicialmente, para o que ele denominava “primeira classe” (ensino oferecido
após o primário), a aritmética, a álgebra, o cálculo de probabilidades e a geometria,
antes mesmo das línguas, da literatura, da física, da religião e da história. E justifica:
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Eu começo o ensino pela aritmética, pela álgebra e pela geometria,
porque em todas as condições de vida, desde a mais elevada até a
última das artes mecânicas, se tem necessidade desses conhecimentos.
Tudo se conta, tudo se mede. O exercício de nossa razão se reduz
frequentemente a uma regra de três. Não há objetos mais gerais do
que o número e o espaço (DIDEROT, 1875, t III, p.452 apud
GOMES, 2008, pp 45-46).
O Século das Luzes foi um marco para os currículos das escolas públicas, que
desde então foi difundido para o restante do mundo letrado. Para Condorcet, o século
XVIII foi a época na qual as luzes se propagaram,“[...] se o que caracteriza as luzes são
as ideias claras, o modelo das ideias claras e precisas encontra-se nas matemáticas e nas
ciências que delas se aproximam” (GOMES, 2008, p.233). Desde então, vemos a
matemática ocupando um lugar de destaque nos currículos.
Atualmente, na elaboração dos currículos, para que um determinado saber
científico possa ser considerado como saber a ensinar ou saber escolar, ele passa por um
controle social de aprendizagens nas instituições intermediárias (parâmetros
curriculares, diretrizes curriculares, programas de currículos, livros, etc.).
Esses
controles são elaborados por especialistas em políticas públicas e educacionais, os quais
fazem parte da noosfera8. Esse termo é utilizado por Chevallard, pesquisador da
Educação Matemática contemporâneo, da Didática Francesa. O autor discute como um
indivíduo é sujeitado a determinadas instituições e, segundo ele, na noosfera estão
localizadas as diversas instâncias nas quais são determinados, por exemplo, o currículo
escolar. Essa discussão Chevallard faz baseando sua pesquisa na antropologia.
Por outro lado, temos Althusser (1980) que teoriza sobre as condições de
produção associadas à formação social, pelo viés do materialismo histórico. Segundo o
autor, para manter uma sociedade em funcionamento é necessário reproduzir e os
aparelhos de Estado servem para isso: o Aparelho Repressivo de Estado (ARE) e o
Aparelho Ideológico de Estado (AIE). Antes da Revolução Francesa, o AIE nº 1 era a
Igreja e foi justamente para atacar esse AIE que a burguesia capitalista assumiu a
Escola, a qual, por sua vez, assumiu a posição dominante nas formações capitalistas na
luta contra o antigo AIE (igreja). Althusser (1980) afirma que os sujeitos se constituem
8
Esfera daqueles que pensam os conteúdos de ensino, agrupando tanto os universitários que se
interessam pelos programas de ensino, como os autores de manuais, os inspectores, as associações de
especialistas, os grupos de inovadores e, hoje... dos didácticos! (ASTOLFI,2002)
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por suas sujeições e enuncia sua Tese Central: a ideologia interpela os indivíduos
enquanto sujeitos.
Assumimos em nosso trabalho a ideologia como enunciada por Althusser
(1980): o indivíduo é interpelado por ela e transforma-se em sujeito. Na escola, que é
um AIE com peso para difundir as ideias do Estado sobre o capitalismo, o saber escolar
chega em forma de programa curricular e é resultado da transformação do saber
científico. Para Chevallard (1996), a transposição didática, teoria difundida pelo autor,
serve a essa transformação. A transposição didática foi desenvolvida para unificar um
grande número de fenômenos didáticos, assenta-se em três temas primitivos: os objetos,
as pessoas, as instituições. No início de sua teorização, o autor limitava-se a distinguir
objetos “matemáticos”. Mais tarde, ele propôs uma teorização em qualquer objeto o
que ele chama de “alargamento do quadro”: o objeto “escola”; o objeto “professor”; o
objeto “aprender”, o objeto “saber”, e outros. O autor afirma que “[...] um objeto existe
se for conhecido por pelo menos uma pessoa ou uma instituição (poderá mesmo existir
apenas – o que constitui um caso limite – para essa pessoa ou essa instituição). Um
objeto só existe porque é objeto do conhecimento” (CHEVALLARD, 1996, p.128).
Como instituição, o autor nomeia uma escola; uma sala de aula; um curso; a
família, até mesmo a vida cotidiana (num dado meio social), e os objetos articulam-se
nas instituições. Para que um objeto se torne institucional, é necessário que a instituição
defina sua relação (institucional) com o objeto. Nesse momento, ele introduz a noção
primitiva de sujeito. Para que uma pessoa torne-se sujeito de uma instituição, é preciso
que ela se sujeite a essa instituição.
Uma pessoa X está sujeita a uma série de instituições. Introduzo aqui
o axioma segundo o qual uma pessoa não é, na realidade, mais do que
a emergência de um complexo de sujeições institucionais. Aquilo a
que se chama “liberdade” da pessoa surge então como o efeito obtido
em consequência de uma ou de várias sujeições institucionais contra
outras (CHEVALLARD, 1996, p. 132).
O autor nos apresenta então, a noção de instituição didática, a qual ele diz
conduzir-nos para uma diferenciação “[...] no sentido da antropologia cognitiva, de uma
antropologia didática do conhecimento, a que chamarei igualmente didática do
conhecimento, ou ainda didática cognitiva” (CHEVALLARD, 1996, p.133).
Para modelizar a realização da intenção didática, manifestada na instituição, o
pesquisador introduz o termo “sistemas didáticos”, os quais podem acontecer, por
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exemplo, na instituição família. A condição de um sistema didático ser constituído é
que ele tenha pelo menos três termos: professor, aluno e um ou vários investimentos
didáticos e, ainda, para que um sistema didático funcione é necessário que se estabeleça
um contrato didático, além do meio do sujeito e por trás dele, aparece outro sistema, que
o autor denomina: sistema de ensino, que por sua vez faz parte da noosfera.
Essas intenções didáticas, quando inseridas nos currículos, produzem diferentes
práticas que vão, por sua vez, produzindo diferentes relações com o conhecimento
matemático. Pela visão do autor, “a instrução „formal‟, a da Escola, proporciona a nós
um mínimo, ou melhor, uma base, um fundamento. Muitas vezes, as outras
competências que adquirimos são fruto de uma instrução „informal‟, dada por diferentes
circunstâncias da vida” (CHEVALLARD et all, 2001, p.35).
Pensando nas possíveis ligações entre a matemática curricular (instrução formal)
e as Matemáticas (instrução informal), buscamos saber dos adolescentes, por meio de
um questionário aplicado no primeiro dia de aula, primeiramente sobre o que ele pensa
sobre a disciplina de matemática.
O adolescente S-2, que tem 17 anos e parou de estudar no 9º ano, em 2010,
respondeu: “Uma disciplina boa mais muito difícil”. Esses dizeres incluem os nãoditos, durante uma vida escolar repleta de manifestações, tratando a matemática como
algo quase inacessível a pessoas que a dominam, como gênios. Essa busca da
explicação, sobre a dificuldade na aprendizagem da matemática escolar, ocupa muitos
estudiosos, como no estudo de Dienes (1964) sobre „o poder do simbolismo
matemático‟ no qual trata sobre a familiarização das crianças com a linguagem
matemática. O autor fala sobre a inacessibilidade da matemática: “ [...] desenvolveu-se
uma perigosa brecha entre aqueles „que conhecem‟ e os próprios homens para cujos
eventuais benefícios o desenvolvimento matemático está sendo descoberto” (DIENES,
1964, p.131). Segundo Chevallard et all (2001, p.136) para fazer com que se reflita
mais significativamente “[...] sobre as dificuldades matemáticas dos alunos, é necessário
(embora, com certeza, não suficiente) modificar aqueles aspectos da matemática escolar
que “escondem” dos alunos a verdadeira disciplina matemática”. E D‟Ambrósio (1996,
p.31) complementa “[...] do ponto de vista de motivação contextualizada, a matemática
que se ensina nas escolas é morta. Poderia ser tratada como um fato histórico”.
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Consideramos as Matemáticas como a instrução informal, conforme pensado por
Chevallard et all (2001), e partimos dela para trabalhar com situações problemas
elaboradas pelos adolescentes que cumprem medida de internação no CENSE-Maringá.
O deslizamento de sentidos na produção de situações problemas
Pensar nos sentidos que constituem o sujeito da socioeducação e, imbricados
neles, os sentidos produzidos pelos conceitos matemáticos, em seu ensino, nos fez
buscar, nessa compreensão, a ligação às condições de produção a qual se inscreve o
sujeito da socioeducação. O sujeito não é unilateral, os sentidos que produz em aulas de
matemática são interfaces de sua constituição. Entender como esse processo de
aprendizagem ocorre é considerar os sentidos que ele produz sobre si, sobre os outros,
sobre o ensino como um todo e sobre a matemática.
Num ambiente escolar, temos a matemática sujeita a possibilidades de diálogo
entre professor e aluno. Este diálogo, dado em um Centro de Socioeducação, produz
novos sentidos que podem ajudar os alunos a entender seus estranhamentos em relação
à disciplina e reconstruir conceitos matemáticos. As conjecturas podem ser levantadas
de suas próprias histórias de vida, propiciando a desconstrução do dizer: a matemática é
difícil. Segundo Charnay (1996, p.38) “[...] o aluno deve ser capaz não só de repetir ou
refazer, mas também de ressignificar em situações novas, de adaptar, de transferir seus
conhecimentos para resolver novos problemas”.
Trabalhando com a elaboração de situações problemas, S-2 enunciou o seguinte:
“Fui numa loja de roupa comprei 5 shorts: cada shorts tinha o preço de 154,90 cada,
com um desconto de 10% aproveitei o desconto comprei também 3 camiseta com o
valor de 125,90 e 3 pares de tênis com o preço de 547,50 cada quantos paguei em
tudo?”
O aluno conseguiu fazer todos os cálculos relativos à compra, contudo, ao
chegar nos cálculos referentes à porcentagem pediu ajuda. Depois de uma rápida
explicação, ele concluiu os cálculos assertivamente.
Questionado pela professora sobre os preços das roupas e dos tênis que havia
comprado, o aluno respondeu que não se preocupa com o custo de cada peça, o
importante é gostar das roupas e calçados e verificar se pertencem a uma marca famosa.
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Sobre isso, Baronas (2003, p.89) diz: “o que a mídia vende nos seus mais diversos
suportes não é um produto, mas a possibilidade de um acesso na forma de fantasia”.
Essas fantasias, para os adolescentes em conflito com a lei, têm um funcionamento entre
aquilo que pode ser comprado e o como conseguir comprar. Se o acesso, considerado
normal, para se comprar um determinado produto, é a troca por dinheiro e esse dinheiro
é conseguido pelo trabalho, isso dá a ilusão, ao sujeito, de igualdade. No caso de
S-2, comprar aquilo que ele quer significa ter o “poder” de decisão.
Para trabalhar com a autoria de situações problemas, pensamos na possibilidade
da abstração de relações matemáticas, não como conhecimento em uma sequência
curricular, mas como produção do sujeito, como aquilo que faz sentido a ele. Os
cálculos necessários para a resolução de uma situação problema, em um ambiente em
que temos alunos que estão em séries diferentes (sala multiseriada), são realizados mais
facilmente. Esta “mistura” favorece a aprendizagem, pois, alunos que estavam no 6º ano
podem estar juntos com adolescentes que cursavam 7º, 8º, 9º ano ou Ensino Médio. Eles
se interessam em aprender conteúdos que estariam mais à frente de uma lista de
conteúdos curriculares, dispostos nas atuais diretrizes.
Por sua vez, S-3, adolescente de 17 anos, aluno do 6º ano, enunciou: “Uma vez
fui fazer um assalto em um correio, entrou eu e meu parcero para dentro pegar um
malote nós estávamos em uma moto alienada, tinha mais dois parcero pro lado de fora
do correio eles estavam num uno preto, pegamos o malote e na fuga caímos da moto a
moto era uma 125 no valor de 1500,00 ela foi abandonada saímos correndo e entremos
no uno e fomo embora, dentro do malote tinha 31100,00 nós tínhamos que tirar 1500
para pagar a moto e o resto tínhamos que dividir em 4 pessoas. Quantos reais deu para
cada?” Os cálculos foram realizados assertivamente. Essa situação, se lida por uma
pessoa fora do contexto da socioeducação, pode parecer inusitada, mas para S-3 quando
a descreve, procurando nela as relações matemáticas, fica demonstrado o domínio com
as operações básicas.
Podemos também visualizar, na situação, uma lei em
funcionamento, não como as leis jurídicas conhecidas por nós, mas uma lei própria: [...]
nós tínhamos que tirar 1500 para pagar a moto. Este mesmo adolescente na época em
que escreveu a sua história de vida contou que entre os dez e onze anos de idade era
vendedor de picolé, em Santa Terezinha de Itaipu, trabalhava após o almoço e
conseguia ganhar mais do que seu padrasto, que na época era pedreiro. Em uma das
perguntas, do questionário aplicado na primeira aula, sobre sua participação nas aulas de
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matemática ele respondeu que não gostava de estudar. Para S-3 os sentidos produzidos
pela matemática curricular não produzem os mesmos efeitos que os sentidos produzidos
pelas Matemáticas na vida, como se fossem completamente distintos.
Como afirma Lagazzi (1988, p.25), “[...] o sujeito se constitui no interior de uma
formação discursiva, mas ao mesmo tempo constitui uma relação própria com essa
formação discursiva, relação essa permeada pela história desse sujeito”. Segundo a
autora, a história de cada sujeito não preexiste a cada um.
importante para o nosso trabalho.
Vemos aí um ponto
Analisar parte da trajetória do nosso sujeito
adolescente, nas suas histórias de vida e, nas produções de situações problemas, poderá
nos levar a compreender o funcionamento dos conceitos matemáticos que esse sujeito
tem elaborado, por meio da matemática escolar, ao longo de sua trajetória pela escola e
ainda as associações que esse adolescente faz desses conceitos com as Matemáticas
presentes em sua vida.
Segundo Brousseau (1996), vários trabalhos mostram que o ensino tem se
reduzido “à organização da aprendizagem e das aquisições do aluno-indivíduo [...] as
realizações didáticas de diferentes tipos de memória provam que a memória do aluno é
um tema didático muito diferente da memória didática do sujeito cognitivo”
(BROUSSEAU, 1996, pp. 67-68).
No caso dos adolescentes da socioeducação, suas memórias estão repletas de
vivências que podem ser transformadas em saberes e esses podem não estar em uma
sequência de memória com a qual espera o professor. Ou seja, a sequência curricular
proposta pela escola faz com que a aprendizagem seja condicionada em um único
“pacote”, como se todas as cabeças de uma sala de aula, naquele determinado momento,
ligassem um “botão” e programassem o chip “hora de aprender”, fazendo ou não
sentido ao aluno, o conteúdo apresentado.
Considerações Finais
A escola como instituição traz consigo uma historicidade. Dentro dela estão os
alunos para os quais são (re)passados os conhecimentos escolares.
Esses
conhecimentos originam-se nos conhecimentos científicos e são transformados por meio
do que Chevallard chama de transposição didática.
Nossa pesquisa, desenvolvida
dentro de um centro de internação de socioeducação, busca relacionar os conhecimentos
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da matemática curricular com as Matemáticas que os adolescentes internados na
Unidade trazem de suas vidas. Para isso, utilizamos suas histórias de vida e a autoria de
situações problemas. Em nossas primeiras análises pudemos verificar que esses
adolescentes têm a noção de conceitos matemáticos ligados aos currículos, contudo não
entendem suas Matemáticas como fazendo parte de um conhecimento científico. Para
podermos responder algumas inquietações sobre o sujeito de pesquisa: adolescente em
conflito com a lei foi necessário recorrermos à análise de discurso na perspectiva do
materialismo histórico. Encontramos nessa teoria um aporte para discutirmos o sujeito
nas instituições e estas como aparelhos ideológicos de Estado.
Enfim, o sujeito
adolescente em conflito com a lei está na escola, estuda matemática e traz suas
Matemáticas para o contexto escolar. Nos seus discursos de história de vida e mesmo
na elaboração de situações problemas, seus dizeres estão em um funcionamento que
remete às diversas situações de delinquência (de-linquo) – laços desfeitos.
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Lucilene Lusia Adorno de Oliveira