CONSIDERAÇÕES SOBRE AS NOVAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO PATRIMONIAL NO DIREITO BRASILEIRO Márcio Tadeu Guimarães Nunes Professor do programa de educação continuada e especialização em Direito GVLaw (Rio de Janeiro e São Paulo) e do IBMEC-RJ, especialista em Direito Societário pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, advogado no Rio de Janeiro. 1. As garantias tradicionais A pretensão acadêmica do trabalho, bem como o raciocínio que se pretende desenvolver, nos impõe a tarefa de apresentar o esboço histórico e evolutivo das garantias tradicionais no direito brasileiro. 1.1 O penhor Diz o art. 1.431 do Novo Código Civil (“NCC”): Art. 1.431. Constitui-se o penhor pela transferência efetiva da posse que, em garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel, suscetível de alienação. Silvio Rodrigues lembra o ensinamento clássico de Beviláqua1, para quem o penhor, como o direito real, submete uma coisa móvel ou mobilizável ao pagamento de uma dívida. Mais adiante, retoma o autor, o penhor exige a transferência da posse, ou seja, a tradição. A simples promessa de transferência não é suficiente para sua caracterização. Embora essa característica seja criticada por parte da doutrina, a tradição (ainda que ficta ou simbólica) tem um papel importante na constituição deste Direito. Diferentemente dos direitos pessoais, os direitos reais exigem publicidade para se constituírem. No caso do penhor, essa ocorre em dois momentos. No primeiro, o bem é submetido a um registro público e, em seguida, sua posse é transferida ao credor. Assim, a tradição tem o fim de publicizar a relação jurídica subjacente. O penhor é a garantia de um débito. Dessa característica, observamos duas implicações: (i) o penhor tem o condão de garantir um débito e; (ii) o penhor é um negócio jurídico acessório. O inadimplemento do débito permite que o credor tenha o seu crédito satisfeito com o bem dado em garantia. Trata-se de uma proteção especial para o credor. O direito real de garantia, como indica o próprio nome, visa a assegurar a eficácia de outra prestação. Desta forma, o penhor só existe enquanto perdurar o débito. Não havendo mais o que garantir, o penhor será extinto por carência de objeto. O penhor é constituído, em regra, sobre coisas móveis, tendo em vista que, para contemplar as garantias utilizadas a partir de bens imóveis, há outros institutos como, por exemplo, a hipoteca. A alienabilidade é pressuposto para constituição de toda garantia real. Vale dizer, a instituição do gravame não impede a transferência de propriedade do imóvel. O gravame depende de registro próprio, a fim de cientificar os possíveis interessados dos riscos preexistentes. 1 RODRIGUES, Silvio, Direito Civil: Direito das Coisas, vol. 5, 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 349, citando Clóvis Beviláqua, Código Civil, obs. 1 ao art. 768. Além do penhor tradicional, há, em nosso direito, formas especiais e típicas de constituição dessa espécie de garantia. Nesse sentido, citem-se o penhor legal, o industrial, o mercantil, o de veículos, o rural e o de títulos de crédito (caução de títulos de crédito). Devido ao fim a que este trabalho se propõe, trataremos apenas desse último. O penhor de direitos encontra-se previsto nos arts. 1.451 a 1.457 do NCC. O art. 1.451 dispõe: Art. 1.451. Podem ser objeto de penhor direitos, suscetíveis de cessão, sobre coisas móveis. Comentando o artigo supra transcrito, Melhim Namem Chalhub, explica2: O penhor pode ter como objeto bem móvel, imóveis por acessão, direitos e títulos de crédito. Ainda, só podem ser objeto de penhor bens alienáveis, sejam bens corpóreos ou incorpóreos, sendo esses os direitos e créditos representados por títulos. O penhor de direitos recai diretamente sobre o recebível do devedor, permitindo que o credor satisfaça o seu crédito, caso o devedor torne-se inadimplente. Esta é uma inovação, pois trata-se de penhor de direitos passíveis de cessão que recai sobre coisa móvel, como, por exemplo, ações negociadas em bolsa de valores ou no mercado futuro de títulos de crédito em geral. 2 CHALHUB, Melhim Namem. Curso de Direito Civil: Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 233. O art. 1.458 do NCC regula a constituição dessa garantia: Art. 1.458. O penhor, que recai sobre título de crédito, constitui-se mediante instrumento público ou particular ou endosso pignoratício, com a tradição do título ao credor, regendo-se pelas Disposições Gerais deste Título e, no que couber, pela presente Seção. O referido dispositivo não se diferencia muito do penhor tradicional já explicado. Mas, chamamos atenção que esta forma de penhor pode ser constituída por meio de endosso pignoratício, diferentemente das diversas outras espécies de penhor em que a tradição é elemento fundamental, pois, como já afirmado, visa dar publicidade à relação jurídica subjacente. O penhor de títulos de crédito é bem aceito nas relações cotidianas, dada a sua enorme praticidade. Além de ser de fácil transmissibilidade, garante ao credor todas as prerrogativas inerentes ao direito real, como o direito de seqüela. A tradição se realiza com a simples entrega da cártula que materializa o título de crédito. O credor pignoratício é obrigado a guardar, proteger e preservar o título. Como legítimo possuidor, pode, inclusive, lançar mão das ações possessórias para proteger o bem empenhado. Na prática, verifica-se que o credor pignoratício pode vincular os recebíveis do título a uma conta sua, caso o devedor não cumpra a sua obrigação. Trata-se de um meio muito eficiente de garantir que o crédito seja pago, mas, havendo uma quantia excedente depois de já pago o débito, deverá ser restituída ao devedor. 1.2 A hipoteca Diferentemente do penhor, a lei não define a hipoteca, restringindo-se, o art. 1.473, ao elenco de bens e direitos suscetíveis a sua constituição: Art. 1.473. Podem ser objeto de hipoteca: I - os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles; II - o domínio direto; III - o domínio útil; IV - as estradas de ferro; V - os recursos naturais a que se refere o art. 1.230, independentemente do solo onde se acham; VI - os navios; VII - as aeronaves. VIII - o direito de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007) IX - o direito real de uso; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007) X - a propriedade superficiária. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007) § 1o A hipoteca dos navios e das aeronaves reger-se-á pelo disposto em lei especial. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 11.481, de 2007) § 2o Os direitos de garantia instituídos nas hipóteses dos incisos IX e X do caput deste artigo ficam limitados à duração da concessão ou direito de superfície, caso tenham sido transferidos por período determinado. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007) A hipoteca deve assegurar o cumprimento da obrigação e recair, em regra, sobre bens imóveis e, excepcionalmente, por expressa previsão legal (hipoteca especial), sobre outros bens. Nesse mesmo sentido, ensina Silvio Rodrigues3: 3 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Direito das Coisas. v. 5. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 390. A hipoteca é o direito real recainte sobre um imóvel, um navio ou um avião, que, embora não entregues ao credor, o asseguram, preferencialmente, do cumprimento da obrigação. Assim sendo – repito – , não paga a dívida, cabe ao credor o direito de excutir o bem dado em garantia, para com o produto apurado em praça pagar-se, preferencialmente e com a exclusão dos outros credores, que só terão direito às sobras, se houver. O Professor Orlando Gomes4 entende que os bens móveis estão excluídos, em princípio, do direito hipotecário. Admitem-se, no entanto, exceções, como as que existem entre nós, em relação aos navios, aeronaves e linhas férreas. Na hipoteca naval, por exemplo, o gravame deve ser instituído em ofício privativo e o registro deverá ser procedido no porto em que o navio estiver matriculado. Tal modalidade de hipoteca, diga-se ainda, pode incidir até mesmo sobre navios em construção. Da mesma forma, sabe-se que as aeronaves são suscetíveis de hipoteca, uma vez que, analogamente à hipoteca dos navios, deve ser inscrita no Registro Aeronáutico. A hipoteca aérea está prevista no Código Brasileiro de Aeronáutica, que substituiu o Código Brasileiro do Ar. Além da previsão contida em lei especial, a facilidade de individualização possibilita a constituição desses bens móveis por equiparação. Contudo, apesar de móveis, as características do direito real de garantia que sobre eles recai, não se confundem com àquelas atinentes ao penhor. 4 GOMES, Orlando; FACHIN, Luiz Edson (Atual.). Direitos reais. Coordenação Edvaldo Brito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 415. Vale também comentar que a Lei nº 11.481/07 alterou o Código Civil, ampliando as hipóteses em que a hipoteca pode ser instituída. Foram incluídos o direito de uso especial para fins de moradia, o direito real de uso e a propriedade superficiária. Todavia, quando estes dois últimos direitos forem transferidos por período determinado, a hipoteca não poderá perdurar depois do término do prazo estipulado, conforme determina o §2º do art. 1.473 do Código Civil. Mais importante do que a distinção móvel/imóvel, deve-se lembrar que, enquanto no penhor o credor torna-se o possuidor da coisa, na hipoteca a posse da coisa permanece com o devedor. Todavia, como a hipoteca não torna o bem inalienável, não pode o credor hipotecário se opor à alienação5.O bem alienado, contudo, não se desvincula da hipoteca. Caso o devedor hipotecário (antigo proprietário) não pague a dívida, o credor hipotecário pode excutir o bem para satisfazer o seu crédito contra quem o detenha. É igualmente lícito ao devedor constituir outras hipotecas sobre o mesmo imóvel6, prevalecendo as mais antigas sobre aquelas mais recentes. Imaginemos que sobre um mesmo imóvel recaiam duas hipotecas. Em relação ao credor da primeira hipoteca, o credor da segunda hipoteca é um credor quirografário; ou seja, não pode opor a sua hipoteca àquela do credor da primeira, salvo disposição em contrário. Nesse sentido, a lei estabelece uma série de normas que subordinam as hipotecas novas às antigas. Além das disposições específicas a esse respeito existentes no Código 5 Art. 1.475. “É nula a cláusula que proíbe ao proprietário alienar imóvel hipotecado”. 6 Ver art. 1.476 do NCC. Civil, a Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973, “LRP”) estabelece outras vantagens da hipoteca mais antiga frente às mais novas. O devedor hipotecário tem o direito de extinguir a hipoteca, remindo-a, ou seja, pagando o valor devido. Isto é consoante às disposições gerais dos direitos reais de garantia, pois a hipoteca é acessória ao débito. Se o débito foi pago, a hipoteca é extinta. Contudo, caso o devedor permaneça inadimplente, o credor terá o direito de executar o bem hipotecado. O credor hipotecário tem direito de preferência na arrematação do bem. Ou seja, havendo mais de uma hipoteca, prevalecerá o credor hipotecário que tenha constituído o gravame mais antigo, e, caso o primeiro credor não tenha exercido a preferência, esta poderá ser exercida pelo outro credor. Sobre o registro da hipoteca, dispõe o art. 1.492: Art. 1.492. As hipotecas serão registradas no cartório do lugar do imóvel, ou no de cada um deles, se o título se referir a mais de um. De acordo com a legislação em vigor, a fim de conceder publicidade ao ato, a hipoteca deve ser registrada no cartório do lugar do imóvel. Por fim, impõe-se seja analisada a extinção da hipoteca, disciplinada nos arts. 1.499 e 1.500 do NCC: Art. 1.499. A hipoteca extingue-se: I – pela extinção da obrigação principal; II – pelo perecimento da coisa; III – pela resolução da propriedade; IV – pela renúncia do credor; V – pela remição; VI – pela arrematação ou adjudicação. Art. 1.500. Extingue-se ainda a hipoteca com a averbação, no Registro de Imóveis, do cancelamento do registro, à vista da respectiva prova. A primeira hipótese tratada é a mais comum, a hipoteca extingue-se com o perecimento da obrigação principal, independentemente da causa desta extinção. É a aplicação do princípio da acessoriedade das garantias. Extinta a obrigação principal, não poderá subsistir a garantia a ela vinculada. A segunda hipótese consiste no perecimento da coisa. Como sabemos, o direito real vincula a coisa ao credor. É o binômio seqüela-prioridade a que se refere Orlando Gomes. Caso a coisa pereça, este elo desaparecerá. . O fundamento da terceira hipótese é o mesmo acima citado. Se o devedor perde a propriedade, sem tê-la alienado, o vínculo real que liga o credor ao bem fica comprometido e a garantia se extingue. A quarta hipótese é a mais simples: a hipoteca se extingue se o credor renuncia a ela. Como este é um direito disponível, a renúncia gera efeitos, extinguindo a garantia, salvo, obviamente, nas hipóteses de simulação com prejuízo para terceiros ou fraude contra credores. A quinta hipótese refere-se ao pagamento. Extinto o débito principal, extinguir-seá a garantia. A sexta hipótese consiste na adjudicação ou arrematação do bem. São os casos em que o bem é adquirido em leilão ou quando o juiz determina, por sentença, a transmissão da propriedade. A sétima e última hipótese ocorre após a averbação da hipoteca no registro competente. Trata-se, por isso, de uma hipótese genérica, como, por exemplo, no caso em que as partes decidem cancelar o registro de hipoteca por mútuo consentimento ou diante do adimplemento da obrigação. 2. Novas formas de organização patrimonial O sistema de garantias, brevemente comentado, vigorou durante muitos anos no Brasil. Todavia, a evolução da sociedade, aliada ao desenvolvimento de novos mecanismos sociais, gerou graves problemas jurídicos com reflexos no custo de crédito. Este impasse impulsionou o desenvolvimento de novas formas de organização patrimonial, proporcionando o advento do: (i) Negócio Fiduciário, (ii) Patrimônio de Afetação e (iii) Trust. 2.1 Negócio fiduciário O Direito Romano contemplava dois tipos de fidúcia: cum amico e a cum creditore. Esta última, diga-se desde já, possuía estreita vinculação com o penhor. A fidúcia cum amico, por sua vez, possuía conotações que continham, além da idéia de confiança, a idéia de segurança para ambos os sujeitos envolvidos na relação jurídica7. A fiducia cum amico nada mais era do que um pacto de confiança, em que o fiduciante alienava os seus bens para o fiduciário com determinado fim. A título de exemplo podemos citar o caso de um comerciante que necessita de crédito, mas tem 7 MARTINS-COSTA, Judith H. Os Negócios Fiduciários – Considerações sobre a Possibilidade do Acolhimento do “trust” no Direito Brasileiro. Revista dos Tribunais. São Paulo, jul. 1990. dificuldade de obtê-lo. Então, recorre a um amigo que lhe transmite fiduciariamente um determinado bem, possibilitando, com facilidade, a obtenção do crédito desejado8. Já na fiducia cum creditore, o devedor transmite ao credor, em garantia de um determinado débito, a titularidade de um bem, a fim de que fosse garantida a obrigação principal. Uma vez adimplida a obrigação, o credor passa a ter o dever de restituir o bem dado em garantia. Segundo J. X. Carvalho de Mendonça, o negócio fiduciário, cujos traços originários muitos encontram na mancipatio fiduciae causa do Direito Romano, traduz-se na busca das partes por um resultado prático. Os contratantes quiseram o negócio com os efeitos jurídicos que lhe são próprios, ainda que por meio dele visassem a diverso escopo econômico. Como exemplo, mencionamos a transferência da propriedade a fim de servir de penhor ou de qualquer outra garantia e a cessão de crédito com o fim de mandato para ser cobrado pelo cessionário. O adquirente e o cessionário figuram como donos da coisa ou titulares do direito, mas sob o pressuposto da confiança neles depositada pelo verdadeiro dono ou credor. Daí o nome de negócio fiduciário, isto é, que revela confiança, ou que nela se baseia9. Dessa forma, pode-se entender negócio fiduciário como sendo aquele em que se transmite uma coisa ou direito a outrem, para determinado fim, assumindo o adquirente a obrigação de conceder-lhe destinação compatível àquele fim e, atendida tal determinação, garantir sua devolução ao transmitente. 8 9 LIMA, Otto de Souza. Negócio Fiduciário. São Paulo: RT. In Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, p. 85. A jurisprudência brasileira reconhece os negócios fiduciários propriamente ditos, admitindo que, com base na autonomia da vontade e na liberdade contratual, seja lícita a criação de negócios jurídicos inominados. Contudo, tal criação não poderá apresentar afronta ao ordenamento jurídico, à ordem pública ou à moral. 10. Nesse sentido, vale lembrar a decisão emblemática proferida pelo Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do Ministro Moreira Alves11: Quem pôs termo final a qualquer espécie de confusão no tocante à aplicabilidade do art. 765 do CC ao negócio fiduciário foi Pontes de Miranda, com as seguintes palavras: “Raciocinemos. Quem é outorgado em pacto de transmissão em segurança não poderia ficar subordinado à ‘ratio legis’ do art. 765 do CC porque já é adquirente. O que a lei proíbe é que ao outorgado da segurança se dê direito formativo gerador ou o direito expectativo, ou a pretensão a adquirir o bem sobre que recai o direito real de garantia. Mas o outorgado em parte de transmissão em segurança já é o proprietário: não se poderia negar tornar-se aquilo que ele já é. Pode-se vedar o vir-a-ser, não o ser. Ao titular do direito real de garantia não se permite que se torne mais do que é. Aplicar-se o art. 765 ao outorgado em pacto de transmissão em segurança seria negar-se a alguém poder continuar a ser o que já é” (Tratado de Direito Privado, vols. 21/333, 3/122) (...) Quanto ao primeiro problema [ocorrerá, no caso, fraude à lei, tendo em vista a proibição do pacto comissório estabelecida no art. 765 do Código Civil?], somos de opinião de que, quando a retrovenda com 10 11 LIMA, Otto de Souza. Negócio Fiduciário. São Paulo: RT, p. 170. Recurso Extraordinário 82.447 – SP, relator Ministro Moreira Alves, julgado em 18.05.1976. Publicado na Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, vol. 82, dezembro de 1977, p. 886 e 888. escopo de garantia se apresenta como negócio jurídico indireto, não há fraude ao citado art. 765. Esta é uma fabulosa distinção que pode ser bem explorada em estruturas de concessão de crédito, a fim de afastar os riscos decorrentes do vetusto pacto comissório. Eis uma bela fórmula de organização patrimonial, a qual desloca uma conduta proibida no âmbito dos direitos reais para outra perfeitamente lícita no âmbito dos direitos obrigacionais ou obrigacionais com eficácia real, os quais podem ser criados por meio de negócios fiduciários plenamente válidos e exigíveis. 2.1.1 A propriedade fiduciária A propriedade fiduciária surgiu no Brasil em 1965, sob a denominação de alienação fiduciária e, desde então, foi tratada nos seguintes diplomas legais12: 1. Lei 4.728, datada de 14 de julho de 1965, a qual disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento. Tal diploma legal estabelece as características básicas do instituto da alienação fiduciária. Há transferência da propriedade resolúvel de bens móveis pelo devedor ao credor, como garantia de obrigações assumidas por aquele junto a este. 2. Decreto-lei 911, datado de 1.º de outubro de 1969, o qual estabelece normas acerca da alienação fiduciária e dá outras providências (altera determinados dispositivos da Lei 4.728/1965). 12 MOREIRA, Daniela Bessone Barbosa; BRANDÃO, Cristina. Garantias Contratuais. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 24-32. 3. Lei 9.514, datada de 20 de novembro de 1997, a qual dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. 4. Novo Código Civil (Lei 10.406/2002) (“NCC”) – arts. 1.361 a 1.368-A; 5. Lei 10.931, datada de 2 de agosto de 2004, a qual dispõe sobre o Patrimônio de Afetação de Incorporações Imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário. Tal dispositivo legal alterou: (i) o Decreto-lei 911, de 1.º de outubro de 1969; (ii) a Lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964; (iii) a Lei 4.728, de 14 de julho de 1965; e (iv) a Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002; Em relação à evolução legislativa, cumpre relembrar que o Código Civil de 1916 não regulou a propriedade fiduciária. Sua introdução no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu tão-somente com o advento da Lei 4.728/1965. No Código Civil, a propriedade fiduciária foi definida no seu art. 1.361: Art. 1.361 do NCC. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor. § 1.º Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no Certificado de Registro. § 2.º Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o devedor possuidor direto da coisa. § 3.º A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária. Os requisitos quanto à natureza dos bens sujeitos à propriedade fiduciária estão dispostos de forma esparsa na nossa legislação: (i) a propriedade fiduciária dos bens móveis regida pelo Código Civil; (ii) a propriedade fiduciária dos bens imóveis regida pela Lei 9.514/1997; (iii) a propriedade fiduciária de bens infungíveis regida, simultaneamente, pelo Código Civil e pela Lei 9.514/1997; e (iv) a propriedade fiduciária de bens fungíveis regida pela Lei 4.728/1965. Vale frisar os requisitos quanto à formalização da propriedade fiduciária. Primeiramente, o instrumento precisa ser escrito, por escritura pública ou instrumento particular e, por outro lado, apenas terá validade contra terceiros se assentado no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, no caso de veículos, na repartição competente para o licenciamento. Em relação a este último caso, é importante ressaltar que há entendimentos no sentido de que o registro da propriedade fiduciária deverá ser feito tanto no Registro de Títulos e Documentos; quanto na repartição competente para o licenciamento. Porém, a duplicidade de registros traz diversas dificuldades ao consumidor, dentre as quais destaca-se o encarecimento do financiamento. Julgamos que o mais apropriado seria apenas exigir o registro da propriedade fiduciária na repartição competente para o licenciamento. Nesse sentido, contamos com o apoio do Superior Tribunal de Justiça: 3. Ao interpretar sistematicamente o dispositivo nos §§ 1.º e 10, do art. 66 da Lei 4.728/1965, c/c os arts. 122 e 124 da Lei 9.503/1997, e prestigiando-se a ratio legis, impende concluir que, no caso de veículo automotor, basta constar do Certificado de Registro a alienação fiduciária, uma vez que, desse modo, resta plenamente atendido o 13 requisito da publicidade . Em se tratando de imóvel, seu registro ocorrerá no Registro Imobiliário competente (Lei 9.514/1997, arts. 9 e 23, parágrafo único e Lei 6.015/1973, art. 167, I, 35). A esse respeito cumpre citar os ensinamentos de Maria Helena Diniz: “Sem o registro ter-se-á direito de crédito e não direito real, ou seja, propriedade fiduciária”14. Para avançar no estudo da propriedade fiduciária, deve-se distinguir posse direta de posse indireta. Dispõe o art. 1.196 do CC: Art. 1.196 do NCC. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. A proteção possessória em rigor é deferida a todo possuidor, seja ele direto ou indireto. 13 REsp 278993/SP. Rel. Ministra Laurita Vaz. Julgado pela 2.ª Turma do STJ em 15.10.2002. 14 p. 837 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado, 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, Na medida em que o possuidor direto exerce abertamente sobre o bem os poderes inerentes à posse, o possuidor indireto é o proprietário fiduciário, dono e titular, a distância, dos poderes inerentes à posse. Dessa posse jurídica, deflui a bipartição entre posse direta e posse indireta15. Uma vez constituída a propriedade fiduciária, o bem ingressa efetivamente no patrimônio pessoal do credor, muito embora as suas faculdades de proprietário fiquem limitadas pelo escopo de garantia da operação. Por isso, a propriedade fiduciária não é um direito real de garantia, mas um direito (real) de propriedade resolúvel, cujo exercício está sujeito a regras concebidas em vista da finalidade do instituto. Com a vigência da Lei 4.728/1965, que disciplina o mercado de capitais, vários autores sustentavam que apenas quem obtivesse crédito poderia garanti-lo mediante a propriedade fiduciária. Da mesma forma, a capacidade para adquirir: antes do NCC, havia quem entendesse que somente as sociedades financeiras estariam legitimadas para tanto. Tal questão está superada, tendo em vista que o NCC não faz qualquer restrição do gênero para bens móveis infungíveis16. Uma questão interessante a se tratar é a da possibilidade de alienação de quotas de condomínio pro indiviso. Um determinado bem sob o regime de condomínio é aquele de propriedade de mais de uma pessoa, e condomínio pro indiviso é aquele relativo a bens indivisíveis. O NCC dispõe de diversas regras quanto à administração e à alienação do bem em regime de condomínio. Todavia, é absolutamente silente quanto à possibilidade da 15 16 FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil, 2003, p. 346. MOREIRA, Daniela Bessone Barbosa; BRANDÃO, Cristina. Garantias Contratuais. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 24-25. alienação fiduciária das quotas condominiais. Porém, embora a lei não o diga expressamente, parece-nos que, no condomínio pro indiviso, o condômino pode alienar fiduciariamente a sua fração ideal independentemente do consentimento dos demais. Como no direito privado tudo o que não for proibido é permitido, não haveria por que proibir, portanto, a alienação fiduciária de quotas condominiais, nem condicioná-la ao consentimento dos demais condôminos17. Tratemos agora da alienação fiduciária de coisa imóvel, que é regida pela Lei 9.514 de 20.11.1997: Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título. Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário. Não há nenhuma grande distinção entre a alienação fiduciária de bens móveis e imóveis. Essa lei também contempla institutos bem parecidos com os do Código Civil. Primeiramente, a lei dispõe que, com o pagamento da dívida, a alienação fiduciária se 17 Idem, ibidem, p. 25. resolve18. Essa norma ressalta o aspecto de garantia da alienação fiduciária. Mas se a dívida não for paga, a propriedade do fiduciário se consolida. Em segundo lugar, a lei também veda o pacto comissório19, ao impor que o fiduciário faça leilão público da coisa, caso a propriedade se consolide em suas mãos. A legislação também permite que o fiduciário ceda os seus direitos, bem como o fiduciante20. Cabe salientar que a alienação fiduciária de imóveis pode ser usada por qualquer pessoa, inclusive entidades que não integram o sistema financeiro. A Lei 9.514/1997 dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI) e sobre a alienação fiduciária de bem imóvel21. Essa lei restringe as operações de financiamento imobiliário às entidades autorizadas a operar no SFI22, mas dispõe que a alienação fiduciária de imóvel pode ser contratada por qualquer pessoa, não sendo privativa de entidades que operem o SFI23. 18 19 20 Vide art. 25 da Lei 9.514/1997. Vide art. 27 da Lei 9.514/1997. Vide arts. 28 e 29 da Lei 9.514/1997. 21 MOREIRA, Daniela Bessone Barbosa; BRANDÃO, Cristina. Garantias Contratuais. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 31. 22 23 Vide art. 4.º da Lei 9.514/1997. Vide art. 22, § único da Lei 9.514/1997. Vale mencionar que a redação dada ao art. 22 da Lei 9.514/1997 pela MP 2.223, datada de 4 de setembro de 2001, permitia a contratação da alienação fiduciária de coisa imóvel por pessoa física ou jurídica, conforme transcrição do trecho abaixo da referida MP 2.223/2001: § 1.º. A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI. § 2.º. A alienação fiduciária poderá ter como objeto bens enfitêuticos, sendo também exigível o pagamento do laudêmio se houver a consolidação do domínio útil no fiduciário. Cumpre lembrar, ainda, que a mencionada MP 2.223/2001 foi revogada posteriormente pela Lei 10.931/2004. Ademais, o art. 57 da Lei 10.931/2004 alterou o parágrafo único do art. 22 da Lei 9.514/1997, conforme se segue: Parágrafo único do art. 22. A alienação fiduciária poderá ter como objeto bens enfitêuticos, sendo também exigível o pagamento do laudêmio se houver a consolidação do domínio útil no fiduciário. Entretanto, com a publicação da MP 221, de 1.º de outubro de 2004, o referido art. 22 da Lei 9.514/1997 sofreu nova alteração. Dessa forma, o parágrafo único do referido art. 22 passou a vigorar com a redação transcrita abaixo: Parágrafo único. A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto bens enfitêuticos, hipótese em que será exigível o pagamento do laudêmio se houver a consolidação do domínio útil no fiduciário. Por fim, este mesmo dispositivo sofreu a sua última alteração em decorrência da lei 11.481/07, a qual ampliou o objeto da alienação fiduciária. Transcrevemos os § 1º e 2º do Art.22 da Lei 9.514/1997: § 1o A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena: I - bens enfitêuticos, hipótese em que será exigível o pagamento do laudêmio, se houver a consolidação do domínio útil no fiduciário; II - o direito de uso especial para fins de moradia; III - o direito real de uso, desde que suscetível de alienação; IV - a propriedade superficiária. § 2o Os direitos de garantia instituídos nas hipóteses dos incisos III e IV do § 1o deste artigo ficam limitados à duração da concessão ou direito de superfície, caso tenham sido transferidos por período determinado. 2.1.2 Fundo de investimento imobiliário Ressalte-se que há, outrossim, um regime jurídico específico da propriedade fiduciária no Fundo de Investimento Imobiliário criado pela Lei 8.668, datada de 25 de junho de 1993. Esta dispõe sobre a constituição e o regime tributário dos Fundos de Investimento Imobiliário, instituindo a modalidade de propriedade fiduciária dos bens imóveis que constituem patrimônio de afetação desses tipos de fundo. Dispõe o art. 6.º da Lei 8.668/1993: “O patrimônio do Fundo será constituído pelos bens e direitos adquiridos pela instituição administradora, em caráter fiduciário” Em relação a este tópico, há uma indagação interessante: a hipótese de dissolução de um fundo de investimento imobiliário – com a transferência aos seus quotistas de todos os imóveis que constituem seu patrimônio, na mesma proporção de que eram titulares – geraria a incidência de ITBI? Entendemos que a questão é polêmica, havendo bons argumentos para sustentar tanto a exigência quanto a não incidência do ITBI no caso. Os argumentos favoráveis à exigibilidade do ITBI podem ser assim sintetizados: a hipótese de não-incidência tributária (qualificada) prevista no art. 156, § 2.º, I, da Constituição da República é excepcionada quando a atividade preponderante do contribuinte for a compra e venda de imóveis, como pode-se sustentar, ainda que com algumas imperfeições de método, em relação aos fundos de investimento imobiliários. Nessa linha de raciocínio, a sua dissolução acarretaria a reversão dos imóveis aos sóciosquotistas, implicando o nascimento do fato gerador do tributo em questão. Por outro lado, pode-se argumentar que os fundos não são sociedades, sequer possuindo personalidade jurídica, razão pela qual não poderiam ser enquadrados como sociedades cuja receita preponderante decorre da compra e venda de imóveis. Além do mais, se numa sociedade típica e formal não se pode equiparar os seus sócios à figura do proprietário direto dos bens que integram o seu ativo,24 com muito maior razão essa equiparação é impensável em relação aos quotistas de fundos de investimentos imobiliários (meros detentores de títulos de participação). A questão passa, portanto, pela análise da possibilidade de interpretação analógica ou extensiva, a fim de se tributar (ou não) a operação em referência. Somos de opinião que não há suporte fático ou jurídico capaz de ensejar a tributação em casos tais, sobretudo em tema no qual domina o princípio da tipicidade cerrada. 24 Na linguagem de Túlio Ascarelli os sócios são proprietários em segundo grau dos bens que compõem o acervo da empresa que integram. Há outros aspectos da propriedade fiduciária que devem ser ressaltados, dentre os quais destacamos: (i) a propriedade fiduciária nos processos de falência ou recuperação judicial; (ii) a alienação extrajudicial do bem e; (iii) a (im)possibilidade de prisão civil do devedor-fiduciário. (i) O crédito protegido pela propriedade fiduciária fica fora do concurso de credores em caso de falência ou recuperação judicial, conforme dispõe o art. 49 da Lei 11.101/2005: Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...) § 3.º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4.º do art. 6.º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. Cabe aqui tratar de outra vantagem da propriedade fiduciária em relação ao penhor e à hipoteca. Enquanto o bem garantido com o penhor ou a hipoteca integra a massa falida no concurso de credores, aquele garantido com a propriedade fiduciária está excluído da falência. Caso decretada a falência de empresário que esteja na posse de um bem sob o regime da propriedade fiduciária, pode o proprietário, mediante um pedido de restituição, reaver o bem. Esta é uma ação própria prevista na Lei 11.101/2005 e impede que o bem se submeta ao concurso de credores. (ii) A possibilidade da alienação extrajudicial da coisa dada em garantia já estava prevista na Lei 4.728/1965, mas também o foi no Código Civil: Art. 1.364 do NCC. Vencida a dívida, e não paga, fica o credor obrigado a vender, judicial ou extrajudicialmente, a coisa a terceiros, a aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, e a entregar o saldo, se houver, ao devedor. Outra vantagem da propriedade fiduciária em relação ao penhor e à hipoteca refere-se à execução da garantia. Em relação aos bens garantidos com o penhor e a hipoteca, deve-se recorrer ao Judiciário para que a garantia seja executada. Já em relação à propriedade fiduciária, o proprietário pode simplesmente vender o bem e se pagar. O dispositivo acima citado autoriza, inclusive, a alienação extrajudicial do bem. Todavia, é importante ressaltar que, em algumas hipóteses, é possível também a alienação extrajudicial do bem garantido com hipoteca. No RE 223.075 – DF, 1.ª Turma, o STF25, ao analisar a alienação extrajudicial do Dec.-lei 70/1966, se pronunciou no sentido de que a alienação extrajudicial da coisa pelo credor não é inconstitucional, não ferindo os princípios da Inafastabilidade da Apreciação da Lide pelo Judiciário, do Monopólio da Jurisdição e o princípio do Juiz Natural. 25 Recurso Extraordinário 223075/DF, relator Ministro Ilmar Galvão, julgado em 23.06.1998. (iii) A principal repercussão da equiparação do fiduciário ao depositário é a discussão quanto à possibilidade da decretação da sua prisão civil. Um tema de grande relevância que merece ser tratado é a obrigação do devedor que é equiparado a depositário, conforme dispõe o art. 1.363 do Código Civil: Art. 1.363. Antes de vencida a dívida, o devedor, às suas expensas e risco, pode usar a coisa segundo a sua destinação, sendo obrigado, como depositário: I – a empregar na guarda da coisa a diligência exigida por sua natureza; II – a entregá-la ao credor, se a dívida não for paga no vencimento. Nesse sentido, parte da doutrina defende que o possuidor direto não pode, em princípio, ser considerado depositário para os efeitos legais e, no curso do cumprimento contratual, deve utilizar o bem consoante sua destinação original. Corroborando tal entendimento, o Prof. Orlando Gomes prescreve que o devedorfiduciante não é depositário, vez que não recebe a coisa para guardar, muito menos o credor-fiduciário a entrega para esse fim26. O Ministro Adhemar Maciel, citado no voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, entende, inclusive, que o depositário infiel só pode ser aquele do “contrato de depósito” tradicional (art. 1.265 do NCC) que se torna voluntariamente inadimplente. No caso da alienação fiduciária em garantia não se tem um contrato de depósito genuíno. O devedor fiduciante não está na situação jurídica de depositário27. 26 Alienação Fiduciária em Garantia. 4. ed. São Paulo: RT, 1975, p. 130. 27 Dessa forma, há uma reação contra a pena de prisão civil, “tendo em vista que o devedor não é, a rigor, depositário típico, não se enquadrando assim na hipótese constitucional de responsabilidade pessoal”. (...) A regra é que a responsabilidade do devedor recaia sobre o seu patrimônio, que é a garantia do credor28. Vale a pena também citar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, recepcionada, expressamente, pela legislação brasileira pelo Decreto Legislativo 27/1992 e posta em vigor por meio do Decreto 678/1992, cujo art. 7.º, § 7.º prevê a exclusividade da prisão civil do devedor de alimentos, assim definindo “ninguém deverá ser detido por dívidas” salvo “obrigação alimentar”. Contudo, é importante citar a posição do STF que, embora de forma não unânime, aceita a prisão civil. Vejamos o voto do relator, o Ministro Sepúlveda Pertence no RE 345.345-9 SP: O Plenário desta Corte, em 27.05.1998, ao julgar o RE 206.482, Maurício Corrêa, por maioria de votos, reafirmou a legitimidade constitucional da prisão civil do devedor fiduciante, seja à vista do art. LXVII, da Constituição, seja à vista do art. 7, n. 7 do Pacto de São José da Costa Rica. Convicto da inconstitucionalidade da prisão civil fundada na equitação do devedor fiduciário ao depositário, reafirmei então o voto que Embargos de Divergência no Resp 149518-GO, Corte Especial, DJ 28.02.2000. 28 FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil, 2003, p. 350 e 353. proferira no HC 72.131, ficando novamente vencido, na honrosa companhia dos ems. Ministros Marco Aurélio e Carlos Veloso. Sem perspectivas visíveis de sua reversão, posto ressalve minha velha convicção em contrário – à qual, com todas as vênias, sigo fiel – devo render-me à jurisprudência. Diante disso, verificamos que a jurisprudência encontra-se dividida quanto à possibilidade de prisão civil. Todavia, considerando as tendências liberais e as constantes mudanças que ocorrem na composição dos tribunais, acreditamos que a jurisprudência tenderá a inadmitir a prisão civil nessa hipótese. Isto porque entendemos que não há contratos de depósito típico na espécie, bem como tal decisão viola a convenção antes citada e o princípio central da dignidade da pessoa humana (presente como núcleo central do Código Civil ao abrigo da Constituição da República), o qual não se concilia com a prática pré-medieval de o devedor pagar a dívida com o próprio corpo/carne ou com a sua liberdade. Ainda no tocante à propriedade fiduciária, vale mencionar a proibição ao pacto comissório. Dispõe o art. 1.365 do CC: Art. 1.365 do NCC. É nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento. Parágrafo único. O devedor pode, com a anuência do credor, dar seu direito eventual à coisa em pagamento da dívida, após o vencimento desta. Nesse sentido, é inválida a cláusula inserida no contrato, que serve de título à propriedade fiduciária, outorgando ao fiduciário o direito de ficar com a coisa alienada em garantia, se inadimplente o fiduciante29. Há, no entanto, sutilezas quanto à matéria. A Lei 4.728/1965 já vedava o pacto comissório na alienação fiduciária. O NCC manteve a vedação, mas permite que, com anuência do fiduciário, o fiduciante, após o vencimento da dívida, venha a transmitir os direitos eventuais à coisa, de que seja titular. Cabe aqui uma indagação adicional: seria possível um pacto fiduciário segundo o qual o devedor prometesse previamente, ou seja, antes do vencimento da dívida transmitir os direitos eventuais à coisa para o credor fiduciário? Certamente uma resposta negativa seria açodada, vez que há bons argumentos para sustentar que a vedação ao pacto comissório não alcança direitos obrigacionais ou direitos obrigacionais com eficácia real. A questão fica para reflexão. Seja como for, é fato que se tal planejamento vier a ser admitido, será mais um instrumento facilitador para a concessão de crédito, pois impedirá que o credor se submeta ao concurso geral de credores em uma série de circunstâncias. Logo, a solução hermenêutica aqui proposta leva em consideração as modernas técnicas de integração do direito na linha do law and economics. 2.1.3 Cessão fiduciária A cessão fiduciária é uma espécie de negócio fiduciário. Diferencia-se, quanto ao objeto, da alienação fiduciária, pois, como dito anteriormente, tem créditos como objeto e não bens. Sua disciplina encontra-se nos arts. 18 a 20 da Lei 9.514/1997. 29 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado, 8. ed. São Paulo, Saraiva, 2002, p. 839. Art. 18 da Lei 9.514/1997. O contrato de cessão fiduciária em garantia opera a transferência ao credor da titularidade dos créditos, até a liquidação da dívida garantida, e conterá, além de outros elementos, os seguintes: I. o total da dívida ou sua estimativa; II. o local, a data e a forma de pagamento; III. a taxa de juros; IV. a identificação dos direitos creditórios objeto da cessão fiduciária. Nesse sentido, leia-se o ensinamento de Daniela Bessone Barbosa Moreira e Cristina Brandão: A posse dos títulos representativos dos créditos cedidos é transferida ao credor fiduciário, providos, por isso, de ação possessória para recuperálos de qualquer detentor, ou mesmo contra o próprio devedor fiduciante (art. 19, I da Lei 9.514). As importâncias assim recebidas pelo credor fiduciário, depois de deduzidas as despesas de cobrança e de administração, serão creditadas em favor do devedor fiduciante, até a liquidação da dívida e seus encargos. O credor fiduciário responsabilizase, perante o devedor fiduciante, como depositário, pelo que receberá além do que este lhe devia (art. 19, § 1.º da Lei 9.514). [...] Se as importâncias recebidas pelo credor fiduciário dos devedores não forem suficientes para o pagamento integral da dívida e seus encargos (e despesas de cobrança e administração), o devedor fiduciante continuará obrigado pelo saldo remanescente, nas condições originalmente 30 convencionadas (art. 19, § 2.º da Lei 9.514). 30 MOREIRA, Daniela Bessone Barbosa; BRANDÃO, Cristina. Garantias Contratuais. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 35. A cessão fiduciária também é um instrumento importante no regime das concessões de serviços públicos. No final do ano de 2005, a Lei 11.196 introduziu na Lei de Concessões (art. 28-A da Lei 8.987/1995, adiante referida como Lei de Concessões) a possibilidade de cessão fiduciária por parte do concessionário de parcela de seus créditos operacionais futuros. Todavia, esta cessão é apenas permitida para servir de garantia a contratos de mútuo de longo prazo, destinados a investimentos relacionados ao próprio contrato de concessão. Esse novo dispositivo foi uma inovação muito importante introduzida na Lei de Concessões, pois permitiu que as concessionárias de serviços públicos passassem a utilizar os seus recebíveis como garantia de financiamentos. Antes do advento do dispositivo acima referido, havia corrente que defendia a impossibilidade da concessionária dar os seus recebíveis em garantia em virtude da ausência de autorização legal. Por outro lado, é importante ressaltar que o novo dispositivo tem aplicação restrita, pois permite apenas a cessão fiduciária dos recebíveis se estes tiverem como objetivo “a garantia de contratos de mútuo de longo prazo, destinados a investimentos relacionados ao objeto do contrato de concessão”. Por fim, vale destacar que a Lei 11.196/2005 trouxe outras inovações muito importantes à Lei de Concessões. Essas mudanças têm por finalidade modernizar a Lei de Concessões e diminuir o abismo existente entre o regime jurídico das concessões comuns, regidas pela Lei de Concessões e as concessões especiais, regida pela Lei das Parcerias Público-Privadas – PPPs (Lei 11.079/2004). 2.1.4 Companhia securitizadora Conforme dispõe a Lei 9.514, de 1997, “securitização de créditos imobiliários é a operação pela qual tais créditos são expressamente vinculados à emissão de uma série de títulos de crédito, mediante termo de securitização de créditos, lavrado por uma companhia securitizadora”. A securitização incumbirá às companhias que, segundo o art. 3.° da Lei, “terão por finalidade a aquisição e securitização de créditos imobiliários e a emissão e colocação, no mercado financeiro, de Certificado de Recebíveis Imobiliários, podendo emitir outros títulos de créditos, realizar outros negócios e prestar serviços compatíveis com a suas atividades.” Compete à companhia securitizadora, ao emitir cada série de títulos, lavrar o Termo de Securitização de Créditos Imobiliários, que vinculará cada emissão de títulos, do qual constarão, obrigatoriamente, os elementos de identificação dos créditos imobiliários afetados aos títulos – CRIs – objeto da emissão, a saber: (i) a identificação do devedor e o valor nominal de cada crédito que lastreie a emissão, com a individuação do imóvel a que esteja vinculado e a indicação do Registro de Imóveis em que esteja registrado e respectiva matrícula, e, ainda, o número do registro do ato pelo qual o crédito foi cedido à securitizadora; (ii) a identificação dos CRIs emitidos; (iii) a constituição de outras garantias de resgate dos títulos emitidos. Segundo J.A. Penalva31, a finalidade da securitização é a segregação de riscos, situação em que os novos créditos não mais se sujeitam à prioridade dos créditos antigos, inteiramente afastados de qualquer execução em igualdade de situação com os novos créditos. 31 PENALVA, J.A. Obrigações e Contratos na Falência. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 274. De um exame atento do art. 17 da Lei 4.595/1964, verifica-se que as sociedades securitizadoras não são instituições financeiras, uma vez que o seu objetivo é promover a colocação no mercado de recebíveis imobiliários, sem prejuízo de outros títulos que possam vir a ser emitidos nessa faixa de garantia. O objetivo dessa forma de engenharia jurídica e financeira consiste na criação de novas espécies de garantias visando a assegurar ao credor uma possibilidade maior de estabilidade para o seu crédito. 2.2 Patrimônio de afetação Segundo a doutrina tradicional, o patrimônio é indivisível e admite uma pluralidade de patrimônios para cada pessoa, existindo, assim, um patrimônio para cada sujeito de direito, porém, tal princípio comporta certa flexibilidade. Seguindo a moderna doutrina, é admissível a segregação, no campo do patrimônio em geral, de uma esfera jurídica mais restrita, submetida a critérios especiais com desenvolvimento econômico próprio, configurando um patrimônio especial, cujas peculiaridades decorrem dos fins que determinaram a sua formação. É a chamada teoria da afetação, pela qual se admite a segregação patrimonial ou a divisão de um patrimônio comum segundo certos encargos que se impõem a certos bens, os quais passariam a ficar vinculados a uma determinada finalidade (fática ou jurídica). Lamentavelmente, o direito empresarial não acompanhou tal tendência e, inacreditavelmente, são raras, para não dizer nulas, as hipóteses em que se admite um patrimônio de afetação no campo das atividades mercantis. Em outra ocasião já tratei desse tema: 32 32 Isso posto – e fiquemos apenas num único exemplo que se repete no sistema brasileiro – tais sociedades, conquanto constituídas validamente, estariam sob a mira da teoria da desconsideração pelo simples fato de traduzirem uma acentuada concentração de capital nas mãos de um único sócio (dito dominante) ao passo que o outro sócio seria de palha, normalmente titular de apenas 1% (um por cento do capital social). Assim se presume estaria tal sócio (de palha) apenas servindo ao propósito de falsear o requisito da pluralidade de sócios, exigido, como regra, pelo direito societário brasileiro. O mais assustador é que todas essas condutas, tidas como lícitas e aceitas pelo sistema quando da constituição da sociedade, passariam, num passe de mágica, a deixar de sê-lo apenas por força da insolvência da sociedade que apresenta essa acentuada concentração de capital. A complementar esse conjunto de desatinos temos um sistema societário, mormente após o vigente Código Civil, em que são, no mínimo, duvidosos os benefícios que decorrem para aqueles que optam pelas sociedades personificadas, tamanhas as suas deficiências e os riscos de que a limitação da responsabilidade dos sócios passe a ser uma exceção e não a pedra de toque que construiu o capitalismo, bem como moveu os investimentos produtivos que marcaram os dois últimos séculos. Assim, determinados bens seriam destinados a alguma finalidade especial, cujo atingimento dependeria de destaque especial a elas concedido no patrimônio do seu titular. Tais bens passariam a integrar uma espécie de patrimônio autônomo, sendo necessário que os bens afetados cumpram uma função predeterminada33. NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Desconstruindo a Desconsideração da Personalidade Jurídica. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 270. 33 CHALHUB, Melhim Namem. Trust – Perspectivas do Direito Contemporâneo na Ainda, para que o conceito de patrimônio de afetação seja entendido, deve-se observar o nexo com o conceito de universalidade, no qual está a essência do conceito de patrimônio e a autonomia funcional caracterizadora do patrimônio de afetação, cujos bens continuam encravados no patrimônio do sujeito, ou passam a constituir massas de bens singulares, sem deixar de pertencer ao mesmo sujeito. Dessa forma, o patrimônio de afetação não é um patrimônio distinto, independente ou plenamente autônomo, ele está articulado ao patrimônio geral do titular, mas é objeto de destaque especial, a fim de exercer uma função. Daí se falar em autonomia funcional, mas não plena. O patrimônio de afetação tem ativo e passivo próprios, podendo ser formado tanto pelos bens, direitos e obrigações com os quais tiver sido originalmente formado, como pelos frutos e encargos advindos da gestão desse patrimônio34. A Lei 4.728/1965, com a redação dada pelo Decreto-Lei 911/1969, introduziu no direito positivo brasileiro a noção de propriedade fiduciária e de patrimônio de afetação, de uma parte com vistas à estruturação do mercado de capitais e, de outra como garantia do crédito. Assim, é na linha dessas concepções que se encontra a estrutura dos fundos de investimento, formulada no direito brasileiro a partir da vigência da referida Lei de Mercados de Capitais35. Transmissão da Propriedade para Administração de Investimentos e Garantia. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 119. 34 CHALHUB, Melhim Namem. Trust – Perspectivas do Direito Contemporâneo na Transmissão da Propriedade para Administração de Investimentos e Garantia. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 127. 35 O diploma da Lei 10.391/2004 criou a possibilidade de um empreendimento, isto é, o objeto de uma incorporação imobiliária ficar afetado, ou seja, separado do patrimônio geral do incorporador. O sentido desse novo fenômeno jurídico fica bem claro nos dizeres da lei: proteger os adquirentes das unidades imobiliárias de um lado e as entidades financeiras que proporcionam meios para o empreendimento de outro. Incorporação imobiliária, segundo a noção concebida pela Lei 4.591/1964, é um negócio jurídico que tem por finalidade promover, administrar e realizar a construção, para alienação total ou parcial de unidades autônomas, as quais podem ser constituídas de 36 apartamentos, escritórios, garagens, shopping centers etc. Assim, possibilita a nova lei que a comissão de representantes e a instituição financiadora nomeiem, às suas expensas, pessoa física ou jurídica para fiscalizar e acompanhar o patrimônio de afetação. Entende-se que cada uma dessas entidades pode nomear um fiscal, pois os interesses dos adquirentes e do financiador podem ser colidentes. Desse modo, o patrimônio de afetação exige que se crie uma contabilidade e fluxo financeiro autônomos para cada empreendimento segregado. Ou, em termos mais simples, as contas de uma construção não podem mesclar-se com as contas de outra e muito menos com o patrimônio do incorporador. A afetação cria, desse modo, um empreendimento contabilmente ilhado e que, pelo princípio 37 estabelecido, não pode ser contaminado por dívidas estranhas . CHALHUB, Melhim Namem, Negócio Fiduciário. Renovar, p. 98-99 36 Venosa, Sílvio de Salvo. Valor Econômico de 12.11.2004, p. E-2. 37 Idem, ibidem. 2.3 Trust Todos os estudiosos do assunto iniciam a explicação de trust pela história do Direito na Inglaterra medieval, que proporcionou o surgimento de um sistema jurídico sui generis chamado common law, direito costumeiro, baseado nos precedentes judiciais, adotado na Idade Média, pela realeza. Esse direito afastou-se bastante do antigo Direito Romano, cuja influência fez-se sentir no continente europeu, especialmente na fase do Renascimento, quando, pela segunda vez, dominou o mundo, na lição de Ihering38. Apesar de o trust não ter previsão no direito brasileiro, traz algumas semelhanças com o fideicomisso, que é um instituto previsto no ordenamento jurídico pátrio. De uma forma ampla, poderíamos classificá-lo como sendo um negócio fiduciário, mas revestido de diversas normas particulares. Para começar a analisar o instituto, vejamos a lição de Philip H. Pettit: Um Trust é um negócio jurídico pelo qual compromete-se uma pessoa (que é chamada de trustee) a administrar bens sobre os quais tem controle (que são chamados bens dados em trust), seja em benefício de pessoas (que são chamadas beneficiárias ou cestuis que trust), entre as quais ela mesma [o trustee] pode figurar, estando qualquer delas investida de legitimidade para exigir o implemento da obrigação, ou para uma finalidade caritativa, que pode ser exigida perante o 38 WALD, Arnoldo. Algumas considerações a respeito da utilização do “trust” no direito brasileiro. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, 1999. Ministério Público, ou para algumas outras finalidades permitidas por lei, embora não exeqüíveis39. Ou, no magistério de Melhim Namem Chalhub: a configuração do trust está corporificada no contexto da jurisprudência, consolidando-se seu conceito como o contrato pelo qual uma pessoa segrega de seu patrimônio certos bens e transmite a outra pessoa sua propriedade formal (legal tittle), obrigando-se esta última (trustee) a administrá-la em favor de uma terceira pessoa (cestui que trust ou beneficiário), que terá a propriedade de fruição econômica, 40 sobre o bem dado em trust . Como se vê, existem três figuras que se vinculam ao trust: o settlor, ou seja, o criador do trust, titular do bem ou do direito a ser dado em trust e que transfere a titularidade para fins do trust; o trustee, aquele que recebe a titularidade dos bens ou direitos, com o encargo de administrá-lo de acordo com o que tiver sido definido pelo settlor; e o cestui que trust, que é beneficiário do trust, isto é, do proveito econômico dos bens ou direitos objeto do trust41. 39 PETTIT, Philip H., Equity and the Law of Trusts, butterwords, 1993 p. 23, apud CHALHUB, Melhim Namem. Trust – Perspectivas do Direito Contemporâneo na Transmissão da Propriedade para Administração de Investimentos e Garantia. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 30-31. 40 CHALHUB, Melhim Namem. Trust – Perspectivas do Direito Contemporâneo na Transmissão da Propriedade para Administração de Investimentos e Garantia. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 31-32. 41 Diferentemente de outras Convenções que visavam, em suma, solucionar conflitos relativos a normas de Direito Internacional Privado entre determinados países, a Convenção de Haia (1985), visou o reconhecimento internacional de um instituto bastante conhecido e utilizado em países que adotam o sistema de Common Law, e praticamente desconhecido pelos que adotam o sistema romano-germânico (Civil Law), como o Brasil: o trust. Tendo em vista a dificuldade em positivar todas as situações nas quais seria possível a aplicação do trust, a Convenção acima referida foi bastante abrangente, favorecendo a ampla interpretação de suas cláusulas, de modo a servir como referência à regulação das instituições assemelhadas ao trust já existentes em países de Civil Law, como é o caso do Brasil. Assim, a Conferência Internacional realizada em Haia e o Recognition of Trusts Act de 1986, na Inglaterra, sobre Direito Internacional Privado, em matéria de trust, contribuíram para definir os elementos essenciais do trust. São eles: (a) os bens formam uma massa separada do resto do patrimônio do trustee; (b) os bens ficam em nome do trustee; e (c) o trustee tem o poder (e o dever) de administrar os bens de acordo com as condições estabelecidas no trust, sendo responsável pela sua gestão42. CHALHUB, Melhim Namem. Trust – Perspectivas do Direito Contemporâneo na Transmissão da Propriedade para Administração de Investimentos e Garantia. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 41, 42, 45. 42 WALD, Arnoldo. Algumas considerações a respeito da utilização do “trust” no direito brasileiro. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, 1999. O trust é uma afetação de bens, garantida pela intervenção de uma pessoa a quem é cometida a obrigação de implementar todos os atos necessários à realização da referida afetação. Pode-se afirmar que o escopo do trust é o de conferir, a uma ou mais pessoas, determinados benefícios (daí o título de “beneficiários”) por meio da utilização de um administrador de confiança do settlor. Logo, ao administrador (trustee) caberá tãosomente a propriedade formal dos bens instituídos em trust, vez que os verdadeiros titulares do que se denomina propriedade de fruição são aqueles em interesse de quem deve o trustee agir43. A matéria ainda é recente nos países de tradição romano-germânica e, em certos pontos, apresenta-se bastante controvertida. O Prof. Arnoldo Wald aponta para uma alternativa em virtude das dificuldades inerentes ao reconhecimento dos efeitos do trust no Brasil: Em relação a bens que se encontram no exterior, nada impede que seja constituído um trust fora do Brasil, de acordo com a legislação local, seja do país em que se situam os bens, seja de outro, pois, normalmente, mesmo quando não se conhecem o trust na legislação local as autoridades e a comunidade bancária admite o trust constituído em outro Estado como válido e legítimo. Essa regra não se aplica ao 44 Brasil, mas prevalece na Europa e em outros países . 43 CHALHUB, Melhim Namem. Trust – Fidúcia, Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, n. 51, 2002. 44 WALD, Arnoldo. Ob. cit., p. 120, parágrafo 117. De fato, o ordenamento jurídico brasileiro não prevê a existência de um instituto com características idênticas às do trust, o qual possa ser livremente pactuado em vista da consecução das mais diversas finalidades. No entanto, constituído um trust no exterior, caso seja necessário reconhecer seus efeitos em âmbito nacional, parece-nos que a autoridade judiciária brasileira deverá aplicar a lei do país onde a obrigação se constituiu. Entretanto, as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes, conforme o que dispõe o art. 17 da Lei de Introdução ao Código Civil. Um negócio efetuado de acordo com as modalidades de trust adequadas às leis brasileiras é plenamente exeqüível (enforceable) no Brasil45. No caso de trust constituído em conformidade com a lei de outro país, mas cuja execução implique a prática de atos jurídicos no Brasil, resultará em que: se constituídas no Brasil, as obrigações estarão sujeitas às leis brasileiras; e se constituídas no exterior, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem, conforme art. 9.º da Lei de Introdução ao Código Civil. Respeitada a ordem pública, portanto, nada impede que um trust constituído no exterior produza normalmente os seus efeitos em relação a pessoas ou a bens de outra forma conectados ao Direito brasileiro. É fundamental, no entanto, que prevaleça o respeito à ordem pública, sendo esta elevada à condição de princípio fundamental do Direito Internacional Privado46. 45 STUBER, Walter Douglas. A legitimidade do “trust” no Brasil. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, 1989. 46 Conclui-se, portanto, que mesmo diante do fato de que o Brasil não assinou a Convenção relativa ao reconhecimento e à aplicação do trust, ou sequer tenha participado das inúmeras discussões pertinentes ao tema, deve-se reconhecer os efeitos do trust em seu território sempre que tais atos não ofendam a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes, nos termos do art. 17 da Lei de Introdução ao Código Civil47. Assim, o fato de o trust não poder ser constituído a partir da legislação pátria vigente, não impede seus efeitos dentro do território brasileiro. 3. Sociedade de Propósito Específico – SPE No Brasil, a instituição geradora da atividade própria do project finance é a sociedade de propósito específico (ou especial), a chamada SPE. Esta capta recursos para a realização dos investimentos exigidos na implantação do projeto, geralmente encarregada de explorar os serviços objeto da concessão outorgada pelo poder público, segundo J. A. Penalva Santos48. No âmbito das Parcerias Público-Privadas (“PPPs”), a Lei 11.079/2004 dispõe em seu art. 9.° sobre a sociedade de propósito específico (SPE). STUBER, Walter Douglas, A legitimidade do “trust” no Brasil, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 76, 1989, p. 106-107. 47 Em sentido semelhante dispõem o art. 9.º da Lei de Introdução ao Código Civil e o art. 88 do Código de Processo Civil. 48 PENALVA SANTOS, J. A. Obrigações e Contratos na Falência. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 283. A expressão “sociedade de propósito específico” tem origem na expressão do direito norte-americano “special purpose company” – SPC, que significa uma sociedade que tem por objeto a exploração de um empreendimento determinado. De modo geral, as sociedades empresárias têm por objeto uma ou mais atividades econômicas, mas não limitam a sua atuação a um empreendimento específico, exercendo, em relação a cada uma das atividades econômicas integrantes do seu objeto social, ações relacionadas a empreendimentos diversos. Se, por exemplo, uma sociedade tem por objeto a construção civil, seus administradores buscarão oportunidades de negócios relacionadas a diversos empreendimentos, que podem ser a construção de imóveis residenciais, indústrias, estradas, pontes, monumentos, etc. Na SPE, por outro lado, a atuação da sociedade é limitada ao empreendimento definido no seu contrato ou estatuto social, não podendo seus administradores prospectarem outras oportunidades de negócio. A SPE pode assumir qualquer das formas societárias previstas na legislação como, por exemplo, a forma de sociedade limitada ou de sociedade anônima. Entretanto, por estar ligada a grandes empreendimentos, assume, normalmente, a forma de sociedade anônima, que propicia um melhor acesso ao mercado de capitais, para a captação dos vultosos recursos necessários ao empreendimento. A importância da constituição da SPE está relacionada à segregação da atividade empresarial relativa ao empreendimento específico – que é o seu objeto social – das atividades desenvolvidas pelas sociedades sócias da SPE. Vale ressaltar também que a constituição da SPE é importante para a obtenção de financiamento para o projeto. A segregação do risco da atividade da SPE viabiliza a vinculação dos recebíveis do projeto ao pagamento dos credores; em operação de financiamento denominada project finance. Se a garantia dos credores são os recebíveis do empreendimento, o fluxo de caixa desse empreendimento não pode ser afetado por obrigações contraídas em decorrência de atividades distintas do empreendimento objeto da SPE. Com a segregação jurídica das atividades, pode-se ter uma razoável segurança quanto à canalização dos recebíveis para o pagamento das instituições financiadoras do projeto. Em relação à parte contábil da SPE, no âmbito de uma PPP, a Lei 11.079 prevê em seu art. 9.°, § 3.°, que a SPE deverá adotar contabilidade e demonstração financeira padronizadas, conforme previsto em regulamento. Questão que se coloca a respeito do tema é o possível conflito entre as normas editadas no regulamento previsto na lei, que deverá ser expedido mediante decreto, e as normas legais sobre a contabilidade e as demonstrações financeiras das sociedades em geral, inclusive as da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, para as sociedades anônimas de capital aberto. Sobre o controle societário, ainda na esfera das PPPs, a SPE deve ser constituída pelo vencedor da licitação, seja ele uma sociedade ou um consórcio de sociedades. Caso o vencedor da licitação seja uma sociedade, ela deverá ser a controladora da SPE a ser constituída, apesar de não haver necessidade de detenção da totalidade do capital da SPE. Se o vencedor da licitação for um consórcio de sociedades, normalmente composto por sociedades com objeto relacionado à parceria, como uma construtora, uma fornecedora de equipamentos e uma operadora do serviço a ser prestado, a SPE deverá ser controlada pelo grupo de sociedades consorciadas, conforme acordo de acionistas a ser firmado. 4. Conclusão A hipoteca e o penhor, garantias tradicionais, estão com os dias contados, já que esbarram em procedimentos burocráticos que dificultam a sua execução. Nesse sentido, a Nova Lei de Falências, o Novo Código Civil, a Lei do Patrimônio de Afetação e a Lei de Alienação Fiduciária de Imóveis trouxeram grandes alterações no regramento jurídico da matéria, munindo o credor de instrumentos muito mais eficazes para realização dos seus interesses. A primeira grande mudança seria a gradual troca do penhor pela propriedade fiduciária. No penhor, como já explicado acima, o devedor dá o bem empenhado ao credor. Desta forma, o credor não é proprietário da coisa, mas mantém a sua posse direta. Já no instituto da propriedade fiduciária ocorre o exato oposto, o devedor transfere a propriedade do bem ao credor, mas mantém para si o domínio útil (posse direta) da coisa. A segunda mudança é a substituição da hipoteca pela alienação fiduciária de imóveis. Com isto, o credor não terá uma mera garantia, mas sim a propriedade do bem, facilitando, em muito, o recebimento do crédito (inclusive com a sua alienação extrajudicial). Especificamente em relação ao penhor, a propriedade fiduciária tem uma vantagem adicional: a posse do bem não é transferida. Assim, pode o devedor usufruir o bem e até mesmo defendê-lo. Além das vantagens acima referidas, o bem submetido ao regime da propriedade fiduciária está excluído da falência e da recuperação judicial, conforme dispõe o art. 49, § 3.º da Lei 11.101/2005. Assim, basta que o proprietário do bem peça a sua restituição e este bem não se submeterá ao concurso de credores. Logo, o regime da propriedade fiduciária traz grande segurança ao credor, possibilitando que este possa ampliar a oferta de crédito, além de reduzir o seu custo para o tomador. Portanto, podemos claramente perceber a evolução da legislação no tocante às garantias. Em ambos os casos, a propriedade é transferida ao credor, o que facilita muito a sua exigibilidade. Caso o devedor não pague a dívida, não é preciso que o credor entre com uma demorada ação de execução para cobrá-la, pois já tem a propriedade que garante o débito. É até possível avançarmos para uma proposta ousada, qual seja: a de que não há violação do pacto comissório no âmbito dos direitos obrigacionais ou dos direitos obrigacionais com eficácia real, autorizando o negócio fiduciário por meio do qual o devedor fiduciante, obrigando-se a consentir antes do vencimento da dívida pactuada, outorgue mandato em favor do credor fiduciário, facilitando, assim, a consolidação da propriedade em seu favor, por meio de uma promessa irrevogável de transmissão dos direitos eventuais à coisa da qual é titular. Tal planejamento certamente será um instrumento de estímulo para concessão de crédito, pois contornará a vetusta proibição decorrente do pacto comissório (de origem canônica) e, a um só tempo, evitará que o credor se submeta ao direito concursal em uma série de hipóteses. A solução, portanto, se concilia, adequadamente, com as mais modernas técnicas de hermenêutica e integração do direito na linha do Law and Economics. Deve-se lembrar, ainda, a lição de Moreira Alves49 segundo a qual a tutela visada pelo pacto comissório tem seu campo de incidência restrito aos direitos reais, não impedindo planejamentos lícitos no campo de aplicação dos negócios fiduciários, desde que validamente pactuados. Essa conclusão também está respaldada na lição de Daniela Bessone Barbosa Moreira e Cristina Brandão, para quem a propriedade ou a alienação fiduciária não constituem, propriamente, um direito real de garantia50. 49 Vide nota 11 50 MOREIRA, Daniela Bessone Barbosa; BRANDÃO, Cristina. Garantias Contratuais. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 24. Todos os argumentos até aqui elencados apenas reforçam a tese de que o penhor e a hipoteca estão fadados à extinção gradual. Por essa razão, a alienação fiduciária, o patrimônio de afetação e o trust já são as novas formas de organização patrimonial que ganham cada vez mais espaço no arcabouço legislativo brasileiro. O patrimônio de afetação visa segregar parte do patrimônio de uma pessoa para garantir um determinado fim. Trata-se de uma exceção ao princípio da indivisibilidade patrimonial e, por esta razão, só pode existir mediante autorização legal. A Lei 10.931/2004 criou a possibilidade de afetação de parcela do patrimônio da construtora em empreendimentos imobiliários. Acreditamos que a norma deveria ter ido além e aumentado o campo de aplicação do instituto. Para entendermos a importância do patrimônio de afetação, basta lembrarmos do caso Encol, a grande construtora brasileira que, há poucos anos, faliu deixando diversos prédios inacabados e diversas pessoas sem ter onde morar. Caso já fosse possível a instituição do patrimônio de afetação à época, o “esqueleto do prédio” seria um patrimônio de afetação da Encol em favor dos futuros moradores. Desta forma, com a falência da construtora, os próprios moradores poderiam continuar a obra, e não ter que dividir o prédio com os demais credores da falida. Já o trust configura uma transferência do patrimônio do instituidor para uma pessoa administrá-lo em benefício de terceiro. Embora esse instituto careça de regulamentação no Brasil, temos, por outro lado, a previsão de um instituto similar, o fideicomisso (decerto esvaziado pelo Novo Código Civil). O fideicomisso sofreu diversas restrições no nosso Código Civil, transformando-se em um instituto de pouca utilidade prática. Não obstante não haver previsão legal do trust no Brasil, entendemos que esse instituto pode aqui vigorar desde que, constituído no exterior, observe as normas de direito internacional privado e os elementos de contato com o direito interno. Mas, mesmo que se entenda que o trust não pode, em nenhuma hipótese, existir no Brasil, os seus efeitos podem ser alcançados pelo instituto do patrimônio de afetação, permitindo uma razoável visualização da função, dos efeitos e da dinâmica desse negócio. Por fim, outra forma eficiente de organização patrimonial é a Sociedade de Propósito Específico, constituída com uma única finalidade de gerar uma diminuição de riscos para o investidor. As SPEs são bastante comuns em grandes empreendimentos, figurando como peça fundamental de importantes project finance. 5. Referências bibliográficas BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 82.447/SP. Relator: Ministro Moreira Alves. 18 de maio de 1976. Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, v. 82, dez. de 1977. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 278993/SP. Relatora: Ministra Laurita Vaz. Julgado pela 2.ª Turma em 15 out. 2002. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 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