A CESSÃO FIDUCIÁRIA DE TÍTULOS DE CRÉDITO OU DIREITOS CREDITÓRIOS E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL DO DEVEDOR CEDENTE Fábio Ulhôa Coelho 1 As Origens do Instituto da Cessão Fiduciária A cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios é negócio jurídico que visa a constituição de direito real em garantia consistente na titularidade fiduciária de créditos (documentados ou não em títulos de crédito) cedidos pelo autor da garantia. As origens do instituto encontram-se no contrato de alienação fiduciária em garantia, que tem igual objetivo. A introdução da alienação fiduciária em garantia no direito brasileiro originou-se de proposta dos advogados cariocas José Luiz Bulhões Pedreira e George Siqueira, feita no bojo da discussão da reforma do mercado de capitais que o governo Castello Branco, em 1965, patrocinava. De acordo com a justificação apresentada pelo primeiro aos Ministros da Fazenda (Gouveia de Bulhões), Indústria e Comércio (Daniel Faraco) e Planejamento (Roberto Campos): "A alienação fiduciária em garantia corresponde ao trust receipt, amplamente utilizado nos países anglosaxões, pelo qual o devedor transfere fiduciariamente o domínio da coisa, para que esta sirva de garantia. Ele difere do penhor [porque] transfere o próprio domínio, e não apenas constitui um direito real de garantia [...] 1". 1 Segundo Cândido Camargo (Da alienação fiduciária em garantia e fundos contábeis de natureza financeira face à Lei de Mercado de Capitais. In: Arquivos do Ministério da Justiça. Brasília: Ministério da Justiça, 1967. n. 103. p. 37-38). 1 A sugestão no sentido de introduzir no direito brasileiro a alienação fiduciária em garantia, porém, não foi acolhida pelos Ministros e o projeto de lei de reforma do mercado de capitais seguiu para o Congresso sem qualquer referência ao instituto. Prevalecera, no âmbito do Poder Executivo, o entendimento de que o projeto estava já sobrecarregado de matérias não diretamente ligadas ao seu objeto. Parecia já, no dizer de Gouveia de Bulhões, uma "colcha de retalhos". Na Câmara dos Deputados, aprovou-se o projeto de lei sem alterações. No Senado Federal, porém, em razão de emenda do Senador Daniel Krieger, apresentada em plenário, e de subemenda do Senador Jefferson de Aguiar, na Comissão de Constituição e Justiça, a sugestão de Bulhões Pedreira e George Siqueira foi aproveitada. Delas resultou o art. 66 da Lei nº 4.728/65, o primeiro dispositivo a tratar, no direito brasileiro, da propriedade fiduciária como instrumento de garantia de crédito 2. Posteriormente, pelo DL 911/69, aperfeiçoaram-se tanto a definição do instituto como as regras de direito processual assecuratórias da efetividade da garantia. A estrutura jurídica fundamental da alienação fiduciária em garantia é bem conhecida e bastante operacional. Por este contrato, cujas raízes se encontram no direito romano 3, o credor se torna titular da propriedade resolúvel da coisa e seu possuidor indireto, enquanto o devedor é investido na condição de seu possuidor direto e depositário. Cumprida a obrigação 2 ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 9-13. 3 Paulo Restiffe Neto esclarece que "a fidúcia, instituto jurídico que repousa exclusivamente na lealdade e honestidade de uma das partes, o fiduciário, correspondente, por isso mesmo, à boa-fé e confiança nele depositada pela outra parte, o fiduciante, tem a sua origem no direito romano, que a hauriu na Lei das XII Tábuas, vindo a ser encontrada em textos interpolados do Digesto" (Garantia fiduciária. 2. ed. São Paulo: RT, 1976. p. 1). 2 que este tem perante aquele, opera-se a resolução da propriedade: o sujeito que era devedor passa a ser o proprietário pleno e possuidor da coisa, e o que era credor deixa de titularizar qualquer direito real sobre ela. Não cumprida a obrigação, porém, tem o credor instrumentos ágeis e eficazes para ver satisfeito seu direito. Sendo o proprietário e possuidor indireto do bem objeto da alienação fiduciária em garantia, ele pode requerer sua busca e apreensão, com o objetivo de vendê-lo e, com o produto da venda, satisfazer o crédito 4. A agilidade na constituição e efetividade na execução da garantia apresentadas pelo novo instituto certamente foram as responsáveis pelo extraordinário sucesso que experimentou. A referência ao instituto do trust receipt na sugestão acolhida no Senado 5- 6, bem como a pesquisa dos anais da tramitação do projeto de lei de reforma do mercado de capitais nesta Casa 7, mostram que a intenção do legislador era a de criar 4 Tem sido usual chamar-se o credor de fiduciário e o devedor de fiduciante. Empregaremos estas expressões, embora conhecendo a crítica que respeitáveis doutrinadores lhes reservam. José Carlos Moreira Alves, por exemplo, considera que a alienação fiduciária em garantia da Lei nº 4.728/65 não pode ser considerada espécie de negócio fiduciário, nem em seu perfil romano (em que os direitos do fiduciário sobre a coisa são limitados pelo contrato com o fiduciante), nem no germânico (em que os limites são dados pela condição resolutiva). Por esta razão, repudia as denominações fiduciário e fiduciante (Obra citada, p. 93). 5 O trust receipt é uma operação de garantia de financiamento do comércio atacadista. Define-se como: "Method of financing commercial transactions by means of which title passes directly from manufacturer or seller to banker or lender who as owner delivers goods to dealer in whose behalf he is acting secondarily, and to whom title goes ultimately when primary right of banker or lender has been satisfied" (Black's Law Dictionary. St. Paul, Minn.: West Pub., 1991. p. 1.515). 6 José Carlos Moreira Alves mostra como é indevida a aproximação entre os institutos da alienação fiduciária em garantia e o trust receipt. Para ele, o instituto do direito norte-americano que melhor corresponde ao contrato brasileiro introduzido pela Lei nº 4.728/65 é o chattel mortgage (Obra citada, p. 35-45). Também Orlando Gomes examina a matéria e conclui que a alienação fiduciária em garantia não se confunde com o trust receipt, sendo a confiança no contratante e a causa os pontos em comum entre eles (Alienação fiduciária em garantia. 2. ed. São Paulo: RT, 1971. p. 18-19). 7 A justificativa da subemenda Jefferson de Aguiar apresentava como objetivo da propositura o fomento das importações. De acordo com George Siqueira, nela citado, a alienação fiduciária em garantia: "É exatamente a figura jurídica que consagramos na presente emenda, visando, precipuamente, a facilitar o financiamento das importações, favorecendo consequentemente o mercado de capitais" (Diário do Congresso Nacional, 11 jun. 1965, seção II, p. 1.740). 3 instrumento de garantia de financiamento de atividades econômicas ligadas à circulação de mercadorias, e não propriamente de bens de consumo. Cedo, porém, e a despeito da destinação originária reservada pelos legisladores ao instituto, a alienação fiduciária em garantia foi usada também no financiamento ao consumidor para a aquisição de bens de consumo duráveis. A versatilidade da alienação fiduciária em garantia chamou a atenção novamente do legislador em 1997. Quando disciplinou o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), por meio da Lei nº 9.514, de 20 de novembro, introduziu a figura da alienação fiduciária de bens imóveis. Naquele ano, uma grande construtora havia mergulhado numa crise extraordinária, causando prejuízos de monta a milhares de consumidores no país todo. A lei do SFI destinava-se a impedir que o lamentável episódio se repetisse, por meio da modernização dos instrumentos jurídicos de financiamento de empreendimentos imobiliários. Tais instrumentos deviam compatibilizar os interesses dos adquirentes de imóveis em construção e os dos agentes financiadores, na hipótese de falência da incorporadora. Sua aprovação foi saudada como a solução para os problemas de graves repercussões econômicas e sociais como os causados naquele tempo. A lei do SFI introduziu, pois, no direito brasileiro, complexos instrumentos jurídicos e financeiros, como a securitização de recebíveis imobiliários, regime fiduciário de créditos imobiliários e o patrimônio segregado. No capítulo das garantias reais, dispôs sobre a propriedade fiduciária de coisa imóvel. Até então, o instituto não podia ter por objeto senão bens móveis. A Lei nº 9.514/97 ampliou-lhe o espectro para permitir 4 que alcançasse também a propriedade imobiliária e os direitos a ela relativos, inclusive os creditórios 8. Continuou a evoluir a disciplina legal da alienação fiduciária em garantia, em atenção à dinâmica dos negócios, que cada vez mais identificava nela um dos melhores instrumentos para a segura concessão de crédito, tanto para empresários como para consumidores finais. Nesse contexto evolutivo, o CC/02 dá um importante passo, ao tratar de um tema próximo, o da propriedade fiduciária. Noto que não se confunde a alienação fiduciária em garantia com a propriedade fiduciária; são institutos diferentes, embora contíguos. O primeiro é o instrumento de constituição do segundo. Assim como não se identificam o contrato de penhor com o penhor propriamente dito, nem o contrato de hipoteca com a hipoteca, o instrumento contratual de constituição da garantia fiduciária é algo diverso da garantia mesma. A alienação fiduciária em garantia é negócio jurídico. Aproxima, portanto, duas partes, o credor-fiduciário e o devedor-fiduciante. Os direitos e obrigações que mutuamente se outorgam são relativos. Sua disciplina se encontra no direito das obrigações. Já a propriedade fiduciária é espécie de direito real em garantia. O proprietário fiduciário e o possuidor fiduciante têm, perante terceiros, direitos absolutos derivados do domínio ou da posse. Sua disciplina ambienta-se no direito das coisas 9. 8 A alienação fiduciária em garantia de bens imóveis foi definida no art. 22 da Lei do SFI: "A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel". 9 Como esclarece José Carlos Moreira Alves: "A alienação fiduciária em garantia é, tão somente, o contrato que serve de título à constituição da propriedade fiduciária que - esta sim - é a garantia real criada, em nosso direito, pelo art. 66 da Lei nº 4.728, modificado, posteriormente, pelo Decreto-Lei nº 911. Portanto, como ocorre no sistema jurídico brasileiro com as garantias reais até então conhecidas, há, de um lado, o contrato que serve de título a ela (contrato de penhor, contrato de hipoteca, contrato de anticrese, alienação fiduciária em garantia), e, de outro, a garantia real cujo título é um desses contratos (o penhor, a hipoteca, a anticrese, a propriedade fiduciária). Feita essa 5 No CC/02, o legislador disciplinou o instituto de direito real, isto é, a propriedade fiduciária, no Capítulo IX do Título III (Da propriedade) do Livro III (Do direito das coisas) da Parte Especial. Nele, reservou apenas um dispositivo para o instituto de direito obrigacional, a alienação fiduciária em garantia: o art. 1.362, que estabelece os elementos essenciais ao contrato constitutivo da propriedade fiduciária. Nos demais, albergou normas respeitantes ao direito real em garantia 10. O importante passo dado pelo legislador na disciplina da matéria com a edição do Código Civil, contudo, não representou a última etapa do processo de evolução legislativa aqui descrito. Originado de projeto de lei dos anos 1970, o Código Civil infelizmente não recebeu, durante a arrastada tramitação no Congresso Nacional, a constante adaptação que a dinâmica da economia exige. Em outros termos, importa assinalar que o CC/02 não disciplinou, como deveria, a propriedade fiduciária de todos os bens, mas unicamente a dos "móveis infungíveis 11". Mesmo após a entrada em vigor do Código Civil, a propriedade fiduciária dos imóveis continuou integralmente disciplinada pela Lei nº 9.514/97 12. distinção, o instituto [...] se aclara, até porque toma relevo - que nem a lei nem a doutrina lhe dão, ao contrário do que ocorre com o penhor, a anticrese e a hipoteca - a garantia real propriamente dita (a propriedade fiduciária), em face da alienação fiduciária em garantia que é simplesmente o título que dá margem à sua constituição, tal qual os contratos de penhor, de anticrese e de hipoteca" (Obra citada, p. 46). 10 A propósito, penso que a melhor localização para a disciplina da "propriedade fiduciária" seria no Título X do mesmo Livro, junto com as outras garantias reais; e não, como proposto por José Carlos Moreira Alves, logo após a disciplina da "propriedade resolúvel", posto que este último instituto não se limita à hipótese do credor do contrato de alienação fiduciária em garantia (abrange também a propriedade do fiduciário no fideicomisso, a do donatário ingrato e outras). 11 Veja-se o art. 1.361: "Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor". 12 Os autores foram unânimes em afirmar que a Lei nº 9.514 não se altera em nada com a entrada em vigor do Código Civil. Joel Dias Figueira Jr., ao comentar o dispositivo, afirma: "O novo direito real sobre coisa alheia refere-se tão somente aos bens móveis infungíveis. Portanto, nenhum reflexo haverá na órbita da alienação fiduciária de bens imóveis" (FIUZA, Ricardo (Coord.). Novo Código Civil comentado. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. 2. tir. p.1.198). Luiz Edson Fachin, por sua vez, anota: "Para implicação peculiar, disciplinada em lei, o texto codificado declara que resta concebida como propriedade fiduciária o domínio resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com intento de garantia, transmite ao credor. [...] Trata a disciplina legal tão só da coisa móvel, restringido, por 6 Ademais, a limitação da disciplina da propriedade fiduciária trazida pelo Código Civil manteve acesa a antiga polêmica doutrinária acerca da possibilidade de alienação fiduciária em garantia de bens móveis fungíveis 13. Paulo Restiffe Neto, por exemplo, era peremptório ao negá-la: "A Lei nº 4.728 não distingue expressamente entre coisas fungíveis e infungíveis, mas é óbvio que coisa fungível não pode ser objeto de garantia fiduciária. Por índole, os negócios fiduciários têm como objeto coisas infungíveis, em face da própria natureza da obrigação de restituir, que só pode ser cumprida em relação a coisas suscetíveis de serem conservadas para retorno sem substituição por outras do gênero". A jurisprudência se dividia a respeito da matéria, havendo julgados que conseguinte, o objeto e o respectivo campo de incidência" (AZEVEDO, Antônio Junqueira de (Coord.). Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 15. p. 334-341). Carlos Alberto Dabus Maluf, por fim, atualizando a clássica obra de Washington de Barros Monteiro, leciona: "A propriedade fiduciária é um novo direito real, sobre coisa alheia; refere-se tão somente aos bens móveis infungíveis. Portanto, nenhum reflexo haverá na órbita da alienação fiduciária de bens imóveis. A alienação fiduciária de bens imóveis continua regulada pela Lei nº 9.514, de 20.11.97, que não foi afetada pela nova lei civil de 2002" (Curso de Direito Civil: direito das coisas. 37. ed. rev. e atual. por Carlos Alberto Dabus Maluf. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 246). 13 Paulo Restiffe Neto, por exemplo, era peremptório ao negá-la: "A Lei nº 4.728 não distingue expressamente entre coisas fungíveis e infungíveis, mas é óbvio que coisa fungível não pode ser objeto de garantia fiduciária. Por índole, os negócios fiduciários têm como objeto coisas infungíveis, em face da própria natureza da obrigação de restituir, que só pode ser cumprida em relação a coisas suscetíveis de serem conservadas para retorno sem substituição por outras do gênero" (Obra citada, p. 101) Por outro lado, admitiam a alienação fiduciária em garantia de bens móveis fungíveis autores como Orlando Gomes: "Surpreendentemente, a lei pátria admite que seja objeto de alienação fiduciária mercadoria que se não identifique por números, marcas e sinais indicativos. Resulta esse entendimento da disposição legal que transfere, ao proprietário-fiduciário, o ônus da prova do domínio, contra terceiros" (Obra citada, p. 56); e José Carlos Moreira Alves: "Poderão as coisas fungíveis ser objeto de alienação fiduciária? Em rigor, não deveriam podê-lo. [...] Entretanto, a Lei nº 4.728 - no que não foi modificada pelo Decreto-Lei nº 911 - admite, de certa forma e ilogicamente, que as coisas fungíveis possam ser objeto de alienação fiduciária, porquanto estabelece o art. 66, § 3º, da Lei nº 4.728, na redação dada pelo Decreto-Lei nº 911: [transcreve]. Por conseguinte, graças a esse dispositivo, coisas que não constituam corpus certum podem ser alienadas fiduciariamente. Assim, é possível a uma editora alienar fiduciariamente cinco mil exemplares, não numerados, de uma obra que imprimiu. E como esses exemplares não se identificam por número, marca ou sinal, poderá vendê-los a terceiros, desde que os substitua por outros, de que disponha, do restante da edição. Para não violar o direito do credor, basta manter em estoque cinco mil volumes da obra, ainda que não sejam aqueles que foram alienados fiduciariamente. Só em face de terceiro é que o proprietário fiduciário terá de provar que os exemplares que aquele adquiriu foram os que já lhe haviam sido alienados fiduciariamente, o que, sem dúvida, expõe o terceiro ao risco de vir a perder a coisa adquirida, se o credor fiduciário fizer essa prova" (Obra citada, p. 123-125). 7 admitiram a propriedade fiduciária de bens fungíveis 14 e os que a recusaram 15. A possibilidade de a alienação fiduciária em garantia ter por objeto bens móveis fungíveis somente ficou assentada no direito positivo brasileiro de forma definitiva com a entrada em vigor da Lei nº 10.931/04 16. No viger dessa importante lei de reforma de diversos instrumentos financeiros, concluiu-se a evolução da alienação fiduciária em garantia no direito positivo brasileiro, ganhando o instituto feição moderna e inteiramente adaptada às exigências do nosso tempo. 2 A Cessão Fiduciária de Títulos de Crédito ou Direitos Creditórios A Lei nº 10.931/04, além de resolver a questão da pertinência da propriedade fiduciária de bens móveis fungíveis, aclarou também uma outra questão relacionada ao instituto: a da possibilidade de ele ter por objeto títulos de crédito e outros direitos creditórios. Dispõe o art. 66-B, § 3º, da Lei nº 4.728/65, na redação dada pela Lei nº 10.931/04: 14 Em meu Código Civil Comercial e legislação complementar anotados, indico jurisprudência neste sentido: "Coisas fungíveis podem ser objeto de alienação fiduciária (RTJ, 113/407, 116/1098). 'A legislação pertinente não veda a alienação fiduciária em garantia de bem fungível, subsumindo-se neste os consumíveis, cuja custódia tem o caráter de depósito irregular. Quando pactuantes celebram negócio jurídico com garantia fiduciária de bens fungíveis, assim o fazem como forma para agilizar o empréstimo acobertado por tal garantia' (JSTJ, 20/168)" (6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 447). 15 Também extraído do meu Código Comercial e legislação complementar anotados: "Em sentido contrário: 'Os bens fungíveis que constituem mercadoria comerciável de empresa devedora, ou matéria-prima de seus produtos comerciáveis, não podem ser objeto de alienação fiduciária. Infringe à própria natureza do instituto a alienação em garantia de bens fungíveis destinados especificamente à venda imediata pelo devedor, ou destinados necessariamente a servir de insumo ou matéria-prima nos produtos de sua fabricação e comércio, no exercício normal do ramo de mercancia do devedor' (JSTJ, 23/68; também: RT, 665/157; também: STJ, DJU-I, 17 dez. 1992, p. 24.207, BA 1.797; também BA 1.905)". 16 Essa lei é originária da conversão de medidas provisórias que remontam a 2001. Mas, como acontece em relação a qualquer medida provisória, somente a conversão em lei confere à norma jurídica a definitividade apta a conferir aos seus destinatários a segurança que se espera do direito positivo. 8 "É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independentemente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada." Hoje em dia, assim, os institutos dos contratos de instituição de propriedade ou titularidade fiduciária (isto é, a alienação fiduciária em garantia e a cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios) encontram-se disciplinados em vários diplomas legislativos. No art. 66-B da Lei nº 4.728/65, abriga-se o regramento pertinente ao contrato de alienação fiduciária em garantia celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais ou destinado a garantir créditos fiscais ou previdenciários. Nesse dispositivo, está claro que a propriedade fiduciária pode instituir-se sobre qualquer tipo de bem móvel, fungível ou infungível, ou sobre direitos a eles relativos. Também nesse dispositivo, cuidou a lei da cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios. Na Lei nº 9.514/97, acham-se as disposições sobre o contrato de alienação fiduciária em garantia e a propriedade fiduciária referentes a bens imóveis. No Código Civil, por fim, vê-se a disciplina do instituto de direito real sobre bens móveis infungíveis, que se aplica subsidiariamente a qualquer outro bem ou direito objeto da mesma garantia real (CC, art. 1.368-A). Mas, a despeito da dispersão normativa - que até pode dificultar o entendimento inicial do assunto -, foi feliz o legislador ao harmonizar a 9 efetivação da garantia, independentemente da natureza do objeto alienado fiduciariamente ao credor. Superando a discussão sobre a vedação do pacto comissório 17, o direito positivo passou a contemplar, em relação a qualquer objeto de titularidade ou propriedade fiduciária, a efetivação da garantia mediante a consolidação da titularidade ou propriedade resolúvel no patrimônio do credor fiduciário 18. Bem entendida a questão: o pacto comissório continua proibido, mas num sentido diverso: é nula qualquer cláusula estabelecendo a transferência da propriedade do objeto da garantia ao credor fiduciário não mediatizada pelo procedimento administrativo ou pelas tentativas de venda em leilão previstos em lei 19. A cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios, assim, é o negócio jurídico em que uma das partes (cedente fiduciante) cede à outra (cessionária fiduciária) seus direitos de crédito perante terceiros ("Recebíveis") em garantia do cumprimento de obrigações, geralmente as de mutuário. O cessionário fiduciário titula a propriedade 17 Orlando Gomes explicava as razões da proibição do pacto comissório na alienação fiduciária nos seguintes termos: "No propósito de impedir que o devedor, para obter o financiamento, seja constrangido a admitir como consequência do inadimplemento a consolidação da propriedade resolúvel do credor, proíbe a lei o pacto comissório. Assenta a proibição no pressuposto de que esse pacto se reveste de caráter usurário. Estendeu-a o legislador à alienação fiduciária em garantia, instituindo-a como o fez para o penhor e a hipoteca, ao declarar nula a cláusula que autorize o proprietário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento. O pacto comissório, assim nos direitos reais de garantia como na alienação fiduciária, é antes ineficaz, tendo-se por não escrito, tanto quanto contraído in continenti como ex intervallo" (Obra citada, p. 113). Já Sílvio Rodrigues dava outra explicação: "No mútuo, em geral, é o credor quem dita a lei do contrato, nada restando ao devedor senão concordar com as condições que lhe são impostas. De modo que, não fosse a proibição legal e o pacto comissório, se tornaria cláusula de estilo, visto que o credor exigiria, sempre, do devedor, a declaração de que abriria mão do bem dado em garantia, em caso de não cumprir o contrato. Com o intuito, portanto, de proteger o devedor, parte mais fraca no contrato, é que o legislador proíbe a convenção de perda do objeto da garantia, em caso de inadimplemento"(Direito Civil. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 5. p. 346). 18 É o que dispõem o art. 26 da Lei nº 9.514/97, o art. 66-B, § 3º, da Lei nº 4.728/65 e o art. 3º, § 1º, do DL 911/69, estes dois últimos dispositivos com a redação dada pela Lei nº 10.931/04. 19 Para o aprofundamento desta questão, remeto o leitor ao meu Curso de Direito Civil (São Paulo: Saraiva, 2006. v. 4. p. 215-218). 10 (ou "titularidade") fiduciária dos "Recebíveis", de modo que o inadimplemento da obrigação garantida importa a consolidação deles em seu patrimônio. Na cessão fiduciária de títulos de crédito, o cessionário fiduciário tem, também, as posses direta e indireta do documento representativo dos "Recebíveis" (duplicata, nota promissória, cheque etc.). O cessionário fiduciário, destaco, é o titular do direito de crédito cedido pelo devedor. Não se trata de uma simples caução de títulos de crédito, mas de verdadeira transferência do direito à instituição financeira. O direito ao crédito cedido passa, em outros termos, a integrar o patrimônio da instituição financeira, como objeto de propriedade resolúvel. Se ocorrer o adimplemento da obrigação garantida pela cessão fiduciária, essa propriedade se resolve e o direito objeto da cessão fiduciária deixa de integrar o patrimônio da instituição financeira para retornar ao do antigo mutuário. Mas, se não ocorre o adimplemento da obrigação, a propriedade se consolida e o mesmo direito que integrava condicionalmente o patrimônio da instituição financeira passa a integrá-lo incondicionalmente (isto é, consolida-se a propriedade sobre ele). 3 Os Credores Excluídos da Recuperação Judicial Assim como a antiga lei falimentar excluía determinados credores dos efeitos da concordata, também a atual preserva alguns dos da recuperação judicial. A concordata produzia efeitos apenas para os credores quirografários posteriores à impetração. O credor que, na falência, gozava de qualquer tipo de preferência, não era afetado pelos efeitos da concordata. Quer dizer, o processamento do pedido ou mesmo a 11 concessão do favor legal não implicavam qualquer alteração no valor do crédito ou vencimento da obrigação 20. A exclusão dos efeitos da concordata dos créditos com preferência na falência justificava-se, como muitos outros aspectos da lei falimentar de 1945, em parte pela tutela de interesses individualistas dos credores. Exceção feita à preservação dos créditos trabalhistas e fiscais, a exclusão dos efeitos da concordata dos demais créditos com preferência visava muito mais atender ao interesse de seus titulares em receber o devido no vencimento, pelo valor integral, do que amparar interesses difusos ou coletivos, cuja importância transcendia os individuais dos credores do concordatário. As exclusões dos credores dos efeitos da recuperação judicial, ao contrário, visam, na moderna economia brasileira, proporcionar meios para o barateamento do crédito e criação das condições para o desenvolvimento econômico, valores de maior envergadura que os anteriormente prestigiados. Tais exclusões são previstas no art. 49, §§ 3º e 4º, da LF: "Art. 49. (...) § 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em 20 É o que decorria do disposto no art. 147 do DL 7.661/45: "A concordata concedida obriga a todos os credores quirografários, comerciais ou civis, admitidos ou não no passivo, residentes no País ou fora dele, ausentes ou embargantes". Cf. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. v. 2. p. 40; VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 4. ed. atual. por J. A. Penalva Santos e Paulo Penalva Santos. Rio de Janeiro: RF, 1999. v. II. p. 258-259. 12 incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. § 4º Não se sujeitará aos efeitos da recuperação judicial a importância a que se refere o inciso II do art. 86." O § 4º, por sua vez, remete ao inciso II do art. 86 da LF, relacionado aos pedidos de restituição na falência: "Art. 86. Proceder-se-á à restituição em dinheiro: (...) II - da importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na forma do art. 75, §§ 3º e 4º, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, desde que o prazo total da operação, inclusive eventuais prorrogações, não exceda o previsto nas normas específicas da autoridade competente;" Desse modo, são credores excluídos dos efeitos da recuperação judicial: (1) proprietário fiduciário; (2) arrendador mercantil; (3) proprietário ou promitente vendedor de imóvel com cláusula de irretratabilidade e inalienabilidade ou com reserva de domínio; (4) instituição financeira que tenha antecipado ao exportador recursos com base em contrato de câmbio para exportação (ACC). Os objetivos da exclusão, como dito, ligam-se aos da lei de 2005; ou seja, destinam-se a criar, no marco institucional, as condições para o desenvolvimento econômico. Ao retirar dos efeitos da recuperação judicial 13 determinados credores, a lei teve em mira possibilitar o barateamento dos negócios em que eles se envolvem, atendendo ao interesse de toda a sociedade brasileira. Isso é particularmente visível na questão relativa à exclusão da instituição financeira na operação de ACC 21. Sabemos que um dos grandes desafios do Brasil desde sua inserção na economia globalizada e estabilização monetária, verificadas a partir dos anos 1990, tem sido o de aumentar as exportações. Com superávits comerciais expressivos poderá nossa economia reduzir a dependência de divisas externas e fortalecer seu processo de desenvolvimento. Beneficia toda a sociedade brasileira, por isso, o estímulo às exportações. A facilitação e barateamento do 21 "A exportadora se compromete a entregar mercadorias ao comprador situado no exterior. Este, por sua vez, se compromete a pagar-lhe o valor das mercadorias. O pagamento é feito, via de regra, em moeda de curso internacional como o dólar norte-americano ou, eventualmente, o euro. O exportador é obrigado, pela lei brasileira, a vender a moeda estrangeira que recebe em pagamento de suas mercadorias a uma instituição financeira, mediante a celebração de contrato de câmbio. Evidentemente, a venda ao exterior é contratada algum tempo antes da entrega da mercadoria e liberação do pagamento - que se faz, em geral, por crédito documentário mediado por instituições financeiras. Por vezes, passam-se vários meses entre a contratação da exportação e sua execução. Nesse período, o exportador que precisa de financiamento pode obtê-lo numa operação de ACC (antecipação de crédito derivado de contrato de câmbio). Ele procura o banco ao qual pretende vender as divisas que receberá quando da futura entrega das mercadorias e celebra, desde logo, o contrato de câmbio. O banco, então, antecipa ao exportador o preço das divisas e fica ele o credor da moeda estrangeira a ser entregue pelo estrangeiro comprador das mercadorias (melhor, pela instituição financeira contratada pelo estrangeiro comprador das mercadorias para emitir a carta de crédito). Em termos singelos, a garantia do banco, na operação de ACC, é a solvência da instituição financeira contratada pelo estrangeiro comprador das mercadorias para emitir a carta de crédito. A antecipação, claro, é operação financeira lucrativa para o banco: o valor antecipado ao exportador é sempre menor que o mencionado na carta de crédito. Se antes da entrega das mercadorias e vencimento do crédito documentário, ocorrer a falência do exportador, ele não poderá dar cumprimento ao contrato. Em consequência, a instituição financeira contratada pelo estrangeiro comprador não desembolsará nenhuma divisa e o banco que procedeu à antecipação da quantia correspondente perderá a garantia. Nessa hipótese, tem ela direito à restituição do valor antecipado. Se a lei não lhe assegurasse um crédito extraconcursal (via pedido de restituição), os juros cobrados dos exportadores nesse tipo de operação financeira teriam que ser maiores para absorverem o risco associado a essa eventualidade. Como titulariza crédito extraconcursal, a instituição financeira que procedeu o adiantamento em favor do exportador será paga antes dos credores, minimizando-se dessa forma o risco de não recebimento." (meu Curso de Direito Comercial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 3. p. 336) 14 financiamento aos exportadores representam, em outros termos, medida do interesse nacional. Quanto maiores forem as garantias de recuperação do dinheiro adiantado aos exportadores pelos bancos, menores serão os juros praticados. Isso porque parte das taxas cobradas pelas instituições financeiras é pressionada pelos riscos associados à insolvência ou inadimplemento do devedor. A LF estabelece duas medidas visando neutralizar essa pressão sobre os juros praticados no financiamento à exportação. De um lado, prevê a restituição das quantias adiantadas ao exportador falido com base num contrato de câmbio. Definindo por esse modo o crédito da instituição financeira como extraconcursal, a lei atenua o risco associado à insolvência e, consequentemente, contribui para a redução dos juros cobrados nessa linha de financiamento. De outro lado, estabelece a não sujeição à Recuperação Judicial do crédito da instituição financeira oriundo da antecipação com base em contrato de câmbio. Não tendo que embutir em seus juros nenhuma taxa associada ao risco de impetração pelo exportador de recuperação judicial, a instituição pode praticar juros menores. Também em relação aos demais credores excluídos dos efeitos da recuperação judicial, quando são instituições financeiras, é válida a mesma justificativa. A retomada do desenvolvimento econômico pressupõe o barateamento dos juros bancários, nos tênues limites que o controle do processo inflacionário pode permitir. Quer dizer, o custo dos financiamentos bancários garantidos por leasing não é pressionado pelo risco associado à recuperação judicial do devedor porque a lei exclui o crédito decorrente de arrendamento mercantil dos efeitos do processamento dessa medida. 15 O titular de propriedade fiduciária, como dito, tem seu crédito excluído dos efeitos da recuperação judicial. Isso significa que nenhuma consequência advém para o crédito garantido por alienação fiduciária da impetração, pelo devedor fiduciante, da recuperação judicial. Também não produz nenhuma implicação relativamente aos direitos do titular da propriedade fiduciária o despacho de processamento da recuperação judicial. Finalmente, a obrigação do devedor fiduciante não pode ser objeto de nenhuma cláusula do plano de reorganização. Qualquer menção a ela no plano é por tudo e em tudo inválido (porque contraria o art. 49, § 3º, da LF) e ineficaz. O cessionário fiduciário, na cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios, é titular da propriedade resolúvel do crédito cedido. Como acentuado acima, esse crédito integra o patrimônio da instituição financeira cessionária. Como integra na condição de resolubilidade, o adimplemento da obrigação garantida pelo cedente fiduciante importa seu retorno ao patrimônio deste. Mas apenas o cumprimento da obrigação tem essa consequência. Quando ela é inadimplida, o direito cedido fiduciariamente se consolida no patrimônio do cessionário fiduciário. A cessão fiduciária de títulos de crédito ou de direitos creditórios, note-se, gera sobre o objeto cedido um direito real (um direito real em garantia), e não pessoal. A instituição financeira cessionária torna-se proprietária desses títulos ou direitos, e não apenas credora. É esta a larga implicação do instituto da cessão fiduciária em garantia cujo objeto são títulos de crédito ou direitos creditórios do cedente 22. 22 Nada há a estranhar na figura de direito de propriedade sobre direitos creditórios. De há muito está superada, na doutrina, a noção de que a propriedade deve ter sempre como objeto um bem corpóreo. Fala-se, assim, em propriedade intelectual, cujo objeto são obras científicas, literária ou artísticas, marcas registradas, patentes de invenção, etc. (Cf. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito privado. 2. ed. atual. por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Booksellers, 2001. V. XI. p. 43-44). 16 Há, portanto, uma diferença fundamental entre, de um lado, a cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios, e, de outro, as operações de penhor ou caução de títulos (também de crédito, valores mobiliários, aplicações financeiras etc.). Enquanto na cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios, tais títulos ou direitos passam ao patrimônio da instituição financeira cessionária e nele permanecem enquanto não cumprida a obrigação garantida, nas operações de penhor ou caução de títulos, estes são apenas transferidos à posse da credora, mas os direitos creditórios neles incorporados não passam nunca a compor o patrimônio dela. Essa diferença reflete, inclusive, no tratamento dispensado a cada hipótese pela LF, quando disciplina a recuperação judicial. Para os títulos de crédito e direitos creditórios cedidos fiduciariamente vige a regra, já transcrita acima, da exclusão dos efeitos da recuperação judicial (LF, art. 49, § 3º). A seu turno, para as operações de penhor ou caução de títulos vigora norma diversa, que as submete aos efeitos da recuperação judicial 23. O depósito em conta vinculada tem pertinência porque o crédito relacionado ao título empenhado ou caucionado é ainda da propriedade do devedor impetrante da recuperação judicial. Encontra-se o instrumento de dívida na posse do credor pignoratício, mas a efetivação dessa garantia fica suspensa porque pode ser afetada pelo plano de reorganização. 23 Em relação às operações de penhor ou caução de títulos a regra a observar é a constante do art. 49, § 5º, da LF, que prevê o depósito dos valores pagos em contas vinculadas ao juízo da recuperação judicial: "Tratando-se de crédito garantido por penhor sobre títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras ou valores mobiliários, poderão ser substituídas ou renovadas as garantias liquidadas ou vencidas durante a recuperação judicial e, enquanto não renovadas ou substituídas, o valor eventualmente recebido em pagamento das garantias permanecerá em conta vinculada durante o período de suspensão de que trata o § 4º do art. 6º". 17 Não cabe, porém, falar-se no mesmo depósito para os títulos de crédito ou direitos creditórios cedidos fiduciariamente porque não pertencem mais ao patrimônio do devedor impetrante da recuperação judicial. Eles pertencem ao patrimônio da instituição financeira cessionária e não há porque mantê-los, quando vencidos e satisfeitos, em conta vinculada ao juízo da recuperação judicial. Aliás, se a LF eventualmente pretendesse estender aos títulos de crédito e direitos creditórios fiduciariamente cedidos a sistemática do art. 49, § 5º, reservada às operações de penhor ou caução de títulos, ela seria, nessa extensão, inconstitucional. Estaria desrespeitando o direito de propriedade do cessionário fiduciário constitucionalmente assegurado. 4 Conclusão As garantias reais se classificam em duas categorias: direitos reais de garantia e direitos reais em garantia. A distinção foi proposta, no direito brasileiro, por Pontes de Miranda, ao discutir a dação em garantia de direitos reais sobre coisa alheia 24. José Carlos Moreira Alves, ao tratar da natureza da alienação fiduciária, recuperou a distinção de Pontes de Miranda, averbou ter sido inspirada na doutrina alemã e estendeu aos direitos reais ditos ilimitados 25. Os direitos reais de garantia são o penhor, a hipoteca e a anticrese; enquanto os direitos reais em garantia são a alienação fiduciária em garantia e a cessão fiduciária de títulos de crédito e direitos creditórios 26. Os direitos reais de garantia procuram assegurar o cumprimento de obrigação mediante a instituição de um direito real titulado pelo credor 24 Obra citada, v. XXI, p. 403. Obra citada, p. 154-155. 26 Ver meu Curso de Direito Civil. Obra citada, p. 213-215. 25 18 sobre bem da propriedade do devedor. Por vezes, a posse direta do bem onerado transmite-se ao titular da garantia real, como no penhor comum; mas em nenhuma hipótese o devedor deixa de ser o seu proprietário, podendo até mesmo, se achar interessado, alienar o bem gravado. Ao seu turno, nos direitos reais em garantia, o cumprimento da obrigação é garantido pela transferência do bem onerado à propriedade do credor. O sujeito ativo da obrigação garantida passa a titular a propriedade resolúvel do bem. Aqui, também, por vezes a posse direta do bem onerado é transmitida ao titular da garantia, como na cessão fiduciária de direito creditório; por vezes, fica em mãos do devedor, na condição de depositário. O autor da garantia real, contudo, despoja-se da condição de proprietário do bem (ou titular do direito) sobre o qual recai o direito real. Despojado desse atributo, não pode, por evidente, alienar o bem dado em garantia (porque não é mais dele). Essa importante distinção das espécies de garantia real está nos fundamentos da exclusão do cessionário fiduciário dos efeitos da recuperação judicial do cedente fiduciante. Enraizada na Constituição, a proteção ao direito de propriedade estende-se à titularidade do crédito cedido fiduciariamente à instituição financeira, afastando-a dos efeitos da recuperação judicial do cedente. A exclusão do credor garantido por cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios dos efeitos da recuperação judicial é resultante da proteção constitucionalmente liberada ao direito de propriedade. Como o bem onerado, nos direitos reais em garantia, é da propriedade resolúvel do credor, não poderia a lei ordinária estabelecer qualquer regra que importasse a restrição ao exercício desse direito. Seria inconstitucional, em outras palavras, eventual previsão da lei falimentar no sentido de submeter aos efeitos da recuperação judicial o credor titular de direito real em garantia. A mesma inconstitucionalidade, porém, não existe quando a lei estende os efeitos da recuperação judicial aos credores que titulam direito real de garantia. 19