A CESSÃO FIDUCIÁRIA DE TÍTULOS DE CRÉDITO OU
DIREITOS CREDITÓRIOS E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL DO
DEVEDOR CEDENTE
Fábio Ulhôa Coelho
1 As Origens do Instituto da Cessão Fiduciária
A cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios é
negócio jurídico que visa a constituição de direito real em garantia
consistente na titularidade fiduciária de créditos (documentados ou não em
títulos de crédito) cedidos pelo autor da garantia. As origens do instituto
encontram-se no contrato de alienação fiduciária em garantia, que tem
igual objetivo.
A introdução da alienação fiduciária em garantia no direito brasileiro
originou-se de proposta dos advogados cariocas José Luiz Bulhões
Pedreira e George Siqueira, feita no bojo da discussão da reforma do
mercado de capitais que o governo Castello Branco, em 1965, patrocinava.
De acordo com a justificação apresentada pelo primeiro aos Ministros da
Fazenda (Gouveia de Bulhões), Indústria e Comércio (Daniel Faraco) e
Planejamento (Roberto Campos): "A alienação fiduciária em garantia
corresponde ao trust receipt, amplamente utilizado nos países anglosaxões, pelo qual o devedor transfere fiduciariamente o domínio da coisa,
para que esta sirva de garantia. Ele difere do penhor [porque] transfere o
próprio domínio, e não apenas constitui um direito real de garantia [...] 1".
1
Segundo Cândido Camargo (Da alienação fiduciária em garantia e fundos contábeis de natureza
financeira face à Lei de Mercado de Capitais. In: Arquivos do Ministério da Justiça. Brasília: Ministério
da Justiça, 1967. n. 103. p. 37-38).
1
A sugestão no sentido de introduzir no direito brasileiro a alienação
fiduciária em garantia, porém, não foi acolhida pelos Ministros e o projeto
de lei de reforma do mercado de capitais seguiu para o Congresso sem
qualquer
referência
ao
instituto.
Prevalecera,
no
âmbito
do
Poder
Executivo, o entendimento de que o projeto estava já sobrecarregado de
matérias não diretamente ligadas ao seu objeto. Parecia já, no dizer de
Gouveia de Bulhões, uma "colcha de retalhos".
Na Câmara dos Deputados, aprovou-se o projeto de lei sem
alterações. No Senado Federal, porém, em razão de emenda do Senador
Daniel Krieger, apresentada em plenário, e de subemenda do Senador
Jefferson de Aguiar, na Comissão de Constituição e Justiça, a sugestão de
Bulhões Pedreira e George Siqueira foi aproveitada. Delas resultou o art.
66 da Lei nº 4.728/65, o primeiro dispositivo a tratar, no direito brasileiro,
da propriedade fiduciária como instrumento de garantia de crédito 2.
Posteriormente, pelo DL 911/69, aperfeiçoaram-se tanto a definição do
instituto
como
as
regras
de
direito
processual
assecuratórias
da
efetividade da garantia.
A estrutura jurídica fundamental da alienação fiduciária em garantia
é bem conhecida e bastante operacional. Por este contrato, cujas raízes se
encontram no direito romano 3, o credor se torna titular da propriedade
resolúvel da coisa e seu possuidor indireto, enquanto o devedor é investido
na condição de seu possuidor direto e depositário. Cumprida a obrigação
2
ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1987. p. 9-13.
3
Paulo Restiffe Neto esclarece que "a fidúcia, instituto jurídico que repousa exclusivamente na
lealdade e honestidade de uma das partes, o fiduciário, correspondente, por isso mesmo, à boa-fé e
confiança nele depositada pela outra parte, o fiduciante, tem a sua origem no direito romano, que a
hauriu na Lei das XII Tábuas, vindo a ser encontrada em textos interpolados do Digesto" (Garantia
fiduciária. 2. ed. São Paulo: RT, 1976. p. 1).
2
que este tem perante aquele, opera-se a resolução da propriedade: o
sujeito que era devedor passa a ser o proprietário pleno e possuidor da
coisa, e o que era credor deixa de titularizar qualquer direito real sobre
ela. Não cumprida a obrigação, porém, tem o credor instrumentos ágeis e
eficazes para ver satisfeito seu direito. Sendo o proprietário e possuidor
indireto do bem objeto da alienação fiduciária em garantia, ele pode
requerer sua busca e apreensão, com o objetivo de vendê-lo e, com o
produto da venda, satisfazer o crédito 4.
A agilidade na constituição e efetividade na execução da garantia
apresentadas pelo novo instituto certamente foram as responsáveis pelo
extraordinário sucesso que experimentou. A referência ao instituto do trust
receipt na sugestão acolhida no Senado 5- 6, bem como a pesquisa dos
anais da tramitação do projeto de lei de reforma do mercado de capitais
nesta Casa 7, mostram que a intenção do legislador era a de criar
4
Tem sido usual chamar-se o credor de fiduciário e o devedor de fiduciante. Empregaremos estas
expressões, embora conhecendo a crítica que respeitáveis doutrinadores lhes reservam. José Carlos
Moreira Alves, por exemplo, considera que a alienação fiduciária em garantia da Lei nº 4.728/65 não
pode ser considerada espécie de negócio fiduciário, nem em seu perfil romano (em que os direitos do
fiduciário sobre a coisa são limitados pelo contrato com o fiduciante), nem no germânico (em que os
limites são dados pela condição resolutiva). Por esta razão, repudia as denominações fiduciário e
fiduciante (Obra citada, p. 93).
5
O trust receipt é uma operação de garantia de financiamento do comércio atacadista. Define-se
como: "Method of financing commercial transactions by means of which title passes directly from
manufacturer or seller to banker or lender who as owner delivers goods to dealer in whose behalf he is
acting secondarily, and to whom title goes ultimately when primary right of banker or lender has been
satisfied" (Black's Law Dictionary. St. Paul, Minn.: West Pub., 1991. p. 1.515).
6
José Carlos Moreira Alves mostra como é indevida a aproximação entre os institutos da alienação
fiduciária em garantia e o trust receipt. Para ele, o instituto do direito norte-americano que melhor
corresponde ao contrato brasileiro introduzido pela Lei nº 4.728/65 é o chattel mortgage (Obra citada,
p. 35-45). Também Orlando Gomes examina a matéria e conclui que a alienação fiduciária em
garantia não se confunde com o trust receipt, sendo a confiança no contratante e a causa os pontos
em comum entre eles (Alienação fiduciária em garantia. 2. ed. São Paulo: RT, 1971. p. 18-19).
7
A justificativa da subemenda Jefferson de Aguiar apresentava como objetivo da propositura o
fomento das importações. De acordo com George Siqueira, nela citado, a alienação fiduciária em
garantia: "É exatamente a figura jurídica que consagramos na presente emenda, visando,
precipuamente, a facilitar o financiamento das importações, favorecendo consequentemente o
mercado de capitais" (Diário do Congresso Nacional, 11 jun. 1965, seção II, p. 1.740).
3
instrumento de garantia de financiamento de atividades econômicas
ligadas à circulação de mercadorias, e não propriamente de bens de
consumo. Cedo, porém, e a despeito da destinação originária reservada
pelos legisladores ao instituto, a alienação fiduciária em garantia foi usada
também no financiamento ao consumidor para a aquisição de bens de
consumo duráveis.
A versatilidade da alienação fiduciária em garantia chamou a atenção
novamente
do
legislador
em
1997.
Quando
disciplinou
o
Sistema
Financeiro Imobiliário (SFI), por meio da Lei nº 9.514, de 20 de novembro,
introduziu a figura da alienação fiduciária de bens imóveis. Naquele ano,
uma grande construtora havia mergulhado numa crise extraordinária,
causando prejuízos de monta a milhares de consumidores no país todo. A
lei do SFI destinava-se a impedir que o lamentável episódio se repetisse,
por meio da modernização dos instrumentos jurídicos de financiamento de
empreendimentos imobiliários. Tais instrumentos deviam compatibilizar os
interesses dos adquirentes de imóveis em construção e os dos agentes
financiadores, na hipótese de falência da incorporadora. Sua aprovação foi
saudada como a solução para os problemas de graves repercussões
econômicas e sociais como os causados naquele tempo.
A lei do SFI introduziu, pois, no direito brasileiro, complexos
instrumentos jurídicos e financeiros, como a securitização de recebíveis
imobiliários, regime fiduciário de créditos imobiliários e o patrimônio
segregado. No capítulo das garantias reais, dispôs sobre a propriedade
fiduciária de coisa imóvel. Até então, o instituto não podia ter por objeto
senão bens móveis. A Lei nº 9.514/97 ampliou-lhe o espectro para permitir
4
que alcançasse também a propriedade imobiliária e os direitos a ela
relativos, inclusive os creditórios 8.
Continuou a evoluir a disciplina legal da alienação fiduciária em
garantia, em atenção à dinâmica dos negócios, que cada vez mais
identificava nela um dos melhores instrumentos para a segura concessão
de crédito, tanto para empresários como para consumidores finais. Nesse
contexto evolutivo, o CC/02 dá um importante passo, ao tratar de um tema
próximo, o da propriedade fiduciária.
Noto que não se confunde a alienação fiduciária em garantia com a
propriedade fiduciária; são institutos diferentes, embora contíguos. O
primeiro é o instrumento de constituição do segundo. Assim como não se
identificam o contrato de penhor com o penhor propriamente dito, nem o
contrato de hipoteca com a hipoteca, o instrumento contratual de
constituição da garantia fiduciária é algo diverso da garantia mesma.
A alienação fiduciária em garantia é negócio jurídico. Aproxima,
portanto, duas partes, o credor-fiduciário e o devedor-fiduciante. Os
direitos e obrigações que mutuamente se outorgam são relativos. Sua
disciplina se encontra no direito das obrigações. Já a propriedade
fiduciária é espécie de direito real em garantia. O proprietário fiduciário e o
possuidor fiduciante têm, perante terceiros, direitos absolutos derivados do
domínio ou da posse. Sua disciplina ambienta-se no direito das coisas 9.
8
A alienação fiduciária em garantia de bens imóveis foi definida no art. 22 da Lei do SFI: "A alienação
fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo
de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa
imóvel".
9
Como esclarece José Carlos Moreira Alves: "A alienação fiduciária em garantia é, tão somente, o
contrato que serve de título à constituição da propriedade fiduciária que - esta sim - é a garantia real
criada, em nosso direito, pelo art. 66 da Lei nº 4.728, modificado, posteriormente, pelo Decreto-Lei nº
911. Portanto, como ocorre no sistema jurídico brasileiro com as garantias reais até então
conhecidas, há, de um lado, o contrato que serve de título a ela (contrato de penhor, contrato de
hipoteca, contrato de anticrese, alienação fiduciária em garantia), e, de outro, a garantia real cujo
título é um desses contratos (o penhor, a hipoteca, a anticrese, a propriedade fiduciária). Feita essa
5
No CC/02, o legislador disciplinou o instituto de direito real, isto é, a
propriedade fiduciária, no Capítulo IX do Título III (Da propriedade) do
Livro III (Do direito das coisas) da Parte Especial. Nele, reservou apenas
um dispositivo para o instituto de direito obrigacional, a alienação fiduciária
em garantia: o art. 1.362, que estabelece os elementos essenciais ao
contrato constitutivo da propriedade fiduciária. Nos demais, albergou
normas respeitantes ao direito real em garantia 10.
O importante passo dado pelo legislador na disciplina da matéria
com a edição do Código Civil, contudo, não representou a última etapa do
processo de evolução legislativa aqui descrito. Originado de projeto de lei
dos anos 1970, o Código Civil infelizmente não recebeu, durante a
arrastada tramitação no Congresso Nacional, a constante adaptação que a
dinâmica da economia exige. Em outros termos, importa assinalar que o
CC/02 não disciplinou, como deveria, a propriedade fiduciária de todos os
bens, mas unicamente a dos "móveis infungíveis 11". Mesmo após a entrada
em vigor do Código Civil, a propriedade fiduciária dos imóveis continuou
integralmente disciplinada pela Lei nº 9.514/97 12.
distinção, o instituto [...] se aclara, até porque toma relevo - que nem a lei nem a doutrina lhe dão, ao
contrário do que ocorre com o penhor, a anticrese e a hipoteca - a garantia real propriamente dita (a
propriedade fiduciária), em face da alienação fiduciária em garantia que é simplesmente o título que
dá margem à sua constituição, tal qual os contratos de penhor, de anticrese e de hipoteca" (Obra
citada, p. 46).
10
A propósito, penso que a melhor localização para a disciplina da "propriedade fiduciária" seria no
Título X do mesmo Livro, junto com as outras garantias reais; e não, como proposto por José Carlos
Moreira Alves, logo após a disciplina da "propriedade resolúvel", posto que este último instituto não se
limita à hipótese do credor do contrato de alienação fiduciária em garantia (abrange também a
propriedade do fiduciário no fideicomisso, a do donatário ingrato e outras).
11
Veja-se o art. 1.361: "Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que
o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor".
12
Os autores foram unânimes em afirmar que a Lei nº 9.514 não se altera em nada com a entrada em
vigor do Código Civil. Joel Dias Figueira Jr., ao comentar o dispositivo, afirma: "O novo direito real
sobre coisa alheia refere-se tão somente aos bens móveis infungíveis. Portanto, nenhum reflexo
haverá na órbita da alienação fiduciária de bens imóveis" (FIUZA, Ricardo (Coord.). Novo Código Civil
comentado. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. 2. tir. p.1.198). Luiz Edson Fachin, por sua vez, anota:
"Para implicação peculiar, disciplinada em lei, o texto codificado declara que resta concebida como
propriedade fiduciária o domínio resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com intento de
garantia, transmite ao credor. [...] Trata a disciplina legal tão só da coisa móvel, restringido, por
6
Ademais, a limitação da disciplina da propriedade fiduciária trazida
pelo Código Civil manteve acesa a antiga polêmica doutrinária acerca da
possibilidade
de
alienação
fiduciária
em
garantia
de
bens
móveis
fungíveis 13. Paulo Restiffe Neto, por exemplo, era peremptório ao negá-la:
"A Lei nº 4.728 não distingue expressamente entre coisas fungíveis e
infungíveis, mas é óbvio que coisa fungível não pode ser objeto de
garantia fiduciária. Por índole, os negócios fiduciários têm como objeto
coisas infungíveis, em face da própria natureza da obrigação de restituir,
que só pode ser cumprida em relação a coisas suscetíveis de serem
conservadas para retorno sem substituição por outras do gênero". A
jurisprudência se dividia a respeito da matéria, havendo julgados que
conseguinte, o objeto e o respectivo campo de incidência" (AZEVEDO, Antônio Junqueira de
(Coord.). Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 15. p. 334-341). Carlos Alberto
Dabus Maluf, por fim, atualizando a clássica obra de Washington de Barros Monteiro, leciona: "A
propriedade fiduciária é um novo direito real, sobre coisa alheia; refere-se tão somente aos bens
móveis infungíveis. Portanto, nenhum reflexo haverá na órbita da alienação fiduciária de bens
imóveis. A alienação fiduciária de bens imóveis continua regulada pela Lei nº 9.514, de 20.11.97, que
não foi afetada pela nova lei civil de 2002" (Curso de Direito Civil: direito das coisas. 37. ed. rev. e
atual. por Carlos Alberto Dabus Maluf. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 246).
13
Paulo Restiffe Neto, por exemplo, era peremptório ao negá-la: "A Lei nº 4.728 não distingue
expressamente entre coisas fungíveis e infungíveis, mas é óbvio que coisa fungível não pode ser
objeto de garantia fiduciária. Por índole, os negócios fiduciários têm como objeto coisas infungíveis,
em face da própria natureza da obrigação de restituir, que só pode ser cumprida em relação a coisas
suscetíveis de serem conservadas para retorno sem substituição por outras do gênero" (Obra citada,
p. 101)
Por outro lado, admitiam a alienação fiduciária em garantia de bens móveis fungíveis autores como
Orlando Gomes: "Surpreendentemente, a lei pátria admite que seja objeto de alienação fiduciária
mercadoria que se não identifique por números, marcas e sinais indicativos. Resulta esse
entendimento da disposição legal que transfere, ao proprietário-fiduciário, o ônus da prova do
domínio, contra terceiros" (Obra citada, p. 56); e José Carlos Moreira Alves: "Poderão as coisas
fungíveis ser objeto de alienação fiduciária? Em rigor, não deveriam podê-lo. [...] Entretanto, a Lei nº
4.728 - no que não foi modificada pelo Decreto-Lei nº 911 - admite, de certa forma e ilogicamente,
que as coisas fungíveis possam ser objeto de alienação fiduciária, porquanto estabelece o art. 66, §
3º, da Lei nº 4.728, na redação dada pelo Decreto-Lei nº 911: [transcreve]. Por conseguinte, graças a
esse dispositivo, coisas que não constituam corpus certum podem ser alienadas fiduciariamente.
Assim, é possível a uma editora alienar fiduciariamente cinco mil exemplares, não numerados, de
uma obra que imprimiu. E como esses exemplares não se identificam por número, marca ou sinal,
poderá vendê-los a terceiros, desde que os substitua por outros, de que disponha, do restante da
edição. Para não violar o direito do credor, basta manter em estoque cinco mil volumes da obra, ainda
que não sejam aqueles que foram alienados fiduciariamente. Só em face de terceiro é que o
proprietário fiduciário terá de provar que os exemplares que aquele adquiriu foram os que já lhe
haviam sido alienados fiduciariamente, o que, sem dúvida, expõe o terceiro ao risco de vir a perder a
coisa adquirida, se o credor fiduciário fizer essa prova" (Obra citada, p. 123-125).
7
admitiram a propriedade fiduciária de bens fungíveis 14 e os que a
recusaram 15.
A possibilidade de a alienação fiduciária em garantia ter por objeto
bens móveis fungíveis somente ficou assentada no direito positivo
brasileiro de forma definitiva com a entrada em vigor da Lei nº 10.931/04 16.
No viger dessa importante lei de reforma de diversos instrumentos
financeiros, concluiu-se a evolução da alienação fiduciária em garantia no
direito
positivo
brasileiro,
ganhando
o
instituto
feição
moderna
e
inteiramente adaptada às exigências do nosso tempo.
2 A Cessão Fiduciária de Títulos de Crédito ou Direitos Creditórios
A Lei nº 10.931/04, além de resolver a questão da pertinência da
propriedade fiduciária de bens móveis fungíveis, aclarou também uma
outra questão relacionada ao instituto: a da possibilidade de ele ter por
objeto títulos de crédito e outros direitos creditórios. Dispõe o art. 66-B, §
3º, da Lei nº 4.728/65, na redação dada pela Lei nº 10.931/04:
14
Em meu Código Civil Comercial e legislação complementar anotados, indico jurisprudência neste
sentido: "Coisas fungíveis podem ser objeto de alienação fiduciária (RTJ, 113/407, 116/1098). 'A
legislação pertinente não veda a alienação fiduciária em garantia de bem fungível, subsumindo-se
neste os consumíveis, cuja custódia tem o caráter de depósito irregular. Quando pactuantes celebram
negócio jurídico com garantia fiduciária de bens fungíveis, assim o fazem como forma para agilizar o
empréstimo acobertado por tal garantia' (JSTJ, 20/168)" (6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 447).
15
Também extraído do meu Código Comercial e legislação complementar anotados: "Em sentido
contrário: 'Os bens fungíveis que constituem mercadoria comerciável de empresa devedora, ou
matéria-prima de seus produtos comerciáveis, não podem ser objeto de alienação fiduciária. Infringe
à própria natureza do instituto a alienação em garantia de bens fungíveis destinados especificamente
à venda imediata pelo devedor, ou destinados necessariamente a servir de insumo ou matéria-prima
nos produtos de sua fabricação e comércio, no exercício normal do ramo de mercancia do devedor'
(JSTJ, 23/68; também: RT, 665/157; também: STJ, DJU-I, 17 dez. 1992, p. 24.207, BA 1.797;
também BA 1.905)".
16
Essa lei é originária da conversão de medidas provisórias que remontam a 2001. Mas, como
acontece em relação a qualquer medida provisória, somente a conversão em lei confere à norma
jurídica a definitividade apta a conferir aos seus destinatários a segurança que se espera do direito
positivo.
8
"É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária
de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses
em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem
objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do
crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da
obrigação
garantida,
poderá
vender
a
terceiros
o
bem
objeto
da
propriedade fiduciária independentemente de leilão, hasta pública ou
qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da
venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da
realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver,
acompanhado do demonstrativo da operação realizada."
Hoje em dia, assim, os institutos dos contratos de instituição de
propriedade ou titularidade fiduciária (isto é, a alienação fiduciária em
garantia e a cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios)
encontram-se disciplinados em vários diplomas legislativos. No art. 66-B
da Lei nº 4.728/65, abriga-se o regramento pertinente ao contrato de
alienação
fiduciária
em
garantia
celebrado
no
âmbito
do
mercado
financeiro e de capitais ou destinado a garantir créditos fiscais ou
previdenciários. Nesse dispositivo, está claro que a propriedade fiduciária
pode instituir-se sobre qualquer tipo de bem móvel, fungível ou infungível,
ou sobre direitos a eles relativos. Também nesse dispositivo, cuidou a lei
da cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios. Na Lei nº
9.514/97, acham-se as disposições sobre o contrato de alienação fiduciária
em garantia e a propriedade fiduciária referentes a bens imóveis. No
Código Civil, por fim, vê-se a disciplina do instituto de direito real sobre
bens móveis infungíveis, que se aplica subsidiariamente a qualquer outro
bem ou direito objeto da mesma garantia real (CC, art. 1.368-A).
Mas, a despeito da dispersão normativa - que até pode dificultar o
entendimento inicial do assunto -, foi feliz o legislador ao harmonizar a
9
efetivação da garantia, independentemente da natureza do objeto alienado
fiduciariamente ao credor. Superando a discussão sobre a vedação do
pacto comissório 17, o direito positivo passou a contemplar, em relação a
qualquer objeto de titularidade ou propriedade fiduciária, a efetivação da
garantia mediante a consolidação da titularidade ou propriedade resolúvel
no patrimônio do credor fiduciário 18. Bem entendida a questão: o pacto
comissório continua proibido, mas num sentido diverso: é nula qualquer
cláusula estabelecendo a transferência da propriedade do objeto da
garantia
ao
credor
fiduciário
não
mediatizada
pelo
procedimento
administrativo ou pelas tentativas de venda em leilão previstos em lei 19.
A cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios,
assim, é o negócio jurídico em que uma das partes (cedente fiduciante)
cede à outra (cessionária fiduciária) seus direitos de crédito perante
terceiros ("Recebíveis") em garantia do cumprimento de obrigações,
geralmente as de mutuário. O cessionário fiduciário titula a propriedade
17
Orlando Gomes explicava as razões da proibição do pacto comissório na alienação fiduciária nos
seguintes termos: "No propósito de impedir que o devedor, para obter o financiamento, seja
constrangido a admitir como consequência do inadimplemento a consolidação da propriedade
resolúvel do credor, proíbe a lei o pacto comissório. Assenta a proibição no pressuposto de que esse
pacto se reveste de caráter usurário. Estendeu-a o legislador à alienação fiduciária em garantia,
instituindo-a como o fez para o penhor e a hipoteca, ao declarar nula a cláusula que autorize o
proprietário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento. O
pacto comissório, assim nos direitos reais de garantia como na alienação fiduciária, é antes ineficaz,
tendo-se por não escrito, tanto quanto contraído in continenti como ex intervallo" (Obra citada, p.
113).
Já Sílvio Rodrigues dava outra explicação: "No mútuo, em geral, é o credor quem dita a lei do
contrato, nada restando ao devedor senão concordar com as condições que lhe são impostas. De
modo que, não fosse a proibição legal e o pacto comissório, se tornaria cláusula de estilo, visto que o
credor exigiria, sempre, do devedor, a declaração de que abriria mão do bem dado em garantia, em
caso de não cumprir o contrato. Com o intuito, portanto, de proteger o devedor, parte mais fraca no
contrato, é que o legislador proíbe a convenção de perda do objeto da garantia, em caso de
inadimplemento"(Direito Civil. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 5. p. 346).
18
É o que dispõem o art. 26 da Lei nº 9.514/97, o art. 66-B, § 3º, da Lei nº 4.728/65 e o art. 3º, § 1º,
do DL 911/69, estes dois últimos dispositivos com a redação dada pela Lei nº 10.931/04.
19
Para o aprofundamento desta questão, remeto o leitor ao meu Curso de Direito Civil (São Paulo:
Saraiva, 2006. v. 4. p. 215-218).
10
(ou
"titularidade")
fiduciária
dos
"Recebíveis",
de
modo
que
o
inadimplemento da obrigação garantida importa a consolidação deles em
seu patrimônio. Na cessão fiduciária de títulos de crédito, o cessionário
fiduciário tem, também, as posses direta e indireta do documento
representativo dos "Recebíveis" (duplicata, nota promissória, cheque etc.).
O cessionário fiduciário, destaco, é o titular do direito de crédito
cedido pelo devedor. Não se trata de uma simples caução de títulos de
crédito, mas de verdadeira transferência do direito à instituição financeira.
O direito ao crédito cedido passa, em outros termos, a integrar o
patrimônio da instituição financeira, como objeto de propriedade resolúvel.
Se ocorrer o adimplemento da obrigação garantida pela cessão fiduciária,
essa propriedade se resolve e o direito objeto da cessão fiduciária deixa
de integrar o patrimônio da instituição financeira para retornar ao do antigo
mutuário. Mas, se não ocorre o adimplemento da obrigação, a propriedade
se consolida e o mesmo direito que integrava condicionalmente o
patrimônio da instituição financeira passa a integrá-lo incondicionalmente
(isto é, consolida-se a propriedade sobre ele).
3 Os Credores Excluídos da Recuperação Judicial
Assim como a antiga lei falimentar excluía determinados credores
dos efeitos da concordata, também a atual preserva alguns dos da
recuperação judicial. A concordata produzia efeitos apenas para os
credores quirografários posteriores à impetração. O credor que, na
falência, gozava de qualquer tipo de preferência, não era afetado pelos
efeitos da concordata. Quer dizer, o processamento do pedido ou mesmo a
11
concessão do favor legal não implicavam qualquer alteração no valor do
crédito ou vencimento da obrigação 20.
A exclusão dos efeitos da concordata dos créditos com preferência
na falência justificava-se, como muitos outros aspectos da lei falimentar de
1945, em parte pela tutela de interesses individualistas dos credores.
Exceção feita à preservação dos créditos trabalhistas e fiscais, a exclusão
dos efeitos da concordata dos demais créditos com preferência visava
muito mais atender ao interesse de seus titulares em receber o devido no
vencimento, pelo valor integral, do que amparar interesses difusos ou
coletivos, cuja importância transcendia os individuais dos credores do
concordatário.
As exclusões dos credores dos efeitos da recuperação judicial, ao
contrário, visam, na moderna economia brasileira, proporcionar meios para
o barateamento do crédito e criação das condições para o desenvolvimento
econômico,
valores
de
maior
envergadura
que
os
anteriormente
prestigiados. Tais exclusões são previstas no art. 49, §§ 3º e 4º, da LF:
"Art. 49. (...)
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de
bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou
promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham
cláusula
de
irrevogabilidade
ou
irretratabilidade,
inclusive
em
20
É o que decorria do disposto no art. 147 do DL 7.661/45: "A concordata concedida obriga a todos
os credores quirografários, comerciais ou civis, admitidos ou não no passivo, residentes no País ou
fora dele, ausentes ou embargantes". Cf. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. 13. ed.
São Paulo: Saraiva, 1992. v. 2. p. 40; VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de
Falências. 4. ed. atual. por J. A. Penalva Santos e Paulo Penalva Santos. Rio de Janeiro: RF, 1999. v.
II. p. 258-259.
12
incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com
reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da
recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a
coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não
se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o §
4º do art. 6º, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos
bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
§ 4º Não se sujeitará aos efeitos da recuperação judicial a importância a
que se refere o inciso II do art. 86."
O § 4º, por sua vez, remete ao inciso II do art. 86 da LF, relacionado
aos pedidos de restituição na falência:
"Art. 86. Proceder-se-á à restituição em dinheiro:
(...)
II - da importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional,
decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na
forma do art. 75, §§ 3º e 4º, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, desde
que o prazo total da operação, inclusive eventuais prorrogações, não
exceda o previsto nas normas específicas da autoridade competente;"
Desse modo, são credores excluídos dos efeitos da recuperação
judicial: (1) proprietário fiduciário; (2) arrendador mercantil; (3) proprietário
ou promitente vendedor de imóvel com cláusula de irretratabilidade e
inalienabilidade ou com reserva de domínio; (4) instituição financeira que
tenha antecipado ao exportador recursos com base em contrato de câmbio
para exportação (ACC).
Os objetivos da exclusão, como dito, ligam-se aos da lei de 2005; ou
seja, destinam-se a criar, no marco institucional, as condições para o
desenvolvimento econômico. Ao retirar dos efeitos da recuperação judicial
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determinados credores, a lei teve em mira possibilitar o barateamento dos
negócios em que eles se envolvem, atendendo ao interesse de toda a
sociedade brasileira.
Isso é particularmente visível na questão relativa à exclusão da
instituição financeira na operação de ACC 21. Sabemos que um dos grandes
desafios do Brasil desde sua inserção na economia globalizada e
estabilização monetária, verificadas a partir dos anos 1990, tem sido o de
aumentar as exportações. Com superávits comerciais expressivos poderá
nossa economia reduzir a dependência de divisas externas e fortalecer seu
processo de desenvolvimento. Beneficia toda a sociedade brasileira, por
isso, o
estímulo às
exportações.
A facilitação e
barateamento do
21
"A exportadora se compromete a entregar mercadorias ao comprador situado no exterior. Este, por
sua vez, se compromete a pagar-lhe o valor das mercadorias. O pagamento é feito, via de regra, em
moeda de curso internacional como o dólar norte-americano ou, eventualmente, o euro. O exportador
é obrigado, pela lei brasileira, a vender a moeda estrangeira que recebe em pagamento de suas
mercadorias a uma instituição financeira, mediante a celebração de contrato de câmbio.
Evidentemente, a venda ao exterior é contratada algum tempo antes da entrega da mercadoria e
liberação do pagamento - que se faz, em geral, por crédito documentário mediado por instituições
financeiras. Por vezes, passam-se vários meses entre a contratação da exportação e sua execução.
Nesse período, o exportador que precisa de financiamento pode obtê-lo numa operação de ACC
(antecipação de crédito derivado de contrato de câmbio). Ele procura o banco ao qual pretende
vender as divisas que receberá quando da futura entrega das mercadorias e celebra, desde logo, o
contrato de câmbio. O banco, então, antecipa ao exportador o preço das divisas e fica ele o credor da
moeda estrangeira a ser entregue pelo estrangeiro comprador das mercadorias (melhor, pela
instituição financeira contratada pelo estrangeiro comprador das mercadorias para emitir a carta de
crédito). Em termos singelos, a garantia do banco, na operação de ACC, é a solvência da instituição
financeira contratada pelo estrangeiro comprador das mercadorias para emitir a carta de crédito. A
antecipação, claro, é operação financeira lucrativa para o banco: o valor antecipado ao exportador é
sempre menor que o mencionado na carta de crédito. Se antes da entrega das mercadorias e
vencimento do crédito documentário, ocorrer a falência do exportador, ele não poderá dar
cumprimento ao contrato. Em consequência, a instituição financeira contratada pelo estrangeiro
comprador não desembolsará nenhuma divisa e o banco que procedeu à antecipação da quantia
correspondente perderá a garantia. Nessa hipótese, tem ela direito à restituição do valor antecipado.
Se a lei não lhe assegurasse um crédito extraconcursal (via pedido de restituição), os juros cobrados
dos exportadores nesse tipo de operação financeira teriam que ser maiores para absorverem o risco
associado a essa eventualidade. Como titulariza crédito extraconcursal, a instituição financeira que
procedeu o adiantamento em favor do exportador será paga antes dos credores, minimizando-se
dessa forma o risco de não recebimento." (meu Curso de Direito Comercial. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2005. v. 3. p. 336)
14
financiamento aos exportadores representam, em outros termos, medida
do interesse nacional. Quanto maiores forem as garantias de recuperação
do dinheiro adiantado aos exportadores pelos bancos, menores serão os
juros praticados. Isso porque parte das taxas cobradas pelas instituições
financeiras é pressionada pelos riscos associados à insolvência ou
inadimplemento do devedor.
A LF estabelece duas medidas visando neutralizar essa pressão
sobre os juros praticados no financiamento à exportação. De um lado,
prevê a restituição das quantias adiantadas ao exportador falido com base
num contrato de câmbio. Definindo por esse modo o crédito da instituição
financeira
como
extraconcursal,
a
lei
atenua
o
risco
associado
à
insolvência e, consequentemente, contribui para a redução dos juros
cobrados nessa linha de financiamento. De outro lado, estabelece a não
sujeição à Recuperação Judicial do crédito da instituição financeira oriundo
da antecipação com base em contrato de câmbio. Não tendo que embutir
em seus juros nenhuma taxa associada ao risco de impetração pelo
exportador de recuperação judicial, a instituição pode praticar juros
menores.
Também em relação aos demais credores excluídos dos efeitos da
recuperação judicial, quando são instituições financeiras, é válida a mesma
justificativa. A retomada do desenvolvimento econômico pressupõe o
barateamento dos juros bancários, nos tênues limites que o controle do
processo
inflacionário
pode
permitir.
Quer
dizer,
o
custo
dos
financiamentos bancários garantidos por leasing não é pressionado pelo
risco associado à recuperação judicial do devedor porque a lei exclui o
crédito
decorrente
de
arrendamento
mercantil
dos
efeitos
do
processamento dessa medida.
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O titular de propriedade fiduciária, como dito, tem seu crédito
excluído dos efeitos da recuperação judicial. Isso significa que nenhuma
consequência advém para o crédito garantido por alienação fiduciária da
impetração, pelo devedor fiduciante, da recuperação judicial. Também não
produz nenhuma implicação relativamente aos direitos do titular da
propriedade fiduciária o despacho de processamento da recuperação
judicial. Finalmente, a obrigação do devedor fiduciante não pode ser objeto
de nenhuma cláusula do plano de reorganização. Qualquer menção a ela
no plano é por tudo e em tudo inválido (porque contraria o art. 49, § 3º, da
LF) e ineficaz.
O cessionário fiduciário, na cessão fiduciária de títulos de crédito ou
direitos creditórios, é titular da propriedade resolúvel do crédito cedido.
Como acentuado acima, esse crédito integra o patrimônio da instituição
financeira cessionária. Como integra na condição de resolubilidade, o
adimplemento da obrigação garantida pelo cedente fiduciante importa seu
retorno ao patrimônio deste. Mas apenas o cumprimento da obrigação tem
essa
consequência.
Quando
ela
é
inadimplida,
o
direito
cedido
fiduciariamente se consolida no patrimônio do cessionário fiduciário.
A cessão fiduciária de títulos de crédito ou de direitos creditórios,
note-se, gera sobre o objeto cedido um direito real (um direito real em
garantia), e não pessoal. A instituição financeira cessionária torna-se
proprietária desses títulos ou direitos, e não apenas credora. É esta a
larga implicação do instituto da cessão fiduciária em garantia cujo objeto
são títulos de crédito ou direitos creditórios do cedente 22.
22
Nada há a estranhar na figura de direito de propriedade sobre direitos creditórios. De há muito está
superada, na doutrina, a noção de que a propriedade deve ter sempre como objeto um bem corpóreo.
Fala-se, assim, em propriedade intelectual, cujo objeto são obras científicas, literária ou artísticas,
marcas registradas, patentes de invenção, etc. (Cf. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito
privado. 2. ed. atual. por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Booksellers, 2001. V. XI. p. 43-44).
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Há, portanto, uma diferença fundamental entre, de um lado, a cessão
fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios, e, de outro, as
operações de penhor ou caução de títulos (também de crédito, valores
mobiliários, aplicações financeiras etc.). Enquanto na cessão fiduciária de
títulos de crédito ou direitos creditórios, tais títulos ou direitos passam ao
patrimônio da instituição financeira cessionária e nele permanecem
enquanto não cumprida a obrigação garantida, nas operações de penhor
ou caução de títulos, estes são apenas transferidos à posse da credora,
mas os direitos creditórios neles incorporados não passam nunca a compor
o patrimônio dela.
Essa diferença reflete, inclusive, no tratamento dispensado a cada
hipótese pela LF, quando disciplina a recuperação judicial. Para os títulos
de crédito e direitos creditórios cedidos fiduciariamente vige a regra, já
transcrita acima, da exclusão dos efeitos da recuperação judicial (LF, art.
49, § 3º). A seu turno, para as operações de penhor ou caução de títulos
vigora norma diversa, que as submete aos efeitos da recuperação
judicial 23.
O depósito em conta vinculada tem pertinência porque o crédito
relacionado ao título empenhado ou caucionado é ainda da propriedade do
devedor impetrante da recuperação judicial. Encontra-se o instrumento de
dívida na posse do credor pignoratício, mas a efetivação dessa garantia
fica suspensa porque pode ser afetada pelo plano de reorganização.
23
Em relação às operações de penhor ou caução de títulos a regra a observar é a constante do art.
49, § 5º, da LF, que prevê o depósito dos valores pagos em contas vinculadas ao juízo da
recuperação judicial: "Tratando-se de crédito garantido por penhor sobre títulos de crédito, direitos
creditórios, aplicações financeiras ou valores mobiliários, poderão ser substituídas ou renovadas as
garantias liquidadas ou vencidas durante a recuperação judicial e, enquanto não renovadas ou
substituídas, o valor eventualmente recebido em pagamento das garantias permanecerá em conta
vinculada durante o período de suspensão de que trata o § 4º do art. 6º".
17
Não cabe, porém, falar-se no mesmo depósito para os títulos de
crédito
ou
direitos
creditórios
cedidos
fiduciariamente
porque
não
pertencem mais ao patrimônio do devedor impetrante da recuperação
judicial. Eles pertencem ao patrimônio da instituição financeira cessionária
e não há porque mantê-los, quando vencidos e satisfeitos, em conta
vinculada ao juízo da recuperação judicial. Aliás, se a LF eventualmente
pretendesse
estender
aos
títulos
de
crédito
e
direitos
creditórios
fiduciariamente cedidos a sistemática do art. 49, § 5º, reservada às
operações de penhor ou caução de títulos, ela seria, nessa extensão,
inconstitucional. Estaria desrespeitando o direito de propriedade do
cessionário fiduciário constitucionalmente assegurado.
4 Conclusão
As garantias reais se classificam em duas categorias: direitos reais
de garantia e direitos reais em garantia. A distinção foi proposta, no direito
brasileiro, por Pontes de Miranda, ao discutir a dação em garantia de
direitos reais sobre coisa alheia 24. José Carlos Moreira Alves, ao tratar da
natureza da alienação fiduciária, recuperou a distinção de Pontes de
Miranda, averbou ter sido inspirada na doutrina alemã e estendeu aos
direitos reais ditos ilimitados 25. Os direitos reais de garantia são o penhor,
a hipoteca e a anticrese; enquanto os direitos reais em garantia são a
alienação fiduciária em garantia e a cessão fiduciária de títulos de crédito
e direitos creditórios 26.
Os direitos reais de garantia procuram assegurar o cumprimento de
obrigação mediante a instituição de um direito real titulado pelo credor
24
Obra citada, v. XXI, p. 403.
Obra citada, p. 154-155.
26
Ver meu Curso de Direito Civil. Obra citada, p. 213-215.
25
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sobre bem da propriedade do devedor. Por vezes, a posse direta do bem
onerado transmite-se ao titular da garantia real, como no penhor comum;
mas em nenhuma hipótese o devedor deixa de ser o seu proprietário,
podendo até mesmo, se achar interessado, alienar o bem gravado. Ao seu
turno, nos direitos reais em garantia, o cumprimento da obrigação é
garantido pela transferência do bem onerado à propriedade do credor. O
sujeito ativo da obrigação garantida passa a titular a propriedade resolúvel
do bem. Aqui, também, por vezes a posse direta do bem onerado é
transmitida ao titular da garantia, como na cessão fiduciária de direito
creditório;
por vezes,
fica
em mãos
do
devedor,
na
condição de
depositário. O autor da garantia real, contudo, despoja-se da condição de
proprietário do bem (ou titular do direito) sobre o qual recai o direito real.
Despojado desse atributo, não pode, por evidente, alienar o bem dado em
garantia (porque não é mais dele).
Essa importante distinção das espécies de garantia real está nos
fundamentos
da
exclusão
do
cessionário
fiduciário
dos
efeitos
da
recuperação judicial do cedente fiduciante. Enraizada na Constituição, a
proteção ao direito de propriedade estende-se à titularidade do crédito
cedido fiduciariamente à instituição financeira, afastando-a dos efeitos da
recuperação judicial do cedente. A exclusão do credor garantido por
cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios dos efeitos da
recuperação judicial é resultante da proteção constitucionalmente liberada
ao direito de propriedade. Como o bem onerado, nos direitos reais em
garantia, é da propriedade resolúvel do credor, não poderia a lei ordinária
estabelecer qualquer regra que importasse a restrição ao exercício desse
direito. Seria inconstitucional, em outras palavras, eventual previsão da lei
falimentar no sentido de submeter aos efeitos da recuperação judicial o
credor titular de direito real em garantia. A mesma inconstitucionalidade,
porém, não existe quando a lei estende os efeitos da recuperação judicial
aos credores que titulam direito real de garantia.
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a cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios e a