A Cessão Fiduciária de Direitos Creditórios Sofre os Efeitos da Falência ou da Recuperação Judicial? ARTHUR MENDES LOBO - Mestre em Direitos Coletivos e Função Social pela Unaerp, Ex-Professor de Direito Comercial da UFJF, Advogado do Escritório Arruda Alvim Wambier. EVARISTO ARAGÃO SANTOS - Mestre em Direito Econômico e Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR em 2003, Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. SUMÁRIO: Introdução; 1 Da propriedade resolúvel originária da cessão fiduciária de crédito; 2 Efeitos perante a recuperação judicial e a falência; Conclusão; Referências bibliográficas. RESUMO: A cessão fiduciária de créditos é um instituto extremamente recente em nosso ordenamento jurídico, eis que introduzida pela Lei nº 10.931/2004, que reformou a Lei nº 4.728/1965, trazendo a possibilidade de direitos patrimoniais serem transferidos ao credor fiduciário como forma de garantir o pagamento da dívida. Contudo, ao ser imitido na posse e na propriedade resolúvel dos créditos cedidos, não raro, o credor fiduciário é surpreendido por decisões judiciais que determinam que ele libere o bem em favor de empresários sujeitos à recuperação judicial ou em favor de empresário devedor que teve sua falência decretada (mais propriamente em favor da massa falida). Neste contexto, o credor fiduciário perde a garantia e se vê obrigado a habilitar seu crédito no quadro geral de credores. Contudo, a Nova Lei de Falências, em seu art. 49, § 3º, e art. 39, estabelece a exclusão dessa modalidade de crédito dos efeitos da recuperação judicial e da falência. O presente estudo, longe de esgotar o tema, faz uma análise desses dispositivos legais e do instituto contratual, para aferir a decisão mais razoável e atinente aos ditames legais. ABSTRACT: The transfer of credits trust is a very recent institute in our legal system, we were introduced by Law 10.931/04, which reformed the Law 4.728/1965, bringing the possibility of property rights are transferred to the creditor trust as a way to ensure payment of debt. However, to be held "issued" resolved and the property of credits transferred, often, the creditor trust is surprised by judicial decisions that determine that he is released and in favor of entrepreneurs subject to judicial or recovery in favor of businessman debtor which had its bankruptcy order (more properly in favor of bankruptcy). In this context, the lender loses the trust and security required to enable you see your credit as part of general creditors. However, the New Bankruptcy Law, in his art. 49, § 3 and art. 39, establishes the exclusion of this type of credit effects of the Judicial Recovery and Bankruptcy. This study, far from exhausting the subject, makes an analysis of such devices legal and contractual Office, to assess the most reasonable decision and regards legal dictates. PALAVRAS-CHAVE: Cessão fiduciária de crédito; nova lei de falências; recuperação judicial; alienação fiduciária. KEYWORDS: Assignment fiduciary credit; new law on bankruptcy; judicial recovery; sale fiduciary. INTRODUÇÃO Pelo instituto da propriedade fiduciária, o devedor de empréstimo obtido junto ao credor transfere a este, em garantia, a propriedade de determinado bem ou de determinado crédito de sua titularidade 1. O credor fiduciário passa a ser, então, titular da propriedade resolúvel do bem ou crédito, até que ocorra evento futuro e incerto: o adimplemento integral das prestações avençadas no empréstimo. Contudo, quando o devedor fiduciante é empresário e se vê em regime de insolvência previsto na nova lei de falências, a sua pretensão de reaver o bem dado em garantia é bastante corriqueira e até mesmo previsível. Acontece que, por força do art. 49, § 3º, da mencionada lei, referido crédito jamais poderia sofrer os efeitos da recuperação judicial ou da falência. No presente estudo, analisaremos se o crédito decorrente da cessão fiduciária deve ou não ser excluído do regime do Direito Concursal. 1 DA PROPRIEDADE RESOLÚVEL ORIGINÁRIA DA CESSÃO FIDUCIÁRIA DE CRÉDITO Recentemente, o ordenamento jurídico pátrio contemplou a possibilidade de créditos também serem objeto de alienação fiduciária em garantia. Com a vigência da Lei nº 10.931/2004, que reformou a Lei nº 4.728, permitiu-se a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e a indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor e se consolidam na pessoa do credor fiduciário. Em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, este aplicará o valor no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver (art. 66-B). É importante observar que os créditos alienados fiduciariamente estão enquadrados pela lei na classificação de bens móveis, consoante disposição expressa do art. 83, inciso III, do Código Civil, o qual estabelece que são bens móveis os direitos pessoais de caráter patrimonial. Portanto, apenas ao término do pagamento das prestações avençadas, a propriedade se resolve e retorna ao devedor fiduciante 2. Antes disso, o credor fiduciante é o titular do direito de propriedade resolúvel. Ensinam Christiano Chaves e Nelson Rosenvald que "o proprietário resolúvel age como qualquer proprietário, enquanto não se verifica o evento futuro ou incerto, já que a limitação de seu direito subjetivo é apenas de ordem temporal. Ou seja, exercitará todos os poderes dominiais sobre o bem: poderá usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa em face de terceiros, concentrando em si a plenitude das faculdades" 3. Podemos exemplificar com o seguinte caso: o banco A concede um empréstimo ao empresário B, no valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), sob juros extremamente vantajosos, tão-somente em razão de ter recebido em garantia a propriedade dos direitos creditórios que o empresário B tem perante C (administradora de cartões de crédito, v.g.), por meio de cessão fiduciária. Os juros são mais baixos que o comum porque, nessa modalidade, os riscos de inadimplência são menores, visto que a garantia fica na posse direta e indireta do credor. Dessa forma, o devedor C, em vez de pagar a B, fará o pagamento ao Banco A, depositando em conta vinculada. Se na data do vencimento da sua obrigação B não pagar o que deve ao banco A, este pode usar o dinheiro depositado por C na conta vinculada para saldar o débito. Neste caso, o contrato transferiu em favor do banco A a propriedade sobre os direitos de crédito que o empresário B tinha em relação a C (em decorrência das vendas que realizou aos consumidores por cartão de crédito, por exemplo), conhecidos como "recebíveis de cartão de crédito". Assim, quaisquer depósitos feitos por C referentes às vendas de cartão de crédito da empresa de B são a garantia de A, e também bens de sua propriedade fiduciária. Pelo contrato de cessão fiduciária de créditos, também conhecidos como recebíveis, o cedente cede fiduciariamente ao cessionário a propriedade e a titularidade dos bens, inclusive a posse direta e indireta deles. A cessão de crédito funciona, portanto, como uma novação/delegação subjetiva ativa por meio da qual o devedor se vincula a um novo credor. É o que explica Ruggiero: "Distingue-se ainda uma delegação ativa quando um credor indique ao devedor um terceiro que deverá receber, isto é: substitua a si uma pessoa para que receba do devedor; e uma delegação passiva, quando um devedor se substitua por um outro para pagar, isto é: ordene ao um terceiro que pague ao credor. Ora, tanto numa como noutra hipótese, esta ordem ao terceiro de receber ou de pagar pode ser dada de modo que a substituição do novo credor ou do novo devedor seja plena e completa, isto é: importe extinção da primitiva relação obrigatória e o nascimento de uma nova pela mudança de um dos sujeitos, ou então menos plena, por implicar simples acrescentamento de um novo sujeito ao originário, e contrapõe-se assim a delegação novativa ou perfeita à delegação simples ou imperfeita. A primeira é novativa ou perfeita, porque opera uma novação e porque só aquela que produz este efeito é considerada, pelas velhas praxes, verdadeira e própria delegação. E é precisamente por ela que são constituídos dois dos três casos de novação contemplados no art. 1.267, nºs 2 e 3, isto é: aqueles que se costumam chamar de novação subjetiva." 4 "A delegação novativa ativa (art. 1.267, nº 3) em que o credor se faz substituir por uma outra pessoa para que esta receba do devedor, produz a libertação deste para com o primitivo credor (delegante), sendo necessário o consenso das três partes (pois de outro modo, não havendo consentimento do devedor, ter-se-ia uma cessão) e a intenção concorde de novar). E porque surge uma nova obrigação da extinção da primeira, a conseqüência é que as exceções, de que se acompanhava o crédito do delegante, não passam para o crédito do delegatário. O devedor que aceitou a delegação - dispõe o art. 1.278 - não pode opor ao segundo credor as exceções, que teria podido opor ao credor originário. Apenas se podem opor, das exceções da anterior relação, as que são dependentes da qualidade da pessoa (por exemplo, as exceções fundadas na incapacidade pessoal), se tal qualidade subsistia ao tempo em que se consentiu na delegação." 5 "A delegação novativa passiva (art. 1.267, nº 2), na qual o devedor se faz substituir por um novo obrigado, também se verifica mediante o concurso da tríplice vontade do devedor originário (delegante), do novo (delegado) e do credor (delegatário), implicando libertação do primeiro devedor, cujo lugar é ocupado pelo segundo. A vontade do novo devedor destina-se a assumir a obrigação por conta do delegante; a do credor deve destinar-se, além da aceitação do novo devedor, a libertar o antigo." 6 Nessa modalidade contratual, o credor pode exercer sobre os bens ora cedidos fiduciariamente, os direitos discriminados no art. 66-B da Lei nº 4.728/1965, incluído pela Lei nº 10.931/2004, no Decreto nº 911/1969 e nos arts. 18 a 20 da Lei nº 9.514/1997, inclusive os direitos de: (i) consolidar em si a propriedade plena dos bens no caso de execução da presente garantia; (ii) conservar e recuperar a posse dos bens, bem como dos instrumentos que os representam, contra qualquer detentor, inclusive o próprio cedente; (iii) promover a intimação dos devedores para que não paguem ao cedente, enquanto durar a cessão fiduciária. Prescreve a Lei nº 9.514/1997, em seu art. 19, entre os direitos do credor fiduciário os de "conservar e recuperar a posse dos títulos representativos dos créditos cedidos, contra qualquer detentor, inclusive o próprio cedente" e "receber diretamente dos devedores os créditos cedidos fiduciariamente" (incisos I e IV - g.n.). 2 EFEITOS PERANTE A RECUPERAÇÃO JUDICIAL E A FALÊNCIA Contudo, o que tem acontecido, na prática, é que, apesar de o credor fiduciário ter a posse e a propriedade fiduciária dos créditos, alguns juízes têm determinado o levantamento do dinheiro depositado na conta vinculada (= devolução do bem dado em garantia) para que o empresário possa pagar outros credores, notadamente os trabalhistas, quando ele pede recuperação ou sofre pedido de falência. Esse tipo de decisão esvazia do proprietário fiduciário o direito de reivindicar o bem, qual seja, receber diretamente (leia-se, reter) os valores depositados pelo terceiro C, nas contas do empresário B, ainda nos termos do exemplo anterior. Em determinadas situações, o juiz fixa inclusive multa-diária para a hipótese de o credor fiduciário continuar na posse do bem (bem, aliás, que é seu por direito, pelo menos até que o devedor fiduciante pague inteiramente o que deve). Mostra-se equivocado, permissa venia, esse entendimento, pois, se os valores depositados nas contas vinculadas ao contrato de cessão fiduciária são de propriedade do credor fiduciário, não há que se falar em retenção indevida, eis que a lei lhe garante o direito de dispor e reivindicar esses bens móveis, seja para preservar a sua garantia, seja para satisfazer o seu crédito, sob pena de enriquecimento sem causa da devedora. Na lição de Márcio Calil de Assunção 7: "O credor fiduciário tem o direito de requerer a restituição da garantia fiduciária na hipótese de insolvência ou falência do fiduciante, consoante dispõem os arts. 85 e 90 da Lei nº 11.101/2005, o art. 7º do Decreto-Lei nº 911/1969 e o art. 32 da Lei nº 9.514/1997". Não se pode confundir a propriedade fiduciária com as demais modalidades de direitos reais de garantia: a regra que disciplina o penhor, contida no § 5º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005 (nova Lei de Falências), é totalmente distinta da regra do § 3º do mesmo artigo, que trata da propriedade fiduciária (referente à cessão fiduciária de créditos e coisas móveis). No penhor, o bem pertence ao devedor, sendo que apenas a posse direta fica com o credor. Já na propriedade fiduciária, o credor fiduciário tem a posse e a propriedade resolúvel (podendo exercer todos os poderes de proprietário) e não tem obrigação de habilitar seu crédito juntamente com os demais credores na recuperação judicial ou na falência, para receber o que tem direito, pois, pela própria disposição do art. 49, § 3º, seu crédito não sofre os efeitos desses dois institutos que regem a insolvência empresarial. Cumpre evidenciar que a propriedade fiduciária e as garantias reais sobre coisas alheias são institutos completamente distintos. Transcreva-se, por oportuno, a lição de Christiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald 8: "A fundamental distinção entre a propriedade fiduciária e os demais direitos reais de garantia (hipoteca, penhor e anticrese) reside na verdadeira transmissão da propriedade que se verifica naquela, enquanto nos demais direitos de garantia o que se constitui é apenas o ônus real em coisa alheia. Pode-se afirmar que a propriedade fiduciária representa um direito real de garantia em coisa própria, sendo meio mais operativo em comparação com o penhor e a hipoteca, nos quais o titular não adquire em nenhum instante a propriedade da coisa, o que torna, evidentemente, a sua tutela bastante reduzida no eventual confronto com outros credores do devedor hipotecário ou pignoratício. Dessa ordem de idéias resulta a impenhorabilidade do bem alienado fiduciariamente por dívidas do devedor fiduciante, pois a circunstância de ter apenas a posse direta do bem não autoriza a sua constrição judicial em prol de um segundo credor [...]. Em idêntico sentido, vale-se o credor fiduciário de pedido de restituição de seu bem, quando arrecadado em poder do devedor fiduciante falido ou em situação de insolvência (não-comerciante). Assim, o bem alienado em propriedade fiduciária não fará parte dos ativos do devedor, deixando de integrar o acervo concursal [...] O credor fiduciário [na recuperação judicial ou na falência] não precisa habilitar seu crédito e aguardar o pagamento, basta solicitar a imediata restituição da posse do bem de sua propriedade, aplicando o saldo na satisfação de seu crédito." Esse entendimento tem esteio na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: "Os bens alienados fiduciariamente por não pertencerem ao devedor-executado, mas à instituição financeira que lhe proporcionou as condições necessárias para o financiamento do veículo automotor não adimplido, não pode ser objeto de penhora na execução fiscal. A alienação fiduciária não institui ônus real de garantia, mas opera a própria transmissão resolúvel do direito de propriedade. Recurso Especial a que se dá provimento, para excluir da penhora o bem indevidamente constrito." 9 Em recente julgado, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais também reconheceu que a recuperação judicial não impede o exercício dos direitos do credor fiduciário, o qual não se submete aos efeitos daquela ação. Veja-se: "A ação de recuperação judicial da empresa devedora de instituição financeira em contrato de mútuo garantido por alienação fiduciária, não tem o condão de suspender o normal andamento de ação de busca e apreensão do objeto do referido pacto, por não ser aquele feito prejudicial a este, que apenas visa a retomada da posse direita do bem por quem detenha o direito de propriedade." 10 No voto-condutor do acórdão supra, o Desembargador Otávio Portes registra que: "A recuperação judicial da empresa requerida não se revela motivo suficiente para impedir a venda extrajudicial de bem objeto de contrato de mútuo, garantido por alienação fiduciária, firmado com a agravante. [...] o disposto no art. 3º, § 5º, do Decreto nº 911/1969, não impede a venda do bem alienado fiduciariamente, consolidando a propriedade e a posse plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário. Ressalta-se o que reza o art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005, no sentido de que, em se tratando de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis, seu crédito não se submeterá aos efeitos da Recuperação Judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais." 11 Em obra específica sobre negócio fiduciário, Melhim Namen Chalhub 12 assevera que "a Lei nº 11.101/2005, § 3º, do art. 49 exclui dos efeitos dos procedimentos de recuperação e falência os créditos garantidos por propriedade fiduciária de bens móveis ou imóveis [...] afastado dos efeitos da recuperação judicial da empresa devedora, o crédito do credor fiduciário continuará seguindo o seu curso normal até a integral extinção da dívida, quando se dará o cancelamento da propriedade fiduciária" (g. n.). Diante da matéria em estudo, há de ser aplicado o disposto no § 3º do art. 66 da Lei nº 4.728/1965, alterada pela Lei nº 11.931/2004, segundo o qual a posse direta e indireta do bem ou crédito alienado fiduciariamente será atribuída ao credor, que, em caso de mora, pode aplicar o valor correspondente ao pagamento do seu crédito, devolvendo ao devedor o saldo remanescente, se houver. Também deve ser respeitado o § 3º do art. 49 da Lei de Recuperação, segundo o qual, tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação [inclusive não se submeterá ao efeito suspensivo pelo prazo de 180 dias, previsto no art. 6º da mesma lei, pois, onde o legislador não excepcionou, não cabe ao intérprete fazê-lo]. No caso de alienação fiduciária de créditos, também não se deve aplicar a parte final do mencionado dispositivo (§ 3º do art. 49 da LRF), pois ali se trata apenas de bens móveis que, em momento anterior ao pedido de recuperação, já guarneciam o estabelecimento do devedor, como máquinas e veículos. Equivale dizer: a proibição de venda ou retirada dos chamados bens de capital pelo prazo de 180 dias (a que se refere o § 4º do art. 6º da LFR) refere-se exclusivamente aos bens que estejam na posse direta da recuperanda, o que definitivamente não é o caso, já que, por força de lei, tanto a posse direta quanto a indireta dos valores referentes aos créditos alienados fiduciariamente são de titularidade do credor fiduciário. Fábio Ulhoa Coelho 13 destaca a seguinte lição sobre a parte final do § 3º do art. 49 da LRF: "De quem é a posse de tais recursos [créditos alienados fiduciariamente]? Da instituição financeira proprietária, ou seja, a cessionária fiduciária. A ressalva da parte final do § 3º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005 aplica-se aos casos em que os bens objetos de garantia encontram-se na posse direta do devedor, como no de leasing de veículos, máquinas, equipamentos ou outros bens essenciais à atividade da empresa em recuperação. Não se encontrando na posse do devedor, não podem ser 'retirados do seu estabelecimento', revelando-se, deste modo, a impossibilidade - não só jurídica como principalmente material - de aplicação à cessão fiduciária da parte final do dispositivo em foco." A intenção do legislador de excluir os créditos fiduciários da recuperação e também de eventual falência do empresário devedor fica ainda mais evidente quando se vê que o art. 39 da Lei de Recuperação proíbe que o credor fiduciário tenha direito a voto na assembléia geral de credores. Essa disposição só vem confirmar que o seu crédito não sofre os efeitos da recuperação. Em outras palavras, a lei dispõe que pouco importa ao credor fiduciário se o plano de recuperação será ou não aprovado ou se a falência deve ou não ser decretada, pois seu crédito está, e sempre estará, fora do Quadro Geral de Credores, eis que será saciado pelo próprio bem móvel dado em garantia: os créditos cedidos (direitos pessoais de caráter patrimonial). A prevalecer o entendimento de que é de propriedade do devedor fiduciante, o bem (= dinheiro depositado na conta vinculada ao contrato de cessão fiduciária) irá servir ao pagamento de outros credores, que nada têm a ver com o contrato firmado entre as partes, esvaziando por completo a garantia. Isso causará grande prejuízo ao credor e grave insegurança jurídica, pois será desrespeitado o instituto da propriedade fiduciária, disciplinado por lei. Evidencia-se que uma das principais obrigações do devedor fiduciante é "não dispor da coisa alienada fiduciariamente, onerosa ou gratuitamente, porque o bem não mais lhe pertence, é da propriedade do seu credor fiduciário" 14. Se o devedor vier a levantar a importância objeto da propriedade fiduciária para aplicá-la na sua atividade, ele estará dispondo de coisa móvel que não lhe pertence e, o que é mais grave, para pagar terceiros (fornecedores, empregados, v.g.). Em suma, o devedor será beneficiado duas vezes em razão do mesmo negócio jurídico. A primeira, quando recebeu o empréstimo do credor fiduciário, e a outra com a utilização do dinheiro oriundo da propriedade fiduciária para pagar outros credores na recuperação judicial ou na falência. Haverá, pois, manifesto enriquecimento sem causa do devedor fiduciante. A prevalecer esse equivocado entendimento, o empresário em recuperação ou falido que ficou inadimplente perante diversos credores, por motivos que só a ele podem ser imputados, será beneficiado, pois os próprios credores irão se pagar, sem que tenham essa obrigação legal ou contratual, deixando a salvo o patrimônio do real devedor. Com efeito, se tal entendimento se consolidar, dificilmente a credora fiduciária poderá reaver a sua propriedade resolúvel, objeto da garantia. Portanto, a prevalecer essa situação, se estará afirmando que a lei não tem nenhum valor. Será o mesmo que afirmar que a alienação fiduciária não só se sujeitaria aos efeitos da recuperação judicial como a garantia deixa de existir se o mero processamento da recuperação (que não se confunde com a homologação do respectivo plano) for deferido pelo Juízo Falimentar. Extrai-se da decisão recorrida que o devedor fiduciante poderá dispor, como bem entender, dos valores depositados em conta vinculada. O Tribunal de Justiça do Paraná, em decisão da lavra do Desembargador Lauri Caetano da Silva, já decidiu que: "A regra do art. 49, § 5º, da Lei de Recuperação impõe ao devedor a obrigação de depositar em conta vinculada os valores eventualmente recebidos em pagamento das garantias. A princípio, não nos parece razoável interpretar tal regra de modo a obrigar o credor a 'devolver' valores eventualmente recebidos por conta do seu crédito." 15 (g. n.) Tal precedente corrobora o entendimento doutrinário, como se vê do estudo de Fábio Ulhoa Coelho, o qual, no parecer anteriormente mencionado, esclarece que "a conta vinculada para depósito dos recursos empenhados deve ser aberta na própria instituição financeira credora pignoratícia, porque o art. 49, § 5º, da Lei nº 11.101/2005 não pode ser interpretado senão em consonância com os arts. 1.431 e 1.452, parágrafo único, do Código Civil. Deste modo, quando se trata da conta vinculada prevista no art. 49, § 5º, da Lei nº 11.101/2005, se for o credor pignoratício uma instituição financeira, deve ela própria abrir a conta e receber em depósito os valores empenhados. Claro, que essa conta aberta pela própria instituição financeira credora pignoratícia, continua a ser plenamente vinculada ao juízo recuperacional. [...] Em suma, em abrindo a própria instituição financeira credora pignoratícia a conta vinculada, não há nenhum risco para os interesses do devedor e demais credores em torno da recuperação judicial; mas atende-se ao modo normal e legalmente previsto de constituição da garantia pignoratícia, que é a transmissão do bem empenhado à posse do credor pignoratício". É importante que se evite, portanto, a formação de um perigoso entendimento, que põe em risco a aplicabilidade prática do instituto, já que, acaso ele prevaleça, todos os contratos dessa natureza perderão a razão de sua existência: conferir a certeza ao credor de que não verá o bem alienado fiduciariamente sendo molestado por outros credores e, o que é pior, vê-lo sofrendo os efeitos da recuperação judicial ou de eventual falência. O crédito fiduciário tem tratamento legal diferenciado, mas o intuito do legislador para tanto não foi o de favorecer unilateralmente as instituições financeiras. Bem ao contrário disso, foi o de, pela perspectiva econômica, criar ferramenta jurídica que permitisse a obtenção de empréstimos a juros muito baixos (especialmente quando comparados aos praticados no mercado) a financiados, cuja ausência de lastro patrimonial, num primeiro momento, vedava essa alternativa. O TJSP, por sua Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais de Direito Privado, decidiu o seguinte: "Parece claro que o intento, vê-se, desde logo, não obstante o largo espectro do caput (art. 49, §§ 3º e 5º, da Lei nº 11.101/2005), é o de exclusão de determinados créditos, especialmente o de bancos, que, em geral, dispõem de garantias, da submissão à recuperação judicial. [...] 'Os titulares de determinadas garantias reais ou posições financeiras (fiduciário, leasing etc.) e os bancos que anteciparam recursos ao exportador em função de contrato de câmbio excluem-se dos efeitos da recuperação judicial para que possam praticar juros menores (com spreads não impactados pelo risco associado à recuperação judicial), contribuindo a lei, desse modo, com a criação do ambiente propício à retomada do desenvolvimento econômico'. Os precedentes da Câmara são no mesmo sentido, como enfatiza a douta Procuradoria de Justiça oficiante. [...] Ora, no caso concreto, os bancos se apresentam munidos de contratos que lhes outorgam a condição de credores com garantia fiduciária ou pignoratícios, pelo que não haveria como, sob a letra da lei, submetê-los à recuperação judicial." 16 Vale colacionar, ainda, outra decisão também proferida pela Câmara Especial de Falências e Recuperações do TJSP: "Recuperação judicial. Cessão fiduciária de créditos. Credor não sujeito aos efeitos da recuperação. Hipótese, entretanto, de depósito das quantas recebidas em conta vinculada no período de suspensão previsto no art. 6º, § 4º, da Lei nº 11.101/2005. Depósito em conta vinculada que não significa depósito em conta judicial. Mantença do valor sob responsabilidade do credor, desde que com atualização monetária e juros das cadernetas de poupança. Recurso parcialmente provido." 17 CONCLUSÃO Em suma, os lançamentos objetos da alienação fiduciária não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial nem da falência, razão pela qual não pode ser suspenso o direito da proprietária fiduciária, já que a posse direta e indireta, bem como a conservação da garantia, são direitos assegurados ao credor fiduciário, pela lei e pelo contrato. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSUNÇÃO, Márcio Calil. A alienação fiduciária e a restituição. Tribuna de Direito, ago. 2005. CHALHUB, Malhim Namem. Negócio fiduciário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. COELHO, Fábio Ulhoa. Cessão fiduciária de direitos creditórios e sua exclusão da recuperação judicial. Parecer Jurídico incluso ao Agravo de Instrumento nº 472.508-8, da 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná. Rel. Des. Ruy Muggiati, 19.05.2008. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil: direito das coisas. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. FARIAS, Christiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. 6. ed. Trad. Paolo Capitanio. Atua-lizada por Paulo Roberto Benasse. Campinas: Bookseller, v. 3, 1999.