1 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – MESTRADO E DOUTORADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DEMANDAS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS LINHA DE PESQUISA EM CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO Iumar Junior Baldo ACESSO À MORADIA DIGNA E SUA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL NO RECONHECIMENTO DO DIREITO À CIDADE Santa Cruz do Sul, dezembro de 2011 2 Iumar Junior Baldo ACESSO À MORADIA DIGNA E SUA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL NO RECONHECIMENTO DO DIREITO À CIDADE Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito – Mestrado e Doutorado, Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, Linha de Pesquisa em Constitucionalismo Contemporâneo, da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Dr. André Viana Custódio. Santa Cruz do Sul, dezembro de 2011 3 Iumar Junior Baldo ACESSO À MORADIA DIGNA E SUA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL NO RECONHECIMENTO DO DIREITO À CIDADE Essa dissertação foi apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito – Mestrado e Doutorado, Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, Linha de Pesquisa em Constitucionalismo Contemporâneo, da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Dr. André Viana Custódio, Professor Orientador. Dr. João Pedro Schmidt Professor Participante. Dr. Adir Ubaldo Rech Professor Participante. Santa Cruz do Sul, dezembro de 2011 4 Este trabalho, e o mestrado, só foram possíveis graças ao apoio incondicional de minha família. Por isso, Iumar João e Lourdes, esta vitória é nossa! 5 AGRADECIMENTOS Algumas pessoas merecem um especial agradecimento pelo apoio incondicional na conclusão do Mestrado em Direito da Unisc. Primeiramente um agradecimento especial a Deus, que nos momentos de dificuldades transmitiu sua força para a superação de todos as dificuldades. Com esta força me foi permitido vencer, e neste caminho da vitorioso conhecer e reconhecer as pessoas importantes em minha vida. À minha família e à Lidiane, meu amor, pela consciência da importância desta conquista e pelo carinho, paciência, amor, confiança enquanto eu ia em busca de aprimoramento acadêmico. Não podia deixar de lembrar da vó Lurdes e toda sua linda e carinhosa família, que sempre procurou minimizar os efeitos de tantas viagens, trabalho e esforço pessoal. Ao professor Dr. André Viana Custódio, meu estimado orientador, pela paciência, pelo exemplo, pelo carinho, pelas oportunidades e principalmente pelo companheirismo dispensado nestes dois anos. A todo corpo docente da UNISC, especialmente aos amigos Dr. Clóvis, Dr. Jorge, Dr. Ricardo e para a amiga Dra. Salete. Um agradecimento especial também a querida amiga Rosana Fabra, que sempre realizou seu trabalho com profissionalismo e carinho por todos nós. Aos colegas de mestrado que provaram ser possível vencer qualquer adversidade com união e trabalho em equipe. Neste momento não é possível demonstrar com singelos agradecimentos o quanto grande pode ser este sentimento de amizade e companheirismo. Não poderia deixar de mencionar os colegas Almiro, Felipe e Tássia, pelos momentos de apoio, de força, e de carinho, sempre regados a boas gargalhadas. Tenho certeza de que o maior legado que podemos deixar é este sentimento de amizade e solidariedade mútuo. 6 Aos amigos que, mesmo sentindo minha falta, souberam esperar e compreenderam a minha ausência, conscientes de que a busca pelo conhecimento não é um compromisso, mas sim uma filosofia de vida. Alguns amigos também merecem um especial agradecimento: Prof. Nina Lee, Márcio, Robson, Vivi, Robes, Luty, Giba, Juliano, Jefe, Gio, Dhieymy, Iuri entre tantos outros que não será possível nominar. Sintam-se todos abraçados e comemorem comigo esta conquista! Obrigado pelo carinho e pelo amor de todos vocês, afinal, sem isso nada teria sido possível. 7 “Invoquei, e o espírito da sabedoria veio até mim. Eu a preferi aos cetros e tronos e, em comparação com ela, considerei a riqueza como um nada. Não a comparei com a pedra mais preciosa, porque todo o ouro, ao lado dela, é como um punhado de areia. E junto dela, a prata vale o mesmo que um punhado de barro. Amei a sabedoria mais do que a saúde e a beleza, e resolvi tê-la como uma luz, porque o brilho dela nunca se apaga. Com ela me vieram todos os bens, e em suas mãos existe riqueza incalculável. Gozei de todos esses bens, porque é a sabedoria que os traz, mas eu ignorava que fosse ela a mãe de todos eles. Sem malícia, aprendi a sabedoria, e agora a distribuo sem inveja nenhuma. Não vou esconder sua riqueza, porque ela é um tesouro inesgotável para os homens. Aqueles que a adquirem, atraem a amizade de Deus, porque são recomendados pelo dom da instrução dela. Deus me conceda falar com propriedade e pensar de forma correspondente aos dons que me foram dados, porque ele é o guia da sabedoria e o orientador dos sábios.” Livro da Sabedoria, Capítulo 7. 8 RESUMO A pesquisa procurou debater o reconhecimento do direito fundamental socioambiental à cidade e o acesso à moradia digna no Brasil. O objetivo geral foi analisar o direito fundamental à cidade, a partir dos modelos e sistemas propostos existentes, avaliando os aspectos de acesso à moradia digna frente aos princípios socioambientais constitucionais. Os objetivos específicos foram avaliar os fundamentos do reconhecimento do direito fundamental à cidade a partir de uma perspectiva histórica; analisar os aspectos conceituais, paradigmáticos e legais do direito à moradia digna frente à função social da propriedade e avaliar as políticas públicas de acesso à moradia digna; e, por fim, demonstrar as concepções colhidas acerca da função socioambiental do direito à moradia digna frente aos fundamentos do meio ambiente e sua relação com o direito fundamental à cidade. O problema da pesquisa era como o reconhecimento do direito fundamental socioambiental à cidade garante o acesso à moradia digna no Brasil? O acentuado crescimento das cidades, em especial das brasileiras, e o aumento inegável dos problemas no meio ambiente urbano exigem soluções eficazes e desassociadas de interferências políticas e regalias e também da lucratividade a todo custo. Talvez a expressão “deterioração do espaço urbano” represente com propriedade a atual situação das cidades, fundamentada na carência de moradia, meios de transporte, falta de saneamento básico, insuficiência geral de serviços que deveriam ser proporcionados de forma digna à população. Ainda assim, nenhum direito fundamental será eficaz quando dissociado de ações institucionais que garantam a fusão destes direitos no contexto das cidades. Na transformação da legislação pátria, tem se confirmado a necessidade do atendimento das demandas elementares da cidadania avançando, constantemente, no sentido de assegurar instrumentos eficazes para inserir, de fato e de direito, parcela significativa da população que ainda se encontra à margem da dignidade mínima que compete ao Estado oferecer, em especial após o reconhecimento do direito à moradia na condição de direito humano fundamental. Inicialmente a hipótese formulada era comprovar se é necessário o reconhecimento deste novo direito, com vistas a garantir o acesso à moradia digna, o correto uso e ordenação do espaço urbano, sempre pautados pela preservação ambiental para o bem comum como forma de proporcionar uma cidade equilibrada e, principalmente, sócio-ambientalmente justa. O método de abordagem a ser utilizado no desenvolvimento do presente trabalho será o monográfico, que partirá do problema proposto e da hipótese preliminar e testará a ocorrência de fenômenos abrangidos pela hipótese, submetendo-a a crítica intersubjetiva para, ao final, verificar sua confirmação ou refutá-la. Esta investigação buscou uma constante comparação entre as garantias legais presentes na Constituição Federal, a realidade social caracterizada por graves contradições e desigualdades, as políticas que são implementadas pelo Estado, especialmente pelos municípios a quem cabe o dever de bem organizar o espaço urbano (ou das cidades). Palavras-Chave: direito à cidade; direitos fundamentais; moradia digna. 9 ABSTRACT The research sought to discuss the recognition of the social and environmental fundamental right to the city and the access to decent housing in Brazil. The general purpose was to analyze the fundamental right to the city, from the models and systems proposed existing, evaluating the aspects of an access to decent housing in the face of socio-environmental constitutional principles. The specific objectives were to evaluate the fundamentals of recognizing the fundamental right to the city from a historical perspective; consider the conceptual, paradigmatic and legal aspects aspects of the right to decent housing against the social function of property and evaluate public policies for access to decent housing and; and, finally, show the views taken on the function of socio-environmental right to decent housing ahead of the fundamentals of the environment and its relationship with the fundamental right to the city. The problem of the research was how does the recognition of the fundamental right to the city social and environmental guarantee the access to decent housing in Brazil? The dramatic growth of cities, especially in Brazil, and the undeniable increase of problems in the urban environment require effective solutions and disassociated from political interference and benefits and also profitability at all costs. Perhaps the term "deterioration of urban space" represents correctly the current situation of cities, based on the lack of housing, transportation, lack of sanitation, general failure of services that should generally be provided in a dignified manner to the population. Still, no fundamental right will be effective when separated from institutional actions to ensure the fusion of these rights in the context of cities. In the transformation of Brazilian legislation, has confirmed the necessity of meeting the basic demands of citizenship, moving constantly to ensure effective tools for inserting factual and legally significant portion of the population that is still on the sidelines of minimum dignity that the State has to offer, especially after the recognition of the right to housing provided fundamental human right. Initially the hypothesis was to prove whether it is necessary to recognize this new right, in order to ensure access to decent housing, the right correctly use and ordering of urban space, always guided by environmental preservation for the common good in order to provide a balanced city and above all, socially and environmentally just. The method of approach to be used in the development of this work is the monograph, from of the problem and hypothesis preliminary proposed and testing the occurrence of phenomena covered by the hypothesis, subjecting it to the intersubjectivity in the end, check your confirmation or refute it. This research sought a constant comparison between the present legal guarantees in the Constitution, the social reality characterized by serious contradictions and inequalities, policies that are implemented by the State, especially the municipalities which will be the duty of organizing and urban space (or cities). Keywords: right to the city; fundamental rights; decent housing. 10 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11 2 FUNDAMENTOS DO DIREITO À CIDADE ........................................................... 14 2.1 Fundamentos do meio ambiente sob a perspectiva constitucional ..................... 21 2.2 Breve trajetória histórica do reconhecimento do direito à cidade ........................ 28 2.3 A formação histórica do desenvolvimento urbano ............................................... 38 3 A PROPRIEDADE URBANA A PARTIR DE UMA CONCEPÇÃO DE DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA DIGNA ..................................................................... 51 3.1 Da função social da propriedade à Lei 10.257 de 10 de julho de 2001 ............... 57 3.2 Direitos sociais e direito à moradia digna ............................................................ 67 3.3 Ações Institucionais para a garantia do direito à moradia digna ......................... 77 4 CONCEPÇÃO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DO DIREITO Á CIDADE NO ESTADO SOCIOAMBIENTAL DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................................ 88 4.1 Direito à cidade como um direito fundamental .................................................... 88 4.2 O modelo estatal de planejamento e ordenação do espaço urbano e a função socioambiental das cidades ...................................................................................... 97 4.3 Os desafios para a nova gestão democrática de acesso à moradia digna com vista às cidades sustentáveis .................................................................................. 112 5 CONCLUSÃO....................................................................................................... 129 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 133 11 1. INTRODUÇÃO A pesquisa se lança sobre a ideia de cumprimento da função socioambiental da cidade pelo viés do direito à moradia, pautando-se no reconhecimento do direito à cidade como direito fundamental. Esse enfrentamento requer, de uma forma preliminar, consciência histórica acerca das determinantes que desencadearam, nas sociedades pelo mundo, diferentes formas de encarar a formação urbana da vida em comunidade. Nesse sentido, o direito à cidade está situado na busca das razões que ao longo dos anos ajudaram a formar ambientes carentes de organização e condições mínimas de vida digna. Sob a ótica histórica, o cotidiano citadino é visto como resultado de um processo de efetivação das prioridades de determinado espaço num lugar no tempo. Não concorre aí, porém, a sedimentação de uma base única de história dogmática, pela qual se funda das iniciativas institucionais e sociais de melhoramento urbano. Sob essa ótica, deseja desenvolver o discurso acerca da função socioambiental da cidade e formação de subsídios teóricos ao direito à moradia, levando em consideração os contextos nacionais de incompletude material e desrespeito ao meio ambiente. Visa estabelecer um diálogo com as normas vigentes e que já conduzem a uma interpretação integrada dos institutos de direito à moradia, e contemplar a fase prática e executória das ações de promoção do direito à moradia, em conexão direta com o direito ambiental e à cidade. Essa necessidade surge diante dos contextos urbanos que denunciam o déficit de efetividade do direito à moradia, e que se relaciona com outros tantos direitos carentes de realização, como o direito à cidade e o direito ambiental. Do ponto de vista prático, significa um vasto contingente de pessoas sem as condições de vida digna. Do ponto de vista legal, representa a não realização das normas de direito à cidade que, mesmo passando pelo processo de constitucionalização, não auferiram razão fundamental ao problema. Diante disso, o reconhecimento do direito à cidade como direito socioambiental fundamental atua enquanto fomento às 12 investidas institucionais e sociais de efetivação, e alavanca a tarefa institucional e social de promoção desses direitos. Diante dos vários desafios que pertencem à ideia de um direito fundamental à cidade, com vistas à implementação das condições urbanas de vida digna, exige uma variedade de sujeitos e atividades conjuntas. A análise da inteiração entre os agentes sociais e o Estado faz com que se tenha uma primeira ideia do âmbito de integração dos envolvidos, justamente porque a ação vertical leva, do ponto de vista da atuação institucional, a posturas radicais e desvinculadas com o cotidiano da democracia. O compartilhamento pressupõe, além de convergência exterior de interesses, uma integração com vistas num fim comum, como superação dos modelos predatórios de uso do meio ambiente. Essa condição superior de prevalência de modelos democráticos e participativos proporciona, ainda, a revitalização da democracia para além da representatividade. Mais do que isso, corresponde a um resgate do sujeito ainda munido de indignação social, como resposta às tentativas de se retardar a consciência social e o desejo de reduzir a desigualdade e as raízes da alienação. No âmbito acadêmico, corresponde à re-fundação de um sentido compartilhado para o direito, posto dentro dos diálogos emergentes acerca do futuro socioambiental e social dos seres humanos no mundo. Se não como resposta, os argumentos acerca da necessidade de reconhecer e tratar o direito à cidade como direito fundamental revitalizam a perspectiva dialética de pensar a sociedade e as formas jurídicas que lhe determinam e que, reciprocamente, geram no Direito crises antológicas e variações conceituais de grande dimensão. Assim, são esses os elementos que pautam a discussão acerca dos efeitos jurídico-sociais da adoção do direito à cidade como um direito socioambiental fundamental, e que justificam a discussão sobre o tema. Diante de todos esses elementos, a pesquisa valeu-se de inspeção bibliográfica, bem como na legislação específica, dando especial atenção à 13 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Não deixa de perceber, no entanto, uma ordem sistêmica de percepção da temática, usando-se da hermenêutica como subsídio ao cruzamento das referências, estabelecendo relações entre as subtemáticas envolvidas. O primeiro capítulo analisa, também pela perspectiva histórica, os fundamentos que habilitam a discussão acerca do direito socioambiental à cidade, alçando voo nas origens dos contextos urbanos de segregação social e desrespeito com o meio ambiente. Faz constar, ainda, a forte matriz constitucional que subjaz ao diálogo do direito à cidade. Nesse contexto de direitos, o segundo capítulo estabelece a possibilidade prática do exercício da vida privada, cujas condições e alcances não deixam de considerar o prisma coletivo que uma comunidade urbana pressupõe. No contexto brasileiro, significa uma aproximação dos institutos democráticos por meio da inovação constitucional vivenciada desde 1988. Mais especificamente, o exercício da democracia possibilita, pelo compartilhamento entre direitos e entre os agentes envolvidos, uma superação do monismo representativo e a fundação de um modelo democrático mais amplo para o país. Há aí a menção especifica da Lei n. 10.257 de 2001, que representa um avanço em relação ao direito à cidade. Com o terceiro capítulo, posto em relação aos demais, analisa-se, sob o enfoque constitucional, as medidas institucionais de direito à moradia, sem deixar de considerar todo o rol de direitos que se relacionam. Assim, há referência a um compartilhamento democrático entre as ações, com o intuito de configurar a efetivação do direito à moradia. Com isso, as indagações e problemáticas acadêmicas ensejam o aperfeiçoamento de um diálogo crescente, que se vê integrado pela necessidade de oferecer elementos de compreensão para as crises institucionais e sociais, e para fomentar o surgimento de uma ordem de exercício democrático do cidadão, mas que não deixa de levar em consideração a função do Estado no processo de constituição de uma sociedade livre, justa e igual. 14 2. FUNDAMENTOS DO DIREITO À CIDADE O mundo globalizado e suas complexas formações culturais e sociais geram o sentimento geral de que as sociedades formam, entre si e em seu interior, aglomerações ordenadas. Essa percepção preliminar parte de um pressuposto superficial segundo o qual a formação histórico-social da sociedade capitalista moderna se deu de forma gradual e planejada. O desenvolvimento das cidades que mais diretamente se assemelham às formações urbanas contemporâneas careceu, ao longo dos tempos, de uma projeção mais delineada devido a um avanço acentuado a partir do século XVIII e XIX. Fernandes, ao tratar de uma nova ordem jurídico-urbanística no Brasil, representa as inovações e características das formações urbanas como “palcos” das atividades econômicas que, com a superação da fase industrial mais primitiva, condensam novas estratégias e formas de uso dos recursos naturais e artificiais. Atenta, ainda, para a parte mais perversa da urbanização que atinge a América Latina, qual seja, a formação de exclusão social, crise habitacional, segregação espacial, violência urbana e degradação ambiental.1 Essa estruturação rápida dos contingentes urbanos fez com que os nichos humanos se formassem a partir de uma necessidade imediata de atenção às demandas fabris. Com isso, não havia tempo ou interesse para que as condições urbanas e sociais pudessem ser sedimentadas de forma a agregarem bem-estar e qualidade de vida ao cidadão urbano, condições que, com o advento das revoluções industriais, passaram a estar atreladas à ideia de dignidade humana. Num sentido histórico mais aproximado, a formação embrionária dos agrupamentos sociais, nas formas como se apresentam contemporaneamente, marcados pela concentração no entorno dos locais que oferecem trabalho, teve uma origem principiante nos itinerários político-econômicos da Idade Moderna, sobretudo a partir da Primeira Revolução Industrial, no século XVIII. Essa sedimentação que 1 FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 3 et. seq. 15 acabou por distanciar esse momento histórico dos predecessores e, ao mesmo tempo, fundar estruturas políticas, econômicas, filosóficas e, sobretudo, com os intentos revolucionários da Revolução Francesa, a orla do pensamento e atividade jurídicos, teve como matriz política a emergência sócio-econômica da classe burguesa. Nesse contexto, Marshall Berman2 menciona algumas posições teóricas acerca do prospecto moderno, partindo de análises críticas bem definidas. Apresenta, assim, algumas considerações presentes em Max Weber, cuja visão é bastante pontual em relação ao caráter ambivalente da modernidade. Sob essa ótica, o evento moderno representa um sentido ambivalente ao passo que conserva, de um lado, a fundação da autonomia filosófica e jurídica do sujeito e, por outro, desenvolveu contextos de exploração e heteronomia desse mesmo sujeito. Nesse contexto, o fato de as ciências modernas terem instrumentado o aperfeiçoamento da produção fabril fez com que considerassem esse o objetivo mais razoável para sustentar o desenvolvimento nacional e dos povos como um todo. Essa crença fez com que igualassem a mecânica das máquinas ao comportamento fisiológico e procedimental do ser humano. Essa mesma ideologia ratificava, concomitantemente, a investida científica, ainda principiante, e a exploração em massa dos recursos naturais. Especificamente, o povoamento desordenado das cidades, sobretudo acentuado a partir da primeira revolução industrial, é um indicativo objetivo do crescimento acelerado originado por todas as transformações paradigmáticas advindas da modernidade. A consequência, mesmo para as formações urbanas hodiernas, é a percepção de que o desenvolvimento econômico move o mundo, razão pela qual a ordenação das ocupações e a efetivação dos registros constitucionais e de toda forma de realização da dignidade humana ficam mitigados. Sen, ao radicalizar o paradoxo em que as sociedades contemporâneas, de matriz moderna, estão imersas, estabelece. 2 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. Carlos Moisés e Ana Maria L. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 26. 16 Vivemos em um mundo de opulência sem precedentes, de um tipo que teria sido difícil de imaginar um ou dois séculos atrás. [...] Existem problemas novos convivendo com os antigos- a persistência da pobreza e de necessidades essenciais não satisfeitas, fomes coletivas e fome crônica muito disseminadas, violação de liberdades políticas elementares e de 3 liberdades formais básicas [...]. A existência paradoxal de, por um lado, novas demandas e, de outro, problemas recorrentes é um diagnóstico que ajuda a compreender, do ponto de vista jurídico e sociológico, a análise que o direito fundamental à cidade poderá seguir. Não há como pensar a transformação de contingentes urbanos desassistidos sem propor o problema estrutural da adoção institucional e social de medidas urgentes e efetivas, proposta esta que passa a ter uma nova perspectiva a partir do reconhecimento do direito à cidade como direito fundamental; mais do que isso, essa formação estrutural nasce como consequência da opção político-econômica, sobretudo, dos segmentos privados, ainda que também o Estado acabe por ratificar essa preferência, uma vez que a intervenção nas formas como os recursos comuns são usados de forma particular é mínimo. Com esses elementos, a conceituação do direito fundamental à cidade dirá respeito, então, no sentido jurídico, ao processo de positivação iniciado de uma maneira mais específica com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seus artigos 182 e 183; entretanto, diz respeito a uma menção prévia que, mesmo com a divulgação da Lei n. 10.257 de 10 de junho de 2001, não adquiriu o status de fundamental. Sob esta égide, formalmente, ainda não existe qualquer vinculação entre o direito à cidade e o caráter fundamental que encerra, uma vez que “direitos fundamentais são aqueles que, reconhecidos na Constituição ou em tratados internacionais, atribuem a indivíduos ou grupos de indivíduos uma garantia subjetiva e pessoal”.4 3 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 9. 4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 96. 17 Diante disso, falar em direito fundamental à cidade significa a menção direta das condições de vida urbana à garantia a um grupo de sujeitos, tutela segundo a qual é possível elevar a legitimidade das demandas e reafirmar o compromisso do Estado na erradicação da miséria e das desigualdades sociais, sobretudo aquelas que são explicitadas nos contextos urbanos. Adquirindo o caráter fundamental, a responsabilidade do Estado em, conjuntamente com a sociedade, realizar o direito à cidade é permeado pela ideia de uma transformação social, justamente porque o reconhecimento faz com que o segundo passo seja a sua realização. Mais do que isso, a atividade de intervenção do Estado na dinâmica de reconfiguração dos espaços urbanos levará em consideração a defesa efetiva de um direito que se vincula diretamente à coletividade; dessa forma, estar-se-á diante de uma mudança na forma como a cidade é pensada atualmente, em que se deixa de lado a visão segundo a qual a mesma não representa senão um contexto aleatório e particular. Erige-se, então, um direito à cidade que corresponde ao compromisso constitucional de redução da desigualdade social. Assim, essa inclusão do direito à cidade na dinâmica dos direitos fundamentais potencializa, por um lado, a legitimidade de se exigir iniciativas e, por outro, faz com que se mitigue as tentativas que, com um caráter estritamente privado, reduzem as condições de vida digna em mérito do processo de acúmulo de capital. Na dimensão constitucional, as normas dão conta de uma previsibilidade mínima de atenção a essa demanda. Do ponto de vista da execução continuada e abrangente dessas normas, mesmo diante das leis especificas que delineiam as ocupações e os procedimentos municipais e estaduais, o reconhecimento do direito à cidade como um direito humano fundamental é condição expressivamente imperativa, que pressupõe uma atividade constitucional (forma) e institucional (agir governamental) efetiva. Além disso, diante dessa menção recorrente de direitos humanos fundamentais, tem-se que, aquém de representarem uma forma redundante, tanto 18 conceitual como usualmente, dizem respeito, como explica Leal5, à possibilidade de conciliação entre os direitos humanos, universalmente postos, e o processo de constitucionalização, que lhes atribui essa fundamentalidade. Significa dizer, então, que os direitos humanos fundamentais são aqueles direitos humanos incorporados constitucionalmente, sendo, assim, dotados de um aspecto positivo real. Sob este aspecto, a dinâmica de inclusão do direito à cidade como direito fundamental reconhece a forma não taxativa dos direitos fundamentais, justamente por registrarem uma anuência aos pressupostos de humanidade, que é como podem ser chamadas as condições integrais de vida digna. Dessa forma, o uso da expressão “direitos humanos fundamentais” registra a possibilidade de inclusões constitucionais de direitos notadamente ligados à condição humana. Sobre esse aspecto, essa variante possibilita uma nova visão dos aspectos institucionais e sociais de percepção do direito à cidade. Segundo essa análise, direitos humanos correspondem a uma concepção mais universalista, em que estão presentes, em todas as formações humanas, aspectos indissociáveis da condição de humanidade que existe no sujeito, e não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Nesse mesmo aspecto, os direitos fundamentais são aqueles “direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado”.6 Diante disso, dizer do direito à cidade que deve ser um direito humano fundamental significa afirmar a aproximação entre a formação histórica das necessidades humanas e o registro efetivo na opção do Estado. A partir da atribuição desse caráter fundamental, ratifica-se, por um lado, a não estaticidade dos direitos humanos e, num sentido mais estrito, a ideia de que o desenvolvimento do Estado segue a construção histórica dos povos em sociedade. Edifica-se, assim, uma unidade entre a atividade institucional e a realidade social. É diante desse reconhecimento que a postura política frente à vida em sociedade muda, em que são agregados não somente aspectos operacionais ou formalmente novos, mas, 5 LEAL, Sandra. Possibilidade de refundação do sentido dos direitos humanos: a via da diferenciação semântica. In: CARBONARI, Paulo César. KUJAWA, Henrique Aniceto. Direitos humanos desde Passo Fundo. Passo Fundo: IFIBE, 2004, p. 113 et. seq. 6 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 33-34. 19 sobretudo, características da nova ordem de atuação do Estado frente à promoção da qualidade de vida. Por outro lado, fato de a atenção às demandas sociais existir como uma conexão entre Estado e sociedade civil não extenua a tarefa do governo em comandar a execução de leis a políticas urbanísticas que atentem para o bem estar e qualidade de vida. Assim, se por um lado o desenvolvimento econômico das cidades identifica uma forma de crescimento e aperfeiçoamento dos instrumentos científicos e tecnológicos, por outro, os contextos antitéticos de exclusão social e degradação das condições urbanas de sobrevivência denunciam essa parcialidade das formas oriundas da nova estrutura advinda das revoluções modernas. Ou seja, se por um lado a nova visão de mundo trouxe avanços nas ciências, por outro não suprimiu a existência de desigualdades e parcialidades no desenvolvimento dos povos. Desde a emergência da concepção antropocêntrica de mundo que o comportamento humano parte de um novo pressuposto de desenvolvimento e estreitamento das relações interpessoais. Sob esse aspecto, a análise do atual contexto de degradação ambiental e a perspectiva jurídica e social da formação dos centros urbanos acabam por se interpenetrar, justamente porque parte do dano àquela estrutura natural se deu em virtude da não atenção às condições mínimas de vida coletiva, o que significa dizer que a desatenção quanto ao jeito de organizar a cidade deu vazão ao surgimento de algumas formas de degradação ambiental. Do ponto de vista jurídico, no Brasil o fomento constitucional do século XX não deu conta de explicitar uma opção real e clara acerca da instituição do direito à cidade como direito fundamental, adjetivo este que acaba por se tornar uma condição de legitimidade e exigibilidade dos provimentos da própria sociedade. Não existe, assim, um maior percentual de demandas que tenham como endosso uma atitude institucional objetiva. Diante desse cenário, a existência e reconhecimento do direito à cidade como direito fundamental depende, basicamente, da formação de uma ideia que, ao não se prender à taxação conceitual dos direitos fundamentais 20 como positivos e visíveis, transcendente metodológica e praticamente os institutos jurídico-sociais de efetivação de contextos com qualidade de vida. Assim, se, por um lado, essa existência para além da forma positiva não a extenua ou reduz, a percepção de que determinados contextos e condições carecem de uma ampla integração com a contemporânea forma de globalização e organização urbana faz com que se vá além, não somente enquanto diagnóstico sociológico, mas, sobretudo, enquanto conteúdo da existência do direito como reciprocidade dialética. Essa sua característica induz, interpretativa e normativamente, um enlace real entre o procedimento e atualização jurídico-social com a demanda real de uma comunidade de pessoas. Mais do que somente uma percepção estanque e temporal, a formação – reconhecimento - de direito a partir de contextos e demandas sociais remonta uma maturação histórica pela qual é possível analisar a progressão gradual dos direitos que aos poucos vão incorporando mais intimamente as condições da dignidade humana, sobretudo com a inclusão institucional de uma plêiade objetiva de garantias do cidadão. Assim, a importância que esse reconhecimento contém diz respeito, então, à exigibilidade e justificação jurídica de direitos como fontes das condições daquela dignidade humana. Sobre esse panorama, o resgate histórico demonstra a fecundidade do reconhecimento como ponto de partida e incita, diante da deliberação dos povos, a fundação de novos e urgentes direitos inerentes à condição de humanidade. Desde essa estruturação histórica, é possível fazer figurar o direito à cidade como direito humano fundamental, justamente por estar aí atrelado um contingente de outros direito que, denegado essa perspectiva da integralização urbana, ficam, consequentemente, mitigados. Mais do que somente reivindicar isoladamente a estruturação da cidade a partir da ideia de que é uma convergência real de interesses, tanto individuais privados como institucionais, o reconhecimento do direito à cidade como direito humano fundamental parte de um pressuposto integrador e universal, pelo qual se reconhece a importância de um habitat preservado, igualitário e que promova, do ponto de vista do sujeito, o bem-estar e a qualidade de vida. Sobre outro olhar, essa fundação de um ambiente urbano 21 preservado representa a manifestação de que a transformação social é possível e, além disso, que se forma a partir da superação dos nichos de exclusão social. Não obstante a isso, a existência da cidade como um meio genérico de vivência e desenvolvimento individual e coletivo acaba por lhe atribuir uma função socioambiental. Se a matriz positivista, oriunda do sentido epistemológico da modernidade, excetuava-se de uma perspectiva abrangente e social, a formação hodierna, tanto do contexto estritamente jurídico, quanto das adoções sociais de convivência aludem à exigência de um sentido mais universal e coletivo, tanto para as atividades individuais (dimensão do sujeito), quando para a propriedade que ocupa um lugar no contexto urbano (objeto). Assim, é diante dessa perspectiva transindividual, ou seja, desse reconhecimento unívoco ao direito do sujeito, como superação do individualismo, presente tanto no Estado como na sociedade civil, que o diálogo socioambiental é permeado pela dinâmica da atividade real que as cidades possuem em relação ao meio ambiente. Conceber a cidade como um lugar de efetivação de direitos e respeito ao ecossistema gera, do ponto de vista jurídico, a percepção de que a exigibilidade de uma conduta conforme migrou da pura normatividade positiva para a consciência dos povos. Significa dizer que, ainda que oriunda de um contexto positivista e segregado, a consciência social e institucional poderá ter, a partir do reconhecimento da cidade como um lugar coletivo, a percepção de que está diante, até mesmo, de uma maturação histórica de sua própria racionalidade interna. Sob essa ótica, o ordenamento jurídico acumula uma interconexão entre a realidade dos regramentos sociais e a convicção de que a preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado é muito mais do que um dever jurídico, mas é, sobretudo, condição de manutenção da vida em todas as suas dimensões. 2.1 Fundamentos de meio ambiente sob a perspectiva constitucional Em um país em crescimento como o Brasil, um dos principais desafios é conciliar as questões ambientais com a execução do receituário econômico determinado pela necessidade de progresso e solução dos problemas habitacionais 22 existentes. Neste intento não se pode olvidar a preocupação com o meio ambiente, enquanto fomentador de uma ambiente equilibrado e sadio para o exercício da cidadania. No entanto, percebe-se que a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais através do direito de acesso a uma moradia digna, apesar de amplamente abordado como projeto institucional no contexto político nacional, parece não contemplar a questão da democracia sob o viés da participação política. O atual modelo de cidade nada mais é do que a expressão do desequilíbrio em consequência do crescimento desordenado dos conglomerados urbanos desassistidos de qualquer infra-estrutura mínima para exercício de uma vida digna. Vive-se um momento de relacionar o meio ambiente à dignidade do ser humano, levando a crer que o desenvolvimento econômico pode ser sustentável, desenvolvendo o equilíbrio ambiental e uma melhor qualidade de vida a todos, indistintamente, vez que vida é composta por sistemas vivos que interdependem uns dos outros para sobreviverem7, da mesma forma que o ser humano, a organização, a tecnologia, o trabalho, a religião, a economia, entre outros sistemas sociais, se interligam com as cidades que representam. Na transformação da legislação pátria, tem-se confirmado a necessidade do atendimento das demandas elementares da cidadania, avançando, constantemente, no sentido de assegurar instrumentos eficazes para inserir de fato e de direito uma parcela significativa da população que ainda se encontra à margem da dignidade mínima que compete ao Estado oferecer, em especial após o reconhecimento do direito à moradia em locais sadios e ambientalmente sustentáveis. A própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao almejar, em seu artigo 170, III e IV, um desenvolvimento econômico sustentável e voltado à realização da função social da propriedade e da preservação do meio ambiente, buscou harmonizar valores até então tidos como incompatíveis. Na verdade, o constituinte só reconheceu algo patente nos contextos jurídicos da atualidade, que é 7 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Editora Cultrix, 2006, p. 28. 23 a inter-relação dos valores. Todavia, não basta apenas a tutela formal, imperiosa a material, pois ainda hoje se vislumbra diuturnamente a supremacia do poder econômico sobre as demais questões axiológicas. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 elevou o meio ambiente ao status de direito fundamental, atribuindo-lhe amplo amparo, muito embora a Lei nº 6.938, de 31 de agosto 1981, já houvesse atribuído uma proteção expressiva quando formalizou conceitos8 com fins à implementação da Programa Nacional de Meio Ambiente. Sobre a previsão constitucional, vislumbramos. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologiamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de preservá-lo para 9 as presentes e futuras gerações. Dentro desta perspectiva, uma nova ordem ambiental implementou-se em nosso ordenamento jurídico, determinando a adoção do “meio ambiente ecologicamente equilibrado” como norteador das políticas públicas. Contudo, sempre ocorreram distorções no conceito de equilíbrio ambiental. Assim, Meio ambiente ecologicamente equilibrado não significa meio ambiente nãoalterado. O termo equilibrado incorpora a idéia de altos e baixos; a idéia dos pratos de uma balança que busca, em seu movimento de sobe-e-desce seu ponto de inércia; um pêndulo em movimento que oscila entre períodos positivos e negativos em torno de um ponto médio em busca de estabilidade.A expressão ecologicamente equilibrado incorpora a noção de equilíbrio fluente, isto é, um equilíbrio dinâmico que se mantém graças à contínua e permanente ruptura do equilíbrio. Na expressão ecologicamente está implícita a lei de sobrevivência da selva. As relações infra e interespecíficas, harmônicas e desarmônicas estão contempladas nesse 10 contexto. 8 Art. 3º- I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas; [...]. (BRASIL, Congresso Nacional, Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938compilada.htm>. Acesso em: 7 nov. 2011. 9 BRASIL, Assembléia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 7 nov. 2011. 10 BUTZKE, Alindo. Os fundamentos ecológicos das questões ambientais na Constituição brasileira de 1988. Revistra Trabalho e Ambiente. Universidade de Caxias do Sul. Caxias do Sul, v. 1, n. 1, jan-jun., 2002, p. 122 (grifos do autor). 24 Esse novo âmbito de enquadramento do meio ambiente como direito fundamental permitiu a realização de aspirações individuais, com vistas a uma ordem social norteada pelos valores de liberdade e solidariedade. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental, porque é uma prerrogativa individual prevista constitucionalmente, cuja realização envolve uma série de atividades públicas e privadas; produzindo não só a sua consolidação no mundo da vida como trazendo em decorrência disto, uma melhora das condições de desenvolvimento das potencialidades individuais, bem como uma ordem 11 social livre. O reconhecimento do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito humano fundamental ocorre, em nível internacional, muito antes da Constituição de 1988. Na Conferência de Estocolmo, realizada na Suécia em 1972, pela primeira vez se reconheceu a necessidade de organizar a relação entre ser humano e meio ambiente. Naquele momento histórico surge a Declaração de Estocolmo, documento que mais tarde direcionaria a criação de toda legislação ambiental dos países signatários, com vistas à elaboração de normas jurídicas pautadas por ideais transcritos em seus princípios. 1 – o homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. A esse respeito, as políticas que promovem, ou perpetuam o “apartheid”, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de 12 dominação estrangeira permanecem condenadas e devem ser eliminadas. No Brasil a primeira legislação que traz sinais implícitos e explícitos da Declaração de Estocolmo foi a Lei nº 6.938, de 31 de agosto 1981. Alguns anos depois, com a edição da Constituição de 1988, fica bastante clara a postura do legislador que, tratando-se de meio ambiente, recepciona claramente todos os preceitos constantes daquele encontro, reservando inclusive um capítulo do texto constitucional para a questão ambiental. 11 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 223-224. Disponível em: http://5cidade.files.wordpress.com/2008/03/declaracao-de-estocolmo.pdf. Acesso em 08 de Novembro de 2011. 12 25 As Constituições originalmente tinham um objetivo básico: resguardar o cidadão das arbitrariedades do estado, especialmente na apropriação da propriedade privada sem prévia e justa indenização em dinheiro. 13 Uma evolução significativa pôde ser notada, pelo menos na Constituição de nosso país, quando se preocupou em garantir também, outros objetivos: “consagrar direitos sociais e econômicos e apontar caminhos, metas e objetivos, a serem perseguidos pelos Poderes Públicos no afã de transformar a sociedade”14. Pontual e esclarecedora a lição de Canotilho. Nesse complexo quadro de aspirações individuais e sociais, ganham relevo categorias novas de expectativas (e a partir daí, de direitos), cujos contornos estão em divergência com a fórmula clássica do eu-contra-oEstado, ou até da sua versão welfarista mais moderna, do nós-contra-oEstado. Seguindo tal linha de análise, a ecologização do texto constitucional traz um certo sabor herético, deslocado das fórmulas antecedentes, ao propor a receita solidarista - temporal e materialmente ampliada (e, por isso mesmo, prisioneira de traços utópicos) - do nós-todos-em-favor-do-planeta. Nessa, comparando-a com os paradigmas anteriores, nota-se que o eu individualista é substituído pelo nós coletivista, e o típico nós welfarista (o conjunto dos cidadãos em permanente exigência de iniciativas compensatórias do Estado) passa a agregar, na mesma vala de obrigados, sujeitos públicos e privados, reunidos numa clara, mas constitucionalmente legitimada, confusão de posições jurídicas; finalmente, e em conseqüência disso tudo, o rigoroso adversarismo, a técnica do eu/nós contra o Estado ou contra nós mesmos, transmuda-se em solidarismo positivo, com moldura do 15 tipo em favor de alguém ou algo. Assim, a Constituição brasileira trouxe consigo o rompimento de um paradigma em relação ao ordenamento jurídico, superando uma matriz de ordem exclusivamente liberal e pragmática, se firmando como defesa instituída da ordem ambiental, atribuindo não somente efeito simbólico à ideia de função social, mas a tornando imperativa e relacionando-a ao contexto da função socioambiental da cidade. Todas as Constituições liberais garantem a propriedade privada e a livre iniciativa, porém esses valores estão moldados pela proteção ambiental. Sendo que, a um só tempo, a Constituição construiu limitações à exploração 13 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens. (org) Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 58. 14 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 71. 15 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens. (org) Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 58. 26 e acrescentou a função social da propriedade. Agora, o direito de explorar só é permitido respeitando os fundamentos ecológicos essenciais, incluindo16 se aí a saúde humana. A proteção ambiental ganha meteórica importância, alçada rapidamente à condição de direito fundamental, justamente fundamentada pela crise política que determinou nova postura em relação à proteção ambiental. A proteção ambiental também impele ao Estado, enquanto ente administrativo, de levar em conta o ambiente quando da tomada de decisões em relação às políticas públicas coletivas. Ainda, a relevância da questão ambiental atinge tal magnitude que a coletividade é chamada à esfera decisória, na forma de participação pública, na promoção de ações judiciais protetivas ao ambiente. Neste exercício participativo fica assentado junto à coletividade que a questão ambiental é vital para a vida. Leff ao abordar a crise ambiental ensina, A problemática ambiental - a poluição e degradação do meio, a crise de recursos naturais, energéticos e de alimentos - surgiu nas últimas décadas do século XX como uma crise de civilização, questionando a racionalidade econômica e tecnológica dominantes. (...) A problemática ambiental gerou mudanças globais em sistemas socioambientais complexos que afetam as condições de sustentabilidade do planeta, propondo a necessidade de internalizar as bases ecológicas e os princípios jurídicos e sociais para a gestão democrática dos recursos naturais. 17 A constitucionalização do meio ambiente18, terminologia adotada por Canotilho que procura demonstrar que tal fenômeno traz consigo diversos benefícios de todo gênero, concretos e importantes para uma (re)organização do relacionamento do ser humano com a natureza, garante a primazia das normas como valor essencial dentro do sistema legal. A elevação do ambiente como norma constitucional fundamental garante a durabilidade pela posição constitucional que se encontra. Diante desse processo, o tema jurídico de discussão toma importância capital, deixando de ser norma infraconstitucional, o que faz com que ocorra uma mudança de paradigma exegético no trato da questão jurídica da tutela ambiental. 16 MODENA, Cesar Augusto. A constitucionalização de Gaia. In: PEREIRA, Agostinho Eli Koppe; CALGARO, Cleide. (Org.). O direito ambiental e o biodireito: da modernidade à pós-modernidade. Caxias do Sul: Educs, 2008, p. 105. 17 LEFF, Henrique. Epistemologia ambiental. Tradução de Sandra Valenzuela; revisão técnica Paulo Freira Vieira. 4. Ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 59. 18 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens. (org) Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 69. 27 Esse processo de constitucionalização do meio ambiente, a partir de 1988, impõe a todos um dever geral, um protocolo comum de obrigações (primárias e secundárias) a serem seguidas, no sentido da proteção ao meio ambiente. Parece que a teoria sistêmica cientificamente prova que é encontrada na natureza e, em geral, passa também a compor o direito ambiental na medida em que este contamina e perpassa todos os demais ramos do direito, pois assume a cada dia mais relevância e importância social. Assim, pela magnanimidade assumida pelo ambiente enquanto direito à vida, nasce um princípio que dá ao Estado uma ferramenta jurídica preventiva para evitar o dano ambiental, ferramenta essa, no fundo, ética. 19 A consciência tardia acerca do problema ambiental fez com que se retardassem discussões de ordem epistemológica nos ambientes jurídicos, a fim de desenvolver um novo estilo de desenvolvimento, baseado na obrigação com trato ambiental seja do ponto de vista técnico-científico, ou do ponto de vista jurídico e social. A implementação de uma estratégia ambiental de desenvolvimento implica na necessidade de transformar e enriquecer uma série de conceitos teóricos provenientes de diferentes campos científicos, assim como de produzir os conceitos práticos interdisciplinares e indicadores processuais, importantes para luzir, normatizar e avaliar um processo de planejamento e gestão 20 ambiental. Sob esse contexto, o meio ambiente foi umas das condições do bem-estar mitigada em detrimento do desenvolvimento econômico. Todavia, não obstante às formas diretamente destinadas à transformação da matéria-prima natural, a cidade passou a representar um fomento no movimento de agressão sistemática ao direito de um meio ambiente limpo e ecologicamente equilibrado. Nesse sentido, muito antes de se afirmar constitucionalmente o direito a esse ambiente equilibrado, já era possível determinar que a conservação dos recursos naturais era condição sine qua 19 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Trad. Ana Cristina Nasser. 2.ed Petrópolis: Vozes, 2010. 20 LEFF, Henrique. Epistemologia ambiental. Tradução de Sandra Valenzuela; revisão técnica Paulo Freira Vieira. 4. Ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 90. 28 non da dignidade, que não se realiza se os direitos humanos são dissipados pela divisibilidade. Assim, a percepção de que a manutenção de um sistema protetivo, de caráter preventivo e punitivo, para o meio ambiente gerou a sedimentação de uma consciência formal de que preservar os recursos naturais é necessário. Em relação à formação e melhoria das condições urbanas de vivência, começaram ser pensadas estratégias para a realização de ocupações conforme as leis ambientais, mas muito pouco se conseguiu fazer em relação àquelas áreas ocupadas irregularmente e que, não dispondo de sistemas mínimos de tratamento de água e esgoto, coleta de lixo, etc., permaneceram como centros contínuos de poluição e degradação natural, gerando, radicalmente, um atentado direito contra o sujeito humano e, doutra banda, contra a natureza. Nesse sentido, [...] questão ambiental [...] denota aqui o fenômeno associado aos desequilíbrios sistêmicos ocasionais pela persistência de padrões reducionistas de regulação da dimensão econômico-política da vida social e pela natureza exponencial das curvas globais de crescimento demográfico. Esses desequilíbrios respondem pelo agravamento tendencial do volume de impactos destrutivos gerados pela ação antrópica sobre o funcionamentos dos sistemas ecossociais, numa escala mais e mais planetarizada e capaz, dessa forma, de comprometer as próprias precondições de sobrevivência da 21 espécie . Sob esse prisma, o modelo de desenvolvimento econômico adotado faz com que, por um lado, a degradação dos recursos naturais seja o meio pelo qual a economia se desenvolve, não obstante à existência dos paradigmas da sustentabilidade. Por outro lado, a mesma ideia que subjaz à liquidação dos recursos hídricos, florestais, minerais, etc., impede que sejam atendidas aquelas condições da sociabilidade plena, como uma espécie de conservação da desigualdade social. 21 VIEIRA, Paulo Freire. Meio Ambiente, desenvolvimento e planejamento. In: VIOLA, Eduardo J.; LEIS, Héctor R.; SCHERER-WARREN, Ilse; GUIVANT, Julia Silvia; VIEIRA, Paulo Freire; KRISCHKE, Paulo José. Meio Ambiente, desenvolvimento e cidadania: desafios para as Ciências Sociais. 3. Ed. São Paulo: Cortez, 2001, p. 50. 29 2.2 Breve trajetória histórica do reconhecimento do direito à cidade A história de reconhecimento e realização de direitos é, como análise espaçotemporal, um indicativo de que o movimento de efetivação das condições de dignidade é gradual, oriundo, muitas vezes, da demanda social e política de determinada comunidade. Essa maturação dialética dos institutos jurídicos de garantias e direitos, ou seja, o caminho histórico de aperfeiçoamento, é a determinante a partir da qual se pode analisar os direitos fundamentais com a perspectiva histórica, em que se fazem presente elementos culturais, socioeconômicos, jurídicos e, sobretudo, socioambientais. Num sentido mais específico, a dinâmica que desenvolve direitos relativos à integralidade e interdependência de direitos entre si registra uma estreita ligação com a realidade social e as demandas oriundas da não realização de infra-estrutura, segurança, saneamento básico, condições estas indissociáveis à dignidade. Habermas, ao considerar acerca sobre a dinâmica histórica dos povos, depõe. [...] a práxis social estende-se pelas dimensões do tempo histórico e do espaço social, mediatizando a natureza subjetiva dos indivíduos cooperantes com a natureza exterior objetivada pelas intervenções do corpo, no horizonte de uma circundante natureza em si que, em termos 22 cósmicos, engloba também a história da espécie. Essa extensão real que liga a práxis social ao tempo histórico (indivíduo e sociedade) torna o reconhecimento do direito à cidade como direito fundamental um registro objetivo da coerência entre a vivência cotidiana dos centros urbanos e a sua ligação com os dispositivos jurídicos, cuja função é, justamente, a fundação da possibilidade da vida social. Nesse sentido, ao passo que o desenvolvimento das medidas normativas de proteção e garantia de direitos se realizam gradualmente, também o direito à cidade pode ser vislumbrado a partir de marcos históricos que endossam essa tentativa de reconhecimento desses direitos no rol dos direitos fundamentais, sobretudo porque, a partir disso, a exigibilidade e legitimação se acentuam. 22 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Luis Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 474, grifos do autor. 30 Porém, sob esse mesmo arcabouço histórico, as investidas públicas e privadas tiveram, ao longo dos tempos, os mais diferentes fomentos para a consolidação de centros urbanos demográfica e estruturalmente mal definidos. Sobre esse aspecto, a relação existente entre sustentabilidade e previsão estrutural dos centros urbanos sempre careceu de uma intenção mais acentuada e de medidas mais efetivas, tanto enquanto ideologia institucional como sentimento social. A análise presente em Barral é, do ponto de vista do direito à cidade, a fundação de uma análise cuja matriz é a justificação teórica para a relação existente entre desenvolvimento e sistema jurídico. Quando posto na seara do reconhecimento do direito à cidade como direito humano fundamental, o status de desenvolvimento passa a pressupor, como condição de existência, uma ligação direta entre a legitimidade do discurso econômico e a tarefa do Estado em executar planejamento e efetivação. Nesse sentido, essas duas grandes estruturas, quando destoadas do caráter urgente de previsão e adimplementos de medidas radicais, acabam por se tornar empecilhos à realização de direitos, sobretudo daqueles que demandam determinada atividade institucional.23 Ao longo das modificações estruturais nos mais diferentes contingentes humanos, desde a formação primitiva até a sedimentação de formas jurídicas mais densas, a cidade representou um centro de convergência estratégico e necessário, razão pela qual é credora de atenção no âmbito político. Ao redor do mundo, no sentido como constitucionalmente se reconhece os direitos enquanto fundamentais, o direito à cidade esteve posto de forma indireta, sem uma menção explícita que o incorporasse de forma definitiva no rol daqueles direitos que podem, o mais imediatamente possível, serem exigidos do Estado. Nesse sentido, um marco global da fundação de direitos individuais e sociais pôde ser percebido, cujas implicações chegam até hoje como pressupostos dos 23 BARRAL, Welber. Desenvolvimento e sistema jurídico: a busca de um modelo teórico. In: BARRAL, Welber. PIMENTEL, Luiz Otávio. (org.) Teoria jurídica e desenvolvimento. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 14 et. seq. 31 ordenamentos jurídicos mundiais, na Declaração Universal dos Direitos Humanos do segundo pós-guerra, que, em sentido estrito, levará a cabo, num sentido mais abrangente, as estruturas jurídicas basilares a partir das quais é possível referir a tarefa do Estado no que diz respeito à execução de medidas que, por um lado, mitiguem a atividade discricionária das instituições públicas e, por outro, realizem as condições da vida individual e social, não como referências excludentes ou paradoxais, mas complementares, à medida que a qualidade de vida de uma sociedade pressupõe a determinação individual de suas condições.24 Assim, estabelece o artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou 25 outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. Esse rol de direitos anunciados pela declaração existe em dependência do direito à cidade, enquanto lugar onde a segurança, a habitação, o trabalho, são possíveis. Esse marco regulatório genérico, enquanto vinculação às formas constitucionais contemporâneas, representa o início indireto de formação e reconhecimento do direito à cidade propriamente dito. Mais do que isso, não limita a existência de direitos para além daqueles constitucionalmente instituídos, justamente por entender vigentes estruturas históricas de cunho político e social capazes de modificarem o cotidiano da sociedade e, com isso, alterar as formas de atenção às condições de vida e dignidade. Oriunda das tensões políticas e sociais da primeira metade do século XX, sobretudo a partir dos movimentos nacionais e internacionais de redemocratização dos Estados no segundo pós-guerra, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 24 STEIMETZ, Wilson. A vinculação de particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros editores, 2004, p. 67. 25 ONU, Assembléia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 19484. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Acesso em 12 mar. 2011. 32 19462627, retomando em muitos aspectos as disposições da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 16 de julho de 19342829, reinseria um rol de direitos e garantias individuais e sociais pelas quais entendia ser possível a existência de contextos humanos aptos a representarem uma ordem jurídica e democrática que fizesse pudesse contrapor qualquer tentativa totalitária de impedir a democracia e a liberdade dos povos. Entretanto, ambas as constituições (1934, 1946) não mencionavam diretamente os direitos da sociedade em relação à manutenção de planos reais de planejamento urbano e cuidado com o meio ambiente, quanto mais reconhecer expressamente a fundamentalidade do direito à cidade.30 A Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967 31, cuja forma de aferimento de direitos e garantias sociais e políticas não diferia significativamente das predecessoras, manteve um rol de garantias individuais e genéricas, mas cuja preocupação não se voltava à preservação ambiental ou a criação de normas especificas de urbanidade. Diante das necessidades sociais, a 26 A Constituição do Império, de 1824, que, sobretudo, traçava elementos organizacionais de matéria interna, e a primeira Constituição da República, de 1891, não faziam alusões diretas a elementos que se relacionem imediatamente com a configuração de direitos ao indivíduo ou à sociedade. Mesmo que mencionando de forma breve uma “Declaração de Direitos”, muito superficialmente a Carta de 1891 dialogava com espécies jurídicas mais delineadas. 27 BRASIL, Congresso Nacional. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, em 18 de setembro de 1946. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso em 02 mar. 2011. 28 BRASIL, Congresso Nacional. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934, em 16 de julho de 1934. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em 02 mar. 2011. 29 Três anos depois, em 1937, foi regulamentado o primeiro diploma legal brasileiro que aludia a forma de loteamentos. O Decreto n.° 3.079/38, no entanto, não tinha como escopo fundamental a preservação dos ambientes urbanos e a conservação natural das cidades, mas, sobretudo, inserido na tradição civilista do próprio Código Civil da época, apenas regulamentar algumas situações desiguais quanto ao exercício de direitos reais, por algum motivo sujeitos à dúvida (VERÍSSIMO, Antônio A. Parcelamento informal do solo na cidade do Rio de Janeiro: raízes legais da informalidade. In: COUTINHO, Ricardo. BONIZZATO, Luigi. (coord.) Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 153). 30 Não obstante o reconhecimento do caráter fundamental do direito à cidade na DUDH/1948, em 1966 também o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais atentou para a importância que as condições de habitação, saneamento, equilíbrio ecossistêmico representam para a consolidação de nações democráticas ao redor do mundo. Já em seu preâmbulo, a carta atenta para a necessidade de a dignidade humana ser determinada com as condições individuais e sociais de bem estar e qualidade de vida. (Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20os%20Direitos%20Econ% C3%B3micos,%20Sociais%20e%20Culturais.pdf>.Acesso em 14 mar. 2011. 31 BRASIL, Congresso Nacional. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, em 24 de janeiro de 1967. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>. Acesso em 02 mar. 2011. 33 carta de 1967 dispunha, em grande parte, de elementos de organização do Estado e competências. Entretanto, mais tarde, uma Emenda Constitucional atentava para a formação de Regiões Metropolitanas, cujo escopo era, ao desenvolver e estreitar os laços econômico-sociais, prover necessidades que era comuns entre determinados povos. Ainda que com o escopo precípuo de facilitar a dinâmica da economia local, esse registro atentou, então, para a nova realidade da urbanização32. Ou seja, [...] deve-se perceber que o surgimento do sistema legal que deu origem às Regiões Metropolitanas no Brasil, veio abortar uma série de iniciativas administrativas que começavam a germinar nas principais metrópoles brasileiras. Estas iniciativas expressavam tentativas de responder às questões emergentes do processo de urbanização a partir de suas peculiaridades regionais e de suas especificidades organizacionais e administrativas. Representavam experiências de gestão adaptadas aos recortes territoriais sobre os quais visavam intervir, tendo por referência organizacional a dinâmica político – institucional de suas respectivas áreas 33 de atuação. Essa primeira menção constitucional percebeu, então, que a realidade brasileira dos centros urbanos fora drasticamente modificada ao longo das últimas décadas, originando um sistema de demandas sociais, coletivas e individuais, que exigem do Estado uma resposta gestacional e administrativa ampla e urgente, justamente por se apresentarem algumas situações de extremo esquecimento da ideia de condições de vida digna. Além disso, o contexto de urbanidade é uma constatação genérica, cujos regionalismos sociais e políticos não excetuam um comportamento universal de atenção à formação de desenvolvimento das cidades. Ou seja, as características de planejamento e ordenação dos centros urbanos são gerais, e demandam uma previsão especifica de desenvolvimento integral e amplo das medidas de sociabilidade nas cidades e de cuidado com o meio ambiente. 32 Diante da formação de favelas nos contextos urbanos nacionais, algumas capitais brasileiras, mesmo antes da própria Constituição Federal de 1988, regulamentaram atividades pelas quais se pudessem implementar algumas condições elementares de vivências nas favelas. Assim, algumas dessas cidades, diante da demanda social, tiveram na rodem municipal políticas que atentaram para essa nova realidade dos centros urbanos. Belo Horizonte chegou até mesmo a provar uma lei em 1983- a Pró-Favela- que partia do pressuposto de que qualquer ambiente de vivência social deve manter uma estrutura mínima de sociabilidade, ideologia que, mais tarde, retornaria tanto na Constituição quanto na Lei n°. 10.257/2001 (FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 46 et. seq.). 33 GUIMARÃES, Nathália Arruda. Regiões metropolitanas: aspectos jurídicos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 273, 6 abr. 2004. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/5050>. Acesso em: 1 mar. 2011. 34 Já a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 previu nos artigos 18234 e 183, em que trata da Política Urbana, que o desenvolvimento urbano se pauta pela conservação de ambientes que sirvam ao bem estar da população e que tornem possível a execução das funções sociais da cidade, condições sem as quais o habitat citadino perde a sua característica de agrupamento ordenado. Okada35, ao analisar a perspectiva do Direito Ambiental em relação aos contextos urbanos, chega a afirmar que, nas constituições que precederam a Constituição Federal de 1988, não houve qualquer manifestação quanto à preocupação por ambientes ecologicamente equilibrados. Nesse itinerário, a constitucionalização daquele direito se deu por influência da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em 1972, momento em que foram criadas novas formas de se pensar o tema a partir da realidade mundial dos povos. Já do ponto de vista das atribuições municipais, estabelece o mencionado artigo 182 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.§ 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:I - parcelamento ou edificação compulsórios;II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. 34 BRASIL, Assembléia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 10 de maio de 2011. 35 OKADA, Denise Setsuko. A constitucionalização da matéria ambiental - o Direito às cidades sustentáveis em jogo. In: COUTINHO, Ricardo. ROCCO, Rogério. O direito ambiental das cidades. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 66. 35 Ainda sobre a Política Urbana, o artigo 183 do mesmo diploma refere. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.§ 3º - Os 36 imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. Essa função social, referida mais especificamente no artigo 182, que difere da concepção mais específica de função socioambiental, que se verá mais adiante, diz respeito à coerência entre os planos adotados pela administração pública e o seu Plano Diretor, elaborado pelas Câmaras Municipais, justamente por serem pressupostas como o órgão mais conhecedor da realidade regional específica. Já pela menção dos parágrafos 2°, 3° e 4° do artigo 182, bem como a expressão geral do artigo 183, se pressupõe que compõe o rol do direito à cidade um contingente de medidas singulares que passam a condicionar a amplitude desse direito à formação de propriedade que se inserem na dinâmica urbana. Nesse sentido, a previsibilidade registrada constitucionalmente aufere à administração pública o direito de zelar pela organização e edificação de propriedades particulares que não se destoem da dinâmica coletiva e, sobretudo, das disposições institucionais acerca da forma de inserção naquela dinâmica. Fernandes, ao analisar esse marco constitucional, depõe. Nesse contexto, uma grande novidade foi a aprovação da Constituição Federal de 1988 e, com ela, uma grande conquista da sociedade brasileira foi a inserção, pela primeira vez na história constitucional brasileira, de um capítulo sobre política urbana. Dois pequenos artigos que revolucionaram a ordem jurídica brasileira ao reconhecer que o Brasil já se encontra plenamente urbanizado, e que as formas de organização socioeconômica e 36 BRASIL, Assembléia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 10 de maio de 2011. 36 político-territorial do país eram de outra ordem que não aquelas 37 reconhecidas pelo Código Civil de 1916. O fato de as constituições anteriores não referirem diretamente a necessidade de uma política urbana específica em, além disso, o Código Civil de 1916, totalmente filiado a uma tradição civilista, não mencionar elementos de ordem principiológica ou coletiva, fez com que a Constituição Federal de 1988 fosse o marco histórico mais protuberante na tradição do Direito à Cidade, abrindo a possibilidade de, mais tarde, ser criada uma lei regulamentadora mais específica. Assim, esse marco constitucional apenas ofereceu as bases genéricas pelas quais se pudesse delimitar as condições particulares do procedimento a ser adotado pelo Estado e pela atividade privada. Sob essa ótica, a aprovação da Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que visa regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal brasileira de 1988. Durante 11 anos o projeto foi apreciado pelo Congresso Nacional, sendo aprovado com o escopo de, num sentido mais técnico e organizacional, [...] tratar o meio ambiente artificial não só em decorrência do que estabelece constitucionalmente o art. 225, na medida em que a individualização dos aspectos do meio ambiente tem puramente função didática, mas também em decorrência do que delimitam os arts. 182 e 183 da CF, visando estabelecer aos operadores do direito facilidade maior no manejo da matéria, inclusive com os instrumentos jurídicos trazidos 38 fundamentalmente pelo direito ambiental constitucional brasileiro. Mesmo com essa finalidade disciplinadora de uma previsão constitucional, Foram precisos mais de dez anos de discussões, emendas e substitutivos de toda ordem para que o projeto de lei N° 5.788 originalmente proposto em 1990 pelo Senador Pompeu de Souza que por sua vez era, pelo menos em parte, uma nova encarnação de diversos outros anteprojetos e projetos de leis discutidos ao longo de décadas, sendo que o projeto de lei N° 775/83 de autoria do Poder Executivo merece menção especial fosse finalmente aprovado, e o texto final da lei revela todas as dificuldades do tenso processo de negociação e barganha que se deu entre diversos interesses 37 FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 7. 38 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2001, lei do meio ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 36-7. 37 existentes acerca da questão do controle jurídico do desenvolvimento 39 urbano. Também chamado de Lei do meio ambiente artificial40, o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257 de 10 de julho de 2001, demonstra uma conciliação entre dois dispositivos constitucionais básicos, cuja conexão é evidente; ou seja, a formação de cidades planejadas (direito à cidade) com o devido cuidado com o meio ambiente. Nesse sentido, direito à cidade e o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, como dispõe o artigo 225 da Constituição de 1988, são estruturas basilares e interdependentes na composição de um habitat artificial e natural que preservem as condições de bem-estar e qualidade de vida. Assim como na Constituição, a lei regulamentadora volta a estabelecer, já no seu artigo 1°, parágrafo único, a ideia de ordem pública e interesse social. Explicita o referido artigo. Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei.Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar 41 dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. Entretanto, além da estruturação infraconstitucional do Estatuto da Cidade, Saule Junior elenca algumas outras formações institucionais e sociais que, fundamentalmente, ajudam a compor o rol jurídico de firmação do direito à cidade como forma de implantação da própria possibilidade urbana. Depõe, mencionando, inclusive, aquele reconhecimento constitucional e infraconstitucional. No campo institucional, este movimento pela reforma urbana teve como conquista o capitulo da política urbana na Constituição brasileira e da lei nacional Estatuto da Cidade, e a criação do Ministério das Cidades. O Fórum 39 FERNANDES, Edésio. Do Código Civil ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre a trajetória do direito urbanístico no Brasil. Revista Urbana. v. 7. n. 30. p.43-59. Disponível em: <http://www2.scielo.org.ve/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S079805232002000100004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 07 mar. 2011. 40 Mister mencionar que a Lei n.° 6.938/1981, que estatuiu a Política Nacional do Meio ambiente, visava atividades, públicas e privadas, no sentido de manter um contexto de preservação natural dos ambientes. Não fazia, assim, uma menção à conciliação entre a preservação da natureza e dos ambientes artificiais, ou políticas de ordenação urbana em atenção à preservação ambiental. 41 BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em 10 de maio de 2011. 38 Nacional de Reforma Urbana também é protagonista, com outros atores sociais, da primeira Conferência Nacional das Cidades, realizada em 2003, com o objetivo de estabelecer as diretrizes e metas das políticas nacionais de desenvolvimento urbano, habitação, saneamento ambiental e transporte e mobilidade urbana e da implementação do Conselho Nacional das Cidades (abril de 2004) composto por diversos segmentos do Poder Público e da 42 Sociedade Civil. Com a análise dessa formação jurídica e social é possível perceber que um histórico mais específico em relação do direito à cidade no Brasil é bastante recente. Porém, a formação dos contingentes urbanos brasileiros contém décadas de gradual aperfeiçoamento populacional dos centros urbanos, cujas ocupações e formas de acesso se diferem drasticamente daquelas projeções jurídicas recentes. Nesse sentido, ainda que vigentes alguns mecanismos para, de um lado orientar as novas ordens populacionais e civis e, de outro reordenar ou reformular aquelas ocupações já estruturadas, a formação rápida das cidades, sobretudo a partir dos fomentos à indústria e demais formas de crescimento econômico, desencadeou migrações que, num sentido bem pontual, originaram contextos de aglomeração desordenada, lugares sem infra-estrutura, saneamento básico e segurança. Assim, essa estrutura urbana que se apresenta como um desafio institucional e social é resultado de escolhas sócio-econômicas delineadas ao longo dos tempos. 2.3 A formação histórica do desenvolvimento urbano Habitualmente, cidade é considerada um meio de vida coletiva, também é verdade que as condições avistadas contemporaneamente são o resultado de um processo iniciado a partir das transformações industriais do século XVIII e XIX. Entretanto, qualquer menção a essa origem temporal não é capaz de identificar as cidades primitivas (sem qualquer mudança estrutural significativa na ordem natural) àquelas formas urbanas sedimentadas na atualidade mundial, senão pela comunhão de esforços entre os indivíduos, ainda que com objetivos distintos. 42 SAULE JUNIOR, Nelson. O Direito à cidade como paradigma da governança urbana democrática. Disponível em:< http://www.institutoapoiar.org.br/imagens/bibliotecas/O_Direito_a_Cidade_como_paradigma_da_gove rnanca_urbana_democratica.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2011. 39 A existência das cidades primitivas está, grosso modo, vinculada à historiografia, enquanto ciência genuinamente metodológica cujo objeto é as formações humanas no passado. Nesse sentido, os resgates arqueológicos demonstram que a ideia de cidade presente tanto no período pré-histórico como pouco tempo depois da descoberta da escrita eram de cunho referencial, como que um gene pouco comparável com a atual forma que as cidades representam.43 Entretanto, civilizações como a mesopotâmica (6.000 a.C) e egípcia antiga (5.500 a.C) conservavam traços mais identificáveis com a dinâmica social da contemporaneidade. Cada qual com o seu regime particular de economia e política sustentam uma relação interna e externa com vistas à conservação de sua hegemonia econômica e governamental. Os agrupamentos humanos, mesmo seguindo uma lógica diferente de organização e costume, originavam contextos de inteiração entre os membros da comunidade, já havendo previsão para ordenação daqueles agrupamentos. Operavam aí um distanciamento daquela forma mais primitiva de civilização na qual os grupos pouco modificavam os ambientes naturais.44 Inicialmente nômades, os povos mesopotâmicos, diante da descoberta da agricultura, passaram a residir mais tempo em determinado local, fazendo com que a constituição de suas famílias gerasse, então, a formação de pequenos grupos. Sob esta ótica, o regime econômico começou a influir na forma nômade fazendo com que se percebesse, entre os anos de 4.000 a.C e 1.600 aC, uma migração para um regime seminômade ou até mesmo sedentário.45 Essa perspectiva sedentária é que começa a moldar os aglomerados humanos, registrando desde pequenos vilarejos até cidades de um porte 43 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2001, Lei do meio ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 17 et.seq. 44 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2001, lei do meio ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 15 et. seq. 45 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2001, lei do meio ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 36-7. 40 significativo.46 Assim como as revoluções econômico-industriais na modernidade, sobretudo as revoluções industriais de 1750 e 1850, o aperfeiçoamento da agricultura e das relações de consumo e mercantis demonstraram uma necessidade de domesticação e exploração humanas, cujo escopo era manter a hegemonia político-econômica das cidades. Em grau menor, as cidades antigas já continham algumas características das ordens urbanas atuais. Os sumérios já sabiam controlar as águas dos rios Tigre e Eufrates, visando o abastecimento de suas cidades, bem como já adotavam o costume de erguer grandes muralhas de barro para proteger o núcleo urbano de invasores. Além disso, as cidades sumérias já conheciam núcleos de pobreza, sendo certo que a pressão econômica que ocorria [...] gerou grande descontentamento [...]. A partir dessa análise, é possível referir duas estruturas basilares presentes nas formações urbanas: a ordem econômica e a ordem política. Em diferentes momentos da história, quando estão presentes as condições de vida coletiva, há a necessidade de se consolidar uma estrutura econômica forte, assim como a adoção de um modelo político capaz de manter a integridade política interna e externa da cidade, ou seja, tanto em relação aos comandos nacionais quanto às demais nações que se projetavam no mundo. Na história das cidades gregas, a pujança dos impérios ateniense e espartano está intimamente ligada à ordem político-econômica.47 No mesmo sentido, Roma, foi devedora de um histórico de conquistas e de privilégios até mesmo geográficos. Esse passado de conquistas e derrotas foi, não somente para o Império Romano, por um lado, a condição de uma hegemonia dentro de um período de tempo. Por outro lado, o fato de as nações não conservarem entre si a ideia de uma comunhão espaço-temporal de poder e autonomia econômica fez com que aquela existência hegemônica estivesse condiciona à possibilidade particular de manter seu poderio de guerra. Assim, até o surgimento dos Estados Nacionais, no final do século XVIII, início do século XIX, e da afirmação história do reconhecimento da independência nacional, não havia uma continuidade garantida pela qual determinada nação podia, 46 LEFEBVRE, Henri. Direito à cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001, p. 67. 47 GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 32. 41 de forma concreta, se projetar no mundo e garantir formas definitivas de vivência interna e exterior. Entretanto, o elemento diferenciador do Império Romano48é a imposição além-fronteira do seu Direito. Conservando um aspecto altamente autoritário, a ideia de um regramento possível e seguro foi tão marcante que, de forma incisiva, influenciou inúmeras formações jurídicas dos mais diferentes povos. Assim, este caráter estritamente histórico das cidades deixa transparecer que os contextos humanos e naturais vão delimitando a própria história, demonstrando que, desde a origem mais remota, o desenvolvimento das cidades está relacionado à economia e à política. De um lado, as formas de se estruturar os subsídios materiais que mantêm a hegemonia da cidade; num segundo sentido, os intentos ideológicos que representam a postura dessa cidade – ou mesmo nação - em relação aos seus sujeitos e em relação ao mundo. Nesse sentido, ainda que já a história dos povos primitivos nos chega como diagnósticos da investida humana em busca de poder e riquezas, a matriz mais íntima da organização do desenvolvimento das cidades mundiais da contemporaneidade está enraizada num passado não tão remoto. A modernidade, cuja polissemia conceitual se origina justamente na vastidão semântica que representou, é o marco histórico-filosófico que se projetou mais incisivamente nas sociedades mundiais e ofereceu, principalmente, as bases ideológicas da ordem política e econômica da atualidade. Num sentido estritamente jurídico, com a modernidade a proteção individual e da hegemonia das nações foi sedimentada. Além disso, a liberdade políticoeconômica passou a representar uma adoção mais universalizada, uma vez que passaram a repercutir, sobretudo com o advento do século XXI e da globalização, em todo o globo. A despersonalização da natureza, de seu caráter sagrado e mítico, fez com que também as ciências naturais investissem de formas mais agressiva em relação à natureza, fornecendo à economia os meios para a exploração natural e, 48 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2001, lei do meio ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 17. 42 com as revoluções industriais inglesas do século XVIII e XIX e as demandas fabris por mão-de-obra, também a exploração humana, mediante a submissão a ambientes insalubres e perigosos, além dos irrisórios salários. Esse cunho positivista de matriz burguesa insurgido por sobre as ciências, sobretudo com o ideal de fracionamento e segregação- inclusive o direito- fez com que parecesse menos perversa a ideia de que o desenvolvimento das nações autorizava a denegação gradual de direito a alguns sujeitos na esteira do crescimento populacional e econômico das cidades. Mais do que isso, o histórico da formação das cidades modernas no Brasil no século XIX conta com a migração camponesa para os centros urbanos. Como palco da atividade industrial, as indústrias foram sendo cercadas de pequenos agrupamentos, sem as mínimas condições de saneamento básico, segurança, etc. Não contendo qualquer plano de mapeamento e divisão ordenada de ambientes, as cidades viram surgir cortiços, casebres, uma população crescente, demandas por condições mínimas de sobrevivência, sem previsão de políticas capazes se sanarem qualquer dessas condições. Nesse sentido, reserva-se aos séculos das revoluções industriais inglesas (séculos XVIII e XIX) o momento histórico que, de uma maneira mais consistente, contribuiu para o crescimento rápido e sem ordenação prévia das cidades, em que não estavam presentes condições estruturais, pavimentação de ruas, saneamento básico, segurança. Desde a invenção da máquina a vapor, por volta de 1705, tendo sido aperfeiçoada ao longo dos anos, e a qualificação potencial das fábricas transformadoras de matéria-prima, uma reunião de pessoas passou a configurar a estrutura das regiões produtivas, alastrando-se ao ponto extremo de se coincidir a consistência urbana ao caos urbano, como dimensão-fim de um processo, antes lento, de rotativização de objeto e sujeito. Ou seja, não só o objeto se torna visado e volátil, mas o próprio sujeito, enquanto parte integrante e integrada do processo de caotização da vida citadina, que, além disso, passa a ser valorado a partir de sua qualificação profissional ou 43 hábil, sem qualquer menção à dignidade enquanto humanidade.49 Lafargue, diante do contexto opressor, não deixa de considerar que “Os proletários meteram na cabeça infligir aos capitalistas dez horas de forja e de refinaria; eis o grande erro, a causa dos antagonismos sociais e das guerras civis”50, deixando, dessa forma, explicito o caráter de dependência psicológica e material dos trabalhadores em relação às fábricas. Nessa seara, a sedimentação de uma sociedade socioambientalmente despreparada, não só do ponto de vista das condições estruturais, mas também da cultura e da educação, contém determinantes que não podem ser resumidas unicamente a um problema político-organizacional. A exclusão social e o desatenção às necessidades mais elementares da sociedade possuem razões muito mais amplas do que puramente uma negligência nas formas de administrar a política pública de saneamento, a habitação popular, os planos gestores, desafetação das áreas verdes. Porém, também a escolha das diretrizes governamentais, desde sua gênese, compreende o problema das cidades tendo em vista uma ideologia subjacente, intimamente relacionada com a posição político-econômica. O fato de se privilegiar a organização de determinadas estruturas sociais em detrimentos de outras denuncia uma polarização interna da governabilidade, em que a eleição das matrizes de destinação de políticas públicas é selecionada de acordo com o resultado imediato, ou seja, do retorno objetivo dos investimentos. Assim, Apesar de a cidade nascer da própria necessidade de convivência e do desejo do homem em construir um local ideal para viver, a elite dominante sempre estabeleceu informalmente a ocupação e a organização do seu espaço, excluindo e relegando aos demais a segundo plano e para fora dos 51 “muros” da cidade. Nesse sentido, a estruturação dos sujeitos nas cidades pode ser compreendida a partir da intenção e poder que se origina a partir dos interesses 49 LÉVINAS, Emmanuel. Ensaios sobre a alteridade. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 263 et. seq. LAFARGUE, Paul. O Direito à preguiça. Disponível em: <http://www.culturabrasil.pro.br/direitoapreguica.htm>. Acesso em 10 de maio de 2011. 51 RECH, Adir Ubaldo. A exclusão social e o caos urbano: Um fato cuja solução também passa pelo direito como instrumento de construção de um projeto de cidade sustentável. Caxias do Sul: Ediucs, 2007, p. 131. 50 44 privados, que passam a ser mentores do processo de distribuição populacional dos terrenos urbanos, tendo sempre em vista a condição econômica como critério de inclusão ou exclusão dos sistemas satisfatórios de habitação digna. Sobre esse aspecto, não obstante a previsão constitucional e a formal afirmação do caráter coletivo e integrador da cidade, o uso de práticas individuais e visão segundo a qual não existe uma ligação subjetiva entre os membros de uma sociedade fez com que a cidade se tornasse instrumento para a produção de riquezas e ascensão parcial de determinadas camadas. Fernandes fala em “legalismo liberal”, que mesmo alçando raízes na visão burguesa clássica, é revitalizada na concepção atual de desenvolvimento, mencionado uma corrente jurídico-filosófica segundo a qual é possível, mesmo sem extravasar os limítrofes legais, interferir na dinâmica de formação de espaços de especulação imobiliária, justamente por encarar essa projeção urbanística a partir da redução prático-conceitual dos ambientes urbanos em objeto de barganha ou meramente como “mercadoria”.52Assim, ainda que os contextos difiram no tempo e no espaço, a ideia de que os ambientes se prestam à execução dos interesses particulares foi sendo incorporado na sociedade, gerando uma redução do conceito de cidade. Nesse sentido, se os novos projetos urbanos começaram a seguir uma pauta mais regulamentada e cuja previsão organizacional se acentuou, certamente essa atitude representa a formação de um novo nicho mercadológico, cuja rentabilidade reside, justamente, no afastamento daqueles ambientes descaracterizados do ideal urbano. Essa promoção, porém, de ambientes ordenados e ecologicamente equilibrados é, então, uma resposta à demanda elitista por ambientes fora do universo caótico e empobrecido que caracteriza a maioria dos centros urbanos brasileiros. 52 FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 8. 45 Entretanto, essa migração no foco da investida imobiliária é possível, como faz parecer Fernandes, a partir da inatividade do Estado em relação àquela sua função intervencionista. Assim, [...] se devido ao civilismo liberal o crescimento urbano rápido se deu em grande medida em condições de laissez faire, naquelas cidades brasileiras e latino-americanas onde houve alguma intervenção estatal significativa por meio de planos, zoneamentos e leis urbanísticas, criou-se uma tradiçãoainda incipiente- de planejamento tecnocrático, geralmente baseado em regras urbanísticas elitistas que desconsideram as realidades socioeconômicas de acesso ao solo urbano e à moradia nas cidades, e cuja aplicação não pode ser verificada dada à falta de capacitação dos órgãos 53 públicos, sobretudo no nível local. Sob esta ótica, até mesmo a atividade do Estado, como forma primitiva de intervenção, age a partir de uma lógica pré-determinada e que acaba majorando as dificuldades de acesso à habitação, por exemplo, de forma equitativa. Ou seja, a forma com que o planejamento atinge àquela população que vive sob a forma miserável, ou seja, atinge 8,5 % da população brasileira, não se torna um meio de possibilitar o acesso à moradia digna.54 Com isso, a ideia de que é vigente a superação da tradição civilista e liberal, cuja liberdade está intimamente atrelada a não atividade do Estado e o dispêndio individual de provimento das condições de dignidade, se torna perceptivelmente falaciosa. A existência, nesse sentido, de uma previsão constitucional e de uma regulamentação específica é, diante da manutenção dos cenários de desordem e empobrecimento social, mitigada justamente por contingentes de realidade, que torna a crise da previsão constitucional mais evidente. Assim, se, por um lado, como faz parecer Lira 55, a inclusão de um capítulo específico sobre Política Urbana, juntamente com o posterior Estatuto da Cidade (Lei n.° 10.257 de 10 de julho de 2001) representam a existência institucional de 53 FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 9. 54 BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE. Estatísticas Sociais. Disponível em:< http://www.ibge.gov.br/home/download/estatistica.shtm>. Acesso em 23 ago. 2011. 55 LIRA, Ricardo Pereira. Direito urbanístico, estatuto da cidade e regularização fundiária. In: COUTINHO, Ricardo. BONIZZATO, Luigi. (Coord.) Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 6. 46 previsão e execução de normas e medidas governamentais é, quando existe, formas limitadas e geograficamente pré-definidas, não levando em consideração as especificidades locais e socioeconômicas da população. Nesse sentido, a atividade institucional não se liberta das ideologias que subjazem aos investimentos presentes na sociedade civil que acaba, muitas vezes, suplantando uma tarefa originariamente pública.56 Nesse contexto, ratificando aquela menção sobre a mercantilização dos espaços urbanos, também Carlos depõe. [...] a produção do espaço urbano se realiza sob a égide da propriedade privada do solo urbano; onde o espaço fragmentado é vendido em pedaços tornando-se intercambiável a partir de operações que se realizam através 57 do mercado; tendencialmente produzido enquanto mercadoria [...]. Dessa forma, se a intenção dos constituintes era, pela Constituição, implementar um subsídio normativo à cidadania, então os índices de desigualdade social e o não atendimento das condições daquela dignidade denunciam a não efetivação da vontade do legislador, edificando um empecilho à formação prática e realização de direitos. Assim sendo, esse caminho encontrado de se optar, mesmo legalmente, por instrumentos alternativos que passam a refletir o problema urbano a partir de novas diretrizes estruturais combate, sobretudo, uma sistemática e universal tendência exclusivista, que deixa de considerar a perspectiva integradora do direito à moradia e os elementos de ordem coletiva que caracterizam o direito à cidade.58 Por outro lado, desenvolve-se um fomento objetivo de normativização do acesso à moradia, com vistas à reestruturação dos centros urbanos a partir de realocamentos, planejamentos urbanos estratégicos, loteamentos infraestruturados, 56 FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 9. 57 CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004, p. 91. 58 WERNECK, Augusto. Função Social da cidade. Plano Diretor e favelas. A regulação setorial nas comunidades populares e a gestão democrática das cidades. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: IHJ, 2004, p. 126. 47 tendo sempre em vista que se trata de um problema muito mais amplo em que os institutos jurídicos se insurgem como integrantes de uma política mais universal. De maneira sintética, duas são as formas pelas quais se deverá entender o processo de exclusão, enquanto margem do processo de desenvolvimento, segregação social. 59 e De um lado, a cultura individualista do sujeito contemporâneo, que toma para si a responsabilidade de viabilizar um habitat digno por conta própria; do ponto de vista da previsão do Estado, um ambiente não representa a previsão constitucional e que atenta, diretamente, contra as condições de um meio ambiente equilibrado.60 De outra banda, também a inefetividade do Estado em atender às demandas sociais, previstas enquanto direitos socioambientais a própria Constituição Federal, faz com que se consolide uma desestrutura habitacional, perceptível na crescente formatação das favelas.61 Assim, diante desse panorama, em que se apresentam elementos históricos das mais variadas formas, a matriz institucional e civil que permeia as tentativas de reestruturação dos ambientes urbanos parece estar transpassada por uma ideologia que, muito mais do que estar representada pelo elitismo, perfilha raízes numa tradição que, desde a formação capitalista de ideologia neoliberal, forma a mentalidade social a partir de uma dinâmica que, com o escopo de desenvolvimento econômico, mitiga a possibilidade desse desenvolvimento existir também num sentido político social. Diante disso, as tentativas de pensar o desenvolvimento urbano como um todo percebem a necessidade de resolver o problema do Direito Urbanístico mediante a responsabilização do Estado na tarefa de, já pela previsão constitucional, executar medidas de efetivação de um meio ambiente (natural e artificial) com condições de bem-estar e qualidade de vida. 59 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 18. 60 LOUREIRO, Carlos Frederico. O movimento ambientalista e o pensamento crítico: uma abordagem política. Rio de Janeiro: Quartet, 2006, p. 86. 61 GUATTARI, Félix. A três ecologias. Trad. Maria Cristina Bittencourt. 11.ed. São Paulo: Papirus, 1990, p. 50. 48 [...] a carta de identidade do Direito Urbanístico brasileiro está estruturado pelos seus princípios, compreendidos na dimensão da sociedade brasileira [...] Trata-se de um campo do conhecimento com natureza essencialmente interdisciplinar [...]. A tutela do Direito Urbanístico, a exemplo das condições de seu tempo, deve considerar conflitos multifacetados, coletivos, plurais, imprevisíveis e mutáveis, realizando os processos de prevenção e equacionamento de conflitos compatíveis com as demandas da sociedade 62 contemporânea. Com a vinculação do Direito Urbanístico, formado, sobretudo, na sociedade contemporânea, aos demais ramos jurídicos e sociais, passa a representar um conjunto de normas e princípios pelos quais o problema urbano e ambiental é discutido e, aos poucos, incluído na pauta de atividades do Estado. Com isso, passa a interferir em toda a dinâmica jurídica quando dialoga a respeito dos ordenamentos urbanos e dos problemas ambientais, tornando esse diálogo uma representação da iminência do discurso socioambiental; estão aí pressupostas inúmeras relações que a atenção ao direito à cidade refere, sendo, além dessa determinante, a localização das variadas características da sociedade contemporânea. Nesse sentido, O Direito Urbanístico é o conjunto de normas destinadas a dispor sobre a ordenação da Cidade, sobre a ocupação do espaço urbano de maneira justa e regular, procurando as condições melhores de edificação, habitação, trabalho, circulação e lazer. Tem por objeto organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na 63 comunidade. Além disso, ainda que existentes previsões segundo as quais pode ser pensado um processo organizado e formal de acesso à moradia e à terra, os principais desafios da sociedade e da administração pública é a realidade atual que caracteriza os centros urbanos no Brasil, como que um diagnóstico das escolhas que historicamente formam sendo edificadas sob a égide do pensamento liberal capitalista. Assim, 62 CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. o Estatuto Epistemológico do Direito Urbanístico brasileiro: as possibilidades e obstáculos na tutela do direito à cidade. In: COUTINHO, Ricardo; BONIZZATO, Luigi. (orgs). Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 54. 63 LIRA, Ricardo Pereira. Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade e Regularização Fundiária. In: COUTINHO, Ricardo; BONIZZATO, Luigi. (orgs). Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 4. 49 Uma característica estrutural do crescimento urbano no Brasil é que, ao longo das décadas de crescimento da cidades, a maioria da população somente tem tido acesso à terra urbana e à moradia por meio de processos informais, sendo que a taxa de crescimento da informalidade urbana tende a ser muito superior à taxa de crescimento da pobreza [...] metade da população das grandes cidades vive informalmente em favelas, loteamentos 64 irregulares e clandestinos e outras formas de ocupações precária. Entretanto, muito mais do que um diagnóstico que serve de base à ideia de transformação desses agrupamentos irregulares e sem condições de viabilizar uma vida social digna, esse cenário real se apresenta como uma denúncia real àquelas investidas da dinâmica capitalista, explicitando a insuficiência de um modelo que, como base, sustenta a desigualdade social e a impossibilidade de a liberdade atuar com determinações práticas. Nesse sentido, toda a construção histórica que, pelo discurso da liberdade do sujeito e pela postulação de um contexto social livre e independente em relação ao Estado, despendeu esforços num itinerário estritamente econômico que, sobretudo, já pressuponha a desigualdade e exploração como condições de desenvolvimento; resultou, assim, na manutenção de uma dinâmica excludente e que passa muito longe de qualquer ideologia libertadora. Sob esse signo, a existência da política urbana como rol constitucional faz, como uma contramão teórica no movimento capitalista, com que se firme um precedente positivo pelo qual se possa maturar uma nova forma e conteúdo para a cidade. Entretanto, essa menção representa, assim, uma leitura dos cenários urbanos e a identificação de contextos que fogem à dinâmica da cidadania, enquanto condições de bem-estar e dignidade, escopo precípuo da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, a própria existência do Estado brasileiro como filiado dos institutos democráticos exige uma postura real diante da pobreza visível nos centros urbanos do país que possui 8,5% de sua população vivendo em condições de miserabilidade.65 Por outro lado, o direito fundamental à cidade transcende ao reconhecimento constitucional, justamente por dizer respeito às condições inerentes à condição humana. 64 FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 4-5. 65 BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE. Estatísticas Sociais. Disponível em:< http://www.ibge.gov.br/home/download/estatistica.shtm>. Acesso em 23 ago. 2011. 50 Dessa forma, até mesmo a democracia, e com ela a superação dessas descontinuidades históricas, depende dessa efetivação do direito à cidade como direito fundamental que, ao mesmo tempo, registra a necessidade de transformação desse processo histórico de exploração. 51 3. A PROPRIEDADE URBANA A PARTIR DE UMA CONCEPÇÃO DE DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA DIGNA É inegável a condição umbilical estabelecida entre o direito ambiental, o direito à cidade e o direito à moradia. Cada um em sua estrutura e abrangência conceitual específica finaliza um complexo eixo de organização da sociedade e efetivação de direitos. Cada qual representa a integração como condição de efetividade, enquanto universalidade, particularidade e determinante singular. O direito à moradia, constitucional e genericamente estabelecido no artigo 6° da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, concerne à matéria de ordem objetiva, real, a partir do qual se pode mensurar a efetividade de um contingente de outros direitos. Sobre este aspecto, o direito à moradia é visto como condição. Essa inserção no rol de direitos que se relacionam gera, do ponto de vista prático, uma somatória de direitos que aguardam implementação, pelo menos em relação à tarefa do Estado. A partir desse ponto de vista, a integração desses direitos se apresenta em seu aspecto negativo: todos, conjuntamente, carecem de realização. Mais do que isso, a impressão que se forma é a de que a tarefa jurídica restou cumprida com o simples registro desses direitos em documentos, encerrandose, assim, a função jurídica em relação ao direito ambiental, ao direito à cidade e à moradia. Caberá, assim, ao poder executivo pensar formas de implementação. Entretanto, com a crise do Estado-Nação, da legitimidade do poder e dos resquícios de Estado providência, gera-se a impressão de que a efetivação desses direitos está para além da função do Estado, não importando aí o caráter social que o Estado Democrático de Direito brasileiro incorporou a partir de sua Constituição.66 Diante disso, a percepção de que as leis especificamente criadas em relação ao direito à moradia servem como pontes entre a Constituição da República 66 TRAMONTIN, Odair. Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal. Curitiba: Juruá, 2002, p. 30 et. seq. 52 Federativa do Brasil de 1988 e os Planos Diretores não pode deixar de considerar o conteúdo ideológico e as cargas de interesses provinciais no “uso” da cidade, vigentes nos municípios brasileiros, mas que servem como manifestação local de uma ordem que perpassa todo o mundo. Atuam nos municípios, então, o interesse privado em dimensões o mais visíveis possíveis, porque é na cidade, no contexto das moradias subumanas e da miséria, que se decidem os lugares destinados a moradia dos ricos, da instalação de determinadas fábricas, da edificação de prédios destinados, desde o projeto, a atender as necessidades de alguns. Com isso, criam-se os lugares destinados aos ricos (onde os programas de moradia popular não entram), aos pobres e alguns espaços mínimos de uso comum, que servem como o limbo urbano, em que os ricos não ficam, mas apenas passam. Entretanto, essa atividade constante e que perfaz a característica da cidade brasileira não se origina somente a partir da ação privada, com vistas à livre iniciativa e ao direito praticamente irrestrito à propriedade, mas contém elementos de ordem pública, gerenciadas ou não pela administração municipal. Assim, se é então verdade que existem alguns privados que decidem a estrutura da cidade, é também verdade que o poder público sabe a ratifica tamanha postura.67 Diante desse cenário, a menção à função social da propriedade não pode ser discorrida senão intimamente relacionada às previsões da Lei n. 10.257 de 10 de julho de 2001. Muito mais do que uma regulamentação de matéria constitucional, o Estatuto da Cidade condensa uma ordem totalmente estranha ao uso pragmático que se faz da cidade, ou seja, A lei é uma conquista social cujo desenrolar se estendeu durante décadas. Sua história é, portanto, exemplo de como setores de diversos extratos sociais [...] podem persistir muitos anos na defesa de uma ideia e alcançála, mesmo num contexto adverso. Ela trata de reunir, por meio de um enfoque holístico, em um mesmo texto, diversos aspectos relativos a um governo democrático da cidade, à justiça urbana e ao equilíbrio ambiental. 67 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 24 et. seq. 53 Ela traz à tona a questão urbana e insere a na agenda política nacional de 68 num país, até pouco tempo, marcado pela cultura rural. A perspectiva holística a que refere a autora explicita, novamente, o caráter relacional do direito à moradia no âmago dos direitos à cidade e ambiental, mais especificamente. A lei se encontra, então, em plena sintonia com o conteúdo constitucional do direito à cidade na perspectiva do direito à moradia, ainda que destoada da condição realística desses direitos envolvidos. Entretanto, a combinação entre as formas jurídicas relacionadas (Constituição, Estatuto da Cidade, entre outras) e já existentes não podem ser consideradas as únicas estruturas capazes de adimplir com a materialidade que suas normas referenciam. Sob este ponto de vista, a existência no plano prático de direitos sociais, como de fato é o direito à moradia, leva em consideração outra espécime de relação: aquela existente entre as divisões das funções do poder. Mais intrinsecamente, da comunhão entre o direito constitucional com o direito administrativo depende a fase executória das políticas de direito à moradia, sobretudo porque a própria Lei n. 10.257 de 10 de Julho 2001 atua sobre a perspectiva da atividade do poder público municipal. Essa ideia registra, então, o âmbito das ações institucionais que tendem a realizar o direito à moradia a partir de atividades compartidas, nucleando regional e setorialmente a administração pública com vistas ao Estatuto da Cidade a aos Planos Diretores, que executam no plano municipal das prerrogativas das ações institucionais. Esse núcleo compartido mantém, assim, a perspectiva de emancipação social, ou o aspecto democrático de implementação do direito à cidade. Mais do que isso, importa a superação da ideia do cidadão como objeto, e das políticas de direito à moradia como assistencialismo e clientelismo. No Brasil, a formação do assistencialismo está ligado ao perfilhamento da matriz neoliberal de economia capitalista, e remonta a tentativa nacional de 68 MARICATO, Erminia. O Estatuto da cidade periférica. In: CARVALHO, Celso Santos; ROSSBACH, Anaclaudia. Estatuto da cidade comentado. São Paulo: Aliança das cidades, 2010, p. 5. 54 incorporar esse modelo à ordem econômica-política vigente. A crise do modelo capitalista no final da década de 20 motivou uma “reação burguesa”, incorporada nas formas de pensar o trabalho e a atuação do Estado. Com isso, as medidas de ordem econômica fizeram surgir inúmeras contradições sociais, que foram evidenciadas mais tarde (décadas de 80 e 90), com a explicitação sensorial da desigualdade. Diante disso, coube ao Estado, como forma de compensação à ordem excludente, desenvolver ações de assistência aos excluídos, mas sem qualquer intenção de promover a inclusão social. Por um lado, contentava os capitalistas emergentes pela redução da sensação de incômodo social e, por outro, oferecia à população trabalhadora uma condição mínima, ligada ao amortecimento crítico e não ao princípio de dignidade do trabalho.69 Com efeito, a postura assistencialista do Estado gerou, como uma repercussão de ordem política, o desenvolvimento de um agir sem um fim transformador, mas cujo ritmo tinha por ordem a manutenção de um mínimo social que evitasse a revolta e mantivesse as condições de exploração do trabalho. 70 Cominada com a recepção social dessa prática, a determinante clientelista propagou essa prática para o campo da política representativa, gerando, com a ascensão da mulher e do jovem, novos contingentes de pessoas dispostas a uma troca de interesses.71 No âmbito do direito à cidade, isso pode ser entendido em relação às práticas de concessão de alvará de habitação, omissão nas ocupações irregulares e, até mesmo, em subsídios financeiros para a construção civil em desacordo com os planos diretores. Entretanto, Revela-se, assim, imprescindível conceber o Estado Democrático de Direito proclamado pelo texto constitucional brasileiro [...] como a maior evidência de que se impõe a abolição fática da separação entre Sociedade e Estado, resultando daí, a exigência de que o Estado assuma a responsabilidade de 69 PORTO, Maria Célia Silva. Estado assistencialista e questão social no Brasil pós-constituinte. Disponível em:< http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppII/pagina_PGPP/Trabalhos2/Maria_C%C3%A9lia_d_Silva_P orto.pdf> Acesso em 5 nov. 2011. 70 LENARDÃO, Elsio. Gênese do clientelismo na organização política brasileira. Disponível em:< http://www.pucsp.br/neils/downloads/v11_12_elsio.pdf> Acesso em: 5 nov. 2011. 71 NUNES, Edson. A gramática política no Brasil: clientelismo e insulamento burocrático. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 24 et. seq. 55 transformar a ordem econômico social, no sentido de viabilizar a efetivação material da ideia de democracia real, baseada no pressuposto da igualdade 72 concreta e existencial. Essa imersão do Estado em um conteúdo democrático e social acaba por reestruturar muito mais do que a cisão entre Estado e Sociedade, mas reconhece naquele um executor mais diretamente disposto no processo de efetivação do direito à moradia. Entretanto, Vieira, ao contrabalançar essa ideia de um Estado militante e racional, não deixa de observar a existência de intervenções internas e internacionais de matriz econômica neoliberal, capazes de reduzirem o papel do Estado. Ao desenvolver o conceito de “província global”, tem em vista a mera função reprodutiva do Estado, em que não faz senão ratificar os institutos econômicos de um modelo que, contrário àquela perspectiva unificadora, acabam por majorar o binômio político-social em relação à sociedade.73 É imerso nesse panorama que se soma, ainda, a possibilidade de uma gestão democrática do direito à moradia. Facilitada pela ideia de uma implementação compartida e emancipatória e, noutro sentido, dificultada pela redução da função institucional, essa gestão explicita, do ponto de vista prático, a dialética integradora entre poder institucionalizado e indivíduo, ou seja, entre Estado e cidadão. Abre, além disso, vazão ao processo de redução da condição de objeto que o indivíduo assume em relação à forma de produção de riquezas. Porém, Revela-se [uma] matriz de equilíbrio entre os meios adequados de políticas de crescimento econômico e social e diretrizes iusambientais para a conservação do ambiente, com o objetivo de desenvolvimento integrado, coerente e sustentável. Deste princípio, numa perspectiva holística, são constituídos critérios de decisão que não podem ser de ordem exclusivamente econômica, bem como não podem ser de ordem exclusivamente ambientalista, apostando pela integração das diversas políticas públicas com o objetivo de uma justa composição dos vários interesses envolvidos na questão ambiental (exigência 74 socioambientalista). 72 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 194-195. 73 VIEIRA, Litz. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 109. 74 MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2007, p. 110. 56 O que se apresenta, então, frente à dinâmica de realização do direito à moradia é uma situação paradoxal. De um lado a necessidade de suas prerrogativas serem administradas e executadas basicamente pelo poder público; por outro, a percepção de que essa atuação é reduzida cotidianamente pelos atores da economia privada, originando, assim, duas grandes estruturas novamente antagônicas: a vasta legislação e a insuficiência material do direito à moradia. Mesmo diante disso, Todos os órgãos, funções e atividades estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-lhes um dever de respeito e proteção que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quanto no dever de protegê-la (a dignidade pessoal de todos os indivíduos) contra as agressões oriundas de terceiros, seja qual for 75 a procedência. Essa vinculação do direito à moradia à dignidade da pessoa humana remonta, paralelamente, um rol de condições que o tornam efetivo, tendo em vista a interdependência e a relação de amplitude que dignidade pressupõe. O dever de proteger é, no contexto do direito à moradia, a formação de estruturas de ação (ações institucionais) a partir das quais o princípio da dignidade da pessoa humana seja representado no plano do direito a um habitat ecológico e artificial que atenda à ideia de vida digna. Sob esse aspecto, nas ações institucionais de direito à moradia, o que não pode ser esquecido é a materialidade que as previsões legais querem corresponder. É, além disso, a ideia de que a inefetividade desse direito não significa tão somente uma afronta ao Estado Democrático de Direito e à Constituição, enquanto entidades abstratas, mas, sobretudo, às pessoas que, em sua realidade cotidiana, representam o conteúdo originário de qualquer atividade normativa. 75 BELLO FILHO, Ney de Barros. Pressupostos sociológicos e dogmáticos da fundamentalidade do Direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Tese (doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina: 2006. Disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/33948-44718-1-PB.pdf. p. 111. 57 Não se pode, além disso, pressupor a suficiência dos modelos institucionais verticalmente pensados, sobretudo por conta de o conteúdo democrático corresponder ao compartilhamento das diretrizes de ação no âmbito do direito à cidade e à moradia. Há, dessa forma, uma superação da ideia segundo a qual a representatividade política encerra a condição de cidadania do indivíduo e o refunda enquanto objeto; tem-se, contrariamente, a sua imersão direta no contexto das ações institucionais, desde a maturação preliminar (cogitação do problema) até as fases executórias. Ao passo que refunda a ideia de superação do exclusivismo da representatividade, a função institucional (dos Municípios, sobretudo) não é suprimida ou relegada, mas dispõe-se enquanto executora das diretrizes de direito à moradia. Sobre esse aspecto, a investida compartilhada não corresponde a uma mitigação do papel do Estado, mas uma integração com os sujeitos concernidos. O que há, então, é a revitalização democrática pela inserção direta nos processos que visam efetivar o direito à moradia e que serve, via de regra, como condição de todo o processo democrático. 3.1 Da Função Social da propriedade à Lei n. 10.257 de 10 de julho de 2001 A necessidade de problemas coletivos exigirem soluções coletivas, demonstra um indicativo não só para a noção de direito à cidade que é, sobretudo, um exemplo dessa pluralidade jurídica e social, mas a menção a um fundamento mais universal que o cuidado à cidade quer parecer. Sob essa ótica, a formação da natureza humana, ou seja, da cultura e os ambientes artificiais, não existem somente em relação aos seus indivíduos mais imediatos, mas, sobretudo, referem a um contingente coletivo. 76 Sob esse aspecto, a Lei do Meio Ambiente Artificial, o Estatuto da Cidade, realizou em termos práticos a existência do valor social que subjaz à observância da 76 GUSMÃO, Daniela Ribeiro de. Análise crítica da cobrança de preço público pela instalação de redes de infraestrutura. Uso do espaço aéreo, do solo e do subsolo dos municípios. In. COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. (orgs). Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 266. 58 função social da propriedade. Diante disso, torna-se evidente a manifestação da função social da propriedade no Estatuto da Cidade, que possibilita que a cidade se filie àquelas disposições constitucionais, sobretudo as presentes no artigo 182, caput, e parágrafo 2°. De forma pontual, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 inseriu no contexto jurídico de forma direta a existência e importância da função social da propriedade; por seu turno, a chegada da Lei n. 10.257, de 2001, ratificou os termos constitucionais e a direcionou na perspectiva da política urbana, em que se insere o problema ambiental e, de forma mais específica, o direito à cidade. Sob esse olhar, o Estatuto da Cidade representa a manifestação jurídica que aproxima a generalidade do valor social (presente na Constituição) às determinantes da ordenação e das políticas urbanas (presente na Lei n. 10.257/2011), desdobradas desde o Plano Diretor até a conduta do sujeito que vive em sociedade. Assim, o fato de a representação dos ambientes urbanos dizer respeito muito mais do que a vontade e a projeção individual, mas, sobretudo, existirem em relação à sociedade, faz com que se desenhe uma forma transcendental de função, cujo estribo é a ideia socioambiental. Num sentido estritamente segregado, a função que uma propriedade e, de forma geral, toda uma cidade desempenha mantém referência às formas de o indivíduo se relacionar e produzir riquezas. Sob esse paradigma uníssono de função da propriedade, foram erigidos comportamentos e condutas que, jurídica e socialmente, representaram uma filiação à matriz positivista que, pelo civilismo e legalismo, fundou uma espécie de individualismo jurídico. No Direito, representou a firmação de negócios e relações jurídicas totalmente alheias à sociabilidade e à ideia de que a sociedade é possível a partir de uma inteiração coletiva; na comunidade de relações, representou a formação de amálgamas sociais, cuja inteiração não deu conta de realizar a sociabilidade. No entanto, o aperfeiçoamento tecnológico-científico dos recursos de produção e consumo de bens refinou as formas de se montar a consciência e o imaginário dos povos, tornando essa dinâmica também uma questão mental. Lefebvre, ao analisar o contexto das investidas ideológicas que, pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia, aperfeiçoaram os recursos urbanos de 59 projeção e realização de infra-estrutura, ainda que parcial e economicamente segregado, também menciona um caráter mental que a dinâmica social, mergulhada em ideologia, pode representar; é possível, assim, referir a existência de uma consciência disseminada de que a atual forma de desenvolver a cidade e a liberdade dos indivíduos é suficiente e, sob esta ótica, tal representação não faz parte senão da estrutura mental dos indivíduos 77 Diante disso, o próprio Código Civil brasileiro de 1916 consagrava os direitos sobre a propriedade segundo um ponto de vista ortodoxo, baseando a validade do negócio jurídico a partir da comprovação da propriedade e a vontade das partes, basicamente. Não se fazia referência a um sentido transindividual ou coletivo da propriedade privada, finalizando a ideia de que deveria atender aos fins particulares do proprietário. Assim, o revogado artigo 589 do Código Civil de 1916 elencava, como regra, a perda da propriedade por motivos individuais, dependentes da conduta do proprietário da coisa, ou seja, “I - pela alienação; II - pela renúncia; III pelo abandono; IV - pelo perecimento do imóvel”.78 O artigo 590 do diploma civil de 1916 fazia menção às causas de perda da propriedade por necessidade ou utilidade pública, ou mesmo “restrições ao direito de construir, mediante regulamentos administrativos”. 79 Também se perde a propriedade imóvel mediante desapropriação por necessidade ou utilidade pública. § 1º Consideram-se casos de necessidade pública: I - a defesa do território nacional; II - a segurança pública; III - os socorros públicos, nos casos de calamidade; IV - a salubridade pública. § 2º - Consideram-se casos de utilidade pública: I - a fundação de povoações e de estabelecimentos de assistência, educação ou instrução pública; II - a abertura, alargamento ou prolongamento de ruas, praças, canais, estradas de ferro e, em geral, de quaisquer vias públicas; III - a construção de obras, ou estabelecimentos destinados ao bem geral de uma localidade, sua decoração e higiene; IV - a exploração de minas Entretanto, as razões que tornavam possível a desapropriação de imóveis privados e a limitação do uso da propriedade eram pontuais, específicos em virtude 77 LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Trad. Rubens Frias. São Paulo: Centauro, 2001, p. 47 et. seq. 78 BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 3.071, em 1° de janeiro de 1916. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L3071.htm>. Acesso em: 14 de maio de 2011. 79 LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998, p. 87. 60 da formação das condições de conservação de uma cidade organizada, mas cujo fim era a valorização do espaço urbano, ainda sem qualquer ideia principiológica ou função social. Sob essa perspectiva, não havia a conciliação entre a necessidade de ordem interna da cidade com direitos coletivos, o que reduzia as previsões do Código Civil de 1916 a um plasticismo, ou seja, uma previsão positivista que não a relacionava à ideia de coletividade. No âmbito constitucional, a Constituição Imperial de 1824 e a Constituição Federal dos Estados Unidos do Brasil de 1891 não se distanciavam da ideia de que a propriedade privada mantinha um aspecto absoluto. A primeira, que se moldava segundo a tradição ocidental europeia, não fazia qualquer menção à uma forma coletiva dos bens privados. Contrariamente, o inciso XXII do artigo 179 da Constituição Política do Império do Brazil de 1824 estabelecia, “ É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude”.80 Por seu turno, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 ratificava os termos constitucionais de 1824, afirmando, em seu artigo 72, parágrafo 17, que “O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude [...]”.81 Leal, ao considerar sobre a Constituição Imperial e a primeira Constituição da República, menciona o fato de “a Constituição Imperial e mesmo a primeira Carta Republicana não previam restrições ao direito de propriedade, exatamente porque reconheciam e garantiam a propriedade em toda a sua plenitude” 82. Diante disso, tanto do ponto de vista dos princípios do direito coletivo quanto da forma positiva da função social, as primeiras Constituições eram omissas, ignorando qualquer menção à dimensão social que a propriedade representa. 80 BRASIL, Constituição Política do Império do Brazil, em 25 de março de 1824. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em 15 de maio de 2011. 81 BRASIL, Congresso Constituinte. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, em 24 de fevereiro de 1891. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em 15 de maio de 2011. 82 LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998, p. 86. 61 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 previa, em seu artigo 157, a defesa da justiça social, em capítulo dedicado à ordem econômica e social, remontando, nesse aspecto, a ideia presente na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 e, da mesma forma, na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1946. O direito brasileiro só irá se voltar para a temática social em geral após a ampla mobilização social da década de 1920 e a denominada Revolução de 30. A Constituição de 1934 introduz a primeira declaração de direitos sociais do nosso constitucionalismo e diversos novos diplomas legais [...] até a Constituição de 1988, assim, uma longa trajetória define a tutela da função 83 social da propriedade nos direitos constitucional, administrativo [...]. Nesse itinerário, antes da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o artigo 147 da Carta de 1946 já mencionava o bem estar social, vislumbrando, ainda na forma inicial, um sentido transindividual para a propriedade. Assim, no texto constitucional, estava expresso que “O uso da propriedade será condicionado ao bem estar social”84. A Carta Constitucional de 1967, não obstante, no inciso terceiro do artigo 157 previa o atendimento da “função social da propriedade”, devendo, então, a posse e uso da propriedade observarem um sentido transindividual e que percebesse o caráter social que a propriedade referia. Estando o referido artigo inserido nas disposições de ordem econômica, colocava-se, assim, na dimensão econômica a tarefa de promover a justiça social; o atendimento da função social, não obstante, também seguia a ideia de uma vinculação exterior à forma com que assumiu na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Porém, antes do sentido adquirido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a função social da propriedade reapareceu na Emenda Constitucional n. 01, de 17 de outubro de 1969, que reescreveu a Constituição de 83 WERNECK, Augusto. Função Social da cidade, Plano Diretor e Favelas: a regulamentação setorial nas comunidades populares e a gestão democrática das cidades. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. (orgs). Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 125. 84 BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, em 18 de setembro de 1946. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso em 15 de maio de 2011. 62 1967, finalizando a Constituição da República Federativa do Brasil de 1969 85. O artigo 160 desse diploma manteve a “função social da propriedade”, sob a ótica da justiça social e do desenvolvimento nacional. Subscreveu a ideia de que o desenvolvimento econômico do país dependia do uso ativo da propriedade, condição à manutenção de um sistema de crescimento da produção e consumo nacionais, ideal este já representado na Constituição Federativa do Brasil de 1967. Essa referência ao uso ativo da propriedade não tinha por objetivo a manutenção da ordem social da cidade sob o aspecto do bem comum, mas tão somente referia a instrumentalidade que o uso da propriedade representava para a projeção econômica do país. Não estava incluída nos desígnios do Estado a reforma do pensamento político empreendido desde a democratização trazida pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Contrariamente, os ideais explicitados com a Emenda à Constituição de 1969 dizia respeito ao domínio político e organizacional do Brasil, e, sob este aspecto, distanciavam-se do comprometimento constitucional desenvolvido até então. Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, um novo pensamento democrático permeou as instituições jurídicas e sociais. Em relação à função social da propriedade no direito à cidade, teve-se, ainda que genericamente, um primeiro marco. A Constituição de 1988 é o marco da transição democrática e da institucionalização dos direitos e garantias fundamentais. O texto marca a ruptura com o regime autoritário militar instalado em 1964, refletindo o consenso democrático ‘pós-ditadura’[...] Delineia ainda as molduras jurídicas de um Estado Democrático de Direito e estabelece políticas 86 públicas na esfera social [...]”. O ideal de uma propriedade privada ilimitada, vislumbrada a partir do interesse subjetivo e unilateral começa, com toda a estrutura social da Constituição, a ser reinventada. Se desde a ideia romana de propriedade o seu sentido estava 85 BRASIL, Ministério da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica. Emenda Constitucional n. 01/Constituição da República Federativa do Brasil, em 17 de outubro de 1969. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em 15 de maio de 2011. 86 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o princípio da dignidade humana e a Constituição brasileira de 1988. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Vol. 1, n. 2. 2004, p. 89. 63 cunhado da legitimidade ortodoxa do indivíduo em relação à coisa87, o movimento de redemocratização do Brasil a que se chegou com a Constituição de 1988 tentou, pela participação popular, estender à visão sobre a propriedade um sentido coletivo. Em relação às demais previsões constitucionais (1924 a 1969), em 1988 a função social da propriedade não se restringiu a uma determinante de ordem meramente econômica, mas passou a figurar como um elemento dos direitos humanos fundamentais. O consagrado rol do artigo 5° dispõe em seu inciso XXIII, depois de o caput ratificar o direito à propriedade, que “a propriedade atenderá a sua função social”.88 Diante dessa nova ordem constitucional, tanto a propriedade rural quanto a propriedade urbana estão condicionadas à previsão contida em âmbito constitucional, que vai além da menção genérica de atendimento daquela função. Assim, a diferenciação entre o atendimento da função social da propriedade urbana e rural é estabelecido pelos artigos 182 e 186, respectivamente. O primeiro diploma- artigo 182- está inserido na dinâmica da política urbana, tornando o atendimento da função social analisável a partir das características do Plano Diretor. Assim, “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. 89 Com isso, a prática determinada pelo Plano Diretor é que concretiza a menção constitucional da função social da propriedade urbana, tornando-a uma variante em relação aos diferentes contextos urbanos existentes no Brasil. Por seu turno, o artigo 186 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 condiciona o atendimento da função social da propriedade rural à 87 LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998, p. 40. 88 BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 15 maio de 2011. 89 BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 15 maio de 2011. 64 observância, dentre outros “[...] II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente”90. Com essa expressa referência à sociedade, à dimensão coletiva da propriedade, a Constituição vigente atualiza o status democrático a partir da superação formal- positiva, constituída- do caráter absoluto que a propriedade manteve ao longo das diferentes formações constitucionais do Brasil. Mesmo com a previsão formal estatuída desde a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934, a elevação a um caráter fundamental e principiológico só foi alcançado em 1988, com a Constituição Cidadã. Diante desse novo cenário constitucional que se apresenta, a perspectiva inaugurada passa a indiretamente vincular o uso da cidade aos princípios constitucionais. Entretanto, em relação ao direito à cidade (política urbana como um todo), é a Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que representa um marco na historia do direito à cidade brasileiro. Não somente em relação à função social e socioambiental, a regulamentação trazida pelo Estatuto da Cidade possibilita a formação de diretrizes objetivas, reais, a partir das quais se poderá prever as ordenações futuras e reordenar aquelas cujos processos de formação ocorreram de forma aleatória. Em relação à comunhão entre o direito à cidade e o direito ao meio ambiente, na perspectiva na Lei n. 10.257/2011, Fiorillo depõe. [A Lei n. 10.257/2011 é] instrumento que passa a disciplinar, mais que o uso puro e simples da propriedade urbana [mas também] as principais diretrizes do meio ambiente artificial, fundando no equilíbrio ambiental (art. 1.°, parágrafo único) e em face do tratamento jurídico descrito nos arts. 182 e 183 da CF. O objetivo do legislador foi o de tratar o meio ambiente artificial não só em decorrência do que estabelece constitucionalmente o art. 225, na medida em que a individualização dos aspectos do ambiente tem puramente função didática, mas também em decorrência do que delimitam 91 os arts. 182 e 183 da CF. 90 BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 15 maio de 2011. 91 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da Cidade Comentado: Lei 10.257/2011, Lei do meio ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 35-36. 65 Com isso, é possível vislumbrar o caráter interdisciplinar remontado na Lei n. 10.257/2001, sobretudo a partir da relação efetiva que se estabelece entre o direito à cidade e o direito ambiental. Sobre esta ótica, ganha sentido o caráter puramente didático descrito por Fiorillo, à medida que a cidade, enquanto meio ambiente artificial, está inserida no meio ambiente como um todo, incidindo, além disso, de forma substancial na dinâmica do direito ambiental. Essa filiação da Lei n. 10.257/2011 à ordem constitucional é claramente evidenciada em seus artigos 1°, caput e parágrafo único e 39, que estabelecem. Art. 1°- Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei.Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bemestar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. [...] Art. 39- A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades 92 econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei. Nas palavras de Fiorillo, no Estatuto da Cidade a “função social da cidade, obviamente vinculada à defesa dos direitos fundamentais de índole difusa, se revela como enraizamento ambiental”93. Assim, não obstante a previsão constitucional, a Lei n. 10.257/2001 segue o itinerário de ratificação da parceria entre o direito à cidade e o direito ambiental, permeando, assim, a legislação regulamentadora com os princípios da ordem constitucional, denotando, dessa forma, um marco na história do direito à cidade e ambiental. Nessa senda, a formação de uma consciência jurídica acerca do caráter coletivo que o direito à cidade e ao meio ambiente encerram fez com que a jurisprudência e a legislação passassem a incorporar essa ideia de transindividualidade presente naqueles direitos. 92 BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm.> Acesso em 14 jun. 2011, grifo nosso. 93 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da Cidade Comentado: Lei 10.257/2011, Lei do meio ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 124. 66 Com a aprovação da Lei n. 10.406 em 10 de janeiro de 2002 – Código Civilvárias determinantes constitucionais começaram a estar representadas na previsão dos atos e negócios jurídicos da vida civil, em que o caráter absoluto da vontade e da propriedade deram lugar a um novo processo interpretativo. Ratificou-se, assim, a perspectiva social que os negócios jurídicos precisariam representar. Princípios como o da boa-fé objetiva e da vontade limitada reescreveram a ideia presente na função social da propriedade, dando um novo sentido para a formação dos negócios jurídicos e para a interpretação judiciária. Nessa mesma dinâmica, Ayala, quando analisa a conduta jurisprudencial diante do direito ambiental, percebe que também “o STF propôs contornos importantes para a caracterização do significado da função social da propriedade definido na Constituição, quase sempre relacionando aos ecossistemas também protegidos diretamente pela Lei Maior”94. Assim, a menção constitucional da função social da propriedade contém impulsos internos pelos quais a observância segue defendida tanto pela atuação executiva - Planos Gestores e Diretores - quanto pelo judiciário, que não se afasta do dinamismo da coletividade presente na Constituição. Direito de construir. Limitação administrativa. I – O direito de edificar é relativo, dado que condicionado à função social da propriedade: CF, art. 5º, XXII e XXIII. Inocorrência de direito adquirido: no caso, quando foi requerido o alvará de construção, já existia a lei que impedia o tipo de imóvel no local. 95 II – Inocorrência de ofensa aos § 1º e § 2º do art. 182, CF. Nessa mesma senda, a súmula n. 66896 do Supremo Tribunal Federal ratifica o caráter excepcional que possui a função social da propriedade. Diante das cotas progressivas do Imposto Predial e Territorial Urbano, situação em que a Corte 94 AYALA, Patryck de Araújo. O novo paradigma constitucional e a jurisprudência ambiental do Brasil. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs). Direito Constitucional Ambiental brasileiro. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 382. 95 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 178.836, julgado em 8 de junho de 1999, relator Min. Carlos Velloso. Disponível em:< http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%201729>. Acesso em 15 de maio de 2011. 96 “É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da EC 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana.” (BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 668, em 24 de setembro de 2003. Disponível em:< http://www.dji.com.br/normas_inferiores/regimento_interno_e_sumula_stf/stf_0668.htm>. Acesso em 15 de maio de 2011. 67 declara a inconstitucionalidade dessa progressão antes da Emenda Constitucional 29/200097, essa cobrança progressiva somente não contraria a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 nos casos em que assegurar a função social da propriedade. Assim, com a previsão constitucional de 1988, e mais em específico a partir da Lei n. 10.257 de 10 de Julho de 2001, sedimenta-se a ideia de que a propriedade não assume tão somente uma condição utilitária e instrumental, mas tem em vista a realização de fins ambientais e sociais, como condição da realização do Estado Democrático de Direito, o que acaba por ratificar a perspectiva de direito fundamental que contém. Tem-se em vista, assim, a existência correlacionada da propriedade no contexto urbano e rural. No que diz respeito às funções sociais da propriedade urbana, se constitui a partir da superação do unilateralismo jurídico e da ideia a partir da qual a cidade se restringe à ambientação do desenvolvimento individual. Diante desse projeto, a Lei do meio ambiente artificial representou um marco tanto na história da regulamentação constitucional quanto no tratamento do tema direito à cidade no cenário jurídico e político, conferindo-lhe, doutrinariamente, um aspecto fundamental; nesse cenário, corresponde à menção direta do conteúdo social e da dinamicidade da comunidade urbana, importando, então, nas condições a partir das quais é possível pensar na efetivação do direito à moradia enquanto direito social. 3.2 Direitos Sociais e o direito à moradia digna O contexto semântico e histórico dos direitos sociais não pressupõe, mantida a ideia de progresso horizontal na efetivação de direitos, que a sua implementação obedeça, primeiramente, a realização absoluta dos direitos de liberdade e igualdade. Isso se dá, justamente, por conta do conteúdo integrador e complementar que o rol 97 BRASIL, Congresso Nacional. Emenda Constitucional n. 29, em 13 de setembro de 2000. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc29.htm>. Acesso em 15 de maio de 2011. 68 de direitos atribuídos ao cidadão registra. Significa dizer que não há a ideia de espera do conteúdo particular dos direitos de primeira dimensão, mas sim a marca conjunta de direitos existindo. Essa interpenetração conjunta dos sentidos possibilita, do ponto de vista da formação de um esquema concreto de efetivação de direitos, a existência correlata dos direitos abstratamente postos em relação ao agir individual e às determinantes (condições) de uma existência real do sujeito, sobretudo situado nas cidades. Num mesmo tempo e espaço, o sujeito é livre e existente, credor das condições elementares de vida digna, formadas de maneira integrada e emancipadora. A utilização da expressão “social” encontra justificativa [...] na circunstância de que os direitos da segunda geração podem ser considerados uma densificação do princípio da justiça social, alem de correspondências à 98 reivindicações das classes menos favorecidas. Essa segunda perspectiva (a existência material das condições de vida) registra a aparição prática do sentido evocado desde a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 até as normas mais específicas, quando a sociedade passa a pautar as diretrizes do Estado Democrático de Direito, não deixando de lhe averbar um conteúdo social. Esse conteúdo social, posto como normas, figura como pressuposto-norte de toda a ordem constitucional, relacionando um contingente de estruturas que, implementadas, subsidiariam a vida cotidiana do cidadão no mundo. Sobre esse aspecto, os direitos sociais são condições de existência prática das garantias constitucionais. O rol do artigo 6° da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por sua vez, elenca uma série de direitos ligados, então, diretamente ao exercício diário da cidadania. Gorczevski, ao retomar o conceito de cidadania, não deixa de perceber o sentido vigente antes do processo jurídico e social de internacionalização dos direitos humanos. A partir da superação da redução da cidadania à manifestação de um Estado particular, a dignidade ínsita ao ser humano passa a exigir uma conduta universal frente aos direitos humanos, sobretudo com a 98 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 56. 69 formação da globalização. Com isso, a cidadania passa a referir uma estrutura imanente à condição humana, a partir da qual os movimentos constitucionais pelo mundo - pós segunda guerra mundial- passa a reconhecer.99 Desde a sua formação constituinte até a recente inclusão do direito à alimentação - Emenda Constitucional n. 64, de 4 de fevereiro de 2010 -, os Direitos Sociais representam as garantias materiais, substanciais, enquanto continuidade objetiva e concomitante dos direitos de liberdade e igualdade. Sob essa ótica, os direitos sociais se manifestam como a determinação da liberdade e igualdade, e a fundam a partir de elementos materiais, existentes na sociedade. Dessa forma, a educação, a alimentação, o trabalho, a moradia formam as condições a partir das quais é possível visualizar a existência concreta das garantias do cidadão, que se ligam diretamente aos conceitos políticos de igualdade e liberdade. Com isso, é possível dizer que não existe uma ordem cronológica para a realização de direitos, mas a sua existência se forma como um todo jurídico, continuamente. Os direitos sociais não representam, assim, somente a manifestação que complementa os direitos de liberdade e igualdade, mas, sobretudo, dizem respeito à concretude que eles reivindicam. A ideia de direitos sociais está radicada na determinação que a igualdade faz para ser percebida, para se fazer mostrar na sociedade. As condições de trabalho, moradia, saúde, são determinantes do processo de verificação, da parte observável do direito à igualdade. Com isso, a comprovação material da existência dessas determinantes é que ratifica, do ponto de vista prático, a coerência do Estado previsto com o Estado vivido na sociedade. Diante da comparação entre os direitos e suas condições é que é possível estabelecer um parâmetro para mensurar a eficácia real dos direitos fundamentais, sobretudo aqueles que pertencem diretamente à ideia de sociedade. 99 GORCZEVSKI, Clóvis. Direitos Humanos e Cidadania. In: LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge Renato dos (orgs.) Direitos Sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004. p. 1095. 70 O direito a um meio ambiente equilibrado como expressão do direito fundamental à vida (art. 5°), objetiva assim garantir o princípio da dignidade humana (art. 1°, III e caput do art. 170), fundamento este para o Estado Democrático de Direito. [...] Vê-se, pois, que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem, é que há de orientar as formas de atuação de proteção ambiental. Portanto, não bastassem as referências expressas constantes no texto constitucional, a proteção ambiental sempre estará margeando todos os fundamentos constitucionais relacionados especificamente à preservação da célula HOMEN e suas 100 futuras gerações. Não obstante o problema do direito à moradia ser de caráter específico, não está afastado da questão ambiental. Desde a nova ordem constitucional de 1988 que a proteção ambiental se liga diretamente à eficácia e ao exercício dos direitos, sobretudo os direitos sociais, justamente por representarem uma demanda que exige uma ação prática. Assim, a ordem urbana, ao se deparar com o problema da moradia digna, enfrenta diretamente uma matéria de ordem ambiental. Justamente porque não é possível partir de uma cidade ideal, organizada de forma prévia, que as políticas de moradia e meio ambiente precisam coexistir com o cotidiano da sociedade. A reestruturação dos ambientes artificiais, ao ser condição para que se estabeleça moradia digna- muito mais do que casa- faz com que esteja em jogo também o cuidado com o meio ambiente. Além disso, a resolução do problema da moradia não passa somente por questões de ordem espacial e ambiental. Esse planejamento, como parte integrante de um leque de medidas para o direito à cidade, onde está alojado o direito à moradia, parte da dimensão legal, juridicamente instituída desses contextos, o que acaba por dificultar o alcance desses investimentos. A lei dispõe sobre o que pode ser feito e sobre como deve ser feito. Como muitos não detêm a propriedade formal do terreno, essa legislação não tem qualquer aplicabilidade para eles, o que faz com que, justamente ao contrário do que pretendia o legislador, essas pessoas tenham total arbítrio para construir suas casas. [...] O ponto chave [...] é verificar se o direito é 101 um meio capaz de efetivar esse modelo de cidade. 100 OKADA, Denise Setsuko. A Constitucionalização da matéria ambiental: o direito às cidades sustentáveis em jogo. In: COUTINHO, Ronaldo. ROCCO, Rogério. O direito ambiental das cidades. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 67. 101 OLIVEIRA, Daniel Almeida. O direito da cidade no direito e nas questões sociais: limites, possibilidades e paradigmas. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. (orgs) Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 80-81. 71 Ao remontar o problema da previsibilidade jurídica e da aplicabilidade, localiza-se no direito à cidade uma das determinantes mais expressivas da incoerência entre o sentido normativo e seu alcance. Não obstante figurar como direito constitucional social, a grau de efetividade do direito à moradia digna deixa transparecer, então, não somente uma lacuna de natureza teórica, enquanto realização das metas do Estado Democrático de Direito. Mais do que isso, finaliza a aparição de um simbolismo do texto constitucional, cuja eficácia é mitigada pela não concretização. Esse distanciamento da concretização dos direitos sociais em relação à Constituição não atua, por outro lado, somente como sonegação prática da dignidade humana, mas a reduz enquanto conteúdo axiológico, que lhe subjaz enquanto fundamento, justificação filosófica para a manutenção de um corpo de direitos que se relacionam às condições de vida digna. Além disso, Considerando que toda Constituição há de ser compreendida como uma unidade e como um sistema que privilegia valores sociais, pode-se afirmar que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade humana como um valor essencial que lhe doa unidade de sentido. Isto é, o valor da dignidade humana informa a ordem constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição 102 particular. Sob esta ótica, a existência do direito à moradia enquanto direito social, com previsão expressa na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao passar pelo tema do direito à cidade e do direito ambiental, finaliza uma conexão direta entre esse contexto particular de direitos, estabelecendo, assim, uma interdependência imediata. Por outro lado, apresenta-se a ideia de uma atuação do Estado, por intermédio do Direito, no processo de modificação do status do direito à moradia. 102 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o princípio da dignidade humana e a constituição brasileira de 1988. Revista do instituto de hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2004, p. 91. 72 Bolzan de Morais, ao mencionar a transformação política do Estado de Direito em Estado Democrático de Direito, não deixa de perceber as características elementares que passam a determinar aquele último. Estão, assim, imersos nessa nova ordem política, frente aos desafios da sociedade moderna, “a regulamentação da sociedade pelo Direito, democracia e concretização dos direitos fundamentais.” 103 Em relação ao direito à moradia, ambas as três estruturas aí estão representadas, enquanto demandas imediatas e carentes de efetivação prática. No que se refere às políticas previstas para funcionarem como fomentos à qualificação da moradia digna, e que dizem respeito, então, àquele caráter de regulamentação da sociedade pelo Estado, o que se percebe é que a estrutura digna de habitação passa por outras medidas de infraestrutura básica, como água, luz, saneamento, transporte. Com restritas possibilidades de atendimento governamental às suas demandas urbanas e habitacionais, a população de baixa renda, marginalizada e periférica, descobre e cria estratégias para sua inserção no tecido urbano. Tais estratégias vão desde as pressões para a extensão dos serviços públicos de água, energia elétrica e transporte coletivo até na ajuda mútua na construção das moradias que, além do abrigo físico, significa o 104 domicílio urbano, condição mínima de cidadania. Com a inoperância da concretização das previsões normativas em relação ao direito à moradia, a reivindicação e a atuação autogestionária fazem parte da realidade urbana de provimento desse direito fundamental. De um lado, vai sendo constituído núcleos mínimos de infraestrutura e habitação, dada a urgência que o provimento dessas condições requer; por outro lado, acabam sendo criadas zonas não monitoradas e, até mesmo, ilegais, que irão representar um desafio à realização do direito à cidade. No que diz respeito ao conteúdo democrático que, ao compor o Estado, condiciona-o uma gerência democrática dos direitos, aquela participação dos 103 MORAIS, Jose Luis Bolzan de; AGRA, Walber de Moura. A crise e a recuperação da legitimação da jurisdição constitucional. In: LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge Renato dos (orgs). Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004. p. 1056. 104 KALIL, Rosa Maria Locatelli. Direitos humanos e moradia em Passo Fundo: uma experiência autogestionária. In: CARBONARI, Paulo César. KUJAWA, Henrique Aniceto. Direitos humanos desde Passo Fundo. Passo Fundo: CDHPF, 2004, p. 69. 73 cidadãos no exercício de efetivação do direito à habitação digna acaba por representar uma possibilidade compartilhada de provimento do direito à moradia. Sob essa ótica, a democracia não diz respeito somente à formação dos núcleos de gerenciamento e atuação do Estado, mas à possibilidade de uma vivência democrática cotidiana, compartilhada. Dessa forma, “é importante assinalar que a regulamentação da sociedade pelo Direito e a democracia são os dois elementos que garantem a fecundidade do terreno para o desenvolvimento dos direitos fundamentais.”105 Diante desse elementos, que ao transcenderem à ótica do direito à moradia são princípios que representam toda a ordem de direitos fundamentais, a efetivação do direito à moradia depende de uma integração entre o direito ambiental (sentido mais universal), direito à cidade (sentido mais particular) e, então, o direito à moradia, ou seu sentido mais imediato ou específico. Diante dessa problemática, Saule Junior106, ao dispor sobre os sistemas de monitoramento do direito humano à moradia digna, menciona espécies de componentes que qualificam a moradia enquanto ambiente digno. Esse rol de componentes é oriundo do Comentário Geral n. 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas e utilizado pelo Observatório Habitacional do Município de São Paulo. Dessa forma, independentemente das formações regionais e da especificidade de cada centro urbano, os componentes que direcionam a perspectiva do direito à habitação à forma prevista constitucionalmente são mantidos de forma universal, justamente pelo caráter impositivo que a dignidade estabelece em relação aos seres humanos. Grosso modo, a realização efetiva dos direitos 105 MORAIS, Jose Luis Bolzan de; AGRA, Walber de Moura. A crise e a recuperação da legitimação da jurisdição constitucional. In: LEAL, R.G.; REIS, J. R. (orgs) Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004. p. 1056. 106 SAULE JUNIOR, Nelson. Instrumentos de monitoramento do direito humano à moradia adequada. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 218-219. 74 subjetivos é expressa, quando característica da dignidade, juntamente com a “demonstração de seu fundamento objetivo.”107 Nesse elenco de condições que devem caracterizar a moradia para que possa ser qualificada como digna, tem-se a “(a) Segurança jurídica da posse [...] (b) disponibilidade dos serviços, materiais, benefícios e infra-estrutura [...] (c) gastos suportáveis [...] (d) habitabilidade [...] (e) acessibilidade [...] (f) Localização [...] (g) adequação cultural [...]”.108 Cada uma das considerações estabelece uma condição do adjetivo digno ao direito à moradia. Pelas inúmeras formas jurídicas, o direito à moradia pode ser exercido nos limites da lei. Ainda que não seja por meio de uma titularidade puradono legal-, existem outros meios legais e dignos de habitação, tais como aluguel e comodato. Registrando a interdependência do direito à moradia em relação aos demais direitos, o segundo elemento menciona as condições complementares à habitação, finalizando um ambiente digno, tais como transporte, saneamento básico e segurança. De forma a manter o equilíbrio social e econômico, a suportabilidade dos gastos leva em consideração as condições financeiras do cidadão em relação ao suprimento das demais necessidades. Nessa mesma perspectiva, as políticas de habitação, ao formularem as determinantes de implementação da moradia, consideram essa relação de sustentabilidade do habitat doméstico, tendo em vista os destinatários e a condição econômica existente, da mesma forma com que levam em consideração a habitabilidade, acessibilidade e localização, nos casos de financiamento de imóveis, por exemplo. No entanto, o último elemento analisado diz respeito ao conteúdo cultural que esse processo refere- ou pode referir. Ou seja. 107 BARZOTTO, Luiz Fernando. Os Direitos humanos como direitos subjetivos: da dogmática jurídica à ética. In: SARLET, Ingo. (org.) Jurisdição e direitos fundamentais. v. I, t. 1. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2005, p. 269. 108 SAULE JUNIOR, Nelson. Instrumentos de monitoramento do direito humano à moradia adequada. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 218-219. 75 A expressão da identidade e da diversidade cultural da moradia deve ser apropriadamente assegurada na maneira como são construídas as moradias, nos materiais de construção usados e nas políticas em que se apoiam. As atividades vinculadas ao desenvolvimento ou modernização na esfera da moradia devem assegurar que suas dimensões culturais não sejam sacrificadas e que se assegurem os serviços tecnológicos modernos, 109 entre outros. Esse último componente insere no contexto do direito à moradia um elemento diferenciador, que acaba por superar, assim, o caráter meramente material da habitação. Não mais está resumida, então, à materialidade, enquanto forma imediatamente observável, mas estende essa análise aos componentes subjetivos que, grosso modo, acabam por familiarizar a habitação. Entretanto, da mesma forma como é inovador, acaba por evidenciar a fragilidade do sistema de efetivação do direito em questão. Mais do que somente esse elemento cultural, todas as determinantes que qualificam como digna a habitação e o seu contexto físico e subjetivo carecem de efetivação prática. Nessa senda, o desenvolvimento urbano, mesmo em certa medida atrelado à Lei n. 10.257/2001 e às determinações do Plano Diretor, acaba por desconsiderar, tanto na atuação pública quanto privada, as dimensões axiológicas e teleológicas da propriedade urbana. Ou seja, a necessidade de robustecer a economia urbana faz com que sejam feitas concessões no processo de dignificação da moradia, reduzindo, assim, o valor intrínseco à dignidade e a finalidade de um ambiente doméstico conforme. De forma mais emblemática, essa mitigação do direito à moradia acaba por representar, paralelamente, uma redução das condições ambientais e de uma cidade digna, considerando-se um nível mais abrangente. Tem-se, assim, uma formação sistemática de supressão do direito à moradia, do direito à cidade e, por fim, do direito ambiental como um todo. El desarollo urbano entendido así como un proceso de transformación de lo que denominamos recursos urbanos originarios y secundarios, encuentra ciertos límites históricos (de pérdida de calidad de tales recursos) resultantes de su inserción en el despliegue de la crisis del modo productivo 109 SAULE JUNIOR, Nelson. Instrumentos de monitoramento do direito humano à moradia adequada. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betania (Orgs). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 218-219. 76 dominante. [...] algunos conceptos contemporaneos como los de crisis de las condiciones de producción por una parte y de desarollo sustentable por otra, expresan aproximaciones para una posible caracterización 110 problemática y critica do desarollo urbano. A ideia de desenvolvimento urbano (sobretudo desenvolvimento sustentável) ainda que originalmente atrelado à provisão do direito à cidade como um todo, em que se apresenta o problema do direito à cidade e ambiental, acaba por ser estruturado fora da ideia de um desenvolvimento plural, caso em que se analisa muito mais do que a evolução quantitativa dos índices econômicos. O modo produtivo e suas crises acaba por influenciar, assim, diretamente na formação do direito à moradia no contexto urbano, atuando, assim, como elemento problemático em relação à efetividade dos direitos sociais como um todo. Diante disso, a expressão coletiva e real que os direitos sociais, contexto este em que se situa o direito à moradia, deixa de estar pautada por escolhas concretas de realização comum de direitos. Mesmo a natureza jurídica das previsões da Lei n. 10.257/2011, que não se afasta da ideia de “direito material constitucional coletivo, e no plano dos subsistemas jurídicos que se harmonizam com os comandos constitucionais, de direitos concretamente reduzida. materiais e metaindividuais”, acaba por ser 111 Nesse contexto, ainda que o cidadão não esteja reduzido a uma postura passiva e meramente assistencial, o conjunto de tarefas acerca de direitos sociais compete, diretamente, às diretrizes a serem traçadas institucionalmente, como formas de implementação das condições de direitos. Entretanto, [...] o fato de existirem várias obrigações e fatores relevantes envolvidos na satisfação dos direitos sociais não impede sua implementação [...]. As características dos direitos fundamentais sociais requerem a aplicação de princípios, tais como os da subsidiariedade e solidariedade, que não são levado em conta pela maioria dos teóricos dos direitos e nem por filósofos 112 políticos que defendem teorias standard dos direitos. 110 FERNÁNDEZ, Roberto. La ciudad verde: teoría de la gestión ambiental urbana. Buenos Aires: Espacio, 2000, p. 304. 111 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2011, lei do meio ambiente artificial. 3. Ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2008, p. 137. 112 ARANGO, Rodolfo. Direitos fundamentais sociais, justiça constitucional e democracia. In: MELLO, Cláudio Ari (org.).Os desafios dos direitos sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 92. 77 A partir desse contexto objetivo em que se encontra a realização do direito à moradia, e tendo em vista estar situado no rol de direitos fundamentais sociais, o que existe é um estreitamento entre a provisão desses direitos e a atividade do Estado em sua direção. Mais do que somente uma condição de monitoramento e gestão externas, a realização concreta dos direitos sociais passa diretamente, ainda que não exclusivamente, pela ação do Estado, como, até mesmo, significação da ideia de direitos fundamentais.113 A partir desse cenário, é possível analisar essa atividade do Estado em relação à realização dos direitos sociais, e de forma mais específica, do direito à moradia. Desde a previsão constitucional até a formação de legislações específicas, o direito à habitação digna passa por uma análise conjunta em relação aos demais direitos que se integram, como o direito à cidade e o direito ambiental. Assim, com a existência de um conteúdo normativo mínimo, atrelado à ideia de políticas públicas direcionadas à habitação, é possível perceber a ligação imediata que se estabelece entre o direito à moradia e a sua interferência na ideia de tornar fundamental o direito à cidade. 3.3 Ações institucionais para a garantia do direito à moradia digna O artigo 2° da Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que estabelece as diretrizes para os sistemas urbanos de saneamento básico, contém em seus incisos um rol de provisões que poderiam ser considerados com princípios de todo o direito à cidade. Preleciona o referido artigo acerca dos princípios fundamentais dos serviços públicos de saneamento básico. I - universalização do acesso; II - integralidade, compreendida como o conjunto de todas as atividades e componentes de cada um dos diversos serviços de saneamento básico, propiciando à população o acesso na conformidade de suas necessidades e maximizando a eficácia das ações e resultados [...] VI - articulação com as políticas de desenvolvimento urbano e regional, de habitação, de combate à pobreza e de sua erradicação, de proteção ambiental, de promoção da saúde e outras de relevante interesse social voltadas para a melhoria da qualidade de vida, para as quais o 113 PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los derechos fundamentales. 6.ed. Madrid: Tecnos, 1995. 78 saneamento básico seja fator determinante; VII - eficiência e sustentabilidade econômica; VIII - utilização de tecnologias apropriadas, considerando a capacidade de pagamento dos usuários e a adoção de soluções graduais e progressivas; IX - transparência das ações, baseada em sistemas de informações e processos decisórios institucionalizados; X controle social; XI - segurança, qualidade e regularidade; XII - integração das infra-estruturas e serviços com a gestão eficiente dos recursos 114 hídricos. Muito mais do que funcionarem como normas esparsas, representam verdadeiros princípios do direito à cidade como um todo, não deixando de pautar as ações institucionais que representam no campo prático a existência real do direito à moradia. Do ponto de vista legal, as previsões constitucionais e a regulamentação que daí decorre são os passos imediatos na formação de uma ação institucional eficaz, capaz de representar no contexto jurídico a defesa do direito à moradia. Por outro lado, as ações práticas - políticas públicas- caracterizam a realidade objetiva da existência desse direito na sociedade. Desde as políticas mais diretamente relacionadas ao direito à moradia (financiamentos habitacionais, por exemplo) até as atividades que, a partir de seu conteúdo semântico, se ligam ao direito à moradia, o provimento das condições básicas de habitação passa pela postura ativa do Estado frente à hegemonia do capital privado e as tentativas de reduzir o espaço urbano ao terreno dos empreendimentos unilaterais. Essa atividade institucional mais intensa, mitigada pela crescente diminuição da força militante do Estado, acaba por representar, assim, uma falência de sua condição de provedor do direito à cidade, não no sentido de artífice único, mas de executor mais diretamente ligado à ordem constitucional. Santos, ao analisar a condição do Estado frente à redução gradual de sua condição ativa, pelo menos do que se refere às ações sociais, atenta para alguns 114 BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm>. Acesso em 5 jul 2011. 79 fatores que caracterizam a sociedade mundial, e que repercutem no comportamento institucional. [...] a unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a cognoscibilidade do planeta e a existência de um motor único na história, representado pela mais-valia globalizada. Um mercado global utilizando esse sistema de técnicas avançadas resulta nessa globalização perversa. 115 Isso poderia ser diferente se seu uso político fosse outro. Assim, demonstrando essa situação fática determinada letargia institucional, ao analisar o contexto de surgimento do Estado de Direito, perseguidor dessa condição ativa de adimplemento das menções constitucionais, Tramontin não deixa de mencionar o processo histórico de redução do papel ativo do Estado frente aos direitos fundamentais, desenvolvimento esse que afeta diretamente o não reconhecimento do problema habitacional como formador de diretrizes para atuação do Estado. Observa, além disso, que, [...] no plano formal, a partir da Constituição de 1934 até a Constituição de 1988, inclusive, o Estado brasileiro passou a ter características de Estado social, nos moldes implementados em vários países do Ocidente, destacando-se os países europeus. No entanto, entre as previsões 116 constitucionais e a realidade concreta existe uma grande diferença. Esse paradoxo existente entre a previsão formal e os aspectos concretos da ordem constitucional representa, além disso, uma incoerência que também se faz representar na forma com que o Estado age em relação ao direito à moradia. Ainda que existente, as ações institucionais de direito à moradia, ora atuam fora dos parâmetros reais da população carente (financiamentos para quem já tem capacidade econômica estável), ora como mero assistencialismo, deixando de levar em consideração a condição de sujeito do cidadão. De fato, o contexto nacional e mundial explicita uma característica de exclusão social e desestrutura das formas organizacionais das cidades quase que 115 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 24. 116 TRAMONTIN, Odair. Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal. Curitiba: Juruá, 2002, p. 31. 80 irreversível (favelismo e degradação ambiental), mas não exime o Estado de pensar a efetivação das políticas habitacionais e ambientais já mencionadas na regulamentação da Política Urbana, além das políticas suscitadas por meio de demandas sociais mais imediatas. A existência de um corpo de leis que disciplinam e legitimam determinados entes públicos com competência para efetivar as previsões legais não é suficiente para que se chegue a uma vida digna, nisso compreendido o real direito à moradia e habitat limpo e preservado. Mais do que como resultado, a legislação geral e específica atua como ponto de partida do fazerser da Administração Pública, com vistas à implementação do direito à moradia. Ainda que se desenvolva uma cultura individualista de não preservação e de ocupação ilegal dos terrenos urbanos, cabe ao Estado uma responsabilidade direta na formação de ambientes (re)organizados e com condições básicas de exercício da cidadania. Não se trata somente de uma responsabilização atomizada, que identifica nos indivíduos isolados os únicos agentes no processo de reabilitação habitacional e ambiental. Sobretudo, é inerente ao estágio democrático e social do Estado a responsabilidade com os institutos jurídicos e políticos, de efetivação de uma sociedade equilibrada, tanto do ponto de vista do acesso à moradia quanto do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Nesse contexto, a condição para um desenvolvimento urbano equitativo e justo deverá passar, sobretudo, pela transformação estrutural da política governamental, fazendo com que as demandas sociais surtam como diretrizes para se pensar o crescimento socioeconômico e a efetivação do estado democrático constitucional. Assim, o conceito que mais se põe à melhora de condições da vida urbana é o de efetivação, no sentido de tornar as previsões legais garantias que realizem o direito à moradia e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. São necessárias políticas públicas que vislumbrem um cenário de sustentabilidade das cidades capaz de atender aos direitos básicos de toda população, mas que tenham em mente a real situação do direito à moradia no Brasil. A política urbana terá de possuir um potencial não apenas para garantir o acesso a direitos sociais básicos e universais, mas também para melhorar as condições equitativas de acesso a todos os direitos inerentes ao contexto das cidades. 81 A partir disso, a crise de percepção demanda uma mudança de postura na gestão das cidades, mudança esta que se concretizará com a efetiva participação social consciente nesta interligação mútua existente entre o ser humano, o Estado – na condição de gestor de políticas públicas - e , é claro, o meio ambiente enquanto princípio norteador de condutas e políticas de gestão compartilhada e democrática do espaço urbano. Mais do que somente uma aparição isolada, esse compartilhamento, que não retira do Estado a função de executor das ações institucionais de direitos fundamentais, situa a implementação do direito à moradia no rol das atividades do desenvolvimento emancipatório como um todo, superando a ideia dicotômica entre Estado e cidadão. Sob esse contexto, a exigência da efetivação do direito à cidade, no que tange às ações institucionais de direito à moradia, tende a se ligar diretamente a duas estruturas-núcleo, quais sejam, a condição econômica dos visados e a emancipação social, através das quais é possível sedimentar uma teoria jurídica que justifique a atividade do Estado Democrático de Direito. Originalmente intermediado nessa ideia, o projeto do governo Federal, Minha Casa, Minha Vida visa ampliar o direito à moradia a partir de diretrizes situadas no plano municipal. Filia-se, dessa forma, às disposições da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, da Lei n. 10.257/2001 e, especificamente, à Lei n. 11.977, de 7 de julho de 2009, alterada pela Lei n. 12.424, de 16 de junho de 2011, que disciplina o Programa Minha Casa, Minha Vida, com vistas à atuação municipal a partir da formação do Plano Diretor. Em sentido geral, o Programa Minha Casa, Minha Vida está voltado à formação de programas na esteira do direito à moradia, conciliado, diretamente, ao direito à cidade e ambiental. Tem como escopo, assim, “[...] criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação 82 de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 [...].”117 Sobre esta ótica, resulta da constatação de que “entre os desafios encarados pelo governo está o de trabalhar para reverter uma característica marcante de suas cidades e comum em outras tantas cidades do mundo: a segregação socioespacial.”118 Inserido nessa perspectiva do direito à cidade, de que faz parte o direito à moradia, enquanto condição, o Programa Minha Casa, Minha Vida previu, pela Lei n. 11.977 de 07 de julho de 2009, subdivisões de projetos a partir de características específicas, levando em consideração o fator econômico, social, espacial, mas, especificamente, políticas habitacionais para o meio urbano e rural. Dessa subdivisão do Programa, nasceram o Programa Nacional de Habitação Urbana e o Programa Nacional de Habitação Rural, previstos, respectivamente, nos incisos I e II do artigo 1° da Lei n. 11.977 de julho de 2009. Em cada um dos programas, a participação municipal é sempre essencial à realização das ações do Programa, vez que, [...] a instituição do Programa Minha Casa Minha Vida (Lei n.° 11.977/09) e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que contam com recursos para obras de infraestrutura social e urbana, passam a exigir dos municípios a aplicação das estratégias de ordenamento territorial definidas nos Planos Diretores. Aqueles que elaboram Planos, reservando áreas para habitação de interesse social e regularização fundiária, definindo diretrizes para a infraestrutura- em especial redes viárias de transporte público e saneamento ambiental- e criam instâncias de gestão democrática estão em melhores condições de executar esses programas, combater o déficit 119 habitacional e implementar suas políticas setoriais. Essa gestão compartida entre os entes do Poder Executivo atenda para o caráter dinâmico previsto desde a Constituição para o processo de implementação 117 BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 11.977, de 7 de julho de 2009. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/civil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm>. Acesso em: 12 jul 2011. 118 ALMEIDA, Márcio Fortes de; COBBETT, Billy. Apresentação. In: CARVALHO, Celso Santos; ROSSBACH, Anaclaudia. Estatuto da cidade comentado. São Paulo: Aliança das cidades, 2010, p. 3. 119 ALMEIDA, Márcio Fortes de. Apresentação. In: ROLNIK, Raquel (org.). Como produzir moradia bem localizada com os recursos do Programa Minha Casa Minha Vida: implementando os instrumentos do Estatuto da Cidade. Brasília: Ministério das Cidades, 2010. p. 8. 83 do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, do direito à cidade e do direito à moradia. Mais do que isso, remonta as determinações da Organização das Nações Unidas no que tange aos princípios que regem a identificação de um habitat como possível de atender às exigências de uma moradia digna. Tanto é que, em imediata relação com o Comentário Geral n. 04, do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, a primeira determinante traçada pelo Ministério das Cidades, a Cartilha do Programa Minha Casa Minha Vida não deixa de levar em consideração características a partir das quais é possível definir a dignidade de uma habitação. 120 Entretanto, reconhece-se que, Esse modelo de planejamento tem implicações na forma e no funcionamento de nossas cidades: concentração de empregos em poucas áreas; distantes do local de moradia; excessiva necessidade de deslocamento e ocupação de áreas de proteção ambiental por falta de 121 alternativas; entre outras. A preocupação central na execução dessas determinantes é a conciliação entre as previsões legais e a ordem que forma os Planos Diretores municipais. Sendo uma das principais ações do Estado em relação ao Direito à moradia, não diz respeito somente à atividade da União, mas tem a sua realização a partir da comunhão com os demais entes, sobretudo a administração municipal. Isso se deve, sobretudo, pelo fato de a implementação do Programa Minha Casa Minha Vida pressupor uma contrapartida dos municípios, tanto em relação às necessidades imediatas (terreno e escrituração) quanto àquelas que integram o direito à moradia, como é o caso do transporte coletivo acessível e de qualidade. Esse compartilhamento requer, então, a atividade multilateral dos sujeitos envolvidos, mesmo os não diretamente ligados ao poder público. 120 SAULE JUNIOR, Nelson. Instrumentos de monitoramento do direito humano à moradia adequada. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 218-219. 121 ROLNIK, Raquel (org.). Como produzir moradia bem localizada com os recursos do Programa Minha Casa Minha Vida: implementando os instrumentos do Estatuto da Cidade. Brasília: Ministério das Cidades, 2010. p. 10. 84 Sobre esta ótica, sobretudo a partir da participação municipal, o que surgem são empecilhos objetivos que denegam o sentido originário do Programa, explicitando, novamente, as limitações à formação de moradias. Além disso, muitas das moradias construídas para atender ao Programa representam um exemplo do não seguimento da ideia de suportabilidade dos gastos, que levam em consideração não somente o montante do financiamento habitacional, mas os demais gastos com manutenção da família e, mais do que isso, com os gastos futuros no cotidiano da nova moradia. Além disso, o aumento na margem de valores até os quais o financiamento atua denuncia, mais uma vez, a impossibilidade dessas medidas atingirem quem realmente sofre com problemas de moradia, visto a impossibilidade de um financiamento na ordem de cento e trinta mil reais recair sobre cidadãos com renda de um salário mínimo. Com isso, reforça-se a ideia de que, quanto maior o poder aquisitivo, mas digna é a moradia, ratificando, erroneamente, a proporcionalidade entre poder econômico e dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, Arantes e Fix, ao abordarem o Programa Minha Casa Minha Vida a partir de uma perspectiva crítica, não deixam de registrar que, tendo em vista a ideia reforma urbana e função social, Na ânsia de poder viabilizar o maior número de empreendimentos, o poder local ficará refém de uma forma predatória e fragmentada de expansão da cidade. O ‘nó da terra’ permanecerá intocado e seu acesso se dará pela compra de terrenos por valores de mercado (ou ainda acima destes). O modelo de provisão mercantil e desregulada da moradia irá sempre procurar a maximização dos ganhos por meio de operações especulativas. Não há nada no pacote, por exemplo, algo que estimule a ocupação de imóveis construídos vagos (que totalizam 6 milhões de unidades, ou 83% do déficit), colaborando assim para o cumprimento da função social da propriedade. A existência desse imenso estoque de edificações vazias é mais um peso para toda a sociedade, pois são em sua maioria unidades habitacionais providas de infraestrutura urbana completa, muitas delas inadimplentes em relação a impostos. Não há dúvida de que o pacote irá estimular o crescimento do preço da terra, favorecendo ainda mais a especulação imobiliária articulada à segregação espacial e à captura privada de investimentos públicos. Assim, a política habitacional de interesse social se 85 tornará cada vez mais inviável, a menos que o governo siga dirigindo 122 subsídios aos proprietários de terra. O que ocorre é, ao reverso da ideia contida na própria Lei n. 11.977/2009, com nova redação dada pela Lei n. 12.424/2011, a formação de privilégios institucionais que, do ponto de vista prático, ratificam a ideia de incorporação no Estado da lógica excludente do modelo econômico. Sobre esse aspecto, o Programa acaba por não atender a quem realmente não tem moradia, como seguem asseverando Arantes e Fix. A história do subsídio habitacional no Brasil é conhecida pela constante captura da subvenção pelas classes médias e agentes privados, ao invés de atender, na escala necessária, os trabalhadores que mais precisam. Embora essa tendência deva novamente prevalecer, há que se considerar o interesse político e eleitoral do governo em atingir a base da pirâmide. De um lado, o governo quer que o subsídio favoreça o deslocamento do mercado imobiliário para faixas de baixa renda, onde obtém maiores dividendos políticos, enquanto o mercado quer aproveitar o pacote para subsidiar a produção para classe média e média-baixa, onde obtém maiores ganhos econômicos. Em ambos os casos, o mercado depende do governo para expandir a oferta e não do sistema privado de crédito, como nos países centrais. Ou seja, é um mercado que não é plenamente capitalista e acaba alimentado pelos fundos públicos. De outro lado, o governo depende do mercado para implementar uma política social, pois o sucateamento dos órgãos públicos, das secretarias de habitação e das Cohabs, além de questões ideológicas, impedem uma ação dirigida predominantemente pelo Estado. O perfil de atendimento previsto pelo pacote revela, porém, o enorme poder do setor imobiliário em dirigir os recursos para a faixa que mais lhe interessa. O déficit habitacional urbano de famílias entre três e 10 salários mínimos corresponde a apenas 15,2% do total, mas receberá 60% das unidades e 53% do subsídio público. Essa faixa poderá ser atendida em 70% do seu déficit, satisfazendo o mercado imobiliário, que a considera mais lucrativa. Enquanto isso, 82,5% do déficit habitacional urbano concentra-se abaixo dos três salários mínimos, mas receberá apenas 35% das unidades do pacote, o que corresponde a 8% do total do 123 déficit para esta faixa. Não obstante os problemas de ordem privada, a realização do Programa nos municípios, ao passo que tem por ente executor também as prefeituras municipais, vê-se diante de desvios e inexecuções dessas instituições de direito público. Como acontece em outros projetos do Governo Federal, sendo a administração local a responsável pela escolha e definição dos locais e dos beneficiários, é possível o uso 122 ARANTES, Pedro habitação. Disponível nosso. 123 ARANTES, Pedro habitação. Disponível nosso. Fiori; FIX, Mariana. Como o governo Lula pretende resolver o problema de em:< http://www.psolsp.org.br/capital/?p=423> Acesso em: 2 ago. 2011. Grifo Fiori; FIX, Mariana. Como o governo Lula pretende resolver o problema de em:< http://www.psolsp.org.br/capital/?p=423> Acesso em: 2 ago. 2011. Grifo 86 de interesses e retribuições partidárias ou pessoais nesse processo de particularização das previsões do Programa. Do ponto de vista prático, quando as determinantes do programa não são mitigadas pela existência dos interesses privados, é o comportamento da administração pública que acaba por reduzir a efetividade daquela ideia contida na própria Lei n. 11.977 de julho de 2009, tanto a partir de corrupção administrativa quanto da morosidade na execução do Programa. A partir dessa panorâmica de limites à execução de uma das ações institucionais mais diretamente relacionadas com o direito à moradia, é possível compreender, no contexto do direito à cidade, a carência da atividade do Estado e a crise anunciada na ideia de Estado-Nação. Do ponto de vista unicamente institucional, que depende da conscientização interna da função constitucional do Estado Democrático de Direito, os resultados no tocante ao direito à moradia são tardios e limitados. O pensamento de reconstrução do direito à moradia, inserido no problema urbano e ambiental, ao mencionar a gestão democrática e a participação emancipatória da sociedade abre o horizonte das possibilidades de constituição de uma melhoria nas condições de vida do cidadão, o que acaba sendo, grosso modo, o desejo presente em todas as tentativas já feitas a esse respeito. Sobre esse aspecto, o Programa Minha Casa Minha Vida não pode ser considerado ruim ou inapropriado, mas limitado e deficiente, justamente porque o problema habitacional vem somado ao direito à alimentação, à educação, ao trabalho. E, diante disso, financiar pressupõe, ainda, determinado poder aquisitivo além, mesmo baixo. Sob esta ótica, mesmo com a implementação das diretrizes da Lei n. 11.977/2009, com nova redação dada pela Lei n. 12.424/2011, que possibilita financiamentos, benefícios e demais formas de se adquirir propriedade (como é o caso da inclusão de um artigo 1240A ao Código Civil- usucapião familiar) o problema do acesso à moradia de qualidade persiste, porque mesmo a previsão legal desconsidera a margem estruturada abaixo dessas condições da lei. É sobre esse 87 aspecto que se evidencia o caráter estrutural e complexo da efetivação equitativa do direito à moradia. Em extrapolando os limites normativos, a realização do direito à moradia parece alçar raízes para além do modelo institucional desenvolvido pelo Estado. Significa dizer, então, que, em relação às diretrizes especificamente voltadas ao problema habitacional, e que pressupõe um vasto contexto de direitos presentes, a solução parece estar radicada na possibilidade de conciliação entre os institutos jurídicos e administrativos e a sociedade. Além disso, não obstante as deficiências práticas de efetivação do direito à moradia, as prerrogativas até então ligadas a esse processo não podem qualificá-lo como uma gerência democrática, justamente por conta da ideia de compartilhamento que essa gerência integrada pressupõe. Assim, emancipação social e gestão democrática das cidades são condições de implementação, do ponto de vista político, do Estado Democrático de Direito. Em sua dimensão prática, diz respeito à condição de sujeito dos agentes sociais. 88 4. CONCEPÇÃO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DO DIREITO À CIDADE NO ESTADO SOCIOAMBIENTAL DEMOCRÁTICO DE DIREITO 4.1 Direito à cidade como um direito fundamental A existência do direito à cidade como direito humano fundamental muito bem representa uma aliança real entre os níveis de fundamentação, concretização e conteúdo dos direitos humanos como representações da dignidade, enquanto processo de reconhecimento das condições de habitação, saúde, saneamento, como determinantes objetivas da interdependência e amplitude dos direitos humanos. Mais do que isso, representa a ratificação da cidadania, que diz respeito, assim, a um vasto sistema de condições de direito e sociabilidade. Não obstante a isso, a ideia de que direitos humanos fundamentais evocam transcende a uma classificação estanque e emergencial, mas diz respeito a um todo complexo e interdependente, no qual a sonegação de determinadas condições de cidadania, que é a própria dignidade existindo, reduz de plano toda a seara constitucionalista, denunciado a insuficiência de se pensar a justiça social, síntese do fundamento da dignidade e da cidadania, por meio de uma menção taxativa de leis e costumes. Nesse sentido, o reconhecimento do direito à cidade como um direito humano fundamental representa justamente essa materialização que a dignidade necessita para ser objetiva, muito além da mimética rigorosa e formal dos institutos jurídicos. Sob essa ótica, começa a estar representada a dialética entre o fundamento, a realização e os valores que firmam os direitos humanos fundamentais em geral e fazem do direito à cidade uma determinação histórica que surge como a exposição de uma racionalidade estabelecida no tempo e no espaço. Não significa, porém, que o traço fundamental da dignidade seja, nesse sentido, uma exterioridade histórica, volátil e atualizável. O que se atualiza de acordo com o tempo e o espaço são as determinações objetivas, a realização material da dignidade da pessoa humana. Em si, a dignidade é uma invariável justaposta à Humanidade, justamente por representar uma universalidade sem 89 conteúdo, o qual é dado mediante a menção a valores e estruturas da sociedade, mediante a formação de direitos que, representando essa dignidade, são fundamentais à existência histórica e temporal do ser humano. Todavia, não obstante à existência de uma consciência que ratifica a necessidade de se pensarem mecanismos de transição do problema ambientalhabitacional para a seara da efetividade, [...] na maioria das vezes, não há um projeto de cidade contemplado no Plano Diretor Urbano e perseguido por todo o ordenamento jurídico local. O projeto existente, além de ignorar a realidade, desrespeita normas hermenêuticas de construção de um ordenamento jurídico eficaz. É apenas fiel às normas da cidade clássica, aos interesses das elites dominantes e à 124 prática de exclusão social. Assim sendo, a previsibilidade positiva do sistema jurídico como um todo e as ideologias que subjazem à estrutura positiva dos direitos humanos fundamentais não são suficientes para qualificar a qualidade de vida, na forma da proteção e prevenção das agressões aos recursos naturais e à organização do contexto habitacional urbano. Destarte, muito mais do que mencionar a existências de fórmulas objetivas da dignidade e dos direitos humanos como resposta à atividade do Estado e dos regimes de exceção, a atuação do Poder Público e da sociedade deve levar em consideração que reconhecer e realizar o direito à cidade é uma maneira direta de se atuar no terreno dos direitos humanos fundamentais.125 É diante do cenário geral de supressão dos direitos fundamentais que, especificamente, a precarização histórica do direito à cidade, desde a matriz industrial até a formação das novas tecnologias que, alheias ao movimento de efetivação dos direitos, acabam por potencializar as formas de segregação social, foi determinante para o surgimento de classes absurdamente distintas presentes no mesmo cenário urbano. 124 RECH, Adir Ubaldo. A exclusão social e o caos urbano: Um fato cuja solução também passa pelo direito como instrumento de construção de um projeto de cidade sustentável. Caxias do Sul: Ediucs, 2007, p. 215. 125 ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 2003. 90 Assim, diante do reconhecimento da imperatividade da dignidade humana frente à constelação de direitos, a conciliação entre um desenvolvimento sustentável que possibilite um crescimento econômico-social condizente às formas de proteção e preservação ambiental, juntamente com o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle e distribuição das ocupações urbanas, é condição sem a qual a dignidade humana permanecerá enquanto universalidade pura, imanência sem conteúdo. Do ponto de vista filosófico, o fundamento do direito à cidade está compreendido na existência de valores que vão além dos interesses imediatos e particulares, de modo a não se prenderem à forma estática das leis e costumes; no que se refere à realização, o direito à cidade não é senão a aparição histórica de determinantes da dignidade que, aliadas à temporalidade e o contexto, estabelecem a união da universalidade com a existência particular; além disso, a axiologia vai representar a síntese entre a universalidade e a realização, enquanto conteúdo da dignidade humana. Assim, o reconhecimento do direito à cidade acaba por sedimentar-se, por um lado, a ideia de uma aliança objetivo entre categorias da própria realidade humana, como é o caso do fundamento, da realização e dos valores. Doutra banda, representará uma mudança estrutural objetiva na forma como que a dignidade é exercida, que é a cidadania. Dessa atuação sistêmica, porque diz respeito à atenção a um conjunto de direitos que acabam por formar o contexto urbano, depende a realização da dignidade da pessoa humana e representa, então, num sentido mais delimitado, uma atividade em relação ao sistema ambiental e habitacional. Num sentido mais amplo, refere, até mesmo, o esquema democrático do Estado de Direito, enquanto representação de uma forma igualitária de se pensar as instituições e a sociedade. Rawls, quando pontua a formação de um ambiente comum de cidadania e democracia, depõe. Ao dizer que um povo tem um governo democrático constitucional razoavelmente justo (embora não necessariamente justo por completo) 91 quero dizer que o governo está eficazmente sob seu controle político e eleitoral, que responde pelos seus interesses fundamentais e que os 126 protege como especificado em uma constituição escrita ou não-escrita. Essa menção à filosofia política de Rawls127 serve como pano de fundo para a ideia que une a democracia à existência real de uma constituição, sobretudo a partir dos eventos constitucionais (neoconstitucionais) do segundo pós-guerra, conforme refere Carbonell.128 Sob essa perspectiva, a integração do direito à cidade como direito fundamental poderia pressupor uma inclusão na Constituição nacional. Mais do que somente uma incorporação constitucional, trata-se de uma filiação a todo o arcabouço do Estado de Direito, significando, assim, que “los poderes públicos son conferidos por la ley y ejercitados em las formas y com los procedimientos legalmente estabelecidos.”.129 Já sob essa perspectiva, a inclusão do direito à cidade como direito fundamental, cuja abrangência conceitual vai além da particularidade jurídica do texto constitucional, representaria uma extensão real do Estado de Direito como reflexo objetivo no cotidiano social, justamente para superar aquela versão civilista dos regramentos sociais. Dessa forma, cabe ao Estado, a partir de sua tarefa institucional, uma responsabilidade direta na formação de ambientes organizados e com condições básicas de exercício da cidadania. Dessa forma, a teórica superação daquela tradição civilista e positivista, sobretudo realizada sob a égide do Estado de Direito e nova formação constitucional do segundo pós-guerra, pressupôs também outra forma de superação, desta vez pontuada a partir da menção a novas formas de garantir e efetivar direitos, muito 126 RAWLS, John. O Direito dos povos. Trad. Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 31. 127 Esse contato com a formulação democrática de Rawls, ainda que aparente um distanciamento objetivo das estruturas de democracia que formam a experiência de países latino-americanos, como o Brasil, serve como ponto de partida referencial para o pensamento da política representativa de nosso regime democrático. 128 CARBONELL, Miguel. Nuevos tiempos para el constitucionalismo. In: CARBONELL, Miguel. (Editor). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 9. 129 FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del estado de derecho. In: CARBONELL, Miguel. (Editor). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 13, grifo do autor. 92 além de uma restrição às normas positivamente firmadas. Assim, o que ocorre é também uma reformulação da filosofia da legitimidade, classicamente (positivismo) atrelada à existência de leis. Entretanto, se por um lado a existência de direitos humanos fundamentais vai além das previsões legais, por outro o seu reconhecimento constitucional firma as bases da possibilidade de o direito à cidade ser encarado como matéria urgente e sem a qual não é possível falar em interdependência e coexistência de direitos fundamentais. Nesse mesmo rol, por exemplo, a inclusão recente do direito à alimentação como direito humano fundamental (Emenda Constitucional n. 64, de 4 de fevereiro de 2010130) representou o reconhecimento de um direito inalienável e inerente à constituição material da dignidade. Sob essa mesma prerrogativa, a justificação do direito à cidade teria, com a sua inclusão no rol dos direitos fundamentais, uma relação direita entre a opção democrática e jurídica da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a demandas oriundas dos contextos sociais. Assim, como depõe Sanchis, se o Estado constitucional é reconhecido como “a melhor a mais justa forma de organização política”131, então essa existência real, ainda que formadas as bases organizacionais e um rol não taxativo de direitos fundamentais, dirá respeito a uma dialética da reciprocidade, cuja comunicação põe em contato as determinações da sociedade civil e a tarefa institucional, originariamente demarcada nessa mesma Constituição. Nesse sentido quando a regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, feita pela Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2011, especificou diretrizes segundo as quais as ordenações irregulares pudessem ser repensadas e, doutra banda, as novas formações tivessem a possibilidade de serem ordenadas conforme planos diretores eficazes, obteve-se um primeiro marco sócio-jurídico de justificação do direito à cidade como 130 BRASIL, Congresso Nacional. Emenda Constitucional n. 64, em 4 de fevereiro de 2010. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc64.htm>. Acesso em 09 mar. 2011. 131 SANCHIS, Luis Prieto. Neoconstitucionalismo y ponderacion judicial. In: CARBONELL, Miguel. (Editor). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 123 et. seq., tradução livre. 93 um direito fundamental. Nesse mesmo sentido, a demarcação da responsabilidade municipal pela produção de uma gestão local que vislumbrasse o direito à cidade a partir das determinantes da sociabilidade e de um meio ambiente ecologicamente equilibrado (plano gestor eficaz) deu vistas à implementação ordenada da possibilidade do bem-estar e da qualidade de vida. Entretanto, a forma com que o parcelamento e loteamento dos terrenos urbanos é feita pela administração pública municipal deixa de lado a concepção de que, desde a previsão constitucional, o direito à cidade deve ser encarada como uma determinante dos direitos de igualdade e liberdade. Pela forma com que é feito, essa divisão material em lotes, sobretudo nas áreas economicamente mais rentáveis (rentabilidade privada), essa segregação não passa de um meio público e gratuito de incentivo à atividade privada, objeto de especulações imobiliárias que extenuam o sentido social e funcional que as cidades possuem. Ou seja, a conduta institucional abre as portas para a dinâmica capitalista que tornou a especulação imobiliária um novo nicho de acumulação e lucro. Sob essa nova dinâmica, não é possível referir a eficácia real dos institutos jurídicos em relação ao direito à cidade, cuja margem interpretativa restou prolongada ao ponto de abarcar formas de atenção aos centros urbanos totalmente dissociados da postura democrática e social que, desde a Constituição, o Estado brasileiro assumiu. Isso representou a menção teórica do direito constitucional como um todo e, entretanto, a adoção de uma postura civilista que se pensava ter sido superada.132 Diante disso, o reconhecimento do direito à cidade não refere senão a superação radical e prática dessa argumentação pragmática e cujos interesses não operam qualquer filiação real (objetiva) aos institutos constitucionais. Nesse sentido, é totalmente plástica a existência de princípios e normas que cogitam a implementação de um direito à cidade pautado na sociabilidade e na justiça social. Nessa seara, não existe senão uma conservação histórica da ideia neoliberal de 132 FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 12 et. seq. 94 propriedade, sem qualquer menção aos princípios coletivos que precisam reger a dinâmica social. Entretanto, para Fernandes, É fundamental que nessa equação entre escala, padrões e direito haja também uma reflexão crítica sobre os tipos de direitos a serem reconhecidos. Problemas coletivos requerem soluções coletivas, sejam elas soluções urbanísticas ou jurídicas. Não há como enfrentar a escala do problema de titulação no Brasil com o tratamento individualizado que tem 133 sido dado a ele. Nesse contexto, a matriz positivista que permeou a ideologia civilista e as formas de se tratar a propriedade não poderá compor mais o mote teórico que embasa a necessidade de se pensar o direito à cidade como um direito humano fundamental, de cuja existência depende um novo fomento à atividade institucional e social. Grimm, quando analisa os empecilhos de ordem estrutural e institucional, que já na formação dos direitos sociais europeus denegavam o caráter prático desses direitos, localiza uma forma escusada de mitigar a efetividade jurídica e social de direitos, ou seja, a existência de um poder social atuante e forte, mesmo diante da liberdade do poder estatal.134 No Brasil, a formação de muralhas privadas em torno da possibilidade de um ambiente social coletivo e com condições universais de comunhão de direitos e garantias fez com que aquela efetividade dos direitos sociais (daqueles que já fazem parte do rol constitucional) fosse suplantada pela possibilidade individual de inserção na dinâmica capitalista da produção e consumo. O poder privado tomou para si a tarefa de, mediante uma alta contrapartida dos sujeitos, implementar algumas condições pela quais as atividades de lucro não parecessem tão perversas; a partir dessa lógica é que a forma de loteamentos e venda de terrenos urbanos, cuja existência, ao contrário do que se podia prever a partir das menções constitucionais, acaba por reduzir a possibilidade de qualquer forma de justiça social ser realizada por meio da efetivação do direito à cidade. 133 FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 17, grifo nosso. 134 GRIMM, Dieter. Constituição e política. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 249 et. seq. 95 Entretanto, em relação àquela delegação ao indivíduo, o provimento das condições de existência do próprio direito à cidade não trata somente de uma responsabilização atomizada, que identifica nos indivíduos isolados os únicos agentes no processo de reabilitação habitacional e ambiental. Sobretudo, é inerente ao estágio democrático e social do Estado a responsabilidade com os institutos jurídicos e políticos de efetivação de uma sociedade equilibrada, tanto do ponto de vista do acesso à moradia quanto do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Nesse sentido, ainda que não se reserve como o único responsável pelo desenvolvimento na sociedade, o sujeito, ao se tornar coletivo tem, diante do Estado Democrático de Direito, poder deliberativo, sobretudo para reivindicar as condições de, por exemplo, uma cidade ecologicamente equilibrada. Não basta, assim, somente uma justificação político-filosófica, mas é necessário o sentimento social de que determinada norma ou comportamento institucional realmente corresponde a uma formação na sociedade. Para Habermas, Mesmo com toda a autoridade que as ciências possam reclamar para si nas sociedades modernas, as normas jurídicas já não ganham legitimidade pelo fato de os seus significados serem especificados, os seus conceitos explicados, a sua consistência provada e os seus motivos de pensamento uniformizados. Podemos concluir que no processo de validade póstradicional do direito, em princípio, as normas perderam no direito positivo o processo de validade habitual. As diferentes proposições jurídicas têm, por isso mesmo, que ser fundamentadas como parte integrante de uma ordem 135 jurídica tornada, em resumo, compreensível a partir de princípios . A partir desse contexto, o reconhecimento do direito à cidade como direito humano fundamental não designa apenas um alargamento formal de inclusão quantitativa de um novo rol de direitos sociais. Quer dizer, sobretudo, um salto qualitativo na dinâmica da exigibilidade de direitos e, por uma questão de coerência, em uma nova formação que tem em vista princípios que são inerentes aos direitos notadamente fundamentais, ou seja, de cuja existência real está condicionada a um meio mais amplo de existência, em que coexiste a interdependência e a indivisibilidade de direitos humanos fundamentais. Trata-se, assim, de um processo que faz uma leitura social, mas que, por outro lado, não age unilateralmente sobre a sociedade. 135 HABERMAS, Jürgen. Direito e Moral. Instituto Piaget: Lisboa, 1986, p. 28-29. 96 Sob essa ótica, reconhecidos os direitos fundamentais sociais de habitação, trabalho, lazer, e está pressupondo a existência de um ambiente capaz de atender essas condições da cidadania. Por outro lado, não é possível operar a integralidade de direitos entre aqueles elencados e o direito à cidade, uma vez que este último não é tão somente a somatória dos direitos fundamentais já reconhecidos, mas uma união dialética que, depois de ser adotada, tem sentido a partir de uma operacionalização universal da tarefa institucional e social. Assim sendo, a existência de um direito fundamental à cidade alude um contingente de direitos que, espacialmente coabitam os centros urbanos, e cuja execução depende de medidas mais amplas, com vistas não somente à realização deste ou daquele direito, mas que relacione as múltiplias formas de direitos existentes com o reconhecimento do caráter fundamental que a atenção à cidade requer. Dessa forma, essa ideia de que as condições da sociabilidade e, entre elas, o provimento de uma cidade ecologicamente preservada e equilibrada, com vistas à formação de um país que represente, de fato, um desenvolvimento sustentável e aplicável, são determinantes que, no tocante à vida particular e individual, devem ser oriundas do exclusivo trabalho do individuo, são ideologias advindas, como se viu anteriormente, da vontade de domesticação capitalista, de uma especifica visão liberal. Nesse mesmo sentido, é possível reforçar a ideia de que a cidade, como formação segregada e privada ou como totalidade, representa um meio artificial de produção da cultura humana, mas que conserva necessariamente uma função socioambiental específica, de cuja existência depende a qualidade de vida e a preservação de todo o planeta. 4.2 O modelo estatal de planejamento e ordenação do espaço urbano e a função socioambiental das cidades Pelas transformações estruturais e diante das opções implementadas no meio urbano, foi sendo sedimentada uma filiação às instituições civilistas de cunho 97 positivista. Tal formação faz, de um lado, que a ordem desenvolvimentista interna não se distancie da dinâmica capitalista de uso dos recursos urbanos como pontos de partida para a produção de riquezas; por outro lado, decorre uma supressão da ideia sustentável e, mais em específico, da função socioambiental que é inerente à formação da consciência e da rotina daquela sustentabilidade. Assim, diante da manutenção do esquema utilitário de exploração da mão-deobra e dos recursos naturais, assentar o direito à cidade sob a égide de uma função transindividual se torna uma tarefa cada vez mais difícil. Os paradigmas arraigados às instituições a ao imaginário psicossocial dos sujeitos sedimenta uma antiga versão teleológica para a cidade, ou seja, mantém a sua tarefa de lugar- arena- do desenvolvimento individual. Entretanto, a cidade tem, indubitavelmente, uma tarefa para além de si, ou, o que é o mesmo, uma função mais ampla do que a simples manutenção do movimento de produção e consumo. Desempenha, assim, uma função socioambiental, vez que não se pode pensar o direito à cidade sem uma menção expressa ao direito ambiental. Preliminarmente, essa relação entre o direito à cidade e o direito ambiental se estriba na impossibilidade de, ausentes os meios seguros e preservados da dinâmica urbana, se ter um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Num outro sentido, a formação do desequilíbrio ecossistêmico de seu por conta das investidas econômicas que, ao tentarem firmar a cidade como um novo e poderoso meio produtivo, implantaram formas alheias à preservação e proteção do meio ambiente. Entretanto, os diálogos acerca de uma aproximação entre a defesa ambiental e as medidas econômicas resultam na produção de pouco conteúdo comum à formação de um desenvolvimento econômico relevante e que preserve o meio ambiente. [...] o pior é que essas duas dinâmicas também não resultam em efetiva integração entre políticas ambientais e políticas econômicas. Uma integração que só pode ocorrer pela incorporação das restrições e oportunidades econômicas nas políticas ambientais e das restrições e 136 oportunidades ambientais nas políticas econômicas. 136 VEIGA, José Eli da. Cidades imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula. 2.ed. Campinas: Editora Autores Associados, 2003, p. 168. 98 Também nesse contexto, o desenvolvimento sustentável passa a representar a conciliação que é possível estabelecer entre desenvolvimento e preservação do meio ambiente, ao passo que muitas das condições de vida estão atreladas à manutenção de um habitat preservado, tanto no que se refere à vida dos sujeitos quanto ao desenvolvimento humano de toda uma nação. Algumas capacidades, todavia, são essenciais para o desenvolvimento humano, tais como uma vida longa e saudável, ter conhecimento e ter acesso a recursos necessários para viver uma vida decente. No entanto, ao lado dessas capacidades chamadas essenciais, as pessoas também valorizam a atividade política, social, econômica e cultural, o sentido de 137 comunidade [...]. Assim, a manutenção da qualidade de vida que tem por instrumento a preservação do meio ambiente diz respeito não somente a uma opção particular delimitada, mas tem como horizonte a mudança estrutural na forma de vida, a partir do reconhecimento da sustentabilidade como forma de continuidade do desenvolvimento. Vigente essa estrutura aparentemente sem possibilidade de síntese, a função socioambiental é justamente a superação de um diálogo unilateral e particular, cuja estrutura esteja radicada no interesse exclusivista e utilitário. Sob esta ótica, considerar, como acontece, a preservação dos recursos naturais com único desejo de reservar uma suposta matéria-prima futura não condiz com a real intenção de se formar a qualidade de vida e bem-estar. Essa função socioambiental está ligada à inteiração do direito à cidade numa dinâmica mais ampla, cujo escopo é, sobretudo, a manutenção no tempo de condições à execução de um vasto leque de direitos. Veiga, novamente na tentativa de resguardar a possibilidade de intercomunicação entre as políticas econômicas e as ambientais, tendo em vista, justamente, a implementação daquela função socioambiental, depõe. 137 SILVA, Silvana dos Santos. A arbitragem como instrumento de desenvolvimento. In: BARRAL, Welber. PIMENTEL, Luiz Octávio. (orgs.) Teoria jurídica e desenvolvimento. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 200. 99 É curioso o contraste que domina a cena internacional sobre os rumos de ação que poderiam tornar mais sustentável o processo de desenvolvimento. Há amplo consenso sobre a indispensável necessidade de incorporar tanto as restrições e oportunidades econômicas nas políticas ambientais [como 138 vice e versa]. Genericamente, o diálogo acerca das funções que a cidade exerce como lugar comum não pode ser estabelecido sem mencionar essas duas grandes estruturas cujo cunho político é evidente: a economia e o ambiente. Entretanto, sob o ponto de vista específico da inserção da cidade na dinâmica ambiental, toda a movimentação constitucional converge no sentido da aproximação teórica dos diálogos juntamente com a mudança na praxe dos regramentos e das atividades da sociedade civil e do Estado. Assim, a função socioambiental registra um prisma fundamental a partir do qual a condição de desestrutura social é contida axiológica e efetivamente. Estando os institutos normativos de direito à cidade imersos nessa ideia, a Constituição, a Lei n. 10.257/2001 e os Planos Diretores atuam como determinantes empíricas da vigência dessa função socioambiental no âmbito das comunidades urbanas. Sob a ótica da dinâmica preestabelecida desde a Constituição Federal brasileira de 1988 (art.s 182, 183) até a regulamentação da Lei n.° 10.257/2001, a atividade privada em relação aos recursos naturais e a estrutura espacial das cidades jamais pareceu estar diante de um verdadeiro empecilho à consecução de um desenvolvimento econômico forte, demonstrando, no sentido prático, sua condição alheia à função socioambiental. Entretanto, como referido, o reconhecimento e observação da função socioambiental da cidade, ao servir como pano de fundo teórico, pode ser percebido a partir de dois prismas fundamentais, já brevemente considerados: o fim utilitário (reserva de matéria prima e mão-de-obra) e a preocupação com a perpetuação racional e segura da espécie humana. Necessariamente, a execução das diretrizes que se filiam à segunda razão é que fundam o real sentido da função socioambiental. Ou seja, o fim em si mesmo 138 VEIGA, José Eli da. Cidades imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula. 2.ed. Campinas: Editora Autores Associados, 2003, p. 183. 100 que a formação natural do mundo contém registra a possibilidade de conciliação entre a existência da racionalidade e consciência no mundo e dos recursos naturais que subsidiam aquela existência. Diante disso, a problemática ambiental, como firmação teórica da necessidade de preservação ambiental com qualidade de vida e bem-estar, que serve como base da ideia de um direito fundamental à cidade, tem como objeto real a pressuposição racional que ultrapassa o escopo meramente prático ou utilitário, cuja matriz é a firmação de uma reserva natural de exploração. Tal empreendimento é ratificado pela formação constitucional vigente que, mesmo teoricamente, afirma princípios e diretrizes incompatíveis com o ideal presente naquela primeira razão da preservação. Diante dessa caracterização do paradoxo da função socioambiental, vale a análise realizada por Luís Roberto Barroso139 em relação à formação histórica e estrutural da relação dos entes públicos e privados com a lei instituída. Em relação à observação da função socioambiental e das demais diretrizes legais no que diz respeito ao direito à cidade e ambiental, a existência de regulamentação legal já não é mais suficiente para agregar efetividade àquelas disposições, gerando, como descreveu Barroso140, uma nova fase institucional em relação ao Direito que está aí. Não é a lei, portanto, uma determinante eficaz à consideração de normas a serem seguidas. Dessa forma, a função socioambiental, princípio inerente tanto ao direito ambiental quanto ao direito à cidade, é descaracterizado em meio à conduta privada e pública, cujas escolhas de sentido político e econômico fazem com que seja gradualmente mitigado, quando não totalmente prescindido. Sob uma ótica mais genérica, as posturas políticas e econômicas, basicamente de ordem privada, mas ratificadas pela intervenção simbólica do Estado, atacam diretamente normas de 139 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 303 et. seq. 140 “A própria lei caiu no desprestígio. No direito público, a nova onda é a governabilidade. Fala-se em desconstitucionalização, desregulamentação. No direito privado, o código civil perde a sua centralidade, superado pelos múltiplos microssistemas [...] as formas abstratas da lei e a discrição judicial já não trazem todas as respostas.” BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 306. 101 direito constitucional, com uma explicitada descaracterização dos institutos democráticos e das garantias de igualdade e liberdade. Com esse cenário, providenciais são as observações de Grimm: Constituições podem bloquear a política. [...] Contudo, esse bloqueio não tem seu fim em si mesmo. As constituições devem bloquear aquela política que considera uma comunidade ilegítima ou prejudicial em virtude de suas experiências históricas e suas noções de valor reinante. Em contrapartida, elas devem favorecer aquela política, desejada conforme o objetivo e o 141 método, por meio de diretrizes materiais e estruturas organizacionais. Se a análise de Grimm se volta à perspectiva do direito germânico, o cenário nacional registra materialmente uma espécie de inversão daquele bloqueio mencionado. A desatenção à função socioambiental e dos princípios constitucionais opera um empecilho político-econômico à Constituição, gerando, assim, um retalhamento prático na ordem das previsões do Estado. Dessa forma, a formação, por exemplo, de planos gestores que prescindem do conteúdo axiológico e fundamental e resistem suas estruturas apenas sob uma visão operacional e econômica, condição para a manutenção do poder político, faz com que se opere um bloqueio à consecução, de um lado, da função socioambiental real e, doutra forma, um empecilho à própria ordem constitucional. Ainda mais que, [...] o Município, sendo integrante do Estado brasileiro, atrelado está aos princípios fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal [...]. Sendo assim suas ações devem ser norteadas [e] ter por objetivos, dentro de sua esfera de competências, a busca da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a promoção do bem a todos os seus munícipes, além de ter de possuir uma ação necessariamente conectada com os Direitos e 142 Garantias Fundamentais [...]. Diante disso, o exercício público nas esferas do poder é uma pressuposição latente. O Estado, em sua indivisibilidade de poder, tem como tarefa exercitar a governabilidade a partir da Constituição vigente, adequando sua prestação às 141 GRIMM, Dieter. Constituição e política. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 125-126. 142 RODRIGUES, Hugo Thamir. O município (ente federado) e sua função social. In: LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge Renato dos (orgs). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004, p. 1027-1026. 102 circunstâncias sociais, aos objetivos nacionais e planetários, sob a égide dos conceitos políticos de liberdade e igualdade. Entretanto, a atenção, por exemplo, à função socioambiental das cidades, seja na profusão dos regramentos municipais, seja nas demais ordens infraconstitucionais, leva em consideração um imaginário coletivo de condições àquela atenção socioambiental. Sob essa visão, que aos poucos vai se tornando irreversível, a pergunta pelo direito à cidade e ao meio ambiente é secundária, sobretudo a partir da menção da função socioambiental; a primeira grande motivação dos loteamentos, dos mapeamentos de áreas seguras é a atenção aos interesses da economia local, como determinantes para a manutenção de um status político específico. Pela análise dessa formação ideológica, é perceptível a localização, na contramão da função socioambiental, a vigência de uma espessa estrutura impeditiva da formação real de uma cidade ambientalmente preservada, segura, que garanta, de um lado, o bem-estar e a qualidade de vida e que, num segundo sentido, desenvolva essa perspectiva com vistas a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Sobre essa menção da ideologia que subjaz à observação da função socioambiental e todo o direito à cidade, Lefebvre depõe, não deixando de mencionar uma metodologia própria para o discurso do direito à cidade. É indispensável a crítica radical tanto das filosofias da cidade quanto do urbanismo ideológico, e isso tanto no plano teórico quanto no plano prático. Essa crítica pode ser tomada por uma operação de salubridade pública. Entretanto, não pode ser realizada sem grandes pesquisas, sem 143 análises rigorosas, sem um estudo paciente dos textos e pretextos. O que Lefebvre discute é a possibilidade de a estrutura ideológica que fornece as bases mentais para a conduta pública ser posta em crise, mediante uma análise mais aprofundada, com a superação do paradoxo objetivo entre a forma dos institutos constitucionais e a sua existência material. Nesse sentido, o artigo 170 da vigente Constituição da República Federativa do Brasil é bastante claro. 143 LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Trad. Rubens Frias. São Paulo: Centauro, 2001, p. 49, grifo nosso. 103 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional;II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais;VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de 144 órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. A possibilidade da propriedade privada e dos bens citadinos como um todo estão em dependência de atenderem suas funções sociais e socioambientais. Sobre esse pressuposto, o inciso VI, com redação dada pela Emenda Constitucional 42/2003, prevê uma atenção especial à problemática ambiental, registrando uma coerência específica em relação ao artigo 225145 da mesma Constituição, que estabelece o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, 144 BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 14 de maio de 2011. 145 BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 14 de maio de 2011. 104 provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. § 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.§ 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais. § 6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas. O artigo defere ao Poder Público e à coletividade como um todo a tarefa de preservar e proteger a integridade dos contextos ambientais naturais, que existem em sintonia com as formações urbanas e os meios de vivências mais artificiais. Essa incumbência conjunta, sob a égide do princípio da função socioambiental da cidade, registra justamente uma titularidade transinstitucional, cujo interesse se baseia, então, na ideia de que a segurança ambiental das cidades é uma determinante geral dos povos, o que acaba por extenuar a ideia de que o interesse privado (ou mesmo o interesse institucional) possa se pautar unicamente pela ideologia de mercado. Tamanha titularidade ratifica o perfilhamento universal do problema socioambiental e, nesse sentido, a função socioambiental é uma determinante de toda uma maturação sócio-jurídica do problema ambiental e citadino como um todo; cumula para si, então, dois direitos emergenciais e correlatos, como o são o direito à cidade e o direito ambiental. Assim, diante da ideia de que a propriedade privada não pode mais ser vista, sobretudo a partir do ideal que subjaz no Direito desde a Constituição Federal de 1988, como algo isolado e fora do mundo, depõe Grau: [...] a admissão do princípio da função social (e ambiental) da propriedade tem como conseqüência básica fazer com que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente (aspecto positivo), não bastando apenas que não seja exercida em prejuízo de terceiros ou da qualidade ambiental (aspecto negativo). Por outras palavras, a função social e ambiental não constitui um simples limite ao exercício do direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer tudo o que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. Diversamente, a função social e ambiental vai mais longe e autoriza até que se imponha ao proprietário comportamentos positivos, no exercício do seu direito, para que 105 a sua propriedade concretamente se adeqúe à preservação do meio 146 ambiente. A atenção dada pelo então ministro do Supremo Tribunal Federal à ideia de que o exercício da função socioambiental não é tão somente uma limitação ao uso e gozo do bem se insere na dinâmica do sedimento histórico do direito à propriedade, sobretudo acentuada nos últimos séculos. Ou seja, depois de um longo período de aferimento de garantias e proteções à propriedade privada e, sobretudo diante dos contextos contemporâneos, é necessária a formulação de pensamentos que lhe transcendam o sentido, justamente porque a vida coletiva (na cidade) só é possível pelo uso racional do bem particular. Entretanto, o uso indiscriminado e totalitário da propriedade continua sendo uma determinante do processo de degradação ambiental e de má formação da ordem urbana. Apenas de estar constitucionalmente referida e, constantemente, sendo firmada como condição da preservação da cidade e do meio ambiente, a função socioambiental não está totalmente inserida na dinâmica do pensamento jurídico nacional. A forte manutenção da tradição civilista ainda faz com que o Direito lance olhar mais atentos às determinações do Código Civil do que propriamente para as normas de direito constitucional. Nas palavras de Vigliar, [...] o problema reside na aparente vinculação que inconscientemente se faz quando da consideração da expressão direito, como algo que pertence ao plano individual. Essa visão em particular deve ser suplantada, diante da expressiva evolução que a sociedade vem experimentando e da aparição e das novas relações que escapam aos modelos tradicionais e que também necessitam de tutela jurídica (a transmigração do individual para o 147 coletivo). Assim, diante dessa vigência arraigada tanto na condição individual do cidadão quanto na ideia que antecede a atividade do Estado, a menção à função socioambiental se forma como uma redução da capacidade particular de existir 146 GRAU, Eros Grau. Princípios fundamentais de direito Ambiental. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, n. 02., 1997, p. 35, grifo nosso. 147 VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Tutela jurisdicional coletiva. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 59, grifo nosso. 106 enquanto propriedade, o que acaba por assentar aquela preocupação de Eros Grau em relação ao por que da função existir. Num sentido mais radical, a iminência da redução dos direitos sobre a propriedade privada acaba se tornando mais temível do que os efeitos da degradação ambiental e da denegação do direito à cidade. Essa percepção acaba, então, por denunciar que a superação da matriz civilista foi parcial ou ilusória, e que a parte acaba sendo tomada como anterior à determinação da totalidade; em termos específicos, que o direito ao meio ambiente e à cidade é relegado a uma condição secundária em função do “impenetrável” direito à propriedade.148 Em relação a essa versão civilista que permeia todo o ordenamento jurídico e cujos efeitos incidem diretamente na dinâmica urbana, dificultando especificamente a atenção à função socioambiental, Fernandes é bastante claro. É dessa tensão entre civilismo e urbanismo tecnocrático que se alimentam a informalidade urbana e a exclusão socioespacial- e é nesse contexto que o direito tem sido um dos principais fatores que produzem a ilegalidade urbana. Longe de ser inofensiva, a omissão estatal e/ou a ação estatal tecnocrática têm servido para determinar o padrão excludente da 149 urbanização no Brasil [...]. Diante disso, a atividade institucional e social acaba por ratificar a estratificação e injustiça social, perpetuando a ideia de que é no plano particular que o direito à cidade e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é firmado. Contrária a isso, a função socioambiental da cidade se insere na dinâmica da cidade como um direito coletivo. Como determinante jurídica, localiza de um lado a incompletude 148 das tentativas políticas e sociais de implementação dessa Lênio Streck, ao considerar sobre a vigência atual de uma interpretação e atividade radicada em antigos preceitos, depõe. “Há um certo fascínio pelo Direito infraconstitucional, a ponto de se ‘adaptar’ a Constituição às leis ordinárias...Enfim, Continuamos a olhar o novo com os olhos do velho [...]” Essa existência que depõe contra a formação de uma aliança entre os contextos sociais e a evolução do próprio Direito faz com que a dimensão prática das reformas e princípios jurídicos seja mitigada em detrimento de um assento pontual às instituições positivas, sem a possibilidade de a função socioambiental, por exemplo, que compreende uma superação do civilismo, possa ser realizada. (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 17). 149 FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio. ALFONSIN, Betânia. (orgs). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 9. 107 mentalidade.150Trata-se, assim, de uma investida jurídica frente ao uso da cidade como meio irrestrito do pensamento individualista e, sobretudo, economicamente instruído. Segundo depõe Osório, toda a reestruturação nacional e internacional do direito à cidade, desde a VI Conferência Brasileira de Direitos Humanos, em 2001, até a Carta Mundial do Direito à Cidade151152, teve como escopo sedimentar uma versão mais jurídica para a problemática do direito à cidade. Em relação à função socioambiental, tem em vista um “meio ambiente sadio, ao desfrute e preservação dos recursos naturais”, sob a égide do avanço dos índices no “fluxo migratório campo-cidade”.153 Nesse sentido, ao ser firmado como direito público, o direito à cidade tem na função socioambiental uma determinante objetiva desse caráter. Ou seja, o objeto a que se propõe a função socioambiental é justamente a conservação dos meios coletivos de vivência urbana, sobretudo sob a perspectiva das condições naturais e seus recursos. Dessa forma, a ideia socioambiental demanda, por um lado, a conduta consciente da coletividade e do Estado em relação às determinações do direito ambiental e do direito à cidade. Significa que a perspectiva estrutural da função socioambiental tem um caráter descritivo, que se relaciona àquele modus operandi esperado de uma coletividade racional; por outro lado, e diante da 150 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à cidade como direito humano coletivo. In: FERNANDES, Edésio. ALFONSIN, Betânia (orgs). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 193 et. seq. 151 Disponível em: http://5cidade.files.wordpress.com/2008/04/carta_mundial_direito_cidade.pdf. Acesso em 21 mar. 2011. 152 O Direito à cidade sustentável é definido pela Carta Mundial do Direito à Cidade como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social; é um direito que confere legitimidade à ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado. O Direito à cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente e inclui direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Inclui também o direito à liberdade de reunião e organização, o respeito às minorias e à pluralidade ética, racial, sexual e cultural; o respeito aos imigrantes e a garantia da preservação e herança histórica e cultural. A partir da expressão constitucional acima referida é que se perfaz a concepção jurídicoconstitucional do direito à cidade. Este direito à cidade decorre da dignidade humana, contempla os desafios apontados na Agenda Habitat e na Agenda 21, é informado por princípios próprios e constitui-se em um direito fundamental. Disponível em: http://5cidade.files.wordpress.com/2008/04/carta_mundial_direito_cidade.pdf. Acesso em 21 março de 2011. 153 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à cidade como direito humano coletivo. In: FERNANDES, Edésio. ALFONSIN, Betânia (orgs). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 193-195. 108 observação desse caractere anterior, a função socioambiental se torna imperativa frente às tentativas de registrar o direito à cidade e o direito ambiental como ideias fundamentais. Ou, e que é o mesmo, a verdadeira filiação ao direito à cidade a ao direito ambiental como um todo requer a ratificação prática da função socioambiental. O mais importante desses princípios é certamente o da função socioambiental da propriedade e da cidade, que, por usa vez, é uma expressão do princípio de que o urbanismo é um função pública no sentido mais amplo, isto é, a ordem urbanística não é determinada tão-somente pela ordem dos direitos individuais, não sendo reduzível tão-somente à 154 ordem dos interesses estatais. Essa menção à função essencialmente pública que o direito à cidade compreende registra novamente o âmbito em que tanto esse direito quanto o direito ambiental devem ser situados. O caráter público dá à cidade e ao meio ambiente uma posição diferençada em relação ao Estado democrático e às investidas aleatórias da sociedade civil. Já pela suas menções constitucionais a relevância sócio-jurídica de ambos os direitos está sedimentada. No entanto, a perspectiva do público dá ao Estado, enquanto sujeito principal das atividades políticas em relação a esses contingentes, a titularidade para atuar na regulamentação das formas objetivas de se fazer observar a função socioambiental; entretanto, esse protagonismo institucional tem como tarefa mais difícil a implementação de suas políticas no multifacetado terreno da sociedade civil, onde a matriz civilista e as filiações à dinâmica econômica estão sedimentadas. Entretanto, como segue referindo Fernandes, Estudar o Direito Urbanístico do Brasil no século XXI implica várias ordens de articulações básicas. A primeira é o esforço sistemático de interpretação das leis urbanísticas à luz dos princípios próprios do Direito Urbanístico. A segunda é caminhar para além dessa dimensão interna do Direito no sentido da construção de uma hermenêutica para a interpretação dos princípios legais a partir da consideração da análise critica dos 155 processos de produção de leis. 154 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à cidade como direito humano coletivo. In: FERNANDES, Edésio. ALFONSIN, Betânia (orgs). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 11. 155 FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio. ALFONSIN, Betânia (orgs). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 13, grifo nosso. 109 A referência a esses dois pontos estruturantes - interpretação à luz dos princípios e crítica do processo legislativo - diz respeito a uma formação mais integral ou universal de inserção do direito à cidade na dinâmica dos direitos fundamentais. Esse à luz de torna a função socioambiental, princípio magno e específico do Direito Urbanístico, uma pedra de toque imprescindível à análise das ocorrências particulares relativas ao direito à cidade e ao direito ambiental, bem como, num sentido mais crítico-reflexivo, para a formação de toda a preservação e cuidado da cidade e meio ambiente. Se por um lado a função socioambiental será atendida, estritamente, no pensamento e execução dos Planos Gestores, também a origem legislativa das normas de direitos não poderá ser pensada alheia àquela função. Essas duas perspectivas formam, assim, um caminho que, constitucional e infraconstitucionalmente, é possível permear o ordenamento jurídico com as razões do contingente social. Porém, muito mais do que somente uma tarefa que, na dinâmica da divisão das funções do poder, é pensada pelo Estado, a firmação teórica e prática da função socioambiental é um exercício da sociedade, justamente como determinante do ativismo e da democracia. A instituição e exigência no cumprimento de determinantes sociais e ambientais devem, sob pena de se tornar uma imposição, ser reconhecida pela sociedade vigente. Mais do que somente uma menção vaga à necessidade de superação do caráter privado e individual que a cidade contém, O que se propõe na nova ordem jurídico-urbanística no Brasil é que o direito à propriedade não tenha um conteúdo prévio, não tenha nem mesmo uma listagem de critérios a serem obedecidos para se poder dizer que a propriedade cumpre ou não sua função socioambiental [...] é o processo político de elaboração das leis urbanísticas que vai determinar o conteúdo 156 desse direito. 156 FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio. ALFONSIN, Betânia (orgs). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 14. 110 De acordo com essa perspectiva, as inúmeras formações privadas que tornam urbano determinado território não possuem, de imediato, uma caracterização segundo a qual é possível, sem a análise concreta e a inspeção aos direitos que se lhe relacionam, dizer que a função socioambiental está posta. Diante disso, o direito à cidade passa a determinar, mediante a formulação urbanística específica, as vicissitudes reais que permeiam regionalmente as características da cidade, de acordo com os interesses coletivos e institucionais desse centro urbano. Sob esse ponto de vista, o direito individual que a propriedade e a cidade como um todo parece representar passa a ser figurado mediante a menção aos pressupostos públicos, originando, dessa forma, uma filiação mais direta à previsão constitucional. Essa migração para o direito público representa, então, não somente a formação originária das cidades como meios coletivos, mas a incorporação daquela pressuposição na atividade diária do Estado, enquanto executor. Nesse diálogo, Patrícia Lemos refere o aparente embate entre o direito à propriedade privada e o direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sob a égide da função socioambiental. Estabelece. O meio ambiente ecologicamente equilibrado é considerado direito fundamental de terceira geração, mas nem por isso fica abaixo do direito de propriedade, que é de primeira geração [assim] ‘se a vida é um direito fundamental de todos, e se o meio ambiente ecologicamente equilibrado é essencial à sadia qualidade de vida, conclui-se que a sua preservação e defesa é são imprescindíveis para assegurar a saúde, o bem-estar do 157 homem e as condições de seu desenvolvimento [...]. Entretanto, a discussão acerca das dimensões de direitos não representa, conceitual ou materialmente, uma limitação ao cumprimento deste ou daquele direito. Contrariamente, a formação de um complexo de normas e atitudes institucionais e sociais depende do atendimento conjunto às demandas de trabalho, habitação, lazer e, sobretudo a partir do reconhecimento do direito à cidade, e da função socioambiental que desempenha. 157 LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito ambiental: responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 171-172. 111 O jogo metodológico acerca das gerações, ou dimensões de direitos, não é o bastante efetivo ao ponto de gerar hierarquia material quanto ao processo de efetivação das garantias individuais e sociais. Serve, do ponto de vista da teoria jurídica, como uma determinante formal do processo epistemológico e, diante disso, é incapaz de reordenar a ideologia institucional- formal- quando à escolha das medidas a serem atendidas, justamente por conta de a função socioambiental estar intimamente ligada a cada estágio jurídico dos direitos. No que se refere à inserção da função socioambiental da cidade nas discussões jurídicas, Leal Dias depõe. [...] o Princípio da Função Social ambiental da cidade é resultado da competência constitucional da União para instituir diretrizes gerais para o desenvolvimento urbano, sendo que essa política é executada pelos Municípios nos termos das diretrizes traçadas em Lei, hoje positivadas no Estatuto da Cidade, tal política de desenvolvimento urbano possui um viés nitidamente ambiental, pois deve garantir o bem-estar habitantes das cidades o que está em plena consonância com o direito fundamental das presentes e futuras gerações ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, destarte, podemos afirmar que o Estatuto da Cidade está nos limites daquela perspectiva teórica acima enunciada de princípios e regras, figurando como a regra que irá operar a concreção do princípio da função social ambiental da cidade que na relação com o princípio da função social ambiental da propriedade irá assumir uma proeminência hierárquica, uma vez que a propriedade urbana tem os seus contornos traçados nos planos diretores que por sua posição normativa irá extrair o seus fundamentos de validade na diretriz geral do desenvolvimento urbano (Estatuto da 158 Cidade). Sob esta ótica, essa “proeminência hierárquica” não estabelece, como poderia parecer, um tipificação preordenada que relativiza ou mesmo secundaria direitos não diretamente ligados ao direito à cidade e ao planejamento estratégicodeterminações do plano gestor, por exemplo. Diz respeito, assim, à formação de um conteúdo universal e latente à atividade privada e institucional no que diz respeito à vida urbana, mesmo nos objetivos para além da propriedade urbana. Diante disso, a atuação das instituições da sociedade civil e do Estado parte de um pressuposto socioambiental de observância ao seu conteúdo imperativo, e que forma a ideia de que qualquer formação pública ou privada deverá atender a essa determinação principiológica e subjacente. 158 DIAS, Maurício Leal. A função social ambiental da cidade como princípio constitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 565, 23 jan. 2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/6210>. Acesso em: 2 maio 2011, grifo do autor. 112 Nesse sentido, desde a menção constitucional de 1988 acerca dos direitos e garantias individuais e coletivas, até a firmação da Lei n. 10.257/2001 - Estatuto da Cidade - representou a tentativa provisional de ratificar a necessidade de reestruturação dos ordenamentos urbanos a partir da ideia de conservação ambiental. Indiretamente, esse escopo contém a menção a um vasto grupo de direitos que se relacionam com o direito à cidade em sentido restrito, indicando que o desenvolvimento urbano parte da integração entre as formas de vida individual e coletiva da cidade. Enquanto fundamentais, os direitos contêm uma legitimidade constitucional posta, oriunda da integralização normativa da dignidade humana e, com isso, carecem jurídica e socialmente de reconhecimento material e realização. Em face disso, o desafio e a própria atividade da e na cidade dependem da ratificação daquele reconhecimento, gerando, assim, um dos desafios mais iminentes no mundo jurídico e social, qual seja, a conciliação entre o desenvolvimento urbano (também o desenvolvimento nacional como um todo), com a preservação do meio ambiente e a qualidade de vida. 4.3 Os desafios para a nova gestão democrática de acesso à moradia digna com vista às cidades sustentáveis A partir desse aparente embate entre Estado e sociedade, teoricamente superado pela filosofia política e o direito constitucional, nasce a ideia de que, no contexto teórico e prático do direito à moradia, a radical superação dessa dicotomia é a condição de efetividade. Do ponto de vista filosófico, trata-se de uma reinterpretação da dialética do Estado formulada por Hegel, justamente pela pressuposição de uma suprassunção (superação dupla) em que a sociedade civil integra o Estado.159 159 Wolkmer leva em consideração, na análise do coletivismo, a ideia de que o Estado hegeliano prevalece em relação à sociedade civil e ao indivíduo. Entendendo-o como “razão absoluta”, percebe uma conexão entre a entidade suprema e a universalização do sentido particular e singular, o que 113 Entretanto, no Estado Democrático de Direito, de caráter social, essa conciliação diz respeito à afinidade entre previsão constitucional, que além de garantias aos cidadãos dispõe sobre a organização do Estado, e condições de dignidade e sociabilidade permeada pela ideia de gestão democrática. Essas três estruturas, Estado, sociedade e democracia finalizam, então, um ideal intrínseco à realização compartilhada do direito à moradia. Se esta tarefa deve ser, fundamentalmente, do Estado [efetivação da igualdade material], eis que ele é detentor do mandato popular originário para tanto e, sob a perspectiva do contratualismo rosseuaniano, só existe em razão daquelas demandas, portanto, permanentemente vinculados a elas, cumpre perquirir sobre como poderíamos esboçar uma alternativa jurídico-política para efetivamente cobrar e viabilizar o cumprimento destas 160 obrigações do Estado. Essa filiação teórica do Estado às disposições constitucionais, enquanto detentor do “mandato popular”, resultaria, na prática, na formação de um complexo emaranhando de ações conjuntas. Esse compartilhamento, já do ponto de vista interno (ações institucionais entre si) daria conta de projetar a efetivação de direitos sob a perspectiva integradora, e, sobre essa ótica, a partir de algo estruturalmente bem definido. Demandaria, entretanto, como condição da ação, que esse compartilhamento figurasse enquanto prioridade no ato de governar, desde o qual seria possível integrar a comunidade. Porém, no que concerne à crise do Estado-Nação, da ideia de autonomia que se vincula com as demais formações institucionais e não nacionais, e que internamente representa a incompletude na efetivação dos direitos fundamentais, a manifestação mais usual e problemática é a incompletude do discurso acerca da realização dos direitos, redutora cotidiana da possibilidade de atendimento das funções básicas de direito à moradia. acaba por tornar o Estado um centro. Sobre esta perspectiva, não haveria espaço para um compartilhamento direito entre sociedade e Estado, e sim, grosso modo, uma superação daquela neste. WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 160 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 88. 114 A população tem a maior parte de suas expectativas frustradas pela inoperância dos órgãos públicos, que não conseguem realizar suas funções e pelo agravamento das condições econômicas, criando juntos um clima de 161 insegurança que impede a antevisão de um futuro promissor. Nesse sentido, também as medidas institucionais de provimento do direito à moradia tem o seu contexto prático permeado por esta crise global na dinâmica dos Estados. Sobretudo por ser um país com desenvolvimento emergente, o Brasil, como condição de estar inserido na dinâmica mundial de crescimento, adota medidas que lhe aproximam da perspectiva de enfraquecimento de sua forma ativa e, consequentemente, sua inoperância no que tange ao provimento das condições de vida dos cidadãos, identificando um paradoxo estrutural na sociedade mundial. O século XX estabeleceu o regime democrático e participativo como o modelo preeminente de organização política. Os conceitos de direitos humanos e liberdade política hoje são parte retórica prevalecente [...] entretanto, vivemos igualmente em um mundo de privação, destituição e opressão extraordinárias. Existem problemas antigos convivendo com os novos- a persistência da pobreza e necessidades essenciais não satisfeitas, fomes coletivas e fome crônica muito disseminadas [e] muitas dessas privações podem ser encontradas, sob uma ou outra forma, tanto em países 162 ricos como em países pobres. Notadamente, essa realidade que, do ponto de vista da estruturação do Estado e da sociedade, denuncia um erro procedimental na forma de governar coloca o Estado no centro da discussão acerca do ativismo institucional e das escolhas internas para a superação desse modelo de exclusão. Diante desse cenário, o que existe é a presença mitigada do Estado no contexto econômico e, do ponto de vista mais extremado, a ratificação institucional da dinâmica econômica. Diante disso, a premissa de que o mundo é um todo globalizado começa a ser desestruturada, sobretudo diante das chamadas reais de desigualdade e miséria generalizada. Nesse sentido, A globalização é um facto demasiadamente aceite e enraizado para ser reversível em termos do seu impacto unificador ou integrador. As tendências globais recentes estabelecem o domínio inquestionável dos mercados e de sua integração. Segundo Jeffrey Sachs, ‘o capitalismo abrange actualmente cerca de noventa por cento da população mundial, 161 162 AGRA, Walber de Moura. Republicanismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 11. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 9. 115 uma vez que quase todas as regiões do mundo se encontram agora interligados através do comércio livre, de unidades monetárias cambialmente convertíveis, de fluxos de investimento estrangeiro e da consagração política da propriedade privada como motor do crescimento 163 econômico. Sobre esse contexto, a ideia mais iminente é a de um Estado passivo, inativo quanto à realização dos direitos de seus cidadãos. Santos, entretanto, ao versar sobre a crise de atitude do Estado frente à dinâmica global da economia, não deixa de denunciar uma nova forma de interação e conduta institucional, que, aquém de ser deficiente, está amparada na ideologia que há muito permeia dos contextos jurídicos e políticos do país. Sob este aspecto, não há uma falta de atitude do Estado frente ao mundo de economia globalizada, mas uma postura institucional que a ratifica. A desordem automática dos mercados financeiros é a metáfora de uma forma de regulação social que não precisa da ideia de emancipação social para se sustentar e legitimar. Mas, paradoxalmente, é dentro desse vazio de regulação e de emancipação que estão surgindo em todo o mundo iniciativas, movimentos, organizações que lutam simultaneamente contra as formas de regulação que não regulam e contra as formas de emancipação 164 que não emancipam. Essa nova ordem do agir do Estado tende, então, a “atender aos reclamos da finança e de outros grandes interesses internacionais, em detrimento do cuidado das populações cujas vidas se tornam mais difíceis.”165 Assim, o Estado não é uma vítima frente à globalização dos mercados. Contrariamente, como na acepção de Milton Santos, o Estado está imerso nessa globalização excludente e parcial das formas econômicas e políticas, ratificando cotidianamente seus institutos. Em relação ao Estado-Nação, a não existência de limites reais na atuação dos países faz com que se projetem no mundo como potências econômicas ou nações em desenvolvimento emergente, tantas vezes em detrimento dos contextos nacionais de carência na efetivação de direitos. 163 FALK, Richard. Globalização predatória: uma crítica. Trad. Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 237. 164 SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. 3.ed. Rio de Janeiro: 2005, p. 17. 165 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 19. 116 Já nesse primeiro panorama, é difícil conciliar as estruturas necessárias à efetivação de direitos como o direito à moradia, justamente porque a determinante institucional-pública resta reduzida, a sociedade mantém-se no descrédito político e, além disso, assimila a ideia de uma realização unicamente privada dos direitos e, por fim, os institutos democráticos estarem reduzidos à representatividade. 166 Mesmo internamente, quando existente, medidas direcionadas ao direito à moradia, como é o Programa Minha Casa Minha Vida, a influência externa e mercadológica afeta diretamente o processo de inclusão social por meio da formação de habitações e habitat digno. Sobre este aspecto, a exigência parece se elevar a um nível mais universal, de reestruturação das formas de mensuração e limites ao mercado. Além disso, não existe previsão de incentivos tributários para o programa, como acontece, por exemplo, em relação às microempresas e empresas de pequeno porte, justamente por conta de sua capacidade financeira. O que ocorre no programa são financiamentos subsidiados, com uma contrapartida institucional, mas sem atenção especial à formação de entidades familiares jovens ou outra formação específica.167 Sobre esse aspecto, pelo Programa o direito à moradia se dá tão somente pela concessão de subsídios, não exigindo, assim, uma forma de participação mais ativa do sujeito na realização do direito. Nesse cenário, sobretudo a partir da vinculação política que contém uma Constituição Grimm apresenta essa vinculação pelo viés do conteúdo dirigente presente na Constituição, e a sua representatividade no âmbito do Estado de Direito. No Brasil, a Constituição da República Federativa de 1988 contém um contexto altamente vinculado com as políticas institucionais de organização e provimentos dos direitos fundamentais. Diante disso, Constituições podem bloquear a política. Isto está fora de dúvidas. Elas até mesmo falhariam em seu objetivo, caso não o fizessem. E, para os direitos fundamentais, isso é evidente. Após sofridas experiências com poder ilimitado, eles foram encarregados de impedir que a política prescrevesse 166 SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Introdução: para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 48s. 167 TRAMONTIN, Odair. Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal. Curitiba: Juruá, 2002, p. 37. 117 aos indivíduos sua crença ou sua opinião, tomasse seus bens, proibisse os 168 deslocamentos ou impingisse uma determinada profissão. A política, enquanto adoção estratégica e meio de governar, sofre no Brasil, constitucionalmente, as limitações inerentes a um Estado Democrático de Direito. Dessa forma, está vinculada em sua dinâmica às prescrições de ordem superior e que condensam, de um lado, a realidade histórica do país e, de outro, formam os objetivos de desenvolvimento e redução das desigualdades- artigo 3° da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Do ponto de vista da representatividade, não há incoerências entre o poder político legitimo e a ordem constitucional, porque ambas se situam sobre a ideia do poder do povo, e toda vinculação emana da efetivação dessa vontade. É justamente essa perspectiva democrática que habilita a sociedade, como detentora do poder, a exigir, senão a atuação direta nas políticas de desenvolvimento do Estado, a participação em seu desenvolvimento. Grosso modo, a ideia de gestão democrática significa, então, essa possibilidade de inserção na dinâmica das ações institucionais, uma vez que a verticalidade nas políticas públicas afasta a ideia de democracia e emancipação. Enquanto direito social, o direito à moradia está inserido na perspectiva das políticas públicas, que não são senão registros práticos das exigências da sociedade. Não obstante, o âmbito do direito ambiental, do direito à cidade e moradia contém, em grande medida, possibilidades práticas de inserção da sociedade nas dinâmicas de conservação ambiental, organização urbana e habitação de qualidade. No que se refere à temática da sustentabilidade urbana, [...] é entendida como a capacidade de o poder público e o sistema de gestão e representação política criarem mecanismos de participação nos processos decisórios relativos à transformação e manutenção da cidade e 169 para a solução de conflitos entre grupos sociais. 168 GRIMM, Dieter. Constituição e política. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 125. 169 DOURADO, Sheilla Borges. Unidades de conservação no meio urbano. In: BRAVO, Alvaro Sánchez (Editor). Ciudades, medioambiente e sostenibilidad. Sevilla: Arcibel, 2007, p. 140. 118 Não significa, assim, que a sustentabilidade esteja reduzida às condições ambientais de desenvolvimento econômico e social. Além disso, pressupõe uma gestão democrática e o uso do trabalho como meio digno de produção também de riquezas comuns. Dessa forma, o que está em jogo são todas as determinantes do desenvolvimento, tanto em relação à matéria-prima natural quanto ao trabalho humano. Na efetivação do direito à moradia está presente, assim, ao invés de políticas verticais, uma rede de conexão direta entre sociedade e Estado, superando no plano prático o histórico binômio público/privado. Sobre este aspecto, devem corresponder a mudanças estruturais, e jamais partirem da ideia de que o cidadão é um objeto em seu processo de implementação. Esse é o contexto, por exemplo, das audiências públicas, como voz participativa e democrática nos processos que demandam do Estado uma política específica, que poderá conter esse compartilhamento entre grupos sociais e Estados. O objetivo principal da audiência pública é dar voz aos grupos sociais que estão sofrendo obstáculos ou ameaças ou sejam vítimas de violação dos DHESC [Direitos humanos econômicos, sociais e culturais]. Na audiência pública são colhidos depoimento de vítimas, representantes dos grupos sociais e organizações de apoio, de entidades com reconhecimento técnico e profissional da área temática, de profissionais e acadêmicos. São convidados para participar da audiência pública as autoridades competentes do governo local e do Parlamento local, estadual e nacional, o Ministério 170 Público, Defensoria pública [...]. É a partir desses instrumentos que se pode conciliar os reais objetivos do Estado às demandas sociais, com vistas à gestão democrática. Essa estruturação tripartite (Estado, sociedade e gestão democrática) parece condensar os elementos indispensáveis à consecução de direitos, sobretudo aqueles voltados às condições de exercício da cidadania. Nesse sentido, é que passa a fazer sentido o discurso acerca da superação do modelo unilateral de provimento do direito à cidade. Essas liberdades reais e democráticas traduzem-se como direitos considerados necessários para a emancipação dos economicamente fracos, dos que dependem apenas dos rendimentos de seu trabalho, que muitas 170 SAULE JUNIOR, Nelson. Instrumentos de monitoramento do direito humano à moradia adequada. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Org.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 235-236. 119 vezes são insuficientes para lhes propiciar as condições básicas de uma 171 vida digna. Corrêa acaba por situar, novamente, a ideia, então presente no contexto social brasileiro, de que o provimento do direito à cidade é uma função exclusivamente privada; porém, se já o problema da constituição de renda é suficiente para explicitar a contradição dessa premissa neoliberal, arraigada no modelo econômico vigente, a instituição de um Estado Democrático de Direito, de conteúdo social, ratifica essa incongruência no plano político. Além disso, a própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é clara ao estabelecer, em alguns de seus dispositivos, o dever do Estado em relação aos direitos sociais, sobretudo. A essa premissa se soma a ideia de uma gestão que, com base na ideia política do Estado Democrático de Direito e da Constituição, eleve as políticas de direito à moradia ao nível da emancipação do indivíduo e da sociedade, como condição da representação prática da carta de direitos presentes no Constituição de 1988 e, do ponto de vista da mudança social, a transformação na qualidade de vida das pessoas. É, então, diante dessa dinâmica de promoção dos direitos que o discurso acerca do aparente prevalência do Estado sobre a sociedade perde sentido. Da mesma forma, a cisão prática entre essas duas estruturas não faz senão mitigar a força normativa daquele e a dinamicidade e liberdade da sociedade, extenuando a possibilidade de um desenvolvimento compartido. [...] o poder não é somente fenômeno político em sentido estrito, cuja manifestação se dá nas relações intra-estatais e entre Estados e particulares. O poder é fenômeno social em sentido amplo, porque se manifesta nas múltiplas relações sociais, sejam elas verticais, sejam 172 horizontais. 171 CORRÊA, Darcísio. Estado, cidadania e espaço público: as contradições da trajetória humana. Ijuí: Editora Unijuí, 2010, p. 432. 172 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 89. 120 Essa descentralização do poder descrita por Steinmetz corresponde, de um lado, à ideia de uma desvinculação institucional do poder (o Estado como poder que prevalecia), tornando o mesmo radicado na multiplicidade do “fenômeno social”; por outro lado, parece dizer respeito ao processo de compartilhamento entre os atores sociais. Entretanto, já pela análise de Santos173, essa rarefação do poder, descentralizado e espalhado mais amplamente, pode ser entendida como um câmbio entre o poder antes centralizado no Estado e, agora, centralizado no modelo econômico capitalista e suas formas. Nesse sentido, haveria um duplo processo de vinculação dos particulares à dinâmica dos direitos fundamentais. Primeiro porque o Estado deixa o campo do ativismo governamental, e segundo, diretamente como na ideia de Santos, ocorre uma ratificação institucional desse intercâmbio- o Estado passa a atuar (não atuar) a partir dessa dinâmica. A verdade é que vivemos sob o impulso das idéias do neoliberalismo, cuja característica principal é ser anti-social. A recepção desse modelo no plano fático representou o fim do Estado Social, conquista importante do período pós-guerra, significando o fim do estágio providencial que estabelecia uma política protetiva dos indivíduos excluídos do mercado de trabalho, numa 174 demonstração de solidariedade nacional. Em relação ao direito à moradia, essa vinculação dos particulares corresponde à parcela individual de cada um no provimento de seu habitat (trabalho individual) e, num sentido mais abrangente, da prestação da iniciativa privada na formação do ambiente urbano. Sobretudo por conta da ideia de compartilhamento, as diretrizes de realização do direito à moradia devem ser vistas, então, como intercruzamento de perspectivas e ações, ainda que o Estado, como executor precípuo, tem responsabilidade direta, ainda mais porque o contexto habitacional e urbano brasileiro exige, como condição de melhoria e desenvolvimento, uma atividade abrangente, o que acaba por tornar a ação institucional a principal forma dessa transformação. 173 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 19. 174 TRAMONTIN, Odair. Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal. Curitiba: Juruá, 2002, p. 37. 121 Internamente, a atividade do Estado contém, como instrumento de controle e racionalidade, a burocracia como forma de impedir, no seio da formação das ações institucionais, usos distintos e privilegiados de localização, premeditação e execução das políticas públicas de direito à moradia- das políticas públicas em geral e de toda administração. No que diz respeito aos instrumentos da sociedade no controle das ações institucionais, além da Ação Popular e Ação Civil Pública, a experiência de uma democracia participativa faz com que se ative as formas de questionamentos da ideologia que subjaz às vontades dos Estados. [...] é possível mostrar que, apesar das muitas diferenças entre os vários processos políticos analisados, há algo que os une, um traço comum que remete à teoria contra-hegemônica da democracia [a representatividade é a teoria hegemônica da democracia na análise de Boaventura de Sousa Santos]: os atores que implantaram as experiências de democracia participativa colocam em questão uma identidade que lhes fora atribuída externamente por um Estado colonial ou por um Estado autoritário e discriminador. Reivindicar direitos de moradia [...], direito a bens públicos distribuídos localmente [...] direitos de participação e reivindicação do reconhecimento da diferença [...] implica questionar uma gramática social e 175 estatal de exclusão e propor, como alternativa, uma outra mais inclusiva. A participação no processo de inclusão social, em que está presente uma gama de direitos correlatos, diz respeito, então, a uma reordenação na forma em que são pensadas e executadas as ações institucionais de direito à moradia, com atuante participação da comunidade, sobretudo local. Grosso modo, isso significa a superação dos limites legais e práticos que, a partir da atuação do Estado, da sociedade e de um envolvimento de seus agentes, conclua um núcleo estrutural não somente de reordenação da cidade e do sistema habitacional vigente, mas que suscite a discussão acerca da redução da influência mercadológica na vida das pessoas, sobretudo como condição de emancipação e gestão democrática dos recursos. [...] o que entendemos por modelo de desenvolvimento é o conjunto de percepções e práticas que permeiam o processo de crescimento econômico 175 SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Introdução: para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 57. 122 e mudança social, responsável pela atribuição de funções ao Estado e aos agentes econômicos nacionais, e guiado por determinados padrões de comportamento em relação ao contexto internacional. Ao mesmo tempo, esse processo encontrará ferramentas necessárias a sua evolução mediante o apoio popular, alcançado graças a sua capacidade normativa, 176 efetiva ou ideológica de persuasão. É diante desse cenário político, jurídico e social, com vistas à transformação das formas atuais de se adimplir as condições de moradia digna, que é possível associar a ideia de ambientes domésticos ao conceito mais amplo de função socioambiental das cidades. A interdependência entre o direito ambiental, direito à cidade e à moradia ratifica, assim, a ideia de que a conciliação entre essas estruturas pode ser representada na existência prática da função socioambiental da cidade. O respeito a essa determinante, e a percepção sensorial da transformação nas comunidades, identifica, pois, a possibilidade de uma cidade que preserva o meio ambiente e, sem prejuízo à qualidade de vida dos cidadãos, explicita a dimensão material da Lei n. 10.257/2001 e da própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diante disso, é possível retomar as premissas que se colocam, mesmo paradoxalmente, em direção à efetivação do direito à moradia. Do ponto de vista positivo, a premissa de maior sentido é a existência de um catálogo constitucional de direitos, e, especificamente, que, ao compor o rol de direitos sociais, a moradia é um direito fundamental carente de efetivação. A sua negação mais simples reduz o seu sentido prático ao apresentar a desestrutura das cidades, manifestando a abstração daquele conteúdo normativo. Nesse contexto, apresenta-se a antítese prática da afirmação universal de direitos, como contraponto. Por seu turno, qualquer conclusão com vistas à efetivação do direito à moradia deve ter como pontos de partida a) a atuação do Estado, b) a interferência privada e c) a gestão democrática e participativa. É de notar que, empiricamente, 176 GARRETÓN, Manuel Antonio et. al. América Latina no século XXI. Trad. Ximena Simpson. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 17. 123 existem limitações e ambivalência no conteúdo desses pontos de partida, postos como intermédio no discurso acerca dos direitos sociais. A atuação do Estado tem como base a tarefa constitucional de providência. Ou seja, ela parte do rol de direitos constituídos em favor do indivíduo, mas que não lhe são diretamente contra. Quando se fala, então, de ações institucionais de direito à moradia, aí se situa a premissa originária, pressuposto e condição do movimento de efetivação. Nesse contexto, as ações têm em mente uma visão especifica de dada realidade, e a elas se destinam a suprir-lhes as necessidades. Do ponto de vista da atividade (interferência) privada, para além da ideia de eficácia horizontal, que remonta termos específicos dos direitos fundamentais em relação aos particulares177, a conduta mais incisiva, que afeta diretamente as ações institucionais de direito à moradia, diz respeito à redução econômica das políticas do Estado, justamente por conta da inserção das mesmas no universo do lucro e da especulação, sobretudo imobiliária (direito à moradia). No contexto dessa negação imediata da atuação do Estado, estão dispostos os interesses de ordem privada, cuja representação de uma ordem urbana se resume à propriedade de uso que ela finaliza. Nesse imaginário, que depõe diretamente contra o conteúdo constitucional das funções da cidade e do direito equitativo à moradia, de um lado há uma atuação praticamente irrestrita e, de outro, a recepção no Estado desse modelo de estruturar e pensar as diretrizes institucionais. Mais diretamente, essa denegação vai de encontro à própria ideia de humanidade e dos elementos que esse conceito pressupõe. [...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como lhe venham a garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação 177 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 220 et seq. 124 ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em 178 comunhão com os demais seres humanos. Pela gestão democrática e a participação popular, há uma retomada da ideia de coletividade e emancipação do cidadão, enquanto negação de terceira ordem à ideia de a) mitigação da postura do Estado e b) uso unilateral da cidade. Diante dessa nova perspectiva, o agir institucional é transpassado pela ideia de superação da representatividade como forma absoluta e única de democracia.179 Sob essa nova ótica, há a pressuposição de uma robustez na atuação do Estado (sobretudo no que se refere aos limites da propriedade e uso da cidade) e, por seu turno, uma instigação popular nos processos participativos, a partir dos quais se possa pensar o direito à moradia. Nesse contexto, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a legislação específica servem como núcleos normativos que ratificam essa necessidade de transformação moral (o agir do Estado e da sociedade). Sobre essa perspectiva, a ratificação formal, cuja ausência impossibilita a atuação da Administração Pública (legalidade), existe objetivamente, não somente como pano de fundo axiológico, mas como normatividade eficaz. Não se pode dizer, então, que existam empecilhos legais ao agir institucional e social, porque, contrariamente, o que existem são estruturas ratificadoras e mandamentais dessa ação. Panoramicamente, a resolução dos problemas imediatamente postos no contexto do direito à moradia (nos direitos sociais como um todo) contém determinantes empiricamente explícitas. Ou seja, a análise dá conta de localizar óbices e instrumentos de efetividade; a reflexividade crítica, de apontar mais diretamente as razões elementares da inoperância. Por seu turno, o horizonte normativo e democrático orienta para a superação dos modelos vigentes, justamente porque, mesmo as normas constitucionais (o conteúdo normativo, portanto) apontam para a participação e emancipação da sociedade. 178 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 63, grifo nosso. 179 SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Introdução: para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 57. 125 [...] a efetivação das possibilidades da nova ordem jurídico-urbanísitca, condição para a promoção de reforma urbana no Brasil e na América latina, depende de diversos fatores, mas sobretudo da renovação da mobilização social e política em torno da questão urbana. Nesse processo, é crucial a disseminação de informações sobre as novas leis; incentivo à pesquisa e a análise interdisciplinar, na qual a dimensão jurídica seja incorporada; avaliação sistemática de políticas e projetos baseados nas novas leis; discussão acadêmica acerca dos conteúdos curriculares; conscientização dos ‘operadores do direito’ como juízes, defensores públicos, promotores e juristas em geral; treinamento e capacitação de profissionais que lidam com as questões urbanas; e apoio a órgãos governamentais e não180 governamentais. Entretanto, a carência de efetivação do direito à moradia torna esse processo (análise) mais agudo, justamente por demonstrar que os empecilhos, basicamente a atuação econômica nos moldes do paradigma atual, possuem uma força arraigada forte, de atuação e vigência constante, inconciliável com as perspectivas reformistas ou transformadoras. Tamanho poder é perceptível justamente a partir do contexto de exclusão social, que no direito à moradia é representado pela formação de habitações desconectadas das condições mínimas de vida digna. Mesmo assim, A globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. Um processo de amplas proporções envolvendo nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações. Assinala a emergência da sociedade global, como uma totalidade abrangente, complexa e contraditória. Uma realidade ainda pouco conhecida, desafiando práticas e ideais, situações consolidadas e interpretações sedimentadas, 181 formas de pensamento e vôos da imaginação. Com isso, a premissa segundo a qual uma das condições de um efetivo direito à moradia passa pela participação e gestão democrática, que, ao emancipar o sujeito, vincula-o ao organismo social (emancipação social) sofre uma limitação em seu conteúdo prático, justamente por conta da incorporação do sentimento plástico acerca da democracia e das decisões no âmbito da sociedade. Não é, então, uma condicionante de ordem estritamente jurídica, razão pela qual a implementação do 180 FERNADES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. (orgs.) Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 21. 181 IANNI, Octávio. A era do globalismo. 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 11. 126 direito à moradia extrapola os limites normativos e juridicamente estritos para se lançar num contexto político-social. O que ocorre é a interpenetração sistemática entre os pressupostos jurídicos e políticos, como condição de um direito à moradia eficaz e democrático. Nessa ótica, mesmo o modelo estatal, juridicamente constituído, não é capaz, por si só, de oferecer uma resposta satisfatória em relação à má formação dos contextos urbanos, vez que se trata de um problema de ordem política e social, maturada pela elevação conceitual e prática do crescimento econômico como matriz suficiente, quando é, na verdade, uma de suas determinantes. Entretanto, a indagação nevrálgica diz respeito não a aspectos unicamente abstratos, mas a condições de vivência no contexto das cidades. [...] o que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esse planeta, no contexto da aceleração das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento demográfico. Em função do contínuo desenvolvimento do trabalho maquínico redobrado pela revolução da informática, as forças produtivas vão tornar disponível uma quantidade cada vez maior do tempo de atividade humana potencial [produtividade maior, empregabilidade menor]. Mas com que finalidade? A do desemprego, da marginalidade opressiva, da solidão, da ociosidade, da angústia, da neurose, ou da cultura, da criação, da pesquisa, da re-invenção do meio 182 ambiente, do enriquecimento dos modos de vida e de sensibilidade? Estruturalmente, a realização do direito à cidade depende da inversão das iniciativas e das escolhas institucionais e sociais. Trata-se, grosso modo, da identificação do crescimento econômico como demonstrativo paralelo ao desenvolvimento da cultura, da educação, da maturidade política e da emancipação social. O reconhecimento do direito à cidade, do direito à moradia e, de forma mais abrangente, do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado depende da superação, no Estado e na sociedade, da ideia de uma mensurabilidade monetária do desenvolvimento individual e nacional.183 182 GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 2001, p. 9. HABERMAS, Jürgen. Modernidad: um proyecto incompleto. In: CASULLO, Nicolás. El debate modernidad/posmodernidad. Madrid: El cielo por asalto, 1990, p. 134. 183 127 Pode-se confrontar, assim, as estruturas que vigem na sociedade e no Estado com as necessidades e possibilidades racionalmente dispostas no âmbito do direito à moradia. Sobretudo diante das emergências que cercam o direito à moradia, o plano estrutural serve como pedra de toque à realização desse direito, mas cuja implementação requer, desde já, a ratificação prática tanto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, enquanto sistematização entre norma e poder (Direito e Política) quanto em relação à Lei n. 10.457 de 2001. [...] devemos afirmar enfaticamente, não podemos esquecer que nenhum progresso, até a erradicação da pobreza e da fome, a melhoria da saúde e a proteção ambiental, será sustentável se a maioria dos recursos e serviços 184 dos ecossistemas seguirem degradando-se. Como pano de fundo, o Princípio da Cooperação serve como conteúdo axiológico da ideia de compartilhamento, justamente por pressupor, diante da relação entre sociedade e Estado, a responsabilidade e a comunhão de deveres entre os mesmos, sobretudo por conta da necessidade de medidas conjuntas de formação e conservação do direito à moradia e do direito à cidade.185 Genericamente, no contexto das cidades, sob o olhar aproximado dos municípios, há o fortalecimento da perspectiva integradora, justamente por conta da visibilidade real dos institutos de direito à moradia e direito à cidade. É nas cidades que o cidadão participa ativamente e, como manutenção de um sistema de equilíbrio, atua em relação à municipalidade a ao seu direito à moradia. Ocorre o reconhecimento dos ambientes urbanos como centros comuns, como contextos, desde a origem, de atividades coletivas e partilhadas. Sobre esse aspecto, também a formação e organização desses ambientes contém a característica elementar da democracia, que é a inserção nas ações que visam o bem coletivo. 184 MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2007, p. 131. 185 MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2007, p. 109. 128 Trata-se, essa formação compartilhada com vistas aos objetivos constitucionais do artigo 3°, de um processo complexo e integrado, como é, via de regra, toda a ideia de transformação de uma realidade, cujos limites práticos não servem apenas como óbices prescindíveis, mas como pressupostos solidificados e que integram a discussão acerca da realização do direito à moradia. Ou seja, não se tratam de estruturas suprimíveis, mas de núcleos de enfrentamento. 129 5. CONCLUSÃO A atuação democrática e participativa do sujeito e a unificação, também democrática, da função do Estado finalizam, no âmbito do direito à cidade como direito socioambiental fundamental, duas estruturas-núcleo da realização de direitos. Afetam não somente o direito à cidade, mas todo o vasto rol de garantias a ele atrelado. Os desafios de ordem jurídica se localizam no intermédio da atuação do Estado e fundam um problema que repercute na ordem social como um todo. O Estado Democrático de Direito, com o instrumento constitucional e as diretrizes sociais, tem diante de si um duplo processo de superação, e que se resume como condição da realização do direito à moradia e correlatos. Do ponto de vista estrutural, a pesquisa possibilitou uma abordagem dos elementos justificantes do reconhecimento do direito à cidade como direito socioambiental fundamental, sobretudo com a imersão na intenção constitucional de elencar diretrizes para a atuação jurídica e da sociedade. Sob um prisma sistêmico, o enfrentamento do problema urbano- moradia e meio ambiente- condensa um desafio de ordem complexa, porque pressupõe não somente o encorajamento subjetivo (indivíduo e o Estado), mas a gestão dos recursos e dos meios para possibilitar a realização de direitos. Dessa forma, os fundamentos do direito à cidade levam em consideração um contexto prático de segregação social, desigualdade e afetação do meio ambiente. Servem como justificativas negativas da necessidade de repensar não somente o âmbito jurídico, mas as formas como a sociedade como um todo encara a cidade e suas funções. Destarte, o sentido de complexidade é afunilado pelo resgate histórico das razões que justificam o atual cenário citadino, não deixando de considerar o rol de prioridades de ordem econômica que mapeou a vivência do homem em determinado tempo e espaço. Nesse aspecto, sujeito e Estado recepcionam, no domínio econômico-político, uma estrutura de manutenção das origens e determinantes da desigualdade, cujo aspecto mais nevrálgico gira em torno da exclusão social, função pragmática da cidade e desrespeito com o meio ambiente. 130 Pelo viés do direito à moradia, ocorre a fundamentação de ordem integrada dos direitos que compõe as condições de vida digna no meio urbano, e que prorroga o problema da não realização de direitos para âmbitos como o saneamento básico, a saúde, e ramos afins. A partir desse prisma, a justificação passa a estar amarrada à ideia de interdependência de direitos e de metidas executivas. Assim, surge a questão acerca da gestão democrática das formas de implementação do direito à moradia, em que há um compartilhamento desses meios entre a comunidade urbana e o Estado. Dessa forma, a identificação da necessidade de revitalizar as formas de ação do sujeito e do Estado parte de duas pressuposições simples, mas de ampla aparição sensorial: o desinteresse social pelas práticas políticas e a resignação institucional frente ao modelo econômico capitalista de inflexão neoliberal. Mesmo possuindo autonomia temática, essa discussão serviu ao trabalho como pano de fundo reflexivo e, mais diretamente, corroborou à assertiva acerca das condições de realização do direito à moradia e afins. Ou seja, o ativismo social é uma condição para a transformação do status quo de exclusão social. É possível perceber, no entanto, os empecilhos de ordem prática que impedem a realização objetiva de todas as intenções, jurídicas, políticas e sociais. Do ponto de vista epistemológico, a estruturação do tema é capaz de aproximar todos os elementos subjetivos e objetivos, no intuito de pensar a solução como uma conclusão que satisfaça às interrogações acadêmicas. Na seara da gestão das formas e execução dos meios, o principal encalce diz respeito à necessidade de satisfazer, no indivíduo e no Estado, as exigências do modelo de desenvolvimento capitalista de que somos signatários e que impede a perspectiva prática de um direito à moradia efetiva. Sobre esse aspecto, a exigência prática é um resultado da formação legislativa ao longo do tempo e do aperfeiçoamento doutrinário, que tornou a discussão acerca do direito ambiental e à moradia um diálogo emergente e 131 permanente no contexto jurídico-acadêmico.186 Essa eminência corresponde, então, a formação de um nicho de subsídio à tarefa prática que o Direito pressupõe, ainda que não seja capaz, sem a gestão e participação democrática, de resolver o clássico problema da efetividade. Estão aí presentes, além disso, contributos de ordem política e econômica de poder considerável. Além disso, a formação mental do sujeito individual e do Estado já incorporou uma dinâmica exterior de perseguição de interesses aparentemente particulares, mas que servem à consecução de desejos de outra ordem. Para o direito à moradia que, ainda que conserve a perspectiva individual, está situado no contexto do direito à cidade, ou seja, num ambiente de ordem coletiva, essa rarefação da consciência de pertencimento gera um descrédito quanto às formas de desenvolver e efetivar direitos por meio do compartilhamento. Sobre esse aspecto, o indivíduo se vê fora da dinâmica democrática de participação, e acaba por reduzir a democracia à representatividade. Entretanto, se a representação política é a forma adequada de organizar o poder em função do seu titular, o povo, isso não significa a única razão do exercício democrático e político. Nesse ponto, a inserção do sujeito nos movimentos de gestão e execução de políticas públicas evidencia a capacidade de mobilização e manejo da democracia, sem alterar a substância incorporada pelo Estado Democrático de Direito. No que tange às políticas públicas ou ações institucionais de direito à moradia, registra-se um parcial avanço em relação à tarefa do Estado frente aos direitos fundamentais. Noutro sentido, o agir do Estado ainda representa uma postura bastante tênue em relação aos problemas de ordem estrutural que contornam os ambientes urbanos. Cominado com a inércia reflexiva e a indisposição social, essas ações institucionais ainda correspondem a atitudes verticais, que, às vezes, se assemelham aos institutos do assistencialismo. Com isso, o fortalecimento da gestão democrática requer que, do Estado, surja um primeiro impulso, mas cujo 186 VIANA, André Custódio; BALDO, Iumar Junior. Desenvolvimento urbano: um discurso sobre a organização socioambiental e habitacional sob a panorâmica da igualdade e da justiça em John Rawls. In: VIANA, André Custódio; BALDO, Iumar Junior (org.). Meio ambiente, constituição e políticas públicas. Curitiba: Multidéia, 2011. 132 desenvolvimento esteja relacionado com a possibilidade de compartilhamento dos meios e dos resultados. Em relação ao direito à moradia, isso vai significar a qualificação dos recursos urbanos de vida digna e, indiretamente, o desenvolvimento socioambiental da cidade. Não há como se pensar a transformação de contingentes urbanos, desassistidos historicamente, sem propor o problema estrutural da adoção institucional e social de medidas urgentes e efetivas, proposta esta que passa a ter uma nova perspectiva a partir do reconhecimento do direito à cidade como direito fundamental. Dizer que o direito à cidade deve ser um direito humano fundamental significa afirmar a aproximação entre a formação histórica das necessidades humanas e o registro efetivo da opção do estado. Ao adquirir o caráter de fundamental, a responsabilidade do Estado em, conjuntamente com a sociedade, realizar o direito à cidade é permeado pela idéia de uma transformação social, justamente porque o reconhecimento faz com que o segundo passo seja a sua realização. Atribuindo-lhe esse caráter fundamental estaremos ratificando a não estaticidade dos direitos humanos e ainda, por outro lado, a idéia de que o desenvolvimento do Estado segue a construção histórica dos povos em sociedade; com a intenção de construir uma unidade entre atividade institucional e a realidade social. Apesar do direito a cidade transcender ao reconhecimento constitucional, justamente por dizer respeito às condições inerentes a própria condição humana que precisamos ultrapassar os “diagnósticos” que servem sim, de base para a idéia de transformação desses agrupamentos irregulares, mas sua concretização depende do Estado, sociedade e gestão democrática. 133 REFERÊNCIAS AGRA, Walber de Moura. Republicanismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. ALMEIDA, Márcio Fortes de; COBBETT, Billy. Apresentação. In: CARVALHO, Celso Santos; ROSSBACH, Anaclaudia. Estatuto da cidade comentado. São Paulo: Aliança das cidades, 2010. ALMEIDA, Márcio Fortes de. Apresentação. In: ROLNIK, Raquel (org.). Como produzir moradia bem localizada com os recursos do Programa Minha Casa Minha Vida: implementando os instrumentos do Estatuto da Cidade. Brasília: Ministério das Cidades, 2010. ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 2003. ARANGO, Rodolfo. 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