O debate brasileiro sobre meninos e prisões [ 04.Jun.2001 Por todo canto do Brasil o debate é o mesmo e a pergunta inevitável acaba aparecendo, nas palestras, nas entrevistas e nos encontros informais: “Você é a favor da redução da idade de imputabilidade penal?”. Cada crime que envolve um menino com menos de 18 anos reacende o clamor pela redução e parece jogar lenha na fogueira dos herdeiros de Torquemada. A pressão dos arautos da “dureza contra o crime” tem crescido e tudo indica que tem logrado sensibilizar a opinião pública. Por outro lado, durante os últimos anos, os defensores do Estatuto da Criança e do Adolescente começaram a dar sinais de acuamento e de recuo para posições defensivas, as quais apenas tendiam a reforçar seu isolamento político. Contudo, recentemente, esse quadro tem mudado. Movimentos locais de defesa do ECA já foram criados em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, e já há notícias de iniciativas semelhantes em muitas outras cidades do país. Portanto, o combate promete choques intensos. O rolo compressor pela redução da idade de imputabilidade que se arma no Congresso Nacional, em torno do relatório do Coronel. Fraga (PMDB-DF), vai enfrentar uma resistência da sociedade civil organizada maior do que talvez supusessem ou desejassem os lobistas do encarceramento. E eu, afinal, por que sou contra a redução? Pura profissão de fé doutrinária? Simples adesão irresponsável e inconseqüente ao espírito generoso e hipócrita da transigência com os criminosos? Cumplicidade por omissão? Paternalis mo ingênuo? Incapacidade de superar os dois pesos e as duas medidas, graças a cujo desequilíbrio os defensores dos direitos humanos seríamos mais sensíveis aos dramas dos criminosos do que às tragédias das vítimas? Não, nada disso. Vou sustentar minha posição invertendo a mão do questionamento. Peço licença aos leitores para, antes de responder, trocar de papel. Agora, sou eu que pergunto a quem defende a redução: “Coronel. Fraga, o senhor está satisfeito com o funcionamento de nosso sistema penitenciário, esse que tem atendido aos maiores de 18 anos e que o senhor quer ver atendendo também aos menores de 18?”; “O senhor acha que a aplicação das penas privativas de liberdade aos maiores de 18 os está impedindo de praticar crimes? Nossas prisões estão inibindo a prática de crimes? Estão logrando conter a criminalidade com eficiência?”, "O Sr. considera que nossas prisões estão cumprindo a dupla função que as tradições civilizadas lhes atribuem: sinalizar limites para que se reduza o ímpeto criminoso e reeducar para o convívio pacífico e a sociabilidade construtiva?” Como todos sabemos, eu, o senhor e os leitores, as penas distribuídas pela Justiça não têm o propósito de vingar o mal feito, impondo ao malfeitor sofrimento equivalente àquele que ele infligiu à vítima. Por isso, deixo de lhe perguntar se o senho se sente saciado ao visitar nossas prisões e constatar a que extremos a vendetta foi conduzida. Mas as minhas perguntas não param aí: “Gostaria de saber se o Deputado Fraga ou qualquer defensor da redução da idade de imputabilidade considera que o Estatuto da Criança e do Adolescente vem sendo aplicado competente e consistentemente, no Brasil?”; “As normas que zelam pela separação entre as idades e os tipos de transgressão vêm sendo cumpridas?”; “O processo sócio -educativo vem sendo respeitado, em todo o seu rigor, em todos os níveis que envolve?”; “As instituições responsáveis pela aplicação do ECA têm se mostrado equipadas e qualificadas?”; “O acompanhamento posterior à internação, assim como a avaliação das trajetórias individuais têm respondido às exigências estipuladas pelo Estatuto?”; “As polícias têm se revelado preparadas para cumprir sua parte na aplicação do Estatuto?”. Mesmo discordando profundamente do Coronel. Fraga, sou obrigado por razões éticas, ditadas pela natureza mesma de todo diálogo honesto e justo, a supor que meu virtual interlocutor seja uma pessoa bem intencionada e razoável. Sendo assim, não me resta senão deduzir que ele responderia negativamente aos dois blocos de perguntas que lhe dirigi. Em outras palavras, devo supor, em homenagem à sensibilidade e à inteligência de meu interlocutor, que ele reconheceria o óbvio: (1) Nosso sistema penitenciário está falido. Na verdade, tornou-se uma gigantesca, caríssima, irracional máquina de moer espíritos, escola do crime e fonte de ressentimentos. As penas privativas de liberdade não têm servido aos seus propósitos originais. Pelo contrário, além de se revelarem inúteis como fator de inibição da criminalidade, têm concorrido para seu crescimento, dada a combinação explosiva entre os seguintes fatores: convívio entre apenados mantidos no ócio – inclusive contra sua vontade- e que apresentam trajetórias criminais as mais diversas, facilitando a transmissão de experiências e a organização criminosa; corrupção institucionalizada; cumplicidade de funcionários; inépcia gerencial; precariedade de meios e ausência de programas para a reinserção social dos egressos do sistema. (2) O Estatuto da Criança e do Adolescente nunca foi aplicado para valer, em todas as suas dimensões e com o rigor de todas as suas exigências. Ora, se meus interlocutores, se o Coronel. Fraga e você, leitora, leitor, responderam negativamente aos dois blocos das perguntas que formulei e, portanto, se concordam com as duas afirmações acima, todos estamos de acordo com o seguinte: (1) o que está falido não serve de modelo, nem deve ser proposto como solução e muito menos faria sentido defender a ampliação de sua abrangência. Ou seja, se nosso sistema penitenciário é essa tragédia, é o desastre que todos conhecemos, em nome de que poderia fazer qualquer sentido propor que, além de (des)servir ao público maior de 18 anos, ele estendesse suas funções, ampliasse suas responsabilidades e passasse a se ocupar também das crianças e dos adolescentes? (2) Antes de concluir pelo fracasso do ECA ou mesmo de criticar sua ineficiência (reeducativa e inibidora da prática de transgressões), antes de propor sua alteração ou substituição, não seria conveniente testá-lo? Aliás, é curioso como, no Brasil, tendemos a achar sempre que nosso problema é a falta de leis e que a existência de leis adequadas seria suficiente para mudar a realidade. Seriam ainda ecos do velho bacharelismo que marcou nossa história? E é surpreendente como, em geral, estamos ma is dispostos a propor mudanças legais do que a tentar aperfeiçoar a aplicação das leis que temos. Talvez os problemas não estejam nas leis, mas na deficiência de sua aplicação. Se for assim será inútil a voracidade legisferante. De resto, seria irracional trocar uma legislação sem lhe dar a chance de ser testada a sério. Portanto, não creio que faça sentido torpedear o ECA antes de aplicá-lo com o rigor que merece e requer. Tampouco me parece razoável sugerir a extensão de um de nossos maiores fracassos nacionais, o sistema penitenciário, através do expediente legal da redução da idade de imputabilidade. Já não chega o tamanho de seu fracasso? Em lugar de subrepticiamente postular sua extensão, deveríamos propor sua reforma radical e urgente. Finalmente, um esclarecimento: a verdadeira dicotomia, que opõe os defensores do ECA e seus críticos, não pode ser traduzida pela diferença entre transigência e severidade. O ECA não retrata, decreta, institui ou legitima a transigência com a transgressão ou o crime. A oposição não é generosidade solidária e ilimitadamente compreensiva, portanto leniente e leviana, versus severidade e rigor na aplicação dos limites legais. Se a oposição continuar a ser apresentada à opinião pública nesses termos não haverá nenhuma chance para os defensores do Estatuto. O ECA é severo, se for realmente aplicado com o respeito devido a todas as exigências que contempla. Afinal, o Estatuto prevê a internação e determina medidas unilaterais, imperativas. Nenhum menino pede a aplicação das medidas sócio-educativas. Elas não são voluntárias. São fortes e rigorosas. O fato de diferenciarem-se do encarceramento não as torna menos severas. Torna-as mais eficientes, se a meta a alcançar é a ressocialização, a redução da reincidência e a sinalização inibidora. As medidas sócio-educativas do ECA diferenciam-se da mera privação penal da liberdade justamente porque o encarceramento não funciona, é contraproducente em todos os níveis. O que está em jogo, portanto, é o sentido da severidade. O que está em disputa é a definição prática, moral, legal e política dessa severidade. O verdadeiro dilema é saber qual deve ser a nossa severidade. Qual é a severidade mais apta a cumprir as funções sociais às quais se aplica com o rigor que lhe define o significado? Qual severidade melhor serviria à sociedade brasileira? Aquela que é adjetiva, isto é, que faz profissão de fé na retórica da intolerância, da dureza policial, do vigor punitivo, mas que, na prática, concorre para a reprodução da irracionalidade institucionalizada, alimenta um sistema penitenciário apodrecido, um aparato de segurança degradado, a violência policial e o desenvolvimento da criminalidade nas instituições que deveriam cuidar da ordem pública? Essa seria a severidade do fracasso e da impotência. O Estatuto da Criança e do Adolescente, insisto, é severo e poderá atualizar seu potencial construtivo se lhe for concedida a oportunidade histórica de ser efetiva e plenamente aplicado. A severidade do Estatuto é aquela que se compatibiliza ao mesmo tempo com o respeito aos direitos humanos e com um sentido construtivo de responsabilidade, porque se volta para o futuro, repelindo a vendetta. Estatuto da Criança e do Adolescente Texto integral Luiz Eduardo Soares é sociólogo, especialista em segurança pública, autor de "Meu casaco de general".