INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
Celso Zonta
Marisa Meira
A psicologia do desenvolvimento é uma área importante da
psicologia que estuda as mudanças relacionadas a aspectos físicos,
cognitivos e afetivos que ocorrem nos seres humanos, desde a
concepção até a morte. A compreensão das características comuns a
diferentes faixas etárias pode auxiliar os professores na escolha dos
conteúdos e métodos de ensino mais adequados para seus alunos.
Neste texto, trataremos das origens dessa área de
conhecimento, dos fatores que determinam o desenvolvimento e das
principais perspectivas teóricas utilizadas para estudá-lo.
As origens da psicologia do desenvolvimento
Atualmente, todos concordam com o fato de que as pessoas se
modificam no decorrer dos anos e com a ideia de que o
desenvolvimento pressupõe:
•
•
•
um processo de movimento em direção a capacidades cada vez
mais complexas;
a existência de fases ou etapas, o que implica, em cada
momento de nossas vidas, na apresentação de características
diferenciadas;
a necessidade de atendimento a essas características para que
o desenvolvimento aconteça de forma adequada.
Entretanto, nem sempre foi assim. Tomemos como exemplo a
concepção de infância.
Até o século XVI, a noção de infância ainda não existia. ARIÈS
(1978) apresenta três “provas históricas” do sentimento de indiferença
da sociedade em relação às crianças: não havia clareza sobre limites
entre idades (não foram encontrados registros que denotassem
qualquer preocupação em relação a diferenciação de fases da vida);
não havia recursos de linguagem para designar a infância (palavras
como infância e criança não existiam); nas obras de arte, as crianças
eram representadas como homúnculos (homens em miniaturas, em
poses e com feições e vestuários típicos dos adultos).
No século XVII, a sociedade começa a dar importância ao
corpo, aos hábitos e à fala das crianças pequenas. A partir de então, a
ideia da infância como um período com características próprias começa
a ser construída. ARIÈS (1978) apresenta três indícios concretos dessa
“descoberta” da infância: tem início a divisão das idades por períodos;
surgem palavras específicas para designar infância e criança; e as
crianças começam a ser representadas nas obras de arte com roupas
próprias à idade.
Como analisa GÉLIS (1991), nada disso ocorreu por acaso. Por
detrás dessas mudanças, encontra-se o processo de individualização
de todas as pessoas, o qual se tornou possível apenas a partir do
século XVII, em decorrência de profundas transformações sociais
provocadas pelas novas condições de existência produzidas pela
transição do modo de produção feudal para o capitalismo.
Apesar desse reconhecimento da infância ter se dado no século
XVII, apenas no início do século XX, o desenvolvimento humano
passou a ser estudado cientificamente. As origens da psicologia do
desenvolvimento têm dois marcos principais: a publicação, no início da
década de 1920, dos livros Adolescência e Senescência: a última
metade da vida, ambos de Granville Stanley Hall (1844-1924), e a
criação, na Universidade de Stanford, em 1929, da primeira unidade de
pesquisa científica dedicada ao envelhecimento.
G. Stanley Hall — psicólogo americano considerado o criador da psicologia da criança)
Universidade de Stanford (Califórnia, Estados Unidos) — a primeira a sediar uma unidade
de pesquisa em envelhecimento.
Questão para reflexão
No mesmo período no qual ARIÈS (1978) encontrou expressões da
valorização social da infância, muito especialmente nas obras de arte,
ENGELS (1975) denunciava uma situação aterradora na Inglaterra,
com base em um relatório datado de 1833: milhares de crianças de
cinco a nove anos trabalhavam em fábricas, praticamente como
escravos, por até 16 horas por dia e eram seguidamente espancadas
por vigilantes. Esses são indícios claros de que a particularização da
infância restringia-se às crianças da burguesia.
Pensando em nossa realidade atual, você considera que o direito a
uma infância digna e protegida tem se estendido a todas as crianças?
Fatores que determinam o desenvolvimento
As pessoas crescem e se modificam, mas, por que isso ocorre?
O desenvolvimento é um processo biológico, orientado por um padrão
inato, universal para toda a espécie humana ou é um processo cultural,
moldado pela sociedade? Qual seria a importância relativa da natureza
(traços e características herdados dos pais biológicos) e da experiência
(influências da família, amigos, escola, sociedade, valores culturais)?
Essa polêmica sobre os fatores que determinam as mudanças
evolutivas é bastante antiga e tem sido respondida de modo diverso por
três abordagens principais: o inatismo, o ambientalismo e o
interacionismo.
O inatismo
Para os inatistas, as características básicas de cada ser
humano já estão definidas desde o nascimento. Essa abordagem tem
suas origens nas ideias do filósofo suíço Jean Jacques Rousseau
(1712-1778), o qual proferiu a célebre frase “o homem nasce bom, mas
a sociedade o corrompe”. Para o autor, um dos principais sintomas da
incompetência da civilização no sentido de garantir o bem comum e a
felicidade para todos os homens é a desigualdade social que tem
origem na propriedade privada.1
Rousseau acreditava que, para retomar sua verdadeira
natureza, o homem deveria recobrar a liberdade perdida através de um
mergulho interior em busca do auto-conhecimento. Além disso,
defendia a necessidade de regimes sociais democráticos, nos quais
todos se submeteriam às leis elaboradas de acordo com a vontade
coletiva.2
1
Em razão de suas fortes críticas à propriedade privada, a qual considerava a fonte da miséria e
da corrupção das pessoas, e pela defesa da liberdade e igualdade para todos, Rousseau tornouse uma das principais inspirações ideológicas da segunda fase da revolução francesa.
2
Essas ideias foram apresentadas pelo autor na obra Do contrato social, publicada em 1762, na
qual apresenta sua concepção sobre a ordem política democrática. Essa obra foi publicada pela
Editora Martins Fontes (ROUSSEAU, 1975).
Jean Jacques Rousseau — um dos mais importantes pensadores europeus do século XVIII
O filósofo criticava veementemente os métodos educacionais de
seu tempo, que considerava rígidos, elitistas e intelectualistas, além de
excessivamente centrados na repetição e memorização, e defendia
uma educação natural,3 a qual deveria ser subordinada à vida e à
evolução espontânea dos alunos, tendo como principal objetivo sua
formação moral e política para o exercício da liberdade.
Como destaca Cerisara (1989), para Rousseau as crianças não
poderiam ser tratadas como adultos em miniatura. Aos professores
caberia respeitar as características e interesses infantis, interferindo o
menos possível no desenvolvimento de seus alunos, permitindo, desse
modo, que vivessem cada fase da infância na plenitude de seus
sentidos.
Rousseau propunha a utilização de métodos lúdicos e naturais
que permitissem a experiência direta dos alunos com os objetos de
conhecimento e estimulassem as disposições primitivas neles
presentes (emoções, sentidos, instintos),4 que, para o autor, seriam
3
Os princípios da educação natural foram apresentados por Rousseau na obra Emílio ou da
Educação, na qual descreve, em forma de romance, a educação de um jovem fictício, do
nascimento aos 25 anos, na companhia de um preceptor ideal e afastado completamente dos
costumes corruptores da sociedade. Essa obra foi publicada pela Editora Martins Fontes
(ROUSSEAU, 1977).
4
Rousseau foi bastante criticado por ter construído a imagem do “bom selvagem”, do homem
mantido em seu estado natural, não contaminado pela sociedade. Entretanto, sua intenção não
mais confiáveis que os modos de pensar impostos pela sociedade
corruptora.
As ideias de Rousseau levaram o filósofo e educador alemão
Juan Bernardo Basedow (1723-1790) a fundar o filantropismo. Essa
corrente pedagógica defendia que o amor e a fraternidade universal,
acima de qualquer limite de religião, nacionalidade, raça ou classe
social, deveriam se constituir no princípio de todas as ações humanas e
que a educação deveria ter por objetivo principal a máxima realização
possível da felicidade dos seres humanos.
Ao longo do tempo, as elaborações de Rousseau têm inspirado
diferentes correntes pedagógicas, principalmente as tendências não
diretivas que surgiram no século XX.
O ambientalismo
A ideia do filósofo inglês John Locke (1632-1704) de que, no
nascimento, a mente humana é como uma tabula rasa5 e que todo o
conhecimento humano provém da experiência tem sido apontada como
origem do ambientalismo.
Locke foi um dos filósofos precurssores de uma corrente
filosófica denominada “empirismo inglês”, para a qual não existem
estruturas inatas.
Nessa abordagem, o indivíduo seria produto da ação
modeladora do ambiente, uma “página” inicialmente em branco que,
aos poucos, vai sendo preenchida por idéias formadas a partir de suas
experiências.
O interacionismo
Como destacam Bee (2003) e Cória-Sabini (1993), atualmente
nenhuma teoria coloca a questão do desenvolvimento em termos tão
inteiramente opostos como o inatismo e o ambientalismo.
era negar as conquistas civilizatórias, mas indicar possibilidades para que todos os homens
buscassem a realização e a felicidade.
5
O significado literal do termo tabula rasa é ardósia em branco. Na perspectiva empirista tem o
significado de quadro ou tela em branco.
A posição atualmente predominante entre os teóricos é a de que
o desenvolvimento é resultado da interação entre:
•
•
•
fatores hereditários determinados pela herança genética
recebida dos pais biológicos. Habitualmente, o termo
hereditariedade é utilizado para nos referirmos a características
tais como cor dos olhos, altura, constituição física etc.;
maturação de padrões de desenvolvimento não aprendidos, os
quais são relativamente semelhantes em todos os indivíduos,
tais como mudanças na conformação corporal durante o
período pré-natal e no decorrer da infância, desenvolvimento
de habilidades motoras como engatinhar e andar, alterações no
período da puberdade e adolescência (por exemplo, alterações
nos testículos e pênis dos meninos e início da menstruação nas
meninas);
determinações
sociais
decorrentes
da
condição
socioeconômica dos indivíduos (renda, nível de instrução,
profissão), da cultura da qual fazem parte (costumes, tradições,
crenças e valores), do grupo étnico ao qual pertencem (ao qual
se unem por descendência, raça, religião e/ou necessidade, e
que contribui para a criação de um sentido de identidade
comum a todos) e da organização e da dinâmica familiares
(valores e práticas que podem possibilitar ou não condições
favoráveis ao desenvolvimento dos indivíduos).
Embora se saiba que todos esses fatores determinam-se
mutuamente, é preciso destacar que não existe unanimidade quando
se trata de explicar quais seriam os componentes estritamente
biológicos, maturacionais ou sociais do desenvolvimento humano.
Principais teorias do desenvolvimento
Existem várias teorias do desenvolvimento. Nesta Unidade,
vamos utilizar, como base, a classificação proposta por Papalia, Olds e
Feldman (2006).6
6
Fizemos uma pequena, mas importante alteração na classificação original. Papalia e
colaboradores situaram a teoria de L. S. Vygotsky como parte da perspectiva contextual, junto com
a teoria de U. Bronfenbrenner. Embora ambos defendam a necessidade de analisar o
• a perspectiva psicanalítica
Tem como foco
desenvolvimento.
as
forças
inconscientes
que
mobilizam
o
• a perspectiva da aprendizagem
Estuda comportamentos e fatos observáveis, destacando o papel do
ambiente no desenvolvimento.
• a perspectiva humanista
Enfatiza a capacidade dos indivíduos de promoverem seu próprio
desenvolvimento positivo e saudável.7
• a perspectiva cognitiva
Tem como objeto de estudo o desenvolvimento dos processos de
pensamento.8
• a perspectiva histórico-cultural ou sócio-histórica
Analisa o desenvolvimento das funções psicológicas superiores em sua
relação com o contexto histórico.9
• a perspectiva etológica
Uma das mais recentes, tornou-se conhecida principalmente pela
teoria do apego desenvolvida por John Bowlby,10 que, a partir da
década de 1950, passou a estudar o desenvolvimento humano
utilizando princípios da psicanálise e da etologia.11 Para o autor, os
desenvolvimento humano contextualmente, os conceitos de contexto no qual se fundamentam são
bem distintos. Por isso, decidimos tratar as teorias separadamente.
7
Um dos seus principais representantes é Carl Rogers.
8
Jean Piaget é o mais conhecido entre os psicólogos cognitivistas.
9
Teoria de Lev Vygotsky.
10
John Bowlby (1907-1990) foi um psiquiatra inglês.
11
A etologia é uma área de estudos que se caracteriza pela observação dos hábitos e
comportamentos de espécies animais, geralmente em seu ambiente natural. Teve origem na
década de 1930, com os estudos dos zoólogos Konrad Lorenz e Niko Tambergen.
bebês humanos (tanto quanto os filhotes de animais) são
biologicamente predispostos a se apegarem a seus pais ou a adultos,
considerados mais aptos para lidar com o mundo (BOWLBY, 1990,
1997). O apego é construído através de vínculos afetivos, fundamentais
para a sobrevivência da espécie e para a construção de sentimentos
positivos que impulsionam a criança a explorar o mundo com maior
segurança.
• a perspectiva contextual
É ainda mais recente do que a etológica. Seu principal expoente é Urie
Bronfenbrenner,12 que desenvolveu a teoria bioecológica. Para o autor,
o desenvolvimento ocorre por meio de processos cada vez mais
complexos de interação entre as particularidades das pessoas e as
características dos contextos nos quais se inserem. Ele identifica cinco
sistemas contextuais interligados, desde os mais íntimos aos mais
amplos: microssistema, mesosistema, exosistema, macrosistema e
cronosistema.13
PARA REFLEXÃO
Considerando todos os conteúdos trabalhados nesta Unidade, faça
uma listagem dos tipos de influências que determinam a construção
social do desenvolvimento em nossa sociedade.
Pensando agora em sua história de vida, que influências você
considera que foram mais significativas? Que influências você acha
que, ainda hoje, afetam seu desenvolvimento?
Referências:
ARIÈS, P. P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro:
Zahar Ed., 1978.
BEE, H. A criança em desenvolvimento. 9. ed. Porto Alegre: Artmed
Editora, 2003.
12
Urie Bronfenbrenner (1917-2005) foi um psicólogo russo naturalizado americano.
Para saber mais sobre essa perspectiva, você pode ler o livro A Ecologia do Desenvolvimento
Humano: experimentos naturais e planejados, de U. Bronfenbrenner.
13
BOWLBY J. Formação e rompimento de laços afetivos. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
______. Apego. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes; 1990.
BRONFENBRENNER, U. A Ecologia do Desenvolvimento Humano:
experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas,
1996.
CERISARA, A. Rousseau: a Educação na infância. São Paulo:
Scipione, 1989. (Coleção Pensamento e Ação do Magistério).
CÓRIA-SABINI, M. A. A Psicologia do Desenvolvimento. São Paulo:
Editora Ática, 1993.
GÉLIS, J. A individualização da criança. In: ARIÈS, P.; CHARTIER, R.
(Org.). História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes.
Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Cia das Letras, 1991, p. 311-329.
(Coleção História da Vida Privada, v.3).
ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São
Paulo: Martins Fontes, 1975.
PAPALIA, D. R.; OLDS, S. W.; FELDMAN, R. D. Desenvolvimento
Humano. 8. ed. Porto Alegre: Artmed Editora, 2006.
ROUSSEAU, J. J. Emílio ou Da Educação. São Paulo: Martins Fontes,
1977.
______. Do contrato social. São Paulo: Martins Fontes, 1975.
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