A prova penal no contexto da dignidade da pessoa humana VICENTE GRECO FILHO Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Procurador de Justiça aposentado e sócio do escritório Greco Filho Sociedade de Advogados ALESSANDRA ORCESI PEDRO GRECO Mestre pela Universidade Mackenzie Doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e sócia do escritório Greco Filho Sociedade de Advogados 1. Introdução Já se disse que prova é liberdade. Convictos dessa afirmação, neste trabalho objetivamos demonstrá-la. Para isso, contudo, há muitas premissas a colocar. Temos que enfrentar e definir a relação entre a ordem jurídica e a liberdade das pessoas, a esfera intangível da pessoa humana, as garantias processuais como fundamento da dignidade da pessoa humana, o processo mental de convencimento, a legitimidade da atuação das regras de julgamento, as verdades possíveis e a função da intuição e do conhecimento privado do Juiz. O tema, apesar de ser diretamente ligado à atuação judiciária de todo dia, envolve aspectos filosóficos da Gnoseologia, da Psicologia Comportamental, dos tabus e preconceitos sociais e da dignidade da pessoa humana. O processo de convencimento se dá espontaneamente, mas somente será legítimo para impor restrições de direitos de natureza penal se fundado em uma lógica compreensiva que deve ou deveria ser exposta expressamente na decisão, sob pena de aquela consubstanciar ato de arbitrariedade autoritária. 2. O dilema do conceito e projeções da dignidade da pessoa humana A explicitação da dignidade da pessoa humana, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil na Constituição de 1988, suscitou indagações sobre o conceito e as projeções da figura enquanto princípio informador da ordem jurídica, não apenas no plano legislativo, mas também no da aplicação prática da lei, sem se falar, evidentemente, de dever ser o núcleo das políticas públicas. Vez ou outra os Tribunais recorrem ao princípio supralegal para alcançar uma decisão justa sem solução legal ou quando a interpretação técnica da lei não seria suficiente para isso. Não se pode, porém, deixar de referir casos curiosos, como a ação civil pública trabalhista, proposta em uma das capitais brasileiras, que pleiteou a proibição judicial de que determinada empresa cronometrasse o tempo que os empregados utilizavam os serviços sanitários fundada na violação da dignidade da pessoa humana. Todas as consagrações constitucionais dos direitos individuais supõem a existência de alguns direitos básicos da pessoa humana, os quais pairam, inclusive, acima do Estado, porquanto este tem como um de seus fins principais a garantia desses direitos. Tal concepção, porém, tem sido objeto de críticas tanto pelos positivistas quantos pelos que sustentam o Direito puramente formal. Os primeiros, porque não admitem no Direito nenhuma estimativa de valor ou o Direito Natural, e os outros, porque afirmam não existir direitos fora ou acima do Estado ou da ordem jurídica estabelecida, já que os direitos individuais seriam apenas aqueles garantidos por um ordenamento constitucional em dado momento histórico e lugar. Ambas as posições, porém, são extremadas e unilaterais, e, portanto, inaceitáveis. O Direito talvez, cronologicamente, coincida com o homem e a sociedade, mas não pode ser entendido senão em função da realização de valores, no centro dos quais se encontra o valor da pessoa humana. Aliás, toda ordem jurídica não teria sentido se não tivesse por fim ou conteúdo a realização desses valores. Logicamente, portanto, o valor da pessoa humana antecede o próprio Direito Positivo, condiciona-o e dá-lhe razão de existir. Mesmo os defensores do formalismo jurídico, como Stammler e Del Vecchio, não conseguiram a concepção puramente formal da realidade jurídica, porquanto admitiram, como bases do Direito, princípios ou máximas que, no fundo, são princípios éticos. Stammler 1, por exemplo, apesar de seu formalismo, acaba por enunciar princípios de um Direito justo, cedendo, pois, aos conceitos éticos, que são os seguintes: 1. Princípios de Respeito: a) uma vontade não deve nunca ficar à mercê do arbítrio do outro; b) toda exigência jurídica deverá ser de tal forma que o obrigado seja visto como o próximo, isto é, como semelhante. 2. Princípios de Solidariedade: a) um indivíduo juridicamente vinculado não deve nunca ser excluído da comunidade pela arbitrariedade de outro; b) todo poder de disposição outorgado pelo Direito só poderá excluir os demais de tal modo que, no excluído, veja-se o próximo, semelhante. 1 Rudolf Stammler, Filosofía Del Derecho, Madrid, 1930, pp.257e ss. Stammler tenta afirmar, ainda, que os princípios do Direito justo teriam apenas a significação de “pensamentos metódicos” que ajudem a escolher a norma justa, dentre as normas jurídicas concretas que se ofereçam como decisivas e apareçam no curso histórico. Todavia, é inegável que o critério é valorativo e suprajurídico, a demonstrar a existência de algo que o Direito deve preservar e que se encontra além da realidade jurídica e histórica. Esse valor supremo é o valor da pessoa humana, em função do qual todo o Direito gravita e que constitui sua própria razão de ser. Mesmo os chamados direitos sociais existem para a proteção do homem como indivíduo, e, ainda que aparentemente, em dado momento histórico, abdiquem-se de prerrogativas individuais imediatas, o Direito somente será justo se nessa abdicação se encontrar o propósito de preservação de bem jurídicosocial mais amplo que venha a repercutir no homem como indivíduo. A restrição de direitos individuais, portanto, tem sentido e conteúdo quando a prevalência da vontade de um indivíduo pode representar a destruição ou perigo de destruição de outras vontades individuais legítimas. É certo que a concepção filosófica de determinada sociedade e, portanto, de determinado Direito, pode influenciar na maior ou menor dosagem de faculdades individuais, mesmo porque pode variar a própria concepção que se faça da pessoa humana, seu destino, suas necessidades, sua essência espiritual ou material, etc. Não temos dúvida de que o conteúdo e a projeção do conceito de dignidade da pessoa humana são histórico-culturais e variam de acordo com convicções sociais de cunho religioso e ideológico. Autores mais recentes expõem a respeito graves e difíceis dilemas em diferentes temas, como o da eugenia, das experiências com embriões humanos e da sobrevivência da espécie humana como a conhecemos hoje. Héctor Ricardo Leis 2 aponta, entre outros, o seguinte dilema: “o que é mais importante para o desenvolvimento da humanidade, a evolução dos indivíduos como espécie (entendendo isto basicamente como um melhor desenvolvimento das condições genéticas dos indivíduos) ou a evolução dos indivíduos como sociedade?” Habermas 3, por sua vez, no que se refere à disponibilidade dos recursos genéticos para fins de alterações do corpo humano, terapêuticas ou não, sustenta que é fundamental estabelecer uma distinção entre, de um lado, a dignidade humana e, de outro, a dignidade da vida humana. Essa diferenciação é básica para se situar os riscos por que passa a nossa capacidade de autocompreensão como membros de uma mesma espécie e, portanto, situados em um mesmo contexto discursivo entre pessoas iguais. 2 “O conflito entre a natureza humana e a condição humana no contexto atual das ciências sociais”, in Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas, UFSC nº. 50, dez./2003. 3 Jürgen Habermas, O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal?, trad. de Karina Jannini, São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 160. Segundo o filósofo, a dignidade humana representa uma condição moral ou jurídica que marca as relações entre sujeitos portadores de direitos e deveres, mutuamente imputáveis e circunscrito a um mesmo contexto normativo. A dignidade humana faz, portanto, sentido na contingência dos acordos estabelecidos no interior de uma comunidade composta por seres morais, dotados de relações simétricas e responsáveis, ou seja, dentro de formas concretas de vida coletiva. A dignidade da vida humana, por sua vez, transborda os limites das práticas morais acordadas e remonta tanto a estágio pré-pessoais, em que os indivíduos estão ainda em formação, quanto às condições em que a vida se esvaiu. A vida humana antecede a construção dos contextos morais de interação e solicita uma concepção de dignidade própria, mais abrangente e menos específica que o termo definido como dignidade humana. Daí, que a utilização de biotecnologias que intervêm na herança genética dos seres humanos pode significar a primazia do justo em relação ao bom, colocando em dúvida se “a tecnicização da natureza humana altera a autocompreensão ética da espécie de tal modo que não possamos mais nos compreender como seres vivos eticamente livres e moralmente iguais, orientados por normas e fundamentos”. As discussões estão apenas no início, mas, independentemente do conteúdo e das projeções práticas que se queira atribuir ao conceito de dignidade da pessoa humana, não há dúvida de que é no processo judicial que eclodirão. Isso porque o direito material e o processo caminham juntos, de modo que este é instrumento daquele e, aliás, dignifica-se na razão direta em que aquele se manifesta como buscando a estabilidade e a Justiça. É certo que cada Juiz tem suas convicções pessoais, e isso é inevitável pela própria condição da natureza humana, mas elas não podem sobrepujar o império da ordem jurídica fundada na pessoa humana e o conteúdo da missão a ele constitucionalmente reservada. A independência do Magistrado é a de aplicar o Direito, observadas as condições sociais e axiológicas, e não a de repudiá-lo, porque essa atitude é autoritária e antidemocrática. Merecem referência as palavras de Vincenzo Balzano 4 sobre a função de Magistrado: “O Juiz é diretamente investido pela Constituição em seu poder de fazer Justiça, sem subordinação que não seja a da lei e sem interposições ou vontade que o intermedeie, nem sob a forma de mediação nem sob a forma atributiva do poder. A atividade judiciária se personaliza exatamente em cada Magistrado que, no ato de julgar, não se anula no aparato institucional da função, mas age como titular originário do poder”. É assim que, para bem julgar, o Magistrado precisa ter a visão cósmica da realidade jurídica e também a da realidade cultural. Não basta a informação, porque é necessário 4 “Una costituzione per governare - La grande riforma proposta dai socialisti”, in Quaderni di Mondo Operaio, Marsílio, nº 13, set./1981. formação. E esta, sem prejuízo daquela, exige cultura humanística e uma visão global da humanidade. Por outro lado, é na Constituição que o processo penal vai encontrar seu embasamento, porque nela estão consagrados os princípios do regime adotado por uma nação, e podemos dizer que o sistema brasileiro revela uma diretriz inequívoca de valorização da pessoa humana. Essa linha personalista encontra-se na garantia dos direitos do trabalhador, nas liberdades públicas etc., mas seria frágil se se abstraísse a definida proteção que se deseja dar ao homem acusado. Apesar de o Estado Moderno ser intervencionista, sua interferência nos negócios jurídicos se dá no campo do domínio econômico, permanecendo resguardada a integridade do indivíduo como pessoa, no campo penal. Na descrição dos delitos e cominação de penas, a preocupação é a mesma; todavia, é no processo que ela se revela com maior amplitude, porque, na verdade, no processo penal não se julga apenas um fato delituoso, mas também uma pessoa. O processo constitucionalmente estruturado, portanto, atua como indispensável garantia passiva contra o arbítrio do que eventualmente representa o Estado, cabendo ao Poder judiciário a efetivação dessa garantia. Costuma-se dizer que o processo penal é o modo pelo qual atua a jurisdição em matéria penal. Esta, fazendo atuar a ordem jurídica penal, deve definir, em relação a um caso concreto, se o acusado é culpado ou inocente, ou seja, se sua conduta constitui ou não ilícito penal, determinando a quantidade de pena que a tal fato corresponde. A sentença penal condenatória libera a coação estatal e autoriza, nos limites que fixar, a restrição à liberdade. A consumação desse ideal está no Devido (necessário e adequado) Processo Legal, no qual é inafastável a existência de prova dos fatos e sua correta apreciação. 3. Intuição e prova processual A intuição é um fenômeno psicológico que tem escapado de uma definição segura e não temos conhecimento, talvez por simples ignorância, de que tenha sido analisado em face da prova processual. Mesmo em trabalhos monumentais, como o de Taruffo 5, não encontramos preocupação específica quanto a esse aspecto. As preocupações voltam-se mais para a racionalidade do julgamento e a lógica do raciocínio jurídico. A experiência judiciária, porém, mostra que ela pode atuar significativamente, no processo penal em espécie, desde a investigação policial até a decisão definitiva. Mas será que ela existe? O tema tem sido abordado pela Filosofia e pela Teoria da Ciência e, sem dúvida, pela Psicologia: “Todas as descobertas e invenções resultam exclusivamente de intuições. 5 In La prova dei fatti giuridici, Milão, Giuffrè, 1992. A idéia genial sempre resulta de um lampejo espontâneo que faz brotar no consciente uma verdade que jamais pode ser atingida pelo raciocínio” (René Descartes). Alberto Mesquita Filho, 6 expõe: “Não é fácil conceituar a intuição. Se perscrutarmos os dicionários, encontraremos algo do tipo: a intuição é o ‘ato de ver, perceber, discernir, pressentir’. Fica-nos, então, aquela impressão de que a intuição é o ‘ato de ver’ algum objeto ou fenômeno de maneira diferente daquela normalmente vista pela maioria das pessoas que ‘olham’para este objeto ou fenômeno. Por exemplo, bilhões de pessoas, no decorrer de milhares de anos, já devem ter se deparado com um cenário, ao cair da tarde, em que por trás de uma macieira, repleta de frutos suspensos por pedúnculos, visualiza-se a Lua, ‘fixa’ ao firmamento. Quantos ‘viram’ algo além de maçãs e Lua? Pois é bem possível que num cenário como este e em seu sítio, em Woolsthorpe, o jovem Isaac Newton, com apenas 24 anos de idade, tenha ‘visualizado’, além de maçãs e da Lua, a inércia retilínea e a atração entre corpos com massa. Entre a visão normal, ou o ato puro e simples de ‘olhar’, e a visão sofisticada, qual seja, o ‘ato de ver, de perceber, de discernir, de pressentir’, reside o segredo da intuição, também descrita como ‘a contemplação pela qual se atinge a verdade por meio não racional’.” Realmente, definir intuição é difícil se não impossível, e a tentativa de fazê-lo contém pérolas de “indefinição”, como a de Bergson: “A intuição é um mergulho de espíritos na realidade fluida das coisas”. O fenômeno da intuição está relacionado a outro fenômeno humano que atua nas artes, nas ciências e em todos os campos da vida pessoal e social, a criatividade, também de difícil conceituação, mas que pode ser entendida como a capacidade de gerar idéias inusitadas produzindo resultados úteis. Entre as muitas concepções de criatividade, citamos apenas duas porque serão interessantes para o raciocínio a seguir: a de Sigmund Freud e a de Henri Poincaré. Para Freud, o trabalho criativo é o resultado da sublimação de impulsos reprimidos; para Poincaré, a criatividade revela parentescos inesperados entre fatos conhecidos, mas erroneamente tidos como estranhos uns aos outros. Ambas, a intuição e a criatividade têm pontos comuns e pontos diferenciais. A diferença essencial é a de que a intuição mantém-se no plano do conhecimento; “sei que é mesmo sem saber por que sei”: a criatividade está inserida em uma atividade produtiva, de transformação da realidade: “estas coisas estáticas, se transformá-las ou combiná-las, serão outra coisa.” A criatividade, porém, não se limita à compreensão de que coisas podem ser transformadas em outras coisas. É a própria realização das segundas. O que as observações de Freud e Poincaré nos mostram são dois aspectos de operação criativa. 6 “Ensaios sobre a Filosofia da Ciência”, in Espaço Científico Cultural - www.ecientificocultural.com. A observação de Freud (sublimação de impulsos reprimidos) refere-se à origem ou ao fundamento da criatividade (segundo sua teoria psicológica); já Poincaré preocupa-se com a compreensão (intuitiva) da relação entre as coisas e a intuição de onde se pode chegar com elas. As duas, porém, não definem a criatividade, mas aspectos periféricos. O ponto comum, sem prejuízo de outros, entre intuição e criatividade é que o ato de criar poder partir do conhecimento intuitivo de que os elementos colocados à disposição podem transforma-se em outros, segundo uma lógica não formal, uma lógica intuitiva. Todavia, não esqueçamos que na criatividade pode predominar a técnica da experimentação e do erro, bem como a surpresa do resultado ou dos efeitos colaterais inesperados, do acaso, como ocorreu com a criação do forno de microondas e inúmeras outras criações todas, aliás, do homem. Não vislumbramos dúvida em que existe criatividade no processo judicial, como a estratégia de propositura da ação, a estratégia de defesa e a muito importante formulação de novas interpretações jurídicas para a sustentação de pretensões em casos concretos. Em grande número de vezes, apesar dos mais de 40 anos de atividade com Direto, ainda hoje somos surpreendidos por colocações inusitadas e criativas, ainda que não aceitáveis. Quanto à intuição na Teoria da Prova, tema principal desta digressão, a primeira questão é: a intuição existe na aplicação do Direito no momento processual probatório e é realmente um meio de compreensão não racional? A segunda é: sendo ou não, atua teórica e praticamente na prova processual? Quanto à primeira, usando o método científico e filosófico, vamos colocá-la em dúvida, aliás, a partir do método cartesiano da dúvida. A intuição não seria, apenas, uma percepção inteligente das regras da experiência técnica e da experiência comum, quiçá combinadas? Ou seja, a preparação intelectual, técnica e cultural da vida não ensejaria a dita intuição, enquanto extrapolação das aparências para uma compreensão alem delas? Disse Albert Einstein que na produção científica há uma pequeníssima parte de inspiração e a maior parte de transpiração, ou seja, o suor do trabalho. Vamos concordar provisoriamente. Como método de estudo, trabalharemos em sentido contrário, da transpiração para a eventual inspiração, tentando saber se tudo não decorre da experiência anterior e se a intuição é, ou não, um fator especial, independente da experiência. Na própria opção de vida no campo jurídico, pode existir um impulso inicial de difícil explicação, como dedicar-me ao Direito Processual ou à Filosofia do Direito e não ao Direito Agrário, ou vice-versa. Houve uma escolha que aparentemente não teria origem experimental. Mas tem ou pode ter. Essa escolha certamente tem como antecedentes fatores experimentais, inclusive a prática decorrente da observação da vida quando às oportunidades profissionais. A opção pode não ser totalmente consciente, mas acaba fundada em um segundo nível de memória e compreensão, que foi depositada na mente, de qualquer maneira, a partir de experiências. Para alguns a opção é correta e dá certo, para outros não, com a consequente frustração e problemas psicológicos. A intuição é o impulso que dá certo? Quantos outros impulsos são desastrados... Lembre-se, também, de que as opções podem ser advindas do método da tentativa e erro, de modo que a certa pode resultar simplesmente da teimosia em face de tentativas anteriormente frustradas. Há, ainda, outro componente – a resignação em face da condição humana: “não gosto da situação, mas não tenho possibilidade de mudar”. No caso, a intuição atuou como impulso que resultou em algo certo ou errado, mas que não deixará de estar presente durante todo o desenvolvimento do contexto da evolução de A para B. Em tudo, há dois elementos essenciais: a intuição para a opção de escolha e a experiência, indubitavelmente. No campo da prova acontecem os mesmos fenômenos. Quantas e quantas vezes, olhando para uma testemunha compreendemos que está ou mentindo ou falando a verdade, como também quando requeremos determinada prova em detrimento de outra (e a que requeremos pode ser desastrosa para nossos interesses processuais). De outro lado, se a compreensão da mentira ou da verdade foi alcançada é porque conhecemos previamente, que os comportamentos das pessoas e suas atitudes, ainda que sutis, têm um significado, em virtude de experiências anteriores. Os dois fatores interagem, o impulso e a compreensão, intuitivos, e a experiência. Como atua a experiência? Trata-se de condição de validade lógica da atuação da intuição. Não há intuição sem experiência e a intuição, que é a percepção de algo além do racionalmente posto, existe a partir da experiência de cada um. Temos, então, dois elementos: o conhecimento decorre da experiência, que é condicionante do segundo, a capacidade de a mente humana ultrapassar as etapas de raciocínio e a capacidade de saber sem saber por quê. Parece, então, que a intuição existe, mas, de outra parte, que somente pode atuar a partir da experiência. Nessa concepção, extrapolando o conceito kantiano, a experiência é condição de validade lógica da atuação da intuição (condições de validade lógica são o transcendental, termo, aliás, erroneamente aplicado como sinônimo de transcendente). Daí, podemos passar às conclusões: 1 – A intuição existe em face da prova processual, como existe na vida, percepção inexplicável no plano lógico; 2 – A intuição atua como base de impulso para a tomada de decisões. Trata-se de uma visão para o ulterior, que pode, porém, estar certa ou errada. 4. As três verdades: prova matemática, prova científica e prova jurídica ou histórica Este item foi inspirado pela instigante leitura do livro O último teorema de Fermat, 7 porque sempre tivemos preocupação com a prova e sua teoria, no sentido de identificar os mecanismos do convencimento do Juiz e os mecanismos que o levam a dar como certa ou reconhecida determinada situação de fato, da qual decorrem conseqüências jurídicas, preocupação por nós demonstrada em diversos escritos, acadêmicos ou não. Na área jurídica, há trabalhos monumentais, como os de Malatesta, Mittermaier, Bettiol, Levasseur e, entre nós, o de Moacyr Amaral Santos, com o perdão da falta de referência expressa a outros de igual importância, mais antigos e mais recentes. Não é possível, porém, deixar de mencionar o trabalho de Michele Taruffo, em especial o seu monumental La prova dei fatti giuridici. O livro de Simon Singh, porém, fez-nos ver o que já intuíamos. A intuição, contudo, nem sempre é suficiente, em especial quando se está na posição de alguém que pode decidir a vida dos outros com uma decisão judicial. Não se nega o poder e a importância da intuição (que também pode ser analisada do ponto de vista da lógica da vida e dos sentimentos psicológicos). Percorre no mundo a idéia da inteligência emocional, que acentuaria a importância do psicólogo e da intuição, mas inteligência é inteligência, abrangendo a compreensão de todos os aspectos do fenômeno a ser examinado e em face 7 Simon Singh, Rio de Janeiro, Record, 2002. do qual reagiremos, aspectos externos e os internos àquele que deve atuar diante dele. Somam-se a capacidade mental, a compreensão da vida, a cultura, o modo de ser de cada um, o sentimento de humanidade (positivo ou negativo), a emoção, a intuição e, sem dúvida, os preconceitos. Houve quem tentasse resolver o problema pela lei de probabilidades, como Bayes, nos Estados Unidos. O livro referido me fez propor a sugestão de que há três tipos diferentes de verdades e, em decorrência, de convencimento: a verdade matemática, a científica e a jurídica ou histórica. Pode ser que existam outras, como a religiosa, como, também, há classificações diferentes da realidade como a de Popper. Para nossos efeitos, porém, vamos ficar com a nossa, apesar de que hoje, quando relemos estes parágrafos, reconhecemos a existência de outra verdade: a puramente emocional. “Gosto de você!”. É indiscutível. A verdade matemática é absoluta e universal, como o Teorema de Pitágoras: “num triângulo retângulo o quadrado de hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos”. Isso vale absolutamente para todos os triângulos retângulos e, em reverso, se se encontrar essa relação, estará diante de um triângulo retângulo. Trata-se de lógica pura. Já a verdade científica (aliás, dever-se-ia colocar “verdade”) nunca é absoluta como um teorema matemático. Ela é aceita como uma situação e na altamente provável, mas baseada na observação e na percepção, que fornecem apenas aproximações em relação à verdade e, portanto, são falíveis. As observações e comprovações científicas cada vez mais tendem a aproximar a realidade da sua expressão externa. Assim, por exemplo, a prova partir do exame de DNA. A prova científica, todavia, sempre é passível de revisão na medida que novas conquistas técnicas podem trazer elementos anteriormente desconhecidos. Assim, por exemplo, se houve a convicção de que o átomo era composto por um núcleo de prótons e nêutrons, circundado por elétrons, mais tarde descobriu-se a existência de píons e múons, isto sem se falar das partículas fracionárias, os quarks. Como afirma Singh, na obra anteriormente citada, a ciência “funciona por um sistema semelhante ao da Justiça. Uma teoria é considerada verdadeira se existem evidências suficientes para apoiá-la além de toda dúvida razoável”. Por outro lado, a Matemática não depende de evidências tiradas de experiências sujeitas a falhas e sim construídas sobre a “lógica infalível”. A chamada verdade jurídica, ou histórica, porém, é ainda mais complexa e difícil por diversas razões. Primeiro, porque os fatos a ser considerados pelo Juiz encontram-se em determinada dimensão espacial e temporal, que é mutável e incerta do ponto de vista de outro Juiz ou de nós todos. Segundo, porque na aplicação da lei é fundamental a distinção entre a “verdade” fática e o convencimento do Magistrado, que pode, até, deixar de reconhecê-la por razões de política social. Terceiro, porque a “verdade judicialmente relevante é história e, portanto, sujeita á relatividade dos juízos históricos. Aliás, explica Liebman, 8 que “por maior que possa ser o escrúpulo colocado na procura da verdade e copioso e relevante o material probatório disponível, o resultado ao qual o Juiz poderá chegar e conservar é, sempre, um valor essencialmente relativo: estamos no terreno da convicção subjetiva, da certeza meramente psicológica, não o da certeza lógica, daí referir-se sempre a um juízo de probabilidade, ainda que muito alta, de verossimilhança (como é próprio a todos os juízos históricos)” (tradução nossa). Quarto, porque a “verdade” juridicamente relevante deve levar em conta elementos impossíveis de ser captados de forma direta ou, ainda que o sejam, de forma científica, muito menos matemática, como os elementos subjetivos constitutivos do tipo penal. 5. O mecanismo do raciocínio do Juiz Permitam-nos repetir algumas considerações a respeito feitas em A culpa e sua prova nos delitos de trânsito, 9 considerações aplicáveis tanto ao Direito, em geral, quanto ao mecanismo de apreciação dos fatos e à conclusão quanto à sua legalidade ou ilegalidade. Aliás, no texto, quando há referência a “infração penal”, entenda-se ampliativamente, “legalidade ou ilegalidade de fato”. Por encontrar-se no limiar da Teoria do Conhecimento e da Psicologia, a análise do processo mental, na formação do convencimento do Juiz quando às provas, apresenta as mesmas dificuldades e divergências conceituais. É comum, por exemplo, a confusão entre o conhecimento da experiência enquanto fato e o conhecimento valorado do fato. Não é de se entranhar essa confusão, porque os fatos, e mesmo as palavras, apresentam-se sempre com grande carga emotiva, de modo que é difícil, na práxis, identificar no raciocínio o que seja a constatação de um fato e o que seja a sua valorização. De outro lado, o cérebro humano é a única inteligência que salta etapas no processo de alcançar a conclusão. Os computadores não podem fazer isso, se é que se pode qualificá-los dentro do conceito de inteligência. Tem, ademais, o cérebro do homem memória analógica, de infinitas gradações e implicações, de modo que as sutilezas da compreensão do fenômeno do convencimento jamais poderiam ser reduzidas a um programa digital. Não se pretende, também, retornar ao sistema da prova legal ou da dosimetria das provas. Todavia, a análise do procedimento lógico do convencimento, com a decomposição de suas etapas e a identificação de suas naturezas sob o ponto de vista lógico e sob o sistema digital (por passos definidos e separados) é útil, para o Juiz e as partes saibam em que trilhas estão caminhando e possam conferir a sua segurança. 8 9 Manuale di Diritto Processuale Civile, Milano, Giueffrè, 1973, vol. 2, p. 68. Vicente Greco Filho, Saraiva, 1993, cap. IV. Bettiol 10 procurou distinguir as presunções propriamente ditas das verdades interinas ou provisórias, porque, segundo seu entendimento, as primeiras seriam formulações legais que, a partir de um fato indiciante, levam à conclusão de outro fato, ao passo que as últimas são conclusões que se admitem sem a necessidade de qualquer prova direta de um fato indiciante, respondendo a uma necessidade psicológica que impulsiona o Juiz a dar como verdadeiro e existente aquilo que está de acordo com o curso natural das coisas. Exemplos de verdades interinas ou provisórias: a capacidade penal após os 18 anos, a presunção de voluntariedade do fato, a presunção de dolo, entre outras. Nesse caso, o fato é dado como certo, ainda que possa ser contrariado no caso concreto, mas, segundo o jurista, não apresenta a mesma relação do fenômeno das presunções, que exige a existência de norma legal correlacionando fato indiciante e outro fato, facilitando a prova do segundo. Distingue, também, o mesmo autor, as presunções das ficções, consistentes na atribuição, feita pela lei, a um fato de conseqüências jurídicas previstas pela ocorrência de um fato diferente, se que entre os dois fatos subsista algum liame particular. Nas presunções, inclusive as absolutas, o liame feito pela lei corresponde ao que ordinariamente acontece; nas ficções, o resultado jurídico é desejado pela lei ainda que sejam contrários ao cálculo de probabilidades, ou seja, da experiência. Quanto aos indícios, adverte o mesmo jurista, são elementos ou complexo de elementos de natureza objetiva e subjetiva dos quais se conclui a existência do fato presumido, não havendo distinção muito precisa entre prova por presunção e prova por indícios, porque esta não é somente resultante de uma indução, mas deve ser corroborada por uma regra de experiência, a qual, segundo acontece na generalidade dos casos, justifica a ligação entre fato indiciante e fato indiciado. E a presunção, como se disse, encerra uma regra de experiência que foi consagrada pela lei. A presente temática se insere, disse-o Florian, 11 em tormentoso problema: se e em que medida pode o Juiz, por si e de maneira unilateral, utilizar o seu saber particular (scire per se) no que concerne ao material que servirá de base à sua convicção e à sua decisão expressa na sentença. Antes de tudo, é preciso distinguir entre o conhecimento privado do fato concreto sub judice, que faria do Juiz testemunha, e o conhecimento privado da norma jurídica, de regras científicas ou dos padrões de comportamento humano. A primeira situação, ainda que indesejável, em muitas hipóteses, não pode ser evitada, especialmente em comunidades menores. O Juiz não deixa de ler jornais, não deixa de ouvir comentários sobre fato momentoso e não pode evitar passar pelo cruzamento em que ocorre uma colisão de veículo, sabendo, portanto, se o cruzamento é sinalizado, ou não, se as ruas estão em aclive ou declive, etc. 10 Giuseppe Bettiol, Sulle presunzioni nel Diritto e nella procedura penale, Milano, Giuffe,1938, pp.9 e ss. A escolha do jurista italiano para a apresentação de conceitos preliminares como tese, cuja crítica levará à síntese e proposta de nova formulação, deveu-se à clareza de suas idéias e de suas exposição, o que não exclui a possibilidade de o mesmo método ser seguido a partir de outro autor, haja vista as semelhanças de entendimento de outros autores. 11 Eugenio Florian, Delle prove penali, Milano, Vallardi, 1924, vol. I, p.363. Neste caso, da mesma forma que o perito não pode formular conclusões normativas ou fazer a qualificação jurídica dos fatos, não pode o Juiz basear a sentença em fatos de seu conhecimento particular que não estejam nos autos ou que estejam, mas em sentido contrário. Pode o Juiz, de ofício, exercendo seu poder de determinar provas em caráter complementar, e invocando o Princípio da Verdade Real, providenciar para que a prova seja feita ou corrigida, passando pelo crivo do contraditório. Se isso não for providenciado ou não for possível, o Juiz deverá concluir exclusivamente a partir das provas constates dos autos, a despeito de sua convicção íntima estar ditando diferentemente. Ainda que seja imponderável a influência psicológica do conhecimento particular do fato (conhecimento esse que pode ficar oculto para as parte), a segurança do julgamento decorre do que objetivamente for expresso na sentença como fundamento para a conclusão, podendo as partes, e os Tribunais de grau superior, conferir se o fundamento é suficiente para sustentála, como expusemos no item anterior. Não é apenas no campo do conhecimento particular do fato que pode haver influência psicológica. Também experiências anteriores de vida, a cultura geral, a tendência política, a religiosidade, etc. influem, mas ficarão dentro do razoável à medida que as provas foram examinadas e apreciadas segundo os padrões normais das pessoas, o que, como se afirmou, pode ser conferido em grau de recurso. Quanto ao segundo tipo de conhecimento privado, o relativo às normas jurídicas, científicas ou comportamentais, a sua utilização faz parte da própria função jurisdicional, não só porque cabe ao Juiz conhecer o Direito a aplicá-lo, mas também porque a sentença deve corresponder às leis da natureza e às leis sociais de comportamento humano. O perito pode ser um instrumento de apresentação da regra científica, mas as regras científicas também se encontram nos livros, e o Juiz pode ter esse conhecimento por si mesmo, sem intermediários. Não deve ele, certamente, afastar a participação do perito por conhecer as regras científicas, porque o perito, ao descrevê-las, dá esse conhecimento às partes e ao Segundo Grau de Jurisdição, mas não está o Juiz impedido de aplicar o seu conhecimento pessoal e, mesmo, afastar, fundamentadamente, a regra apresentada pelo perito, se o conhecimento científico mais moderno indicar o contrário. Quanto às regras que se aplicam ao comportamento humano, igualmente, podem elas ser do conhecimento geral e o Juiz as aplica automática e intuitivamente ou podem ser objeto de investigação, mas serão entendidas sempre como proposições normativas, e não como matéria de fato. Aqui reside, no plano dos conceitos, o problema mais sério das definições de Giuseppe Bettiol, citado como referência para a crítica, qual seja a confusão ou mesmo a identificação entre o que seja fato e o que seja regra, ou pior, o que seja a conclusão do fato valorado pela regra. Assim, é manifesta a confusão ou utilização indistinta de indício como prova indiciária, ou ainda de indício como resultado de uma indução corroborada como regra de experiência. Se, na linguagem popular ou mesmo na do Código de Processo Penal – que usa o termo indícios (isoladamente) no sentido de fatos significativos e as expressões “indícios suficientes” e “indício veementes” para indicar graus de convencimento -, isso ocorre usualmente, no plano metodológico, é absolutamente inconveniente, porque confunde coisas diferentes e torna impossível, ou pelo menos muito difícil, conferir o raciocínio desenvolvido pelo Juiz. A concepção de indício como fato significativo é praticamente universal. Aliás, daí o termo “indiciado”, que é aquele contra o qual pendem indícios de ter sido o autor da infração penal. O conceito legal do Código revela esse sentido: “(...) circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias” (art. 239). A mesma idéia é encontrada na Doutrina mais antiga, como em Malatesta, 12 ao explicar presunções e indícios como provas indiretas, ou Mittermaier, 13 que definiu indício como um fato que está em relação tão intíma como outro fato que o Juiz chega de um para outro por meio de uma conclusão muito natural. E na Doutrina mais recente, como em Levasseur: “os indícios são fatos materiais cuja existência está estabelecida e que, sem valor demonstrativo por eles mesmos, podem, aproximados uns de outros, permitir alcançar a conclusão de que este ou aquele acontecimento, cuja existência não tenha sido estabelecida de outra maneira satisfatória, tenha sido realizado. E as presunções humanas são os raciocínios com apoio nos quais se inferem as conclusões relativas à ocorrência dos fatos e à existência dos elementos materiais ou psicológicos da infração”. 14 Este último conceito, ainda que procurando distinguir o fato, sem significado em si, da conclusão que deles se possa extrair, denota, também, a concepção de que indício é o fato de que se extrai uma conclusão. Mas é importante a distinção que faz entre o indício como fato significativo e o raciocínio que conduz à conclusão, que é a presunção humana, momentos lógicos cuja separação é necessária ao entendimento do fenômeno. No plano da compreensão humana assim acontece. O fato (indício) somente interessa se tem significado em face de outro fato, que é o que se pretende provar. A atividade investigatória, aliás, desenvolve-se com esse vetor. No plano lógico, porém, fato, em si mesmo, não pode ser confundido com fato significativo, porque existem aí dois elementos absolutamente distintos. O fato, de um lado, e a sua interpretação, de outro, sem se falar da conclusão daí decorrente. O artigo 239 do Código de Processo Penal, em sua concisão e simplicidade, sugere a solução para o problema. 12 Nicola Framarino dei Malatesta, Logica delle prove in criminale, Roma, Unione Tipografico-Editrice, 1895, pp.187 e ss. 13 C.J.A Mittermaier, Tratado de la prueba em material criminal, ampl. e atual. por Antonio Quintano Ripolles, Madrid, Instituto Editorial Reus, 1959, p. 437. 14 G. Levasseur, “Lê regime de la preuve en Droit repressif français,” in La presentation de la preuve et la sauvegarde des libertès individuelles, Bruxelles, Bruylant, 1977, p. 39. No texto legal, fato está no sentido de infração penal ou conjunto de dados fáticos correspondentes à descrição típica. Esses dados fáticos são as circunstâncias elementares, ou simplesmente elementares, podendo ser fatos objetivos ou fatos subjetivos, como o elemento subjetivo do tipo, e, mais, o fato da autoria. As elementares e a autoria podem ser demonstradas por prova direta, que é aquela que traz, em caráter imediato, o próprio fato que se pretende provar. Assim é a testemunha que presenciou a infração penal. Todavia, nem sempre é possível a prova direta, ou porque simplesmente não existe, haja vista, entre outros fatores, a clandestinidade da infração, ou porque é impossível, como acontece quanto aos fatos subjetivos. O convencimento humano, porém, satisfaz-se com a prova indireta (ou crítica), que consiste na demonstração de um fato (“circunstância” no art. 239 do Código de Processo Penal) que não é o elementar ou a autoria, mas que pode levar à conclusão de sua existência. Essa circunstância de fato é o indício. Indício, portanto, é fato e a sua aptidão, ou não, de levar à conclusão da existência ou inexistência de outro fato depende da formulação de um juízo que decorre da aplicação de uma regra. Assim, os fatos, enquanto tais, são anódinos. Seu conteúdo significativo resulta de uma valoração, em processo mental diferente daquele relativo ao convencimento a respeito de sua existência. Ou seja, uma coisa é ter prova ou convencer-se a respeito de um fato. Outra é a inferência da existência de um segundo fato em decorrência daquele. Está correta, pois, a definição de indícios no anteprojeto de Código de Processo Penal de 1983: “Art. 314 – Indício é a circunstância ou fato conhecido e provado, de que se induz a existência de outra circunstância ou fato, de que não se tem prova”. Está correta, também, a exigência da alínea a do parágrafo único: “Parágrafo único – Para que o indício constitua prova, é necessário que: a) a circunstância ou fato indicante tenha relação de causalidade, próxima ou remota, com a circunstância ou fato indicado”. Essa relação de causalidade é dada por um dos “porquês” abaixo comentados. Não está correta, porém, a restrição da alínea b do mesmo parágrafo único: “Parágrafo único – Para que o indício constitua prova, é necessário que: a) (...); b) a circunstância ou fato coincida com a prova resultante de outro ou outros indícios, ou com as provas diretas colhidas no processo”. Essa limitação não tem base científica. Há situações em que um fato apenas leva à convicção plena a respeito de outro, ao passo que há outras em que muitos fatos não levam a conclusão nenhuma. Assim, por exemplo, do fato único “tipo de lesão”, conclui-se com absoluta segurança que foi causada por arma de fogo. Há outras situações, porém, em que muitos fatos nada significam. Tudo depende da idoneidade da regra que conduz a uma determinada conclusão, que não está subordinada à quantidade de fatos antecedentes ou à existência de outras provas. Ainda quanto às proposições de Bettiol, há de se aceitar a idéia de que as presunções fazem o liame entre um fato e outro. Mas não é certo que, nas chamadas verdades interinas ou provisórias por ele referidas, o mecanismo seja diferente. Há, nelas, também, um fato antecedente, a maioridade penal do acusado, por exemplo, da qual se presume a imputabilidade que é o fato consequente; ou houve uma conduta, a qual se presume voluntária, e assim por diante. A diferença estaria em que os indícios, fatos dos quais se extrai uma conclusão, são específicos do caso concreto submetido à apreciação judicial, e as verdades interinas seriam mais gerais, mas o processo mental é absolutamente o mesmo: de um fato infere-se outro. A inferência, por sua vez, resulta da aplicação de uma regra: “se ocorre este fato, estou convencido de que ocorre aqueloutro, porque (...)”. São três as alternativas para esse porquê: 1 – a Lei assim determina; 2 – existe uma regra causal científica que faz o liame; 3 - existe uma regra de experiência ligada ao comportamento humano que leva a essa conclusão, uma vez que as pessoas tendem a agir de maneira igual em situações iguais, não só pelo condicionamento de fatores externos, mas também pelas semelhanças psicológicas básicas das pessoas. No primeiro caso, alcança-se a conclusão em virtude de presunção legal; no segundo, de uma regra técnica ou científica; no terceiro, de uma regra da experiência comum, haja vista o que ordinariamente acontece no campo da repetição de determinadas condutas ou no campo do modo de ser da personalidade humana. As presunções legais podem ser absolutas ou relativas, dependendo da possibilidade, também legal ou jurídica, de se admitir prova em contrário. Ou seja, se existe uma presunção legal significa que, demonstrado um determinado fato, a lei impõe, em caráter absoluto ou relativo, o convencimento a respeito de outro. A presunção legal pertence ao sistema da prova legal, sendo instituída pelo legislador para facilitar a demonstração de um fato por meio da demonstração de um fato antecedente (presunção relativa) ou para impor o reconhecimento da existência ou inexistência de um fato, haja vista a demonstração de um antecedente (presunção absoluta). As regras técnicas ou científicas asseguram o grau de certeza correspondente ao valor dado a ela pela ciência, em dado estágio de sua evolução. Uma regra da experiência natural pode hoje ser admitida a amanhã não, em virtude do progresso do conhecimento científico, podendo, também, apresentar diferentes graus de probabilidades ou não se aplicar se houver fatores interferentes. As regras da experiência comum decorrentes da repetição de condutas ou das reações ditadas pela psicologia humana, quanto ao grau de certeza, são de maior ou menor confiabilidade, haja vista a inexorabilidade ou repetitividade das mesmas condicionantes externas e da formação interna das pessoas. Assim, por exemplo, é mais confiável a regra “Sete de setembro é feriado nacional, logo o comércio permanece fechado”, do que “é dia de futebol, logo o trânsito nas ruas próximas ao acontecimento é dificultoso”, isso porque este segundo caso depende de muitas variáveis, tais como as condições do local, a importância do evento, etc. Aí, é preciso fazer uma importante distinção: uma coisa é a certeza a respeito do fato antecedente, que depende apreciação da prova a ele relativa; outra é a certeza a respeito do fato consequente que não tem prova direta a que decorre da aplicação das regras acima referidas. Esses são momentos lógico-mentais distintos, ainda que não revelados como tais no processo natural e intuitivo do Juiz, inclusive na fundamentação da sentença, mas a sua identificação é necessária à compreensão do fenômeno. A certeza quanto ao fato antecedente depende da idoneidade do meio de prova, como a credibilidade da testemunha, a capacidade técnica do perito, a coerência do depoimento ou a consistente constatação feita pelo laudo. A certeza quanto ao fato conseqüente depende da credibilidade da regra que faz a ponte entre ambos. Prosseguindo no exame do pensamento de Bettiol, para fins de tese a antítese, nega ele, em outro passo, a utilização da prova prima facie no processo penal. Quanto a esse aspecto, porém, a questão parece meramente terminológica. Entende Bettiol como prova prima facie aquela que daria razão ao autor com base em alguma regra de experiência sem qualquer indício particular, permitindo, porém, ao réu demonstrar que o que acontece na generalidade dos casos não se verificou no caso concreto. Ora, essa situação, na verdade, é de preconceito, e não de prova, como se se dissesse, por exemplo: “todos os habitantes de tal bairro são criminosos; ocorrendo um delito, você, réu, se puder, demonstre o contrário”. Seria, também, algo como a verdade sabida, fato dado como certo independentemente de qualquer comprovação, quer dele mesmo, quer de algum fato antecedente a ele relacionado. Isso faz lembrar o obscurantismo da Inquisição. Nesse sentido, tal “prova” não pode ser mesmo admitida no processo penal, porque não é fundada em qualquer base lógica, aliás não é prova, é preconceito, como se disse. Não há, portanto discordância a respeito. Todavia, se entender a prova prima facie como aquela que, baseada em fato demonstrado pertinente à infração penal, leva, em caráter imediato, à conclusão de culpabilidade, economizando etapas no raciocínio do Juiz, então pode ser, em tese, admitida, como: “quem dirige embriagado é culpado pelo acidente a que deu causa”. Mas sem prejuízo de se poder verificar se o raciocínio, in genere e no caso concreto, está correto. Das formulações de Bettiol e das observações feitas são extraídas as seguintes conclusões: 1– indício é uma circunstância de fato que não corresponde à elementar da infração, à autoria ou à excludente. Ela, em si, não tem significado, porque indício é fato; meio de prova é o instrumento que o traz aos autos; 2 - presunção é a ligação lógica entre um fato antecedente e um fato conseqüente, feita pela lei, por regra de experiência técnica ou por regra de experiência comum; 3 – aplica a regra, a partir da comprovação de um ou mais indícios, dá-se como demonstrado outro fato que é aquele que a lei de direito material considera relevante para produzir determinada consequência jurídica. O esquema a seguir apresentado ilustra o processo mental do Juiz na apreciação da prova. NORMA JURÍDICA Fato Fato FATO Fato prova indireta prova direta Conseqüência jurídica O FATO aí indicado é o fato que a lei considera delituoso, mais a autoria, e cuja conseqüência jurídica é a procedência da ação penal. Esse fato é plasmado na lei penal como um modelo, instituído pela ordem jurídica com os elementos que considera relevantes. O mesmo FATO pode ser uma excludente, cuja existência levaria à absolvição, relembrando-se que, em favor do Réu, o ônus da prova é impróprio ou diminuído, porque a dúvida milita a seu favor. Se não é possível a realização de prova direta do FATO, em seus elementos do modelo legal, é admissível a prova indireta, consistente na prova de outros fatos, os indícios, que levam à convicção da existência daquele. O processo mental atua da maneira seguinte. Em primeiro lugar, o Juiz dá, ou não, como comprovado o fato (ou o FATO). Se a resposta é negativa, cessa a atividade intelectual e aplicam-se as regras sobre o ônus da prova. Se for positiva quanto ao FATO, porque há prova direta, o Juiz aplica a conseqüência jurídica prevista na lei de direito material para a hipótese. Se for positiva quanto aos fatos (indícios) que não são os previstos na lei como elementares do tipo, o Juiz concluirá a respeito dos últimos se houver alguma regra legal, de experiência técnica ou de experiência comum 15 que induza essa convicção. Observe-se, ainda, que, para chegar ao FATO, o raciocínio do Juiz pode valer-se de fatos que se ligam a outros fatos, sendo que somente estes levam à conclusão a respeito do FATO. Pode haver indícios, portanto, de segundo grau, mas a segurança da conclusão não fica comprometida se as duas (ou mais) conclusões estão baseadas em regras idôneas. O Código de Processo Penal refere, nesse processo intelectual, um raciocínio indutivo (art. 239). Todavia, o raciocínio feito pelo Juiz no ato de aplicar a lei no caso concreto é dedutivo e não indutivo. A indução (raciocínio que, a partir de fatos isolados, leva à formulação de uma regra), no caso, é feita fora da ação penal sob julgamento do Juiz, é feita pela observação do que acontece ordinariamente na convivência social e do conhecimento da psicologia humana, de modo que, ao julgar a causa, o Juiz já tem a regra definida em sua consciência. É óbvio que, nessa oportunidade, o Juiz pode (talvez até 15 É usual, também, a expressão “máximas de experiência”, como se vê em Elício de Cresci Sobrinho, verbete “Máximas de experiência” na Enciclopédia Saraiva de Direito. devesse) repensá-la e aferir sua pertinência, mas, de qualquer modo, o seu reconhecimento não depende do fato sub judice, mas de outros, estranhos ao processo. Ao aplicar a regra no caso sob seu julgamento, portanto, o raciocínio do Juiz é dedutivo, ou seja, da regra geral já formulada chega-se a alguma conclusão na hipótese concreta. Esse é, portanto, em resumo, o desenvolvimento do processo de convencimento do Juiz: primeiro dá, ou não, como admitidos os fatos, tendo em vista a credibilidade dos meios de prova; em seguida, se necessário, conclui pela existência de outros fatos, mediante a aplicação de regras legais, da experiência técnica ou da experiência comum. Essas regras geram presunções, que impõem, ou não, o reconhecimento do fato conseqüente em virtude de sua maior ou menor credibilidade, ou, no primeiro caso (presunção legal), da flexibilidade de quanto à contraprova admitida pela lei. Indícios e presunções, portanto, não se confundem com os meios de prova, porque os primeiros são fatos e as segundas, a consequência decorrente da existência de uma regra ligando-os a outros fatos, ao passo que meios de prova são os instrumentos ou mecanismos, previstos pela lei ou admitidos pela cultura do processo moderno, que trazem os fatos aos autos. Por essa razão a confissão não é meio de prova, é a própria prova ou elemento da prova; meio de prova é o interrogatório ou outro ato em que é produzida. Cabe, finalmente, fazer duas ponderações: 1– O grau de certeza quanto ao FATO não depende de ter sido ele demonstrado por prova direta ou se a ele se chegou mediante a prova de indícios e a aplicação de regras legais ou da experiência técnica ou comum. Depende da credibilidade do meio, primeiramente, e, depois, da credibilidade da regra, de modo que é muito comum chegar-se a convicção mais segura por intermédio de prova decorrente de indícios do que pela prova direta, isso se a regra aplicada tiver alto grau de segurança. Assim, o Juiz pode estar mais seguro quanto à ocorrência um incêndio e suas causas em virtude da análise técnica de seus vestígios (indícios) do que em virtude da prova testemunhal direta ou da confissão. É falsa, portanto, a idéia de que a prova a partir de indícios seja perigosa ou duvidosa por sua natureza. Será duvidosa ou perigosa se a regra que se aplicar não for segura, não for consistente, ou então se for preconceituosa porque desapoiada da realidade das coisas, do que ordinariamente acontece e da psicologia humana. 2 – Não se pretende, com o esquema apresentado anteriormente e com esta análise do raciocínio do Juiz e sua decomposição, reduzi-lo a uma fórmula simplista, não se olvidando da sua complexidade e, também, da interferência da emoção, mas não duvidamos de sua contribuição para a análise fenomenológica ou eidética do processo de convencimento, na busca de seu essencial. 16 Não apenas, porém, no plano abstrato ou teórico, mas no da atuação prática da fundamentação das sentenças e sua crítica, especialmente no julgamento de delitos culposos, em que os elementos de natureza subjetiva são os mais importantes. 6. Conclusão 16 Ver Maurice Merleau-Ponty, La fenomenologia y las ciencias del hombre, Buenos Aires, Nova, trad. de Irma Beatriz B. de Gonzales e Raul A. Piérola, p. 50. Não se terá a certeza matemática ou mesmo a científica, mas espera-se que a análise do processo de convencimento sirva para nos tranqüilizar quanto à possível ou desejável verdade jurídica ou histórica, com a relatividade de Justiça dos homens, uma vez que o devido processo legal e a prova para a aplicação de sanções também decorrem do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana.