SOBRE A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL Jorge Miranda Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa. 1 A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL EM GERAL I – Sempre que um sujeito de Direito viola uma norma ou um dever a que está adstrito em relação com outro sujeito ou sempre que, por qualquer forma, causa-lhe um prejuízo, incorre em responsabilidade; fica constituído em dever específico para com o lesado. Nisto consiste, muito em resumo, a responsabilidade.1 1 Cfr. G. COHN, Théorie de la Responsabilité Internationale, in Recueil des Cours, 1939, II, p. 207 e segs.; ARMANDO MARQUES GUEDES, Responsabilidade Internacional, Lisboa, 1950; CONSTANTIN EUSTATHIADES, Les sujets de droit international et la responsabilité internationale, in Recueil des Cours, 1953, III, p. 401 e segs.; EDOARDO VITTA, La responsabilitá internazionale dello Stato per atti legislativi, Milão, 1953; H. ACCIOLY, Principes généraux de la responsabilité internationale d’aprés la doctrine et la jurisprudence, in Recueil des Cours, 1959, I, p. 350 e segs.; EDUARDO JIMÉNEZ DE ARÉCHAGA, International Responsability, in Manual of Public International Law, obra colectiva ed. por Max Sorensen, p. 531 e segs.; VINCENZO STARACE, La responsabilité résultant de la violation des obligations à l’égard de la communauté international, in Recueil des Cours, 1976, V, p. 271 e segs.; B ERNARD H. O XMAN , Internationally Wrongfully Acts, in Enciclopedia of Public International Law, 10, 1987, p. 271 e segs.; JOSÉ ALBERTO AZEREDO LOPES, O problema da imputação de condutas ao Estado (na teoria da responsabilidade internacional por factos ilícitos), dissertação policopiada, inédita, Porto, 1989, Autodeterminação dos povos, uso da força e responsabilidade internacional, in JURIS ET DE JURE – Nos 20 anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto, obra colectiva, Porto, 1998, p. 453 e segs., maxime 506 e segs., e A responsabilidade internacional do Estado: entre codificação e realidade, in Nação e Defesa, no 97, Primavera de 2001, p. 61 e segs.; GIOVANNI P AU, Responsabilità internazionale, in Enciclopedia del Diritto, XXXIX, p. 1432 e segs.; V ERA G OWLLAND -D EBBAS , Security Council Enforcement Action and Issues of State Responsability, in International and Comparative Law Quarterly, 1994, p. 55 e segs.; JAIME FERRER LLORET, Responsabilidad internacional del Estado y derechos humanos, Madrid, 1998. E também ALFRED VERDROSS, Völkerrecht, trad. cast. Derecho Internacional Publico, 4a ed., Madrid, 1963, p. 297 e segs.; CELSO ALBUQUERQUE MELLO, Curso de Direito Internacional Público, 8a ed., Rio de Janeiro, 1986, II, p. 378 e segs.; BENEDETTO CONFORTI, Diritto Internazionale, 3a ed., Nápoles, 1988, p. 331 e segs.; ALBINO AZEVEDO SOARES, Lições de Direito Internacional Público, 4a ed., Coimbra, 1988, p. 307 e segs.; SILVA CUNHA, Direito Internacional Público – Relações Internacionais, cit., p. 93 e segs.; J. F. REZEK, Direito Internacional Público, 2a ed., São Paulo, 1991, p. 269 e segs.; JEAN COMBACAU e SERGE SUR, Droit International Public, Paris, 1993, p. 518 e segs.; IAN BROWNLIE, Principles of Public International Law, trad. portuguesa, Princípios de Direito Internacional Público, Lisboa, 1997, p. 457 e segs.; JULIO D. GONZÁLEZ CAMPOS, LUIS I. SANCHEZ RODRIGUEZ e PAZ ANDRÉS SÁENZ DE SANTA MARÍA, Curso de Derecho Internacional Publico, Madrid, 1998, p. 317 e segs.; FAUSTO DE QUADROS, A protecção da propriedade privada pelo Direito Internacional Público, Coimbra, 1998, p. 368 e segs.; NGUYEN QUOC DINH, PATRICK DAILLIER e ALAIN PELLET, Droit International Public, 6a ed., Paris, 1999, p. 739 e segs. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. 305 Assim como, na ordem interna, o Estado e qualquer entidade pública respondem pelos prejuízos que decorram de actos ou omissões dos seus órgãos ou agentes,2 também na ordem internacional o Estado e os demais sujeitos de Direito internacional respondem pelos actos ilícitos que pratiquem ou por certos actos lícitos que lesem direitos e interesses de outros sujeitos (ou de pessoas dependentes destes sujeitos, como sucede por meio dos mecanismos de protecção diplomática). A juridicidade do Direito intermacional implica, como corolário, o princípio da responsabilidade internacional. Conhecido desde GRÓCIO, desenvolvido por normas consuetudinárias3 e de algumas normas convencionais,4 ele não poderia deixar de ser reconhecido como de jus cogens. II – Embora seja princípio comum a todos os ordenamentos, o princípio da responsabilidade sofre em cada um as refracções ou as adaptações decorrentes da sua estrutura e do seu estádio de evolução e aperfeiçoamento. Assim, no Direito internacional, sobressaem como notas especialmente significativas: a) A relevância dos interesses políticos conexos com a soberania dos Estados e a tendencial identificação dos danos morais com a lesão desses interesses; b) A não-rara complexidade das relações, por o Estado, como sujeito de Direito internacional, ter de prosseguir interesses ou ter de responder por acções ou omissões quer dos seus órgãos e agentes, quer dos órgãos e agentes de outras entidades públicas, quer de particulares dentro do seu território; c) A conseqüente relevância, entre as modalidades de reparação dos danos, a par da restitutio in integrum e do ressarcimento, da SATISFAÇÃO5 (da 2 3 4 5 306 Recorde-se o art. 22 da Constituição, válido para portugueses e estrangeiros. Objecto de tentativas de codificação há vários anos, com sucessivos relatores na Comissão de Direito Internacional. Como a Convenção de Haia de 1907 sobre responsabilidade por actos cometidos por forças militares em campanha. Aqui não sem alguma similitude com a responsabilidade política do Direito constitucional. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. satisfação ao Estado lesado, designadamente, por meio do reconhecimento do seu direito, do pedido de desculpas, da demissão do titular do órgão ou da aplicação de sanções ao agente da conduta); d) A prevalência dos mecanismos diplomáticos sobre os mecanismos jurisdicionais de efectivação; e) A frequência de formas de autotutela como a RETORSÃO (resposta a violação de interesses do Estado por meio de actos lícitos v.g., ruptura de relações diplomáticas ou de negociações com vista em tratado, recusa de visita de Chefe de Estado) ou a REPRESÁLIA (reacção por acto ilícito, seja pacífico v.g., confisco ou apresamento de bens, expulsão de pessoas, ou não pacífico, v.g., bombardeamento de alvos militares ou civis).6 III – O fenômeno da responsabilidade internacional, muito sensível a todas as transformações produzidas ou a caminho de se produzir no Direito das Gentes, apresenta alguns importantes sinais de mudança: a) A responsabilidade internacional era até há pouco responsabilidade dos Estados nas relações entre eles; hoje, conhece-se também a responsabilidade de organizações internacionais, como a ONU ou a Comunidade Européia,7 por acções ou omissões ligadas à prossecução dos seus fins; 6 7 Cfr., por exemplo, J. L. BRIERLY, The Law of Nations, trad. portuguesa Direito Internacional, Lisboa, 1965, p. 409 e segs.; ALESSANDRA GIANELLI, Rapresaglia nel diritto internazionale, in Digesto delle Discipline Publicistiche, XII, p. 411 e segs.; E DUARDO CORREIA B APTISTA , Jus cogens em Direito Internacional, Lisboa, 1997, p. 332 e segs. Mas a obra fundamental sobre a origem e o sentido do instituto é a de RUY DE ALBUQUERQUE, As represálias, 2 volumes, Lisboa, 1972. Cfr. art. 288 do Tratado de Roma (após o Tratado de Amesterdão, antes 215o): “Em matéria de responsabilidade extracontratual, a Comunidade deve indemnizar, de acordo com os princípios gerais comuns aos Direitos dos Estados membros, os danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das suas funções”. Cfr. M ARIA L UISA D UARTE , A acção de indemnização por responsabilidade extracontratual da Comunidade Económica Europeia, in Revista da Ordem dos Advogados, 1993, p. 85 e segs.; MARGARIDA SALEMA D’OLIVEIRA MARTINS e AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS, Organizações Internacionais, 2a ed., Lisboa, 1996, p. 305 e segs.; FAUSTO DE QUADROS e ANA MARTINS, Contencioso comunitário, Coimbra, 2002, p. 220 e segs. E, de outra perspectiva, PIERRE APRAXINE , Violation des droits de l’homme par une organisation internationale et responsabilité des États au regard de la Convention Euopéenne, in Revue trimestrielle des droits de l’homme, no 21, janeiro de 1995, p. 13 e segs. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. 307 b) Classicamente, a responsabilidade era só dos Estados uns perante os outros; agora, há também responsabilidade dos Estados perante organizações internacionais e entidades afins e até perante o indivíduo; c) A responsabilidade internacional surgiu como responsabilidade colectiva e próxima da responsabilidade civil; nas últimas décadas (em especial a partir de Nuremberga), vem despontando uma responsabilidade individual e criminal; d) Classicamente, a responsabilidade pressupunha actos ilícitos, a violação de deveres; hoje, entremostra-se, com cada vez maior importância, uma responsabilidade objectiva, uma responsabilidade pelo risco;8 e) Até a Carta das Nações Unidas, aceitava-se o emprego da força para o Estado lesado ou ofendido restaurar a situação anterior; hoje, como se sabe, somente tal é permitido ao Conselho de Segurança, apesar de a prática das grandes potências não o confirmar; f) Em um Direito predominantemente relacional como era o Direito internacional até 1945, tudo desembocava em uma relação bilateral entre o Estado violador e o Estado vítima; mas, a institucionalização da vida internacional e o aparecimento da idéia de bem comum da humanidade tem vindo a fazer emergir uma responsabilidade para com a comunidade internacional no seu conjunto – assim, a responsabilidade criminal do indivíduo e, de certo modo, a responsabilidade por danos ambientais. 2 A RESPONSABILIDADE DOS ESTADOS I – Em qualquer ordenamento ou sector jurídico, a responsabilidade envolve quatro elementos: 1) um comportamento; 2) a sua imputação (ou, de outra perspectiva, a imputabilidade); 3) o dano; 4) o nexo de causalidade. 8 308 Cfr., designadamente, a Convenção de 1962 sobre Responsabilidade de Operadores de Navios Nucleares, a Convenção de 1972 sobre Danos causados por Objectos Espaciais, a Convenção do Direito do Mar de 1982, e, em geral, o Direito Internacional do Ambiente. Sobre este, v., por exemplo, P AULO ANTUNES, A responsabilidade internacional objectiva dos Estados por danos ambientais, in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, no 11/12, junho-dezembro de 1999, p. 151 e segs. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. Tem de haver acção ou omissão, atribuída ou atribuível a certo sujeito e que cause um prejuízo moral ou patrimonial a outro, verificando-se relação necessária entre o comportamento e o dano. As diferenças encontram-se no modo como estes elementos se conformam e se manifestam. II – Considerando agora apenas a problemática respeitante ao Estado, verifica-se que a conduta pode assumir diferentes configurações. Donde: a) Responsabilidade por acção e responsabilidade por omissão; b) Responsabilidade directa – derivada de acção ou omissão dos próprios órgãos ou agentes do Estado; e responsabilidade indirecta – decorrente de acção ou omissão de órgãos ou agentes de outras entidades públicas – Estados federados em Estados federais,9 regiões autônomas, autarquias locais etc. – e até de particulares; c) Responsabilidade por actos de Direito internacional ou regidos pelo Direito internacional – sejam actos unilaterais, tratados10 ou outros actos11 – e responsabilidade por actos de Direito interno – sejam da função legislativa (lei contrária a tratado, nacionalização sem indenização), da função administrativa (expropriação sem indenização, maus tratos da polícia) ou da função jurisdicional (morosidade ou denegação de justiça, decisão ilegal); d) Responsabilidade por actos no interior do território (é a regra) e por actos no território de outro Estado (maxime, território ocupado); 9 10 11 Cfr. ERIC DAVID, La responsabilité des États fédéraux dans les relations internationales, in Les États fédéraux dans les relations internationales, obra colectiva, Bruxelas, 1984, p. 483 e segs. Cfr. art. 30, no 5 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados: a celebração de um tratado incompatível com tratado anteriormente celebrado com outro Estado importa responsabilidade internacional. O princípio da responsabilidade é tanto mais importante quanto se sabe inexistir, em nível internacional, um controlo da validade dos tratados similar ao das leis. Incluindo actos de guerra, de que podem resultar obrigações de reparação (que, no limite, como a história mostra, têm chegado à cessão de territórios). Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. 309 e) Responsabilidade em tempo de paz e responsabilidade em tempo de guerra ou por causa da guerra (dos beligerantes, do Estado neutro por incumprimento de dever de neutraliade, do Estado que intervém em guerras civis). Em qualquer circunstância, o fundamental é a conduta em si mesma, com o resultado dela adveniente. A culpa e o dolo dos titulares dos órgãos e dos agentes poderão, contudo, em certas circunstâncias, interessar para graduar a responsabilidade. III – Simples particulares podem também praticar actos que acarretem responsabilidade do Estado a que pertencem em face do Estado estrangeiro (ou de outro sujeito de Direito internacional). É o que acontece tipicamente havendo motins ou qualquer perturbação pública que afecte a representação ou os cidadãos de Estado estrangeiro, mormente quando as forças da ordem não tenham assegurado (ou não tenham assegurado em tempo útil) a sua defesa.12 Aqui a omissão do Estado geradora de responsabilidade tem por pressuposto a actividade ilícita dos particulares. Responsabilidade indirecta pode igualmente sobrevir perante certos danos ambientais graves (v.g., poluição do mar e do litoral por navios petroleiros). IV – Ocorrendo rebelião ou insurreição, o Estado responde tanto pelos danos provocados pelas autoridades constituídas e pelos seus agentes quanto pelos danos provocados pelos rebeldes ou insurrectos. Derrotados ou vitoriosos estes, o Estado – como instituição que perdura para lá dos detentores concretos do poder e que mantém sempre a sua identidade jurídico-internacional – nunca deixa de estar adstrito à obrigação de reparar tais danos. Só não será assim quando se tratar de danos causados por rebeldes a estrangeiros cujo Estado lhes haja reconhecido o estatuto de beligerantes. 12 310 Recordem-se o assalto à embaixada da Espanha em Lisboa, em 1975; e o caso dos reféns norte-americanos do Irão de 1979–1981 (este dando origem a um importante acórdão do Tribunal Internacional de Justiça). Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. Mas a aplicação ou a extensão destes postulados a movimentos de libertação e a Estados não reconhecidos pela comunidade internacional suscita dificuldades. V – A conduta é do Estado, independentemente da sucessão de formas políticas e de Governos. Nem o Direito internacional cuida da organização interna de cada Estado; o que conta é a efectividade do poder nele e por ele exercido. A imputação de qualquer acção ou omissão faz-se a partir das pessoas físicas que, no momento da sua prática, possuam efectivo poder de decisão no Estado e que, portanto, devem ser consideradas titulares dos seus órgãos – sejam eles quais forem – de vinculação internacional.13 A eventual incompetência ou usurpação de funções, de ordinário, só será tida em conta para efeitos do Direito interno.14 VI – O lesado pode ser um particular (pessoa física ou pessoa colectiva); mas, não gozando ele de subjectividade internacional, haverá de obter a mediação do Estado por via da protecção diplomática. Coisa diversa verifica-se nas hipóteses (como as previstas na Convenção Européia) de protecção internacional dos direitos do homem, em que o Estado fica obrigado a indenizar um seu cidadão, vítima de acção ou omissão sua lesiva de direitos dele. São hipóteses distantes das tradicionais, mas continuam a ser de responsabilidade internacional, pois, nelas, o indivíduo actua directamente perante instâncias internacionais. VII – A legítima defesa, o consentimento da vítima, a força maior e o estado de necessidade são causas de exclusão de ilicitude. Mas não isentam (salvo a legítima defesa) do dever de indenizar – com fundamento em razões de justiça, de igualdade ou de segurança internacional. 13 14 Cfr. o nosso Manual de Direito Constitucional, V, 2a ed., Coimbra, 2000, p. 51 e 52. Os critérios do art. 46 da Convenção sobre Direito dos Tratados de pouco valor se revestirão no plano da responsabilidade, por causa da relevância objectiva do dano. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. 311 3 A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL PENAL DO INDIVÍDUO I – Embora se encontrem sinais precursores da idéia em épocas anteriores, é relativamente nova a problemática de uma responsabilidade internacional penal do indivíduo, de um Direito internacional penal sobretudo (mas não exclusivamente) para a defesa dos direitos do homem.15 Conhecem-se os passos dados nos últimos sessenta anos conducentes à concretização dessa responsabilidade por meio de tribunais adequados: – A incriminação e o julgamento dos dirigentes alemães e japoneses da Segunda Guerra Mundial,16 em 1946, nos Tribunais de Nuremberga e de Tóquio, respectivamente – suscitando, porém, não poucas questões por causa das normas aplicáveis17 e da legitimidade dos próprios tribunais por parecerem mais tribunais dos vencedores do que tribunais da comunidade internacional;18 15 16 17 18 312 Cfr. PEREIRA DA SILVA, A Sociedade das Nações e o Direito Penal Internacional, Lisboa, 1928; HANS KELSEN, Peace through law, 1994, trad. it. La pace attraverso il diritto, Turim, 1990, p. 103 e segs.; Nações Unidas, Historique du problème de la juridiction criminelle internationale, Nova Iorque, 1949; CARLOS BLANCO DE MORAIS, A responsabilidade criminal do indivíduo em Direito internacional, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1987, p. 135 e segs., maxime 159 e segs.; JEAN-LOUIS CLERGERIE, La notion de crime contre l’humanité, in Revue du droit public, 1988, p. 1253 e segs.; MARIA LEONOR ASSUNÇÃO, Introdução ao tema – Crimes de guerra e crimes contra a humanidade, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1996, p. 61 e segs.; JAIME FERRER LLORET, Responsabilidad internacional del Estado e derechos humanos, Alicante, 1998, p. 67 e segs.; ALICIA GIL, Derecho penal internacional. Especial consideración del delito de genocidio, Madrid, 1999; GIORGIO CONETTI, Crimini internazionali dello Stato, in Digesto delle Discipline Pubblicistiche, 4a actualização, 2000, p. 174 e segs.; MARIA FERNANDA PALMA, Timor: um problema de Direito Internacional Penal, in Revista do Ministério Público, no 81, 2000, p. 11 e segs.; WLADIMIR BRITO, Tribunais Penais Internacionais – Da Arbitragem aos Tribunais Ad Hoc, ibidem, p. 25 e segs.; DIOGO FEIO, Jurisdição Penal Internacional: a sua evolução, in Nação e Defesa, no 97, Primavera de 2001, p. 149 e segs.; A NA L UISA RIQUITA, Do Pirata ao General: velhos e novos hostis humani generis, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2000, p. 519 e segs. A seguir à Primeira Guerra Mundial, já o Tratado de Versalhes havia previsto que o Imperador Guilherme II da Alemanha fosse submetido a um tribunal “por gravíssimas violações do código moral internacional” (art. 227) e que os criminosos de guerra alemães fossem julgados por “tribunais militares dos aliados” (arts. 228 a 230). Quanto aos crimes de guerra poderia, porventura, dizer-se não haver retroactividade das normas, tendo em conta a Convenção de Haia de 1907 sobre crimes de guerra. Não quanto aos crimes contra a humanidade. E retroactividade indiscutível era a das penas. Cfr. KELSEN, Peace through Law, trad. it. La pace..., cit., p. 144–145, defendendo (ainda antes do termo da guerra) não ser compatível com a idéia de justiça internacional só a ela serem submetidos os súditos de Estados vencidos; também os súditos dos Estados vencedores, que tivessem violado as leis da guerra, lhes deveriam ser submetidos. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. – A Resolução no 95(1), de 1948, da Assembléia Geral das Nações Unidas que declarou os princípios aplicados por aqueles tribunais parte do Direito internacional geral ou comum; – A Convenção sobre o Genocídio (de 1948);19 – A 4a Convenção de Genebra (de 1949); – A Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra (de 1968); – O “Projecto de Cooperação Internacional respeitante à perseguição, à detenção, à extradição e ao castigo dos indivíduos culpados de crimes de guerra ou contra a humanidade” (aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1973); – As resoluções do Conselho de Segurança (de 1993 e 1994) de criação, ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, de tribunais especiais para os crimes cometidos na ex-Jugoslávia20 e em Ruanda; –Finalmente, em 1998, a aprovação em Roma do estatuto de um Tribunal Penal Internacional de carácter permanente, cuja entrada em vigor verificar-seá (conforme dispõe o seu art. 125) no primeiro dia do mês seguinte ao termo do prazo de 60 dias após a data do depósito do sexagésimo instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão. II – Eis os traços básicos da competência do Tribunal Penal Internacional, tal como resultam do estatuto: 19 20 Aprovada para ratificação por Portugal pela Resolução no 39/78 da Assembléia da República, de 14 de julho. Cfr. CARSTEN HOLLWEG, Le nouveau Tribunal international de l’ONU et le conflit en ex-Yougoslavie: un défi pour le droit humanitaire dans le nouvel ordre mondial, in Revue du droit public, 1994, p. 1357 e segs.; ou MANUEL LOPES ALEIXO, O Tribunal Criminal Internacional para a ex-Jugoslávia: Justiça internacional ou justiça dos vencedores?, in Revista Jurídica da Universidade Portucalense, 1999, p. 481 e segs. V. o estatuto do Tribunal em anexo à Resolução no 808(1993) do Conselho de Segurança, publicado no Diário da República, 1a série-A, no 109, de 11 de maio de 1995. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. 313 a) Crimes sujeitos à jurisdição do Tribunal são o genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra (incluindo, verificados certos pressupostos, os de guerra não-internacional) e o crime de agressão (art. 5o e segs.), e ficando a jurisdição relativa a este último crime dependente de disposição aprovada nos termos do procedimento de alteração ao estatuto (arts. 121 e 123); b) Um Estado que seja parte no estatuto aceita a jurisdição do Tribunal relativamente àqueles crimes quando as correspondentes condutas tenham sido cometidas no seu território ou quando sejam seus cidadãos os acusados da sua prática (art. 12); c) Não obstante, o Tribunal não admite um caso quando ele seja objecto de inquérito ou de processo no Estado que tenha jurisdição sobre o Tribunal, salvo se este não estiver disposto a levar até ao fim a investigação ou o processo ou não mostrar capacidade para o fazer (art. 17). Pretende-se, pois, congregar o princípio da jurisdição obrigatória com aquilo a que se vem chamando princípio da COMPLEMENTARIDADE (e não propriamente de subsidiariedade), homólogo do já referido princípio da exaustão dos meios internos no acesso de indivíduos a instâncias internacionais para defesa dos seus direitos. Tudo se passa como se os crimes em causa tivessem uma dupla dimensão, interna e internacional. d) O Conselho de Segurança pode impedir o início ou a continuação de uma investigação ou de um processo por períodos não superior a 12 meses, com base em resolução aprovada ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas (art. 16), quer dizer, por motivo de paz e de segurança internacional. Torna-se óbvio o entorse aos princípios, só explicável em face dos compromissos subjacentes ao estatuto. Apesar disso, não deixa de ser solução muito melhor do que a criação de tribunais ad hoc (porque o poder assim dado ao Conselho e, no fundo, aos Estados seus membros permanentes é agora um poder negativo, uma faculté d’empêcher, e não um poder positivo). 314 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. e) De todo o modo, naturalmente, o Tribunal só conhece de crimes cometidos após a entrada em vigor do estatuto (art. 11). III – Por outro lado, estabelece-se, como não poderia deixar de ser, pela função do Tribunal: a) Não imunidade dos titulares de cargos políticos (art. 27), dos chefes militares (art. 28, no 1) e dos superiores hierárquicos (art. 28, no 2); b) Não isenção de responsabilidade criminal dos subordinados, quando as ordens cumpridas sejam ilegais e quando se trate de genocídio e de crimes contra a humanidade (art. 33); c) Imprescritibilidade dos crimes (art. 29); d) Obrigações de cooperação dos Estados (art. 86 e segs.), designadamente para entrega de pessoas ao Tribunal (art. 89); e) Proibição de reservas ao estatuto (art. 12), embora admissibilidade de recesso (art. 127). IV – No que tange às normas substantivas, organizatórias e processuais a que o Tribunal fica vinculado,21 anotem-se: a) Reafirmação dos princípios fundamentais de Direito penal (art. 22 e segs.) e das garantias básicas de processo criminal (arts. 61, no 6, 63, 66 e segs., 84 e 85) inerentes ao Estado de Direito, conquanto não se comine, à partida, a pena correspondente a cada tipo de crime; b) Garantia, designadamente, de um segundo grau de jurisdição (art. 81 e segs.) estando o Tribunal organizado em câmaras ou secções de Questões Preliminares, de 1a Instância e de Recursos (art. 34); c) Garantias de independência e imparcialidade dos juízes (art. 35 e segs.); 21 O estatuto de Roma é, simultaneamente, um Código Penal, um Código de Processo Penal e uma lei judiciária. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. 315 d) Para lá do estatuto e de normas conexas ou complementares, aplicabilidade de normas de Direito internacional convencional, de Direito internacional geral e dos princípios gerais que o Tribunal extraia do Direito interno segundo os diferentes sistemas jurídicos do mundo (art. 21); e) Iniciativa do processo a cargo de qualquer Estado parte, do Conselho de Segurança (sempre no âmbito do capítulo VII da Carta) e do Procurador que funciona junto do Tribunal; f) Como pena máxima, não a de morte – o que é extremamente positivo e traduz um avanço no caminho para a sua abolição universal – mas a pena de prisão por 30 anos ou, se a extrema gravidade do crime e as condições pessoais do agente o justificarem, a de prisão perpétua (art. 77) com um necessário reexame, ao fim de 25 anos de execução, pelo Tribunal (art. 110); g) Princípio da reparação das vítimas (arts. 75 e 79). V – Com o Tribunal Penal Internacional aparece um novo paradigma do Direito penal internacional, no entrosamento da ordem jurídica internacional e das ordens jurídicas internas.22 Mas por isso mesmo e devido à natureza compromissória (de sistemas jurídicos e de opções políticas) do estatuto e à deficiente redacção de não poucos preceitos, são múltiplos os problemas que ele suscita, alguns dos quais ainda pendentes de exame e da procura de solução em trabalhos que prosseguem no âmbito das Nações Unidas. 22 316 Cfr. HANS-P ETER KAUL , Towards a Permanent International Criminal Court, in Human Rights Law Journal, 1997, p. 169 e segs.; MARIA LEONOR ASSUNÇÃO, O Tribunal Internacional Penal Permanente e o mito de Síssifo, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1998, p. 27 e segs.; JEAN -FRANÇOIS D OBELLE, La Convention de Rome portant statut de la Cour Pénale International, in Annuaire français de droit international, 1998, p. 356 e segs.; C LÁUDIA P ERRONE -M OISÉS , O princípio da complementaridade no Estatuto do Tribunal Penal Internacional e a soberania contemporânea, in Política Externa (Brasília), vol. 8, no 4, março-maio de 2000, p. 3 e segs.; BALDASSARE PASTORE, Sui fondamenti etico-giuridici della Corte Penale Internazionale, in Diritto e Società, 2000, p. 83 e segs.; WLADIMIR BRITO, Tribunal Penal Internacional: uma Garantia Jurisdicional para a Protecção dos Direitos da Pessoa Humana, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2000, p. 81 e segs. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. Naturalmente, excederia o nosso propósito, neste curso, estudar esses probelamas. VI – Para lá da superação (mais uma vez) do dogma da soberania, em alguns países surgiram dificuldades de compatibilização com as suas Constituições, obrigando a prévias revisões antes de ser possível a ratificação.23 Foi o caso de Portugal, como se sabe (onde se discutiu, principalmente, o problema da prisão perpétua). Da revisão operada pela Lei Constitucional no 1/2001, de 12 de dezembro, resultou uma cláusula de carácter genérico, o novo no 7 do art. 7o da Constituição: “Portugal pode, tendo em vista a realização de uma justiça internacional que promova o respeito pelos direitos da pessoa humana e dos povos, aceitar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, nas condições de complementaridade e demais termos estabelecidos no Estatuto de Roma.”24 E, de seguida, o estatuto seria aprovado pela Assembléia da República25 e ratificado pelo Presidente da República26 e, assim, Portugal virá a ser também um dos fundadores do Tribunal. 23 24 25 26 Cfr. BEATE RUDOLF, Considérations constitutionnelles à propos de l’établissement d’une justice pénale internationale, in Revue française de droit constitutionnel, 1999, p. 451 e segs.; o no 11 da Revista C.E.J. (do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal do Brasil), agosto de 2000; The Rome Statute and Domestic Legal Orders – General Aspects and Constitutional Issues, obra colectiva (ed. por Claus Kress e Flavia Lattanzi), Baden-Baden, 2000; MARIA FERNANDA PALMA, Tribunal Penal Internacional e Constituição Penal, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2001, p. 7 e segs.; PAULA ESCARAMEIA, Quando o mundo das soberanias se transforma no mundo das pessoas: o estatuto de Roma e as Constituições nacionais, in Themis – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2001, p. 143 e segs. V. o debate e as audições de especialistas na Comissão Eventual da Assembléia da República, in Diário, VIII legislatura, 2a sessão legislativa, II série-RC, nos 2, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 17 e 18, de 26 de maio, 6, 15, 19, 26 e 29 de junho e 19 e 27 de setembro de 2001. E o debate no plenário, ibidem, 3a sessão legislativa, 1a série, no 9, de 4 de outubro de 2001. V. o debate na Assembléia da República, in Diário, VIII legislatura, 3a sessão legislativa, 1a série, no 30, de 21 de dezembro de 2001. Em 18 de janeiro de 2002, na sequência da Resolução no 3/2002 da Assembléia da República da mesma data. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 305-317, jul./dez. 2002. 317