O MINISTÉRIO PÚBLICO E SEU POSICIONAMENTO EM FRENTE AOS PODERES DO ESTADO: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO1 Andrea Cristiane Kahmann Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul/RS. Contemplada com bolsa de pesquisa do Ministério de Assuntos Exteriores da Espanha. Domicílio: Avenida João Pessoa, 90/A3/ 301, Santa Cruz do Sul/RS. E-mail: [email protected]. Resumo: Este texto visa a abordar o tema do Ministério Público, sua estrutura, suas funções e suas prerrogativas em face do constitucionalismo contemporâneo, analisando os graus de sujeição ou autonomia dessa instituição em frente ao mundo político e aos Poderes do Estado nos diferentes ordenamentos jurídicos. Para tanto, faz-se uso das ferramentas proporcionadas pelo Direito Constitucional Comparado, o qual permite que a questão seja contemplada em seu conjunto, contrastando o nível de legitimidade e de eficácia de cada sistema e contribuindo para a construção de um modelo de Ministério Público em consonância com o Estado Democrático de Direito. Palavras-Chave: Ministério Público – Direito Constitucional Comparado – Poderes do Estado Resumen: Este texto tiene el objetivo de abordar el tema del Ministerio Público (como suele ser mencionado el Ministerio Fiscal en Derecho Comparado), su estructura, sus funciones y sus prerrogativas ante el constitucionalismo contemporáneo, analizando los grados de sujeción o autonomía de esa institución frente al mundo político y a los Poderes del Estado en los diferentes ordenamientos jurídicos. Para ello, se emplean las herramientas proporcionadas por el Derecho Constitucional Comparado, lo cual permite que la cuestión sea contemplada en su totalidad, contrastando 1 Esta pesquisa foi desenvolvida sob o marco do Programa de Cooperación Interuniversitaria, mantido pelo Ministério de Assuntos Exteriores da Espanha, por meio da concessão de bolsa para pesquisa em Direito Constitucional no Departamento de Direito Constitucional da Universidade de Granada, tendo, então, sido orientada pelo Prof. Dr. José María Porras Ramírez. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. 11 el nivel de legitimidad y de eficacia de cada sistema y contribuyendo para la construcción de un modelo de Ministerio Público en consonancia con el Estado Democrático de Derecho. Palabras Clave: Ministerio Público (Ministerio Fiscal) – Derecho Constitucional Comparado – Poderes del Estado 1 INTRODUÇÃO O modo como cada ordenamento jurídico regula o exercício da ação penal é relevante indicativo da cultura jurídica e da organização política de cada Estado. Como problema constitucional que é, essa análise requer o enfoque por meio das ferramentas proporcionadas pelo Direito Comparado, as quais permitem que a questão seja contemplada no seu conjunto, contrastando o nível de legitimidade e de eficácia de cada ordenamento jurídico. De fato, ainda que a maior parte dos países possua algum tipo de Ministério Público (como estrutura de agentes especialmente encarregados de exercer a ação penal), as características, o funcionamento e a organização da figura representada pela instituição diferem notavelmente entre os vários ordenamentos jurídicos contemporâneos. As necessidades pragmáticas e as construções técnico-jurídicas delinearam uma variedade de sistemas, com diferentes graus de sujeição ou autonomia dessa instituição em frente ao mundo político. Embora o modelo mais comum conceba o Ministério Público como órgão vinculado ao Poder Executivo, o constitucionalismo contemporâneo também testemunha modelos que o situam junto à órbita do Poder Judiciário ou do Poder Legislativo. Uma parte da doutrina menciona, ainda, modelos de Ministério Público como órgão independente. Nesses termos, o presente artigo visa a esboçar um panorama comparativo sobre a abordagem do Ministério Público como instituição no cenário contemporâneo do constitucionalismo, objetivando conduzir à reflexão sobre as perspectivas e sobre os rumos da instituição, especialmente no tocante às suas relações com o mundo político. 2 O MINISTÉRIO PÚBLICO NA ESFERA DO EXECUTIVO O modelo de Ministério Público conexo ao Poder Executivo é o mais freqüente na perspectiva do constitucionalismo contemporâneo, compreendendo o esquema de acusação pública como execução da política criminal do Governo, o qual tem o poder de, em diferentes proporções, influir sobre os rumos daquele. Rubén Martinez Dalmau observa que esse sistema confere ao órgão fiscalizador uma legitimidade democrática que dificilmente poderia ser deduzida de sua 12 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. designação por parte de outro órgão, salvo, é claro, quando advinda do próprio Legislativo.2 De as todas formas, o binômio autonomia/aproximação em face do Governo é regulado por lei, traçando os intervalos necessários e delimitando as possibilidades de atuação do Ministério Público e a influência do Executivo.3 No âmbito da Europa Continental, muitos ordenamentos jurídicos se assemelham ao modelo francês de Ministério Público, cuja origem remonta, no século XIII, a um órgão denominado gens du roi e que, conforme Luis María Díez-Picazo,4 legou à instituição hodierna as seguintes características: (1) a organização hierárquica, deixando certa margem de apreciação pessoal no informe oral (de onde provém a velha máxima que até hoje rege a atuação do Ministério Público francês: la plume est serve mais la parole est libre); (2) a tradição de fazer ouvir a voz do poder político ante os tribunais; (3) as denominações usuais da instituição, que designam o fato de que os promotores de justiça de então atuavam de pé (magistrature debout5 ) ou de que se reuniam em determinada sala do tribunal (parquet). O Ministério Público francês, porém, não recebeu tratamento constitucional, sendo regulado por leis ordinárias.6 No entanto, não é difícil apontar as principais características da instituição, as quais orientam o sistema e diferenciam a magistrature debout da magistrature du siège. São elas: a dependência hierárquica e o princípio de unidade. A primeira refere-se ao fato de que todos os membros do Ministério Público dependem do Ministro da Justiça, mantido no topo da pirâmide hierárquica. Todos os membros estão, pois, subordinados a seu superior e sujeitos a sanções disciplinares (inclusive à revogação) no caso de nãocumprimento das ordens transmitidas. Já a expressão “unidade” designa que o promotor de justiça atua em representação de todo o Corpo do Ministério Público, o que guarda relação com o princípio anteriormente mencionado e acarreta a possibilidade de substituição no decorrer de um processo. Daí que os membros de Ministério Público francês não são inamovíveis, carecendo dessa garantia necessária ao desempenho de suas atribuições.7 2 3 4 5 6 7 MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Aspectos constitucionales del Ministério Fiscal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999. p. 54. Id. ib., p. 55. DÍEZ-PICAZO, Luis María. El poder de acusar: Ministerio Fiscal y constitucionalismo. Barcelona: Ariel Derecho, 2000. p. 115. Em oposição à expressão magistrature du siège, que se referia aos membros do Judiciário, que permaneciam sentados. RITT, Eduardo. O Ministério Público como instrumento de democracia e garantia constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 127. CARVALHO, Paulo Pinto de. Uma incursão do Ministério Público à luz do Direito Comparado: França, Itália, Alemanha, América do Norte e União Soviética. In: MORAES, Voltaire de Lima (Org.). Ministério Público, direito e sociedade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986. p. 84. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. 13 Manuel Marchena Gómez8 afirma que em Portugal o constitucionalismo contemporâneo, igualmente, presencia um modelo de Ministério Público vinculado ao Governo.9 O mencionado autor espanhol sustenta sua afirmação com base na Lei Maior Portuguesa, de 1976, que declara, em seu artigo 219.1, primeira parte, que “ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar”10 (grifo nosso). O vínculo com o Executivo restaria, ainda, evidente no parágrafo 4o do artigo 23 da Lei Orgânica do Ministério Público português, que declara: “o mandato dos membros designados pelo Ministro da Justiça caduca com a tomada de posse de novo ministro, devendo este confirmá-los ou proceder a nova designação”,11 disposição esta que afeta diretamente o Conselho Superior do Ministério Público português. O artigo 29 da mesma lei estabelece que “o Ministro da Justiça comparece às reuniões do Conselho Superior do Ministério Público quando entender oportuno, para fazer comunicações e solicitar ou prestar esclarecimentos”.12 Na Alemanha, tão estreita é a conexão do Staatsanwalt (Ministério Público alemão) com o Governo que Manuel Marchena Gómez chega a declarar: “la omnipresencia del Fiscal alemán en el proceso penal, vista su dependencia gubernamental, sólo es entendible desde la más absoluta confianza jurídicopolítica en aquélla institución”.13 O legislador alemão, inclusive, reconhece a existência de motivações políticas que podem ser decisivas ao exercer a ação pública, o que explica a faculdade, conferida ao Ministério Público Geral Federal pelo parágrafo 153d da Lei Processual Penal, de abster-se, desistir da ação ou arquivar o processo nos casos de persecução de certos ilícitos que possam provocar o perigo de uma grave desvantagem para a comunidade alemã ou quando se opuserem à persecução outros interesses públicos superiores.14 No âmbito da tradição da commom law, o principal modelo de Ministério Público é o dos Estados Unidos da América, onde a instituição em pauta é denominada de “braço executivo do governo”.15 Com efeito, o órgão básico da 8 9 10 11 12 13 14 15 14 MARCHENA GOMEZ, Manuel. El Ministerio Fiscal: su pasado y su futuro. Madrid: Marcial Pons, 1992. pp. 49-57. Esse entendimento não é unânime, o que se pode deduzir a partir da leitura do ponto 3 deste artigo. PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa, de 2 de abril de 1976. Disponível em: <http:/ /www.tribunalconstitucional.pt/Cr01.htm>. Acesso em: 16-4-2003. PORTUGAL. Lei 47/86, Lei Orgânica do Ministério Público de 15 de outubro de 1986. Disponível em: <http://www.pgr.pt/portugues/grupo_pgr/mp_lei47-86.htm>. Acesso em: 17-4-2003. Id. ib. MARCHENA GOMEZ, op. cit., p. 58. A onipresença do Ministério Público alemão no processo penal, considerada sua dependência governamental, só é compreensível com base na mais absoluta confiança jurídico-política naquela instituição [tradução livre]. Id. ib., p. 61. MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., p. 77. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. acusação pública nos Estados Federados costuma ser de natureza local e eletiva, sendo, portanto, politicamente responsável somente ante os eleitores e não estando subordinado a nenhuma autoridade.16 Em nível federal, há a figura do U.S. Attorney, abertamente considerada parte integrante da classe política, fato sobre o qual Luis María Díez-Picazo tece relevante consideração: Así se trata siempre de juristas que pertenecen o son afines al partido del Presidente y, sobre todo, el cargo opera normalmente como un escalón dentro de la carrera política. De aquí, la práctica de la llamada senatorial courtesy, en virtud de la cual el Presidente suele solicitar para sus propuestas de nombramiento de U.S Attorneys, siempre que ello sea posible, el visto bueno de un senador por el Estado correspondiente y perteneciente a su propio partido.17 Entende-se, nesse modelo, que o sistema judicial criminal seria obviamente político, já que o Estado é o responsável pela manutenção da ordem. Nesses termos, o como manter a ordem cabe ao Governo, a quem incube determinar as “regras do jogo” com respeito à persecução dos delitos.18 Assim sendo, os promotores de justiça norte-americanos não têm um estatuto funcional, es decir, carecen de las garantías de estabilidad en el empleo propias de la burocracia pública y, sobre todo, no constituyen un cuerpo o carrera. En su nivel superior, se trata de un cargo político; en el nivel inferior, de un empleo temporal para un abogado, normalmente joven y sin otra alternativa para construirse una experiencia profesional.19 Ademais, seja em nível estadual, seja em nível federal, o ordenamento jurídico dos Estados Unidos da América preferiu prescindir de uma genuína política criminal global para salvaguardar o modelo de processo penal e o valor da representatividade política ínsito nele. A cultura jurídica norte-americana não dá prioridade absoluta a valores como igualdade na aplicação da lei ou segurança jurídica.20 Apesar de todas as suas falhas, o modelo norte-americano de acusação pública serviu de inspiração para algumas outras constituições, especialmente 16 17 18 19 20 DÍEZ-PICAZO, op. cit., p. 72. Id. ib., p. 74. Assim se trata sempre de juristas que pertencem ou são afins ao partido do Presidente, e, sobretudo, o cargo opera normalmente como um degrau dentro da carreira política. Daí provém a prática da chamada senatorial courtesy, em virtude da qual o Presidente costuma solicitar para suas propostas de nomeação de U.S Attorneys, sempre que for possível, a aprovação de um senador pelo Estado correspondente e pertencente ao seu próprio partido [tradução livre]. MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., pp. 80-81. DÍEZ-PICAZO, op. cit., p. 75. Id. ib., p. 82. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. 15 consideradas as de países da América Latina. A Constituição salvadorenha é um exemplo, embora, obviamente, tenha conferido à sua versão de Ministério Público os contornos de suas necessidades pragmáticas e de sua cultura jurídica. Nesse país, o texto constitucional determina que o Ministério Público deve ser exercido pelas figuras do Fiscal General de la República, do Procurador-Geral da República e do Procurador para Defesa dos Direitos Humanos, além de outros funcionários definidos por lei (art. 191). Os mencionados membros do Ministério Público estão vinculados ao Governo, mas são eleitos indiretamente pela Assembléia Legislativa, por maioria qualificada de dois terços dos deputados eleitos, para um mandato de três anos, sendo possível a reeleição (art. 192).21 Não obstante, todos os exemplos possíveis de sistemas que incrustam o Ministério Público na órbita do Executivo vêm recebendo consideráveis críticas da doutrina, que tem entendido ser incompatível com o Estado Democrático de Direito a manutenção seja do modelo napoleônico, seja do modelo norte-americano. Cándido Conde-Pumpido Ferreiro,22 por exemplo, alega que não pode restar nas mãos de órgãos dependentes do Governo a determinação de que a atividade judicial de persecução criminal se desperte e se mantenha. O mencionado doutrinador observa que o Poder Executivo, com sua tendência expansiva, se apodera da instituição do Ministério Público para completar o seu domínio sobre o Poder Judiciário, “dominio incipiente al ser aquél quien dispone de todo el aparato administrativo, tanto personal como material y presupuestario, de la Administración de Justicia”.23 Sendo assim, outras tendências têm sido analisadas e discutidas no âmbito doutrinário. 3 O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO SISTEMA DE REPRESENTAÇÃO DA SOCIEDADE VINCULADO AO PODER LEGISLATIVO Historicamente, poucos foram os modelos de Ministério Público diretamente dependente do Legislativo, embora este seja o que concede em maior grau a legitimidade democrática requerida pela instituição em tela no desempenho de suas funções de representante da sociedade. O mais expressivo exemplo desse sistema foi a concepção de Ministério Público assumida pelos chamados países 21 22 23 16 EL SALVADOR. Constitución de la República de El Salvador de 15 de diciembre de 1983. Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions/ElSal/ElSal83.html>. Acesso em: 15-7-2003. CONDE-PUMPIDO FERREIRO, Cándido. El Ministerio Fiscal. Elcano-Navarra: Arazandi, 1999. p. 22. Id. ib., p. 22. Domínio incipiente ao ser aquele quem dispõe de todo o aparato administrativo, tanto pessoal como material e orçamentário da Administração da Justiça [tradução livre]. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. do “socialismo real”: a Prokuratura,que teve origem na antiga URSS e acabou se espalhando a outros ordenamentos jurídicos (a maioria europeus) que constituíram a órbita de influência soviética. Rubén Martinez Dalmau observa que o poder (absoluto) foi considerado elemento fundamental para a instituição do comunismo, fazendo vigorar a tese de avaliação dos meios em relação aos fins, prioritários: Un poder, la dictadura del proletariado, que buscaba la legitimación en su ejercicio por todo el pueblo, encabezado por la clase obrera, y que sería el paso previo e imprescindible antes de su transformación en poder socialista de todo el pueblo, el proceso de reconstrucción socialista de la sociedad. La Fiscalía soviética fue creada dentro de esta concepción del poder como vehículo esencial y casi suficiente para el riguroso y correcto desarrollo de las políticas encaminadas a llevar a buen puerto los objetivos proyectados.24 O padrão da Prokuratura soviética vinha, então, corresponder a um modelo de Estado cujo funcionamento era determinado por leis e características da cosmovisão marxista-leninista de mundo, assumindo como principal tarefa a defesa da propriedade socialista e os fundamentos econômicos da ditadura do proletariado. As duas peculiaridades que a definiam, quais sejam: a independência dos órgãos locais e a estrutura hierarquizada, foram expressamente reconhecidas na Constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, promulgada no VIII Congresso dos Soviets a 5 de dezembro de 1936.25 A Constituição de 7 de outubro de 1977, por sua vez, dedicou-lhe o capítulo 21, dentro do Título VII, que se referia genericamente a justiça, arbitragem e supervisão fiscal, mantendo a nomeação do Procurador-Geral pelo Soviet Supremo, mas reduzindo o período de atuação daquele de sete para cinco anos.26 Esse Procurador-Geral escolhia, por designação, os demais procuradores para um mandato também de cinco anos.27 De todas as formas, ainda que a idéia de um Ministério Público vinculado ao Poder Legislativo resulte muito atrativa, o fato é que o sistema dos soviéticos e 24 25 26 27 MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., pp. 91-92. Um poder, a ditadura do proletariado, que buscava a legitimação em seu exercício por todo o povo, encabeçado pela classe operária, e que seria o passo prévio e imprescindível antes de sua transformação em poder socialista de todo o povo, o processo de reconstrução socialista da sociedade. O Ministério Público soviético foi criado dentro desta concepção de poder como veículo essencial e quase suficiente para o rigoroso e correto desenvolvimento das políticas encaminhadas a levar a um porto seguro os objetivos projetados [tradução livre]. Id. ib., p. 92. Id. ib., p. 93. RITT, op. cit., p. 129. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. 17 de seus seguidores não é o que se pode chamar de um exemplo a ser seguido, já que entre eles regia o princípio de concentração de poderes a serviço de um partido único, em favor do qual se delineava o funcionamento do Legislativo, favorecendo sempre as verdadeiras instâncias executivas. Porém, o processo de democratização dos países do antigo bloco socialista está gerando novos contornos para a instituição do Ministério Público, criando modelos muito interessantes para o constitucionalismo contemporâneo. A Lei Maior da Federação Russa, votada em referendum em 12 de dezembro de 1993, conserva as principais características da Prokuratura, especialmente com relação à sua eleição por parte do Legislativo.28 Os outros Estados também têm gerado novas naturezas constitucionais da instituição, formando sistemas de Ministério Público vinculado ao governo (Repúblicas asiáticas, Romênia, Polônia), sistemas parlamentares (Albânia, Macedônia, Iugoslávia), sistemas mistos29 (Estônia, Letônia, Lituânia, Uzbequistão, Moldova, Bulgária, República Tcheca, Eslováquia, Eslovênia, Hungria) e sistemas judiciais (Croácia).30 A organização positiva de Cuba parece ser a única que ainda mantém o modelo tal como o importou dos soviéticos, após a Revolução de 1959, rompendo com o sistema de Ministério Público vigente até então, cópia exata da instituição espanhola.31 A Constituição cubana de 1976, ainda vigente, em seu artigo 128, primeira parte, determina: “La Fiscalía General de la República constituye una unidad orgánica subordinada únicamente a la Asamblea Nacional del Poder Popular y al Consejo de Estado”.32 4 O MINISTÉRIO PÚBLICO INTEGRADO COM O PODER JUDICIÁRIO Os exemplos de Ministério Público vinculado ao Poder Judiciário não são freqüentes, haja vista que a aparição daquele como instituição está justamente 28 29 30 31 32 18 MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., p. 95. Esses sistemas mistos de Ministério Público devem ser acompanhados com atenção, pois representam uma interessante e inédita peculiaridade das novas tendências constitucionais dessas Nações que se estão firmando como Estado Democrático de Direito. Os sistemas mistos não serão abordados neste artigo em função de não existir bibliografia séria a respeito, haja vista ser ainda muito cedo para avaliar o funcionamento dessa nova proposta de Ministério Público. MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., p. 97. Id. Ib., p. 98. CUBA. Constituição de 24 de fevereiro de 1976. Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/ Constitutions/Cuba/cuba1992.html>. Acesso em: 16-7-2003. O Ministério Público Geral da República constitui uma unidade orgânica subordinada unicamente à Assembléia Nacional do Poder Popular e ao Conselho de Estado [tradução livre]. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. associada à introdução do princípio acusatório, o qual requer que um órgão, ao mesmo tempo público e distinto do juiz, exerça a ação penal e sustente a acusação. Em muitos casos, a falta de clareza na redação das normas pode levar o intérprete a deduzir, erroneamente, que o Ministério Público estaria vinculado ao Poder Judiciário. É o que acontece com o ordenamento da Espanha, como bem observa Marcelo Huertas Contreras,33 eis que a Constituição de 1978 inclui a regulação do Ministério Público (art. 124) no Título VI, denominado Do Poder Judicial. Essa confusão é reforçada pelo artigo 127, que determina: Artigo 127 1. Los Jueces y Magistrados así como los Fiscales, mientras se hallen en activo, no podrán desempeñar otros cargos públicos, ni pertenecer a partidos políticos o sindicatos. La ley establecerá el sistema y modalidades de asociación profesional de los Jueces, Magistrados y Fiscales. 2. La ley establecerá el régimen de incompatibilidades de los miembros del poder judicial, que deberá asegurar la total independencia de los mismos.34 (Sublinhas nossas) Ademais, a Lei 50/1981, de 30 de dezembro, que regula o Estatuto Orgânico do Ministério Público, complica ainda mais o quadro espanhol quando seu art. 2.1 vem formular: “El Ministerio Fiscal, integrado con autonomía funcional en el Poder Judicial...”.35 A leitura dos mencionados artigos, associada à inclusão da regulação do Ministerio Fiscal dentro do capítulo constitucional destinado ao Poder Judicial, conduziria o intérprete a concluir que aquele estaria vinculado a este, embora a ampla maioria da doutrina36 alegue que o Ministério Público espanhol é parte integrante do Poder Executivo, desde suas origens. Sobre o evento, o renomado jurista brasileiro Alexandre de Moraes explica que a inclusão do 33 34 35 36 HUERTAS CONTRERAS, Marcelo. El Poder Judicial en la Constitución Española. Granada: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Granada, 1995. pp. 39-41. ESPANHA. Constituição Espanhola de 27 de dezembro de 1978. Disponível em: < http:// www.congreso.es/funciones/constitucion.htm>. Acesso em: 16-7-2003. Artigo 127 1. Os Juízes e Magistrados assim como os membros do Ministério Público, enquanto se achem na ativa, não poderão desempenhar outros cargos públicos, nem pertencer a partidos políticos ou sindicatos. A lei estabelecerá o sistema e as modalidades de associação profissional dos Juízes, Magistrados e membros do Ministério Público. 2. A lei estabelecerá o regime de incompatibilidades dos membros do poder judicial, que deverá assegurar a total independência dos mesmos [tradução livre]. HUERTAS CONTRERAS, op. cit., p. 40. Nesse sentido: Mosquera, Gil Albert, Conde-Pumpido, Gordillo, Calvo-Rubio, Granados e PérezGordo, entre outros, citados por HUERTAS CONTRERAS, op. cit., pp. 39-42. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. 19 Ministerio Fiscal no Título dedicado ao Poder Judiciário, e não no Título IV, dedicado ao Governo e à administração, reflete uma opção do constituinte espanhol de 1978 “pela nota de juridicidade, democratização e jurisdicionalização do Ministério Público”.37 No tocante à Constituição Portuguesa, afirma Cándido Conde-Pumpido Ferreiro que, quando esta declara no artigo 219.1 que o Ministério Público é o representante do Estado, estaria considerando “Estado” como o conjunto de poderes, e não como Governo, isoladamente.38 Nesses termos, não obstante a já mencionada sujeição ao Ministro da Justiça,39 o Ministério Público português não seria um órgão do Poder Executivo. Com efeito, a Lei Maior de 1976, no artigo 219.4, declara: “Os agentes do Ministério Público são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados, e não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei” 40 (grifo nosso). Considerado o emprego do termo “magistrados” no texto constitucional português, José Joaquim Gomes Canotilho vem consolidar o entendimento de que o Ministério Público, em Portugal, é um órgão do Poder Judicial ao sentenciar: “originariamente concebido como ‘órgão de ligação’ entre o poder judicial e o poder político, o Ministério Público é, nos termos constitucionais, um órgão do poder judicial”41 (grifos do autor). O constitucionalista português considera, então, que, embora estejam hierarquicamente subordinados, os membros do Ministério Público em Portugal gozam de garantias de autonomia e independência constitucionais que os tornam equiparáveis à condição de juízes. A magistratura do Ministério Público não tem […] uma “natureza administrativa”. Integra-se no poder judicial. A função do magistrado do Ministério Público é, porém, diferente da do juiz: este aplica e concretiza, através da extrinsecação de normas de decisão, o direito objectivo a um caso concreto (jurisdictio); aquele colabora no exercício do poder jurisdicional, sobretudo através do exercício da acção penal e da iniciativa de defesa da legalidade democrática.42 37 38 39 40 41 42 20 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 487. CONDE-PUMPIDO FERREIRO, op. cit., p. 27. No ponto 1 deste artigo. PORTUGAL, op. cit. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1997. p. 596. Id. ib., p. 597. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. No entanto, foi na Itália que a inclusão do Pubblico Ministero dentro do quadro do Poder Judiciário consolidou o exemplo emblemático de Ministério Público-Juiz. A doutrina justifica esse evento com base na desconfiança que nutria o Poder Executivo após a queda do regime fascista. Conforme Luis María DíezPicazo,43 a intenção de unificar o Ministério Público ao Poder Judiciário buscava, antes de tudo, privar os futuros governos da disponibilidade sobre a ação penal. Assim, não é acidental a inclusão do Ministério Público no Título IV, que, genericamente, regula a Magistratura, pois os membros do Ministério Público, de acordo com o texto constitucional italiano, são magistrados. Mais especificamente, diz a parte final do artigo 107 da Constituição Italiana de 1947: “I magistrati si distinguono fra loro soltanto per diversità di funzioni. Il Pubblico ministero gode delle garanzie stabilite nei suoi riguardi dalle norme sull’ordinamento giudiziario”.44 Nesses termos, os órgãos judiciais italianos, conforme Rubén Martinez Dalmau,45 dividem-se em órgãos julgadores e inquisitivos, traçando um interessante modelo para o constitucionalismo contemporâneo. A inclusão do Pubblico Ministero na esfera judicial foi sancionada pelo Tribunal Constitucional Italiano, que descreveu a natureza da figura do promotor de justiça desse ordenamento jurídico como um magistrado pertencente ao Poder Judiciário, colocado em posição de independência institucional com respeito a qualquer outro poder.46 A unificação do Ministério Público com o Poder Judiciário conduziu à possibilidade de traspassar da função de juiz para a de promotor de justiça.47 Evento facilitado pela unidade de carreira, é comum que, no decorrer de suas vidas profissionais, alguns magistrados italianos ocupem, sucessivamente, cargos em atividades julgadoras e cargos em atividades inquisitivas. Essa possibilidade trouxe consigo duas relevantes conseqüências citadas por Luis María DíezPicazo:48 (1) o desenvolvimento de uma forte identidade corporativa, independente da diversidade de funções; (2) a tendência a conceber os atos do Ministério Público, e, em particular, o exercício da acusação no processo penal, como parte integrante da função jurisdicional. 43 44 45 46 47 48 DÍEZ-PICAZO, op. cit., p. 126. ITALIA. Costituzione della Repubblica Italiana. Disponível em: <http://www.camera.it/deputati/ funzionamento/03.costituzione.asp>. Acesso em: 15-7-2003. Os magistrados se distinguem entre eles somente pela diversidade de funções. O Ministério Público goza das garantias estabelecidas nas suas considerações das normas sobre o ordenamento judiciário [tradução livre]. MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., p. 83. Id. ib., p. 83, sobre Sentença nº 96 de 1975. DÍEZ-PICAZO, op. cit., p. 130. Id. ib., p. 130. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. 21 Rubén Martinez Dalmau49 comenta, ainda, outra interessante conseqüência da inclusão do Ministério Público no Poder Judiciário: a consideração de que aquele é parte legítima para representar o órgão judicial em caso de seu interesse. Na sentença n. 420 de setembro de 1995, reiterando seu posicionamento em julgamentos anteriores, o Tribunal Constitucional Italiano declarou que o Ministério Público está indubitavelmente legitimado para propor ações em conflitos de competências entre os poderes do Estado. Essa interpretação estaria fundamentada no artigo 112 da Constituição Italiana, que prevê: “Il pubblico ministero ha l’obbligo di esercitare l’azione penale”. 50 Nesses termos, o Ministério Público, que é o titular direto e exclusivo da atividade de investigação e que tem como fim (obrigatório) a ação penal, teria, ademais, em face do desenvolvimento dessa função, o reconhecimento de sua competência para declarar definitivamente a vontade do Poder Judiciário, ao qual pertence. Entretanto, Cándido Conde-Pumpido Ferreiro não se dá por convencido em frente a esses fortes indicativos de Ministério Público-Juiz e advoga que mais acertado seria mencionar o modelo italiano de Ministério Público como um órgão independente, haja vista sua reconhecida posição de autonomia institucional com relação a qualquer outro poder. Assim, na opinião desse doutrinador, não haveria a “judicialização” do Ministério Público, o que afeta a sua plenitude de atuação e compromete a estrutura própria do Estado Democrático de Direito, que não pode conceber que o órgão acusatório esteja integrado ao órgão julgador. Esta concepção passa a ser abordada no ponto que se segue. 5 O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ÓRGÃO ESTATAL INDEPENDENTE É Cándido Conde-Pumpido Ferreiro quem advoga em prol da consideração do sistema italiano de Ministério Público como órgão independente, alegando: Con mayor o menor acierto la Constitución italiana, en su artículo 73, sienta las bases para que el Fiscal, rompiendo con la vinculación al Ejecutivo, fuertemente mantenida en etapas anteriores, pueda ser concebido como un órgano judicial, no sobrepuesto ni sometido al Juez, vinculado en su actividad a la ley, dirigido por el 49 50 22 MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., pp. 85-86. ITALIA, op. cit. O Ministério Público tem a obrigação de exercer a ação penal [tradução livre]. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. Procurador de la República, que representa al Estado y forma parte del Consejo Superior de la Magistratura.51 Não obstante, para o mencionado jurista espanhol, o exemplo emblemático de Ministério Público independente seria o modelo brasileiro: Pero, tal vez mejor que ninguna otra, refleja esta postura de Ministerio Público, como órgano del Estado, con entidad propia e independiente, la ley brasileña. […] La declaración de órgano responsable ante la Nación señala aquel carácter de órgano autónomo de la estructura política del Estado; y su condición de institución esencial para la función jurisdiccional lo incardina en el ámbito del Poder Judicial, aunque claramente diferenciado de la potestad jurisdiccional que corresponde a los Jueces e independientes de éstos, como lo es de los otros poderes.52 (Sublinhas nossas) A lei brasileira a que faz referência o autor espanhol é a Lei Complementar nº 40, de 14 de dezembro de 1981, que estabelece normas gerais a serem adotadas na organização dos Ministérios Públicos Estaduais. No entanto, parece que muito mais longe poderia ter ido o jurista ibérico se tivesse considerado o posicionamento da Constituição Brasileira de 1988 no tocante à instituição em pauta. Com efeito, nossa Lei Maior inclui a regulação do Ministério Público no Título IV (Da organização dos poderes), no qual se insere o Capítulo IV (Das funções essenciais à Justiça), o qual, por sua vez, lhe dedica a Seção I (Do Ministério Público).53 Note-se, pois, que o ordenamento jurídico pátrio não seguiu a tendência de outras Constituições que incluem o Ministério Público dentro da esfera de um dos três Poderes. Tal disposição fez com que os mais entusiasmados chegassem a considerar o Ministério Público brasileiro como um quarto poder. Note-se a redação do Promotor de Justiça do Acre Celso Jerônimo de Souza: 51 52 53 CONDE-PUMPIDO FERREIRO, op. cit., p. 27. Com maior ou menor acerto, a Constituição italiana, em seu artigo 73, senta as bases para que o Ministério Público, rompendo com a vinculação ao Executivo, fortemente mantida em etapas anteriores, possa ser concebido como um órgão judicial, não sobreposto nem submetido ao Juiz, vinculado em sua atividade à lei, dirigido pelo Procurador da República, que representa ao Estado e forma parte do Conselho Superior da Magistratura [tradução livre]. CONDE-PUMPIDO FERREIRO, op. cit., pp. 27-28. Mas, talvez melhor que nenhuma outra, reflete esta postura de Ministério Público, como órgão do Estado, com entidade própria e independente, a lei brasileira. […] A declaração de órgão responsável ante a Nação assinala aquele caráter de órgão autônomo da estrutura política do Estado; e sua condição de instituição essencial para a função jurisdicional o situa no âmbito do Poder Judicial, ainda que claramente diferenciado da potestade jurisdicional que corresponde aos Juízes e independentes destes, como o é dos outros poderes [tradução livre]. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http:// www.georgetown.edu/pdba/Constitutions/Brazil/brazil88.html>. Acesso em: 16-4-2003. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. 23 Com o advento da atual Carta de Princípios, promulgada em 5 de outubro de 1988, o Ministério Público, antes integrante do Poder Executivo, ganhou status de quarto poder, por mais que isso incomode alguns, alargando-lhe, sobremaneira, a sua missão institucional. […] Daí por que concluem abalizadas correntes doutrinárias que, se Montesquieu escrevesse hoje o seu Espírito das Leis, sustentaria que o Estado se conduz por meio de quatro poderes harmônicos e independentes entre si: Legislativo, Executivo, Judiciário e Ministério Público.54 (Grifos do autor) Dada a máxima vênia, a tentativa de corrigir o Espírito das Leis de Montesquieu e de incluir o Ministério Público como quarto poder naufraga ante a perspectiva comparada, pois, já se sabe, raros são os ordenamentos jurídicos que conferem à instituição em tela a autonomia e a independência garantidas pelo constituinte brasileiro de 1988. Além disso, mais ponderado é seguir José Afonso da Silva, para quem não é aceitável a tese de alguns que querem ver na instituição um quarto poder do Estado, porque suas atribuições, mesmo ampliadas […], são ontologicamente de natureza executiva, sendo, pois, uma instituição vinculada ao Poder Executivo, funcionalmente independente, cujos membros integram a categoria dos agentes políticos.55 A inclusão dos membros do Ministério Público na categoria dos agentes políticos garante-lhes “plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição e em leis especiais”.56 Com efeito, tamanha é a independência funcional do Ministério Público brasileiro que a Constituição de 1988 considera crime de responsabilidade do Presidente da República a prática de atos atentatórios ao livre exercício da instituição (art. 85, II).57 Esse evento se justifica ante a consideração de que dita carta constitucional ampliou sobremaneira as funções do Ministério Público no Brasil, transformando-o em um verdadeiro defensor da sociedade, tanto no campo penal com a titularidade exclusiva da ação penal pública […] 54 55 56 57 24 SOUZA, Celso Jerônimo de. A atuação do Ministério Público na sociedade de fato. Revista da Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, n. 17, pp. 43-51, jan./jun/2001. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 582. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 71. MORAES, op. cit., p. 488. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. quanto no campo cível como fiscal dos demais Poderes Públicos e defensor da legalidade e moralidade administrativa, inclusive com a titularidade do inquérito civil e da ação civil pública.58 Alexandre de Moraes, ainda, menciona o Ministério Público como um órgão extrapoder, visto que, constituindo-se um órgão com plena autonomia funcional e financeira, “não depende de nenhum dos poderes de Estado, não podendo nenhum de seus membros receber instruções vinculantes de nenhuma autoridade pública”.59 Com efeito, no ordenamento jurídico pátrio (ao contrário de França, Espanha, Alemanha e Estados Unidos da América, entre outros tantos), só se concebe no Ministério Público uma hierarquia de sentido administrativo, nunca de índole funcional. Os órgãos de administração superior do Ministério Público, no Brasil, “podem editar recomendações sobre a atuação funcional para todos os integrantes da Instituição, mas sempre sem caráter normativo”.60 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Especialmente nos países europeus, o Ministério Público tem sido alvo freqüente de ataques pela imprensa e pela opinião pública, permanecendo como centro de não poucos episódios polêmicos que ocasionam apaixonados debates acerca de sua estrutura e de suas funções. Tem-se questionado, principalmente, qual é o modelo de Ministério Público mais condizente com o Estado Democrático de Direito, haja vista a falência do modelo napoleônico, cuja base foi concebida num contexto de liberalismo, com outros critérios políticos e administrativos orientadores, diferentes, pois, das tendências hodiernas. Discute-se, entre eles, um modelo de Ministério Público desvinculado dos poderes políticos e do Governo, ao qual corresponda não somente a acusação em juízo, mas também a investigação dos delitos com observância dos direitos fundamentais e que não prive os seus membros da margem de independência e das garantias que lhes são misteres ao exercício de suas funções. Felizmente, considerado o ordenamento jurídico pátrio, a situação da instituição alcançou, com a Constituição de 1988, importantes patamares de autonomia, independência e de garantias a seus membros, podendo orgulhar-se de servir de exemplo aos constitucionalistas contemporâneos. No entanto, há que se seguir na luta por condições ainda melhores, por um sistema ao mesmo tempo 58 59 60 Id. ib., p. 490. Id. ib., p. 488. Id. ib., p. 488. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. 25 mais ágil e mais eficaz e que permita ao Ministério Público uma participação mais ativa na investigação dos delitos. Enfim, há que se seguir na luta por um Ministério Público inserido numa estrutura capaz de combater a criminalidade que alcança destrezas cada vez mais surpreendentes e que se jamais se olvide de sua condição de representante da sociedade e de vigia da lei. E é justamente em função desse objetivo de alcançar um modelo de Ministério Público ainda mais adequado a atender às demandas sociais e aos contornos do Estado Democrático de Direito que não se pode perder de vista a questão no seu conjunto, ou seja, no âmbito do Direito Constitucional Comparado. 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions/Brazil/brazil88.html>. Acesso em: 16-4-2003. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1997. 1352 p. CARVALHO, Paulo Pinto de. Uma incursão do Ministério Público à luz do Direito Comparado: França, Itália, Alemanha, América do Norte e União Soviética. In: MORAES, Voltaire de Lima (Org.). Ministério Público, direito e sociedade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986. pp. 77-119. CONDE-PUMPIDO FERREIRO, Cándido. El Ministerio Fiscal. ElcanoNavarra: Arazandi, 1999. 171 p. CUBA. Constituição de 24 de fevereiro de 1976. Disponível em: <http:// www.georgetown.edu/pdba/Constitutions/Cuba/cuba1992.html>. Acesso em: 16-7-2003. DÍEZ-PICAZO, Luis María. El poder de acusar: Ministerio Fiscal y constitucionalismo. Barcelona: Ariel Derecho, 2000. 189 p. EL SALVADOR. Constitución de la República de El Salvador de 15 de diciembre de 1983. Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/ Constitutions/ElSal/ElSal83.html>. Acesso em: 15-7-2003. ESPANHA. Constituição Espanhola de 27 de dezembro de 1978. Disponível em: <http://www.congreso.es/funciones/constitucion.htm>. Acesso em: 157-2003. 26 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. HUERTAS CONTRERAS, Marcelo. El Poder Judicial en la Constitución Española. Granada: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Granada, 1995. 258 p. ITALIA. Costituzione della Repubblica Italiana. Disponível em: <http:// www.camera.it/deputati/funzionamento/03.costituzione.asp>. Acesso em: 157-2003. MARCHENA GOMEZ, Manuel. El Ministerio Fiscal: su pasado y su futuro. Madrid: Marcial Pons, 1992. 211 p. MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Aspectos constitucionales del Ministério Fiscal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999. 230 p. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. 782 p. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001. 822 p. PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa, de 2 de abril de 1976. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/Cr01.htm>. Acesso em: 16-4-2003. PORTUGAL. Lei 47/ 86, Lei Orgânica do Ministério Público de 15 de outubro de 1986. Disponível em: <http://www.pgr.pt/portugues/grupo_pgr/mp_lei4786.htm>. Acesso em: 17-4-2003. RITT, Eduardo. O Ministério Público como instrumento de democracia e garantia constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. 208 p. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. 863 p. SOUZA, Celso Jerônimo de. A atuação do Ministério Público na sociedade de fato. Revista da Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, n. 17, pp. 43-51, jan./jun./2001. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004. 27