O MINISTÉRIO PÚBLICO E SEU POSICIONAMENTO EM
FRENTE AOS PODERES DO ESTADO: UMA ANÁLISE SOB A
ÓTICA DO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO1
Andrea Cristiane Kahmann
Bacharel em Direito pela Universidade
de Santa Cruz do Sul/RS. Contemplada
com bolsa de pesquisa do Ministério de
Assuntos Exteriores da Espanha.
Domicílio: Avenida João Pessoa, 90/A3/
301, Santa Cruz do Sul/RS.
E-mail: [email protected].
Resumo: Este texto visa a abordar o tema do Ministério Público, sua
estrutura, suas funções e suas prerrogativas em face do constitucionalismo
contemporâneo, analisando os graus de sujeição ou autonomia dessa instituição
em frente ao mundo político e aos Poderes do Estado nos diferentes ordenamentos
jurídicos. Para tanto, faz-se uso das ferramentas proporcionadas pelo Direito
Constitucional Comparado, o qual permite que a questão seja contemplada em
seu conjunto, contrastando o nível de legitimidade e de eficácia de cada sistema
e contribuindo para a construção de um modelo de Ministério Público em
consonância com o Estado Democrático de Direito.
Palavras-Chave: Ministério Público – Direito Constitucional Comparado
– Poderes do Estado
Resumen: Este texto tiene el objetivo de abordar el tema del Ministerio
Público (como suele ser mencionado el Ministerio Fiscal en Derecho
Comparado), su estructura, sus funciones y sus prerrogativas ante el
constitucionalismo contemporáneo, analizando los grados de sujeción o
autonomía de esa institución frente al mundo político y a los Poderes del
Estado en los diferentes ordenamientos jurídicos. Para ello, se emplean las
herramientas proporcionadas por el Derecho Constitucional Comparado, lo
cual permite que la cuestión sea contemplada en su totalidad, contrastando
1
Esta pesquisa foi desenvolvida sob o marco do Programa de Cooperación Interuniversitaria, mantido
pelo Ministério de Assuntos Exteriores da Espanha, por meio da concessão de bolsa para pesquisa em
Direito Constitucional no Departamento de Direito Constitucional da Universidade de Granada,
tendo, então, sido orientada pelo Prof. Dr. José María Porras Ramírez.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
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el nivel de legitimidad y de eficacia de cada sistema y contribuyendo para la
construcción de un modelo de Ministerio Público en consonancia con el
Estado Democrático de Derecho.
Palabras Clave: Ministerio Público (Ministerio Fiscal) – Derecho
Constitucional Comparado – Poderes del Estado
1
INTRODUÇÃO
O modo como cada ordenamento jurídico regula o exercício da ação penal
é relevante indicativo da cultura jurídica e da organização política de cada Estado.
Como problema constitucional que é, essa análise requer o enfoque por meio das
ferramentas proporcionadas pelo Direito Comparado, as quais permitem que a
questão seja contemplada no seu conjunto, contrastando o nível de legitimidade e
de eficácia de cada ordenamento jurídico.
De fato, ainda que a maior parte dos países possua algum tipo de Ministério
Público (como estrutura de agentes especialmente encarregados de exercer a ação
penal), as características, o funcionamento e a organização da figura representada
pela instituição diferem notavelmente entre os vários ordenamentos jurídicos
contemporâneos. As necessidades pragmáticas e as construções técnico-jurídicas
delinearam uma variedade de sistemas, com diferentes graus de sujeição ou
autonomia dessa instituição em frente ao mundo político. Embora o modelo mais
comum conceba o Ministério Público como órgão vinculado ao Poder Executivo,
o constitucionalismo contemporâneo também testemunha modelos que o situam
junto à órbita do Poder Judiciário ou do Poder Legislativo. Uma parte da doutrina
menciona, ainda, modelos de Ministério Público como órgão independente.
Nesses termos, o presente artigo visa a esboçar um panorama comparativo
sobre a abordagem do Ministério Público como instituição no cenário contemporâneo
do constitucionalismo, objetivando conduzir à reflexão sobre as perspectivas e
sobre os rumos da instituição, especialmente no tocante às suas relações com o
mundo político.
2
O MINISTÉRIO PÚBLICO NA ESFERA DO EXECUTIVO
O modelo de Ministério Público conexo ao Poder Executivo é o mais
freqüente na perspectiva do constitucionalismo contemporâneo, compreendendo
o esquema de acusação pública como execução da política criminal do Governo,
o qual tem o poder de, em diferentes proporções, influir sobre os rumos daquele.
Rubén Martinez Dalmau observa que esse sistema confere ao órgão fiscalizador
uma legitimidade democrática que dificilmente poderia ser deduzida de sua
12
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
designação por parte de outro órgão, salvo, é claro, quando advinda do próprio
Legislativo.2 De as todas formas, o binômio autonomia/aproximação em face do
Governo é regulado por lei, traçando os intervalos necessários e delimitando as
possibilidades de atuação do Ministério Público e a influência do Executivo.3
No âmbito da Europa Continental, muitos ordenamentos jurídicos se assemelham
ao modelo francês de Ministério Público, cuja origem remonta, no século XIII, a um
órgão denominado gens du roi e que, conforme Luis María Díez-Picazo,4 legou à
instituição hodierna as seguintes características: (1) a organização hierárquica,
deixando certa margem de apreciação pessoal no informe oral (de onde provém a
velha máxima que até hoje rege a atuação do Ministério Público francês: la plume
est serve mais la parole est libre); (2) a tradição de fazer ouvir a voz do poder
político ante os tribunais; (3) as denominações usuais da instituição, que designam o
fato de que os promotores de justiça de então atuavam de pé (magistrature debout5 )
ou de que se reuniam em determinada sala do tribunal (parquet).
O Ministério Público francês, porém, não recebeu tratamento constitucional,
sendo regulado por leis ordinárias.6 No entanto, não é difícil apontar as principais
características da instituição, as quais orientam o sistema e diferenciam a
magistrature debout da magistrature du siège. São elas: a dependência
hierárquica e o princípio de unidade. A primeira refere-se ao fato de que todos os
membros do Ministério Público dependem do Ministro da Justiça, mantido no topo
da pirâmide hierárquica. Todos os membros estão, pois, subordinados a seu superior
e sujeitos a sanções disciplinares (inclusive à revogação) no caso de nãocumprimento das ordens transmitidas. Já a expressão “unidade” designa que o
promotor de justiça atua em representação de todo o Corpo do Ministério Público,
o que guarda relação com o princípio anteriormente mencionado e acarreta a
possibilidade de substituição no decorrer de um processo. Daí que os membros de
Ministério Público francês não são inamovíveis, carecendo dessa garantia
necessária ao desempenho de suas atribuições.7
2
3
4
5
6
7
MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Aspectos constitucionales del Ministério Fiscal. Valencia: Tirant lo
Blanch, 1999. p. 54.
Id. ib., p. 55.
DÍEZ-PICAZO, Luis María. El poder de acusar: Ministerio Fiscal y constitucionalismo. Barcelona:
Ariel Derecho, 2000. p. 115.
Em oposição à expressão magistrature du siège, que se referia aos membros do Judiciário, que
permaneciam sentados.
RITT, Eduardo. O Ministério Público como instrumento de democracia e garantia constitucional.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 127.
CARVALHO, Paulo Pinto de. Uma incursão do Ministério Público à luz do Direito Comparado:
França, Itália, Alemanha, América do Norte e União Soviética. In: MORAES, Voltaire de Lima
(Org.). Ministério Público, direito e sociedade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986. p. 84.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
13
Manuel Marchena Gómez8 afirma que em Portugal o constitucionalismo
contemporâneo, igualmente, presencia um modelo de Ministério Público vinculado
ao Governo.9 O mencionado autor espanhol sustenta sua afirmação com base na
Lei Maior Portuguesa, de 1976, que declara, em seu artigo 219.1, primeira parte,
que “ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses
que a lei determinar”10 (grifo nosso). O vínculo com o Executivo restaria, ainda,
evidente no parágrafo 4o do artigo 23 da Lei Orgânica do Ministério Público português,
que declara: “o mandato dos membros designados pelo Ministro da Justiça caduca
com a tomada de posse de novo ministro, devendo este confirmá-los ou proceder a
nova designação”,11 disposição esta que afeta diretamente o Conselho Superior do
Ministério Público português. O artigo 29 da mesma lei estabelece que “o Ministro
da Justiça comparece às reuniões do Conselho Superior do Ministério Público quando
entender oportuno, para fazer comunicações e solicitar ou prestar esclarecimentos”.12
Na Alemanha, tão estreita é a conexão do Staatsanwalt (Ministério Público
alemão) com o Governo que Manuel Marchena Gómez chega a declarar: “la
omnipresencia del Fiscal alemán en el proceso penal, vista su dependencia
gubernamental, sólo es entendible desde la más absoluta confianza jurídicopolítica en aquélla institución”.13 O legislador alemão, inclusive, reconhece a
existência de motivações políticas que podem ser decisivas ao exercer a ação
pública, o que explica a faculdade, conferida ao Ministério Público Geral Federal
pelo parágrafo 153d da Lei Processual Penal, de abster-se, desistir da ação ou
arquivar o processo nos casos de persecução de certos ilícitos que possam provocar
o perigo de uma grave desvantagem para a comunidade alemã ou quando se
opuserem à persecução outros interesses públicos superiores.14
No âmbito da tradição da commom law, o principal modelo de Ministério
Público é o dos Estados Unidos da América, onde a instituição em pauta é
denominada de “braço executivo do governo”.15 Com efeito, o órgão básico da
8
9
10
11
12
13
14
15
14
MARCHENA GOMEZ, Manuel. El Ministerio Fiscal: su pasado y su futuro. Madrid: Marcial Pons,
1992. pp. 49-57.
Esse entendimento não é unânime, o que se pode deduzir a partir da leitura do ponto 3 deste artigo.
PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa, de 2 de abril de 1976. Disponível em: <http:/
/www.tribunalconstitucional.pt/Cr01.htm>. Acesso em: 16-4-2003.
PORTUGAL. Lei 47/86, Lei Orgânica do Ministério Público de 15 de outubro de 1986. Disponível
em: <http://www.pgr.pt/portugues/grupo_pgr/mp_lei47-86.htm>. Acesso em: 17-4-2003.
Id. ib.
MARCHENA GOMEZ, op. cit., p. 58. A onipresença do Ministério Público alemão no processo
penal, considerada sua dependência governamental, só é compreensível com base na mais absoluta
confiança jurídico-política naquela instituição [tradução livre].
Id. ib., p. 61.
MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., p. 77.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
acusação pública nos Estados Federados costuma ser de natureza local e eletiva,
sendo, portanto, politicamente responsável somente ante os eleitores e não estando
subordinado a nenhuma autoridade.16 Em nível federal, há a figura do U.S. Attorney,
abertamente considerada parte integrante da classe política, fato sobre o qual
Luis María Díez-Picazo tece relevante consideração:
Así se trata siempre de juristas que pertenecen o son afines al
partido del Presidente y, sobre todo, el cargo opera normalmente
como un escalón dentro de la carrera política. De aquí, la práctica
de la llamada senatorial courtesy, en virtud de la cual el Presidente
suele solicitar para sus propuestas de nombramiento de U.S
Attorneys, siempre que ello sea posible, el visto bueno de un senador
por el Estado correspondiente y perteneciente a su propio partido.17
Entende-se, nesse modelo, que o sistema judicial criminal seria obviamente
político, já que o Estado é o responsável pela manutenção da ordem. Nesses
termos, o como manter a ordem cabe ao Governo, a quem incube determinar as
“regras do jogo” com respeito à persecução dos delitos.18 Assim sendo, os
promotores de justiça norte-americanos não têm um estatuto funcional,
es decir, carecen de las garantías de estabilidad en el empleo propias
de la burocracia pública y, sobre todo, no constituyen un cuerpo o
carrera. En su nivel superior, se trata de un cargo político; en el
nivel inferior, de un empleo temporal para un abogado, normalmente
joven y sin otra alternativa para construirse una experiencia
profesional.19
Ademais, seja em nível estadual, seja em nível federal, o ordenamento jurídico
dos Estados Unidos da América preferiu prescindir de uma genuína política criminal
global para salvaguardar o modelo de processo penal e o valor da representatividade
política ínsito nele. A cultura jurídica norte-americana não dá prioridade absoluta
a valores como igualdade na aplicação da lei ou segurança jurídica.20
Apesar de todas as suas falhas, o modelo norte-americano de acusação
pública serviu de inspiração para algumas outras constituições, especialmente
16
17
18
19
20
DÍEZ-PICAZO, op. cit., p. 72.
Id. ib., p. 74. Assim se trata sempre de juristas que pertencem ou são afins ao partido do Presidente,
e, sobretudo, o cargo opera normalmente como um degrau dentro da carreira política. Daí provém a
prática da chamada senatorial courtesy, em virtude da qual o Presidente costuma solicitar para suas
propostas de nomeação de U.S Attorneys, sempre que for possível, a aprovação de um senador pelo
Estado correspondente e pertencente ao seu próprio partido [tradução livre].
MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., pp. 80-81.
DÍEZ-PICAZO, op. cit., p. 75.
Id. ib., p. 82.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
15
consideradas as de países da América Latina. A Constituição salvadorenha é um
exemplo, embora, obviamente, tenha conferido à sua versão de Ministério Público
os contornos de suas necessidades pragmáticas e de sua cultura jurídica. Nesse
país, o texto constitucional determina que o Ministério Público deve ser exercido
pelas figuras do Fiscal General de la República, do Procurador-Geral da
República e do Procurador para Defesa dos Direitos Humanos, além de outros
funcionários definidos por lei (art. 191). Os mencionados membros do Ministério
Público estão vinculados ao Governo, mas são eleitos indiretamente pela
Assembléia Legislativa, por maioria qualificada de dois terços dos deputados
eleitos, para um mandato de três anos, sendo possível a reeleição (art. 192).21
Não obstante, todos os exemplos possíveis de sistemas que incrustam o
Ministério Público na órbita do Executivo vêm recebendo consideráveis críticas
da doutrina, que tem entendido ser incompatível com o Estado Democrático de
Direito a manutenção seja do modelo napoleônico, seja do modelo norte-americano.
Cándido Conde-Pumpido Ferreiro,22 por exemplo, alega que não pode restar nas
mãos de órgãos dependentes do Governo a determinação de que a atividade judicial
de persecução criminal se desperte e se mantenha. O mencionado doutrinador
observa que o Poder Executivo, com sua tendência expansiva, se apodera da
instituição do Ministério Público para completar o seu domínio sobre o Poder
Judiciário, “dominio incipiente al ser aquél quien dispone de todo el aparato
administrativo, tanto personal como material y presupuestario, de la
Administración de Justicia”.23 Sendo assim, outras tendências têm sido analisadas
e discutidas no âmbito doutrinário.
3
O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO SISTEMA DE
REPRESENTAÇÃO DA SOCIEDADE VINCULADO AO PODER
LEGISLATIVO
Historicamente, poucos foram os modelos de Ministério Público diretamente
dependente do Legislativo, embora este seja o que concede em maior grau a
legitimidade democrática requerida pela instituição em tela no desempenho de
suas funções de representante da sociedade. O mais expressivo exemplo desse
sistema foi a concepção de Ministério Público assumida pelos chamados países
21
22
23
16
EL SALVADOR. Constitución de la República de El Salvador de 15 de diciembre de 1983. Disponível
em: <http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions/ElSal/ElSal83.html>. Acesso em: 15-7-2003.
CONDE-PUMPIDO FERREIRO, Cándido. El Ministerio Fiscal. Elcano-Navarra: Arazandi, 1999. p. 22.
Id. ib., p. 22. Domínio incipiente ao ser aquele quem dispõe de todo o aparato administrativo, tanto
pessoal como material e orçamentário da Administração da Justiça [tradução livre].
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
do “socialismo real”: a Prokuratura,que teve origem na antiga URSS e acabou
se espalhando a outros ordenamentos jurídicos (a maioria europeus) que
constituíram a órbita de influência soviética.
Rubén Martinez Dalmau observa que o poder (absoluto) foi considerado
elemento fundamental para a instituição do comunismo, fazendo vigorar a tese de
avaliação dos meios em relação aos fins, prioritários:
Un poder, la dictadura del proletariado, que buscaba la legitimación
en su ejercicio por todo el pueblo, encabezado por la clase obrera, y
que sería el paso previo e imprescindible antes de su transformación
en poder socialista de todo el pueblo, el proceso de reconstrucción
socialista de la sociedad. La Fiscalía soviética fue creada dentro de
esta concepción del poder como vehículo esencial y casi suficiente
para el riguroso y correcto desarrollo de las políticas encaminadas
a llevar a buen puerto los objetivos proyectados.24
O padrão da Prokuratura soviética vinha, então, corresponder a um modelo
de Estado cujo funcionamento era determinado por leis e características da
cosmovisão marxista-leninista de mundo, assumindo como principal tarefa a defesa
da propriedade socialista e os fundamentos econômicos da ditadura do proletariado.
As duas peculiaridades que a definiam, quais sejam: a independência dos órgãos
locais e a estrutura hierarquizada, foram expressamente reconhecidas na
Constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, promulgada no VIII
Congresso dos Soviets a 5 de dezembro de 1936.25 A Constituição de 7 de outubro
de 1977, por sua vez, dedicou-lhe o capítulo 21, dentro do Título VII, que se referia
genericamente a justiça, arbitragem e supervisão fiscal, mantendo a nomeação
do Procurador-Geral pelo Soviet Supremo, mas reduzindo o período de atuação
daquele de sete para cinco anos.26 Esse Procurador-Geral escolhia, por designação,
os demais procuradores para um mandato também de cinco anos.27
De todas as formas, ainda que a idéia de um Ministério Público vinculado
ao Poder Legislativo resulte muito atrativa, o fato é que o sistema dos soviéticos e
24
25
26
27
MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., pp. 91-92. Um poder, a ditadura do proletariado, que buscava a
legitimação em seu exercício por todo o povo, encabeçado pela classe operária, e que seria o passo
prévio e imprescindível antes de sua transformação em poder socialista de todo o povo, o processo
de reconstrução socialista da sociedade. O Ministério Público soviético foi criado dentro desta
concepção de poder como veículo essencial e quase suficiente para o rigoroso e correto
desenvolvimento das políticas encaminhadas a levar a um porto seguro os objetivos projetados
[tradução livre].
Id. ib., p. 92.
Id. ib., p. 93.
RITT, op. cit., p. 129.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
17
de seus seguidores não é o que se pode chamar de um exemplo a ser seguido, já
que entre eles regia o princípio de concentração de poderes a serviço de um
partido único, em favor do qual se delineava o funcionamento do Legislativo,
favorecendo sempre as verdadeiras instâncias executivas.
Porém, o processo de democratização dos países do antigo bloco socialista
está gerando novos contornos para a instituição do Ministério Público, criando
modelos muito interessantes para o constitucionalismo contemporâneo. A Lei
Maior da Federação Russa, votada em referendum em 12 de dezembro de
1993, conserva as principais características da Prokuratura, especialmente com
relação à sua eleição por parte do Legislativo.28 Os outros Estados também têm
gerado novas naturezas constitucionais da instituição, formando sistemas de
Ministério Público vinculado ao governo (Repúblicas asiáticas, Romênia, Polônia),
sistemas parlamentares (Albânia, Macedônia, Iugoslávia), sistemas mistos29
(Estônia, Letônia, Lituânia, Uzbequistão, Moldova, Bulgária, República Tcheca,
Eslováquia, Eslovênia, Hungria) e sistemas judiciais (Croácia).30
A organização positiva de Cuba parece ser a única que ainda mantém o
modelo tal como o importou dos soviéticos, após a Revolução de 1959, rompendo
com o sistema de Ministério Público vigente até então, cópia exata da instituição
espanhola.31 A Constituição cubana de 1976, ainda vigente, em seu artigo 128,
primeira parte, determina: “La Fiscalía General de la República constituye
una unidad orgánica subordinada únicamente a la Asamblea Nacional del
Poder Popular y al Consejo de Estado”.32
4
O MINISTÉRIO PÚBLICO INTEGRADO COM O PODER
JUDICIÁRIO
Os exemplos de Ministério Público vinculado ao Poder Judiciário não são
freqüentes, haja vista que a aparição daquele como instituição está justamente
28
29
30
31
32
18
MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., p. 95.
Esses sistemas mistos de Ministério Público devem ser acompanhados com atenção, pois representam
uma interessante e inédita peculiaridade das novas tendências constitucionais dessas Nações que se
estão firmando como Estado Democrático de Direito. Os sistemas mistos não serão abordados neste
artigo em função de não existir bibliografia séria a respeito, haja vista ser ainda muito cedo para
avaliar o funcionamento dessa nova proposta de Ministério Público.
MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., p. 97.
Id. Ib., p. 98.
CUBA. Constituição de 24 de fevereiro de 1976. Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/
Constitutions/Cuba/cuba1992.html>. Acesso em: 16-7-2003. O Ministério Público Geral da República
constitui uma unidade orgânica subordinada unicamente à Assembléia Nacional do Poder Popular e ao
Conselho de Estado [tradução livre].
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
associada à introdução do princípio acusatório, o qual requer que um órgão, ao
mesmo tempo público e distinto do juiz, exerça a ação penal e sustente a
acusação.
Em muitos casos, a falta de clareza na redação das normas pode levar o
intérprete a deduzir, erroneamente, que o Ministério Público estaria vinculado ao
Poder Judiciário. É o que acontece com o ordenamento da Espanha, como bem
observa Marcelo Huertas Contreras,33 eis que a Constituição de 1978 inclui a
regulação do Ministério Público (art. 124) no Título VI, denominado Do Poder
Judicial. Essa confusão é reforçada pelo artigo 127, que determina:
Artigo 127
1. Los Jueces y Magistrados así como los Fiscales, mientras se
hallen en activo, no podrán desempeñar otros cargos públicos, ni
pertenecer a partidos políticos o sindicatos. La ley establecerá el
sistema y modalidades de asociación profesional de los Jueces,
Magistrados y Fiscales.
2. La ley establecerá el régimen de incompatibilidades de los
miembros del poder judicial, que deberá asegurar la total
independencia de los mismos.34 (Sublinhas nossas)
Ademais, a Lei 50/1981, de 30 de dezembro, que regula o Estatuto Orgânico
do Ministério Público, complica ainda mais o quadro espanhol quando seu art. 2.1
vem formular: “El Ministerio Fiscal, integrado con autonomía funcional en
el Poder Judicial...”.35 A leitura dos mencionados artigos, associada à inclusão
da regulação do Ministerio Fiscal dentro do capítulo constitucional destinado ao
Poder Judicial, conduziria o intérprete a concluir que aquele estaria vinculado a
este, embora a ampla maioria da doutrina36 alegue que o Ministério Público espanhol
é parte integrante do Poder Executivo, desde suas origens. Sobre o evento, o
renomado jurista brasileiro Alexandre de Moraes explica que a inclusão do
33
34
35
36
HUERTAS CONTRERAS, Marcelo. El Poder Judicial en la Constitución Española. Granada: Servicio
de Publicaciones de la Universidad de Granada, 1995. pp. 39-41.
ESPANHA. Constituição Espanhola de 27 de dezembro de 1978. Disponível em: < http://
www.congreso.es/funciones/constitucion.htm>. Acesso em: 16-7-2003.
Artigo 127
1. Os Juízes e Magistrados assim como os membros do Ministério Público, enquanto se achem na
ativa, não poderão desempenhar outros cargos públicos, nem pertencer a partidos políticos ou
sindicatos. A lei estabelecerá o sistema e as modalidades de associação profissional dos Juízes, Magistrados
e membros do Ministério Público.
2. A lei estabelecerá o regime de incompatibilidades dos membros do poder judicial, que deverá
assegurar a total independência dos mesmos [tradução livre].
HUERTAS CONTRERAS, op. cit., p. 40.
Nesse sentido: Mosquera, Gil Albert, Conde-Pumpido, Gordillo, Calvo-Rubio, Granados e PérezGordo, entre outros, citados por HUERTAS CONTRERAS, op. cit., pp. 39-42.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
19
Ministerio Fiscal no Título dedicado ao Poder Judiciário, e não no Título IV,
dedicado ao Governo e à administração, reflete uma opção do constituinte espanhol
de 1978 “pela nota de juridicidade, democratização e jurisdicionalização do
Ministério Público”.37
No tocante à Constituição Portuguesa, afirma Cándido Conde-Pumpido
Ferreiro que, quando esta declara no artigo 219.1 que o Ministério Público é o
representante do Estado, estaria considerando “Estado” como o conjunto de
poderes, e não como Governo, isoladamente.38 Nesses termos, não obstante a já
mencionada sujeição ao Ministro da Justiça,39 o Ministério Público português não
seria um órgão do Poder Executivo. Com efeito, a Lei Maior de 1976, no artigo
219.4, declara: “Os agentes do Ministério Público são magistrados responsáveis,
hierarquicamente subordinados, e não podem ser transferidos, suspensos,
aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei” 40 (grifo nosso).
Considerado o emprego do termo “magistrados” no texto constitucional português,
José Joaquim Gomes Canotilho vem consolidar o entendimento de que o Ministério
Público, em Portugal, é um órgão do Poder Judicial ao sentenciar: “originariamente
concebido como ‘órgão de ligação’ entre o poder judicial e o poder político, o
Ministério Público é, nos termos constitucionais, um órgão do poder judicial”41
(grifos do autor).
O constitucionalista português considera, então, que, embora estejam
hierarquicamente subordinados, os membros do Ministério Público em Portugal
gozam de garantias de autonomia e independência constitucionais que os tornam
equiparáveis à condição de juízes.
A magistratura do Ministério Público não tem
[…] uma “natureza administrativa”. Integra-se no poder judicial. A
função do magistrado do Ministério Público é, porém, diferente da
do juiz: este aplica e concretiza, através da extrinsecação de normas
de decisão, o direito objectivo a um caso concreto (jurisdictio); aquele
colabora no exercício do poder jurisdicional, sobretudo através do
exercício da acção penal e da iniciativa de defesa da legalidade
democrática.42
37
38
39
40
41
42
20
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 487.
CONDE-PUMPIDO FERREIRO, op. cit., p. 27.
No ponto 1 deste artigo.
PORTUGAL, op. cit.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra:
Almedina, 1997. p. 596.
Id. ib., p. 597.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
No entanto, foi na Itália que a inclusão do Pubblico Ministero dentro do
quadro do Poder Judiciário consolidou o exemplo emblemático de Ministério
Público-Juiz. A doutrina justifica esse evento com base na desconfiança que nutria
o Poder Executivo após a queda do regime fascista. Conforme Luis María DíezPicazo,43 a intenção de unificar o Ministério Público ao Poder Judiciário buscava,
antes de tudo, privar os futuros governos da disponibilidade sobre a ação penal.
Assim, não é acidental a inclusão do Ministério Público no Título IV, que,
genericamente, regula a Magistratura, pois os membros do Ministério Público, de
acordo com o texto constitucional italiano, são magistrados. Mais especificamente,
diz a parte final do artigo 107 da Constituição Italiana de 1947: “I magistrati si
distinguono fra loro soltanto per diversità di funzioni. Il Pubblico ministero
gode delle garanzie stabilite nei suoi riguardi dalle norme sull’ordinamento
giudiziario”.44 Nesses termos, os órgãos judiciais italianos, conforme Rubén
Martinez Dalmau,45 dividem-se em órgãos julgadores e inquisitivos, traçando um
interessante modelo para o constitucionalismo contemporâneo.
A inclusão do Pubblico Ministero na esfera judicial foi sancionada pelo
Tribunal Constitucional Italiano, que descreveu a natureza da figura do promotor
de justiça desse ordenamento jurídico como um magistrado pertencente ao Poder
Judiciário, colocado em posição de independência institucional com respeito a
qualquer outro poder.46
A unificação do Ministério Público com o Poder Judiciário conduziu à
possibilidade de traspassar da função de juiz para a de promotor de justiça.47
Evento facilitado pela unidade de carreira, é comum que, no decorrer de suas
vidas profissionais, alguns magistrados italianos ocupem, sucessivamente, cargos
em atividades julgadoras e cargos em atividades inquisitivas. Essa possibilidade
trouxe consigo duas relevantes conseqüências citadas por Luis María DíezPicazo:48 (1) o desenvolvimento de uma forte identidade corporativa, independente
da diversidade de funções; (2) a tendência a conceber os atos do Ministério Público,
e, em particular, o exercício da acusação no processo penal, como parte integrante
da função jurisdicional.
43
44
45
46
47
48
DÍEZ-PICAZO, op. cit., p. 126.
ITALIA. Costituzione della Repubblica Italiana. Disponível em: <http://www.camera.it/deputati/
funzionamento/03.costituzione.asp>. Acesso em: 15-7-2003. Os magistrados se distinguem entre
eles somente pela diversidade de funções. O Ministério Público goza das garantias estabelecidas nas
suas considerações das normas sobre o ordenamento judiciário [tradução livre].
MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., p. 83.
Id. ib., p. 83, sobre Sentença nº 96 de 1975.
DÍEZ-PICAZO, op. cit., p. 130.
Id. ib., p. 130.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
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Rubén Martinez Dalmau49 comenta, ainda, outra interessante conseqüência
da inclusão do Ministério Público no Poder Judiciário: a consideração de que
aquele é parte legítima para representar o órgão judicial em caso de seu interesse.
Na sentença n. 420 de setembro de 1995, reiterando seu posicionamento em
julgamentos anteriores, o Tribunal Constitucional Italiano declarou que o
Ministério Público está indubitavelmente legitimado para propor ações em
conflitos de competências entre os poderes do Estado. Essa interpretação
estaria fundamentada no artigo 112 da Constituição Italiana, que prevê: “Il
pubblico ministero ha l’obbligo di esercitare l’azione penale”. 50 Nesses
termos, o Ministério Público, que é o titular direto e exclusivo da atividade de
investigação e que tem como fim (obrigatório) a ação penal, teria, ademais,
em face do desenvolvimento dessa função, o reconhecimento de sua
competência para declarar definitivamente a vontade do Poder Judiciário, ao
qual pertence.
Entretanto, Cándido Conde-Pumpido Ferreiro não se dá por convencido em
frente a esses fortes indicativos de Ministério Público-Juiz e advoga que mais
acertado seria mencionar o modelo italiano de Ministério Público como um órgão
independente, haja vista sua reconhecida posição de autonomia institucional com
relação a qualquer outro poder. Assim, na opinião desse doutrinador, não haveria
a “judicialização” do Ministério Público, o que afeta a sua plenitude de atuação e
compromete a estrutura própria do Estado Democrático de Direito, que não pode
conceber que o órgão acusatório esteja integrado ao órgão julgador. Esta concepção
passa a ser abordada no ponto que se segue.
5
O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ÓRGÃO ESTATAL
INDEPENDENTE
É Cándido Conde-Pumpido Ferreiro quem advoga em prol da consideração
do sistema italiano de Ministério Público como órgão independente, alegando:
Con mayor o menor acierto la Constitución italiana, en su artículo
73, sienta las bases para que el Fiscal, rompiendo con la vinculación
al Ejecutivo, fuertemente mantenida en etapas anteriores, pueda
ser concebido como un órgano judicial, no sobrepuesto ni sometido
al Juez, vinculado en su actividad a la ley, dirigido por el
49
50
22
MARTÍNEZ DALMAU, op. cit., pp. 85-86.
ITALIA, op. cit. O Ministério Público tem a obrigação de exercer a ação penal [tradução livre].
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
Procurador de la República, que representa al Estado y forma
parte del Consejo Superior de la Magistratura.51
Não obstante, para o mencionado jurista espanhol, o exemplo emblemático
de Ministério Público independente seria o modelo brasileiro:
Pero, tal vez mejor que ninguna otra, refleja esta postura de
Ministerio Público, como órgano del Estado, con entidad propia e
independiente, la ley brasileña. […] La declaración de órgano
responsable ante la Nación señala aquel carácter de órgano
autónomo de la estructura política del Estado; y su condición de
institución esencial para la función jurisdiccional lo incardina en
el ámbito del Poder Judicial, aunque claramente diferenciado de la
potestad jurisdiccional que corresponde a los Jueces e independientes
de éstos, como lo es de los otros poderes.52 (Sublinhas nossas)
A lei brasileira a que faz referência o autor espanhol é a Lei Complementar
nº 40, de 14 de dezembro de 1981, que estabelece normas gerais a serem adotadas
na organização dos Ministérios Públicos Estaduais. No entanto, parece que muito
mais longe poderia ter ido o jurista ibérico se tivesse considerado o posicionamento
da Constituição Brasileira de 1988 no tocante à instituição em pauta. Com efeito,
nossa Lei Maior inclui a regulação do Ministério Público no Título IV (Da
organização dos poderes), no qual se insere o Capítulo IV (Das funções essenciais
à Justiça), o qual, por sua vez, lhe dedica a Seção I (Do Ministério Público).53
Note-se, pois, que o ordenamento jurídico pátrio não seguiu a tendência de outras
Constituições que incluem o Ministério Público dentro da esfera de um dos três
Poderes.
Tal disposição fez com que os mais entusiasmados chegassem a considerar
o Ministério Público brasileiro como um quarto poder. Note-se a redação do
Promotor de Justiça do Acre Celso Jerônimo de Souza:
51
52
53
CONDE-PUMPIDO FERREIRO, op. cit., p. 27. Com maior ou menor acerto, a Constituição italiana, em
seu artigo 73, senta as bases para que o Ministério Público, rompendo com a vinculação ao Executivo,
fortemente mantida em etapas anteriores, possa ser concebido como um órgão judicial, não sobreposto
nem submetido ao Juiz, vinculado em sua atividade à lei, dirigido pelo Procurador da República, que
representa ao Estado e forma parte do Conselho Superior da Magistratura [tradução livre].
CONDE-PUMPIDO FERREIRO, op. cit., pp. 27-28. Mas, talvez melhor que nenhuma outra, reflete
esta postura de Ministério Público, como órgão do Estado, com entidade própria e independente, a lei
brasileira. […] A declaração de órgão responsável ante a Nação assinala aquele caráter de órgão autônomo
da estrutura política do Estado; e sua condição de instituição essencial para a função jurisdicional o situa
no âmbito do Poder Judicial, ainda que claramente diferenciado da potestade jurisdicional que corresponde
aos Juízes e independentes destes, como o é dos outros poderes [tradução livre].
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://
www.georgetown.edu/pdba/Constitutions/Brazil/brazil88.html>. Acesso em: 16-4-2003.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
23
Com o advento da atual Carta de Princípios, promulgada em 5 de
outubro de 1988, o Ministério Público, antes integrante do Poder
Executivo, ganhou status de quarto poder, por mais que isso incomode
alguns, alargando-lhe, sobremaneira, a sua missão institucional. […]
Daí por que concluem abalizadas correntes doutrinárias que, se
Montesquieu escrevesse hoje o seu Espírito das Leis, sustentaria
que o Estado se conduz por meio de quatro poderes harmônicos e
independentes entre si: Legislativo, Executivo, Judiciário e Ministério
Público.54 (Grifos do autor)
Dada a máxima vênia, a tentativa de corrigir o Espírito das Leis de
Montesquieu e de incluir o Ministério Público como quarto poder naufraga ante a
perspectiva comparada, pois, já se sabe, raros são os ordenamentos jurídicos que
conferem à instituição em tela a autonomia e a independência garantidas pelo
constituinte brasileiro de 1988. Além disso, mais ponderado é seguir José Afonso
da Silva, para quem
não é aceitável a tese de alguns que querem ver na instituição um
quarto poder do Estado, porque suas atribuições, mesmo ampliadas
[…], são ontologicamente de natureza executiva, sendo, pois, uma
instituição vinculada ao Poder Executivo, funcionalmente
independente, cujos membros integram a categoria dos agentes
políticos.55
A inclusão dos membros do Ministério Público na categoria dos agentes
políticos garante-lhes “plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições
com prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição e
em leis especiais”.56
Com efeito, tamanha é a independência funcional do Ministério Público
brasileiro que a Constituição de 1988 considera crime de responsabilidade do
Presidente da República a prática de atos atentatórios ao livre exercício da instituição
(art. 85, II).57 Esse evento se justifica ante a consideração de que dita carta
constitucional ampliou sobremaneira as funções do Ministério Público no Brasil,
transformando-o em um verdadeiro defensor da sociedade, tanto no
campo penal com a titularidade exclusiva da ação penal pública […]
54
55
56
57
24
SOUZA, Celso Jerônimo de. A atuação do Ministério Público na sociedade de fato. Revista da Escola
Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, n. 17, pp. 43-51, jan./jun/2001.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
p. 582.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 71.
MORAES, op. cit., p. 488.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 11-27, jan./dez./2004.
quanto no campo cível como fiscal dos demais Poderes Públicos e
defensor da legalidade e moralidade administrativa, inclusive com a
titularidade do inquérito civil e da ação civil pública.58
Alexandre de Moraes, ainda, menciona o Ministério Público como um órgão
extrapoder, visto que, constituindo-se um órgão com plena autonomia funcional e
financeira, “não depende de nenhum dos poderes de Estado, não podendo nenhum
de seus membros receber instruções vinculantes de nenhuma autoridade pública”.59
Com efeito, no ordenamento jurídico pátrio (ao contrário de França, Espanha,
Alemanha e Estados Unidos da América, entre outros tantos), só se concebe no
Ministério Público uma hierarquia de sentido administrativo, nunca de índole
funcional. Os órgãos de administração superior do Ministério Público, no Brasil,
“podem editar recomendações sobre a atuação funcional para todos os integrantes
da Instituição, mas sempre sem caráter normativo”.60
6
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Especialmente nos países europeus, o Ministério Público tem sido alvo
freqüente de ataques pela imprensa e pela opinião pública, permanecendo como
centro de não poucos episódios polêmicos que ocasionam apaixonados debates
acerca de sua estrutura e de suas funções. Tem-se questionado, principalmente,
qual é o modelo de Ministério Público mais condizente com o Estado Democrático
de Direito, haja vista a falência do modelo napoleônico, cuja base foi concebida
num contexto de liberalismo, com outros critérios políticos e administrativos
orientadores, diferentes, pois, das tendências hodiernas. Discute-se, entre eles,
um modelo de Ministério Público desvinculado dos poderes políticos e do Governo,
ao qual corresponda não somente a acusação em juízo, mas também a investigação
dos delitos com observância dos direitos fundamentais e que não prive os seus
membros da margem de independência e das garantias que lhes são misteres ao
exercício de suas funções.
Felizmente, considerado o ordenamento jurídico pátrio, a situação da
instituição alcançou, com a Constituição de 1988, importantes patamares de
autonomia, independência e de garantias a seus membros, podendo orgulhar-se de
servir de exemplo aos constitucionalistas contemporâneos. No entanto, há que se
seguir na luta por condições ainda melhores, por um sistema ao mesmo tempo
58
59
60
Id. ib., p. 490.
Id. ib., p. 488.
Id. ib., p. 488.
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mais ágil e mais eficaz e que permita ao Ministério Público uma participação mais
ativa na investigação dos delitos. Enfim, há que se seguir na luta por um Ministério
Público inserido numa estrutura capaz de combater a criminalidade que alcança
destrezas cada vez mais surpreendentes e que se jamais se olvide de sua condição
de representante da sociedade e de vigia da lei.
E é justamente em função desse objetivo de alcançar um modelo de
Ministério Público ainda mais adequado a atender às demandas sociais e aos
contornos do Estado Democrático de Direito que não se pode perder de vista a
questão no seu conjunto, ou seja, no âmbito do Direito Constitucional Comparado.
7
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