1
Renata Cristine de Oliveira
Atividade docente e adoecimento:
estudo em uma pequena cidade
Divinópolis
Fundação Educacional de Divinópolis - FUNEDI/UEMG
2008
2
Renata Cristine de Oliveira
Atividade docente e adoecimento:
estudo em uma pequena cidade
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Educação, Cultura e Organizações Sociais da
FUNEDI/UEMG, como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre.
Área de concentração: Estudos Contemporâneos
Linha de Pesquisa em Saúde Coletiva
Orientador: Prof. Dr. Pedro Pires Bessa
Divinópolis
Fundação Educacional de Divinópolis - FUNEDI/UEMG
2008
3
O48a
Oliveira, Renata Cristine
Atividade docente e adoecimento: estudo em uma pequena cidade
[manuscrito] / Renata Cristine Oliveira. – 2008.
107 f., enc. il.
Orientador : Pedro Pires Bessa
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado de Minas Gerais,
Fundação Educacional de Divinópolis.
Bibliografia : f. 96 - 107
1. Capitalismo – novas demandas. 2. Educação escolar. 3. Atividade docente.
4. Docentes adoecimento - Estratégias. 5Santo Antônio do Monte - MG. I. Bessa, Pedro
Pires. II. Universidade do Estadual de Minas Gerais. Fundação Educacional de Divinópolis.
III. Título.
CDD: 330.122
370
4
Universidade do Estado de Minas Gerais
Fundação Educacional de Divinópolis
Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais
Linha de pesquisa: Saúde Coletiva
Área de Concentração: Estudos Contemporâneos
Dissertação intitulada: Atividade docente e adoecimento: estudo em uma pequena cidade, de
autoria da mestranda Renata Cristine de Oliveira, aprovada pela banca examinadora
constituída pelos seguintes professores:
__________________________________________
Prof. Dr. Pedro Pires Bessa Orientador (FUNEDI/UEMG)
___________________________________________
Prof. Dr. José Geraldo Pedrosa (CEFET/MG)
_____________________________________________
Prof. Dr. Francisco de Assis Braga (FUNEDI/UEMG)
___________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Simões
Coordenador do Programa de Mestrado FUNEDI/UEMG
Divinópolis, 25 de abril de 2008
Av. Paraná, 3.001 - Bloco D, Sala 8 - Bairro Jardim Belvedere - Divinópolis/MG .Tel.:(37)3229 - 3500
5
AUTORIZAÇÃO PARA REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DA
DISSERTAÇÃO
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta dissertação por processos de fotocopiadoras e eletrônicos. Igualmente, autorizo
sua exposição integral nas bibliotecas e no banco virtual de dissertações da FUNEDI/UEMG.
Assinatura:_________________________________
Local e data: ________________________________
6
Aos docentes, que com todas as dificuldades
atuais, continuam sua luta diária por um Brasil
melhor.
7
AGRADECIMENTOS
a Deus que se fez presente em todos os momentos firmes ou trêmulos. Passo a passo
pude sentir sua mão na minha, transmitindo-me a segurança necessária para seguir em frente;
aos meus pais, Jair e Aparecida, que sempre vibraram com as minhas vitórias e sempre
acreditaram em meu potencial;
à minha irmã Roberta pelas palavras de incentivo;
ao meu noivo Danilo que soube perdoar minhas ausências;
ao Prof. Dr. José Geraldo Pedrosa pela atenção dedicada a mim e a este trabalho.
Agradeço-lhe por todas as trocas e desafios, pela confiança e amizade;
ao Prof. Dr. Pedro Pires Bessa por ter me acolhido como sua orientanda na etapa
final do curso;
aos docentes que, espontaneamente, colaboraram na pesquisa, agradeço a sinceridade
com que formularam suas respostas;
à Célia Rodrigues Filgueiras e Lêda Rosa pela disponibilidade em organizar as
informações sobre a educação escolar em Santo Antônio do Monte/MG;
aos funcionários da biblioteca, Joana e Ramon e do Centro de Pós-Graduação, em
especial Rose, Mônica e Ana Paula, pelo atendimento de qualidade;
à Ana Cláudia Santos, à Madalena Santos e a Moisés Nazário pelo empréstimo de
livros.
8
[...] nunca se precisou tanto do professor e nunca
se deu tão pouco a ele – tanto do ponto de vista
da formação, quanto da remuneração e das
condições de trabalho.
Vasconcellos, 1996, p.2.
9
RESUMO
OLIVEIRA, R.C. Atividade docente e adoecimento: estudo em uma pequena cidade.
O interesse pelo tema: a atividade docente e sua relação com o adoecimento surgiu da
atuação profissional como psicóloga na Secretaria Municipal da Educação de Santo Antônio
do Monte/MG. A pesquisa realizada foi de natureza qualitativa e teve como objetivo geral
analisar se os fatores referentes ao ambiente de vida atenuam a relação entre a atividade
docente e o adoecimento. Foram realizadas 16 entrevistas semi-estruturadas com docentes
efetivos que lecionam nos anos iniciais do Ensino Fundamental em escolas municipais da
zona urbana de Santo Antônio do Monte/MG e que tiveram licenças médicas de, no mínimo,
15 dias, no período de 2005 a 2007. As entrevistas foram interpretadas a partir da análise de
conteúdo proposta por Bardin (1979). Dentre as técnicas de análise de conteúdo
desenvolvidas, optou-se pela análise temática. Constatou-se que a vocação é o maior motivo
para o ingresso na profissão. Também foi
possível constatar que a disputa entre os
docentes, a má interpretação do construtivismo e a redução do apoio familiar são obstáculos
para que a educação escolar aconteça com qualidade e a escola funcione adequadamente. Viuse que os docentes perderam o seu prestígio na sociedade. Paralelamente a essa situação,
notou-se um adensamento e uma intensificação da agenda profissional docente. A atividade
docente não é mais definida somente como atividade em sala de aula. Os dados obtidos revelaram que boa parte dos docentes possui uma qualidade de vida insatisfatória. A depressão, os
problemas relacionados à voz e o esgotamento geraram um número significativo de licenças
médicas. Muitos docentes não ficaram estáticos frente ao seu adoecimento. Ao contrário,
criaram estratégias, inclusive, para não adoecer. Entre as estratégias adotadas pelos docentes,
citam-se: a religiosidade, a busca da melhoria da qualidade de vida, o uso das recomendações
de profissionais e os feriados. Concluiu-se que a atividade docente, independentemente do
local onde é realizada, gera sobrecarga física e mental. Algumas recomendações foram feitas
a partir dos dados obtidos. Uma delas, refere-se à necessidade de se traçarem linhas de ações
que consolidem uma política de valorização do docente, a fim de que se possam minimizar os
afastamentos. É necessário, ainda, que os docentes tenham consciência do que está aconte-
10
cendo objetivamente em suas aulas e em seu cotidiano, para que percebam até que ponto é
importante modificar sua postura para não sofrer ainda mais com a realidade vivenciada.
Palavras-chave: capitalismo, novas demandas, educação escolar, escola, atividade docente,
docentes, adoecimento, estratégias, Santo Antônio do Monte/MG.
11
ABSTRACT
Oliveira, R.C. Teaching activity and sickness: a study carried out in a small town.
The interest over the theme: the teaching activity and its relationship with sickness comes
from the professional action as a psychologist in the Municipal Secretary of Education in
Santo Antônio do Monte/MG. The research was of qualitative nature and had as a general
objective, to analyze if the factors referred to the life environment attenuate the relation
between the teaching activity and the sickness. 16 Semi-structured interviews were done with
the effective docents who taught in the first grades of elementary school in Municipal Schools
in the urban area of Santo Antônio do Monte/MG and they have had sick pay, at least 15 days,
from 2005 to 2006. The interviews were elucidated from the analysis of the content proposed
by Bardin (1979). Among the analytical techniques of the developed content, it was chosen
the thematic analysis. The vocation is the greater motive to ingress in the job. It was also
possible to verify that the competition among the docents, the misunderstanding of the
Constructivism and the reduction of family support are obstacles so that the school education
occurs with quality and the school works adequately. It was realized that the docents have lost
their prestige in the society. Together with this situation, the docents´ professional schedule
and tasks were enhanced. The docent activity is not only well defined as classroom realia but
also additional activities. There is an overload of activities and results. The data obtained from
the research, revealed that the majority of the docents has an insatisfactorial quality of life.
The depression, the voiceless problems and the exhaustion are among the generating reasons
for sick pay. Many sick docents weren't still against the sickness. On the contrary, they built
strategies inclusively to prevent sickness. Among the strategies adopted by the docents, are:
religion, the search for a better quality of life, the use of professional recommendations and
the injured. It is concluded that the docent activity, independently where it is, it generates
overload on mental and physical health. Some recommendations were taken based on the data
obtained in the research. One of them, referred to the necessity of tracing the actions that
consolidate a potition of worthing the docent, so that they can decrease the medical work. It is
still necessary that the docents be aware of what is occurring objectively in their classes and
in the daily life, so that they can realize to which point is important to change their posture not
to suffer even more with this facing reality.
12
Key words: capitalism, new demands, school education, school, docent activity, docents,
sickness, strategies, Santo Antônio do Monte/MG.
13
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ANPED - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
BIRD - Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento
CESAT - Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador
CLT - Consolidação das Leis do Trabalho
FMI - Fundo Monetário Internacional
FUNDEF - Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério
GQTE - Gerência da Qualidade Total na Educação
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
LDBN - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
SAEB - Sistema de Avaliação da Educação Básica
SCIELO - Scientific Electronic Library on Line PSI
SENAI - Serviço Nacional da Indústria
SENAC - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
OIT - Organização Internacional do Trabalho
ONU - Organização das Nações Unidas
14
PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais
ProQualidade - Projeto de Qualidade na Educação básica de Minas Gerais
PNUD - Programa das Nações unidas para o desenvolvimento
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância
15
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 17
1.1
Caracterização do problema e justificativa ............................................................. 17
1.2
Hipóteses .............................................................................................................. 19
1.3
Objetivos da pesquisa ............................................................................................ 20
1.3.1 Objetivo geral ....................................................................................................... 20
1.3.2 Objetivos específicos ............................................................................................. 20
1.4
População de estudo e procedimentos de pesquisa ............................................... 20
1.4.1 Natureza básica da pesquisa ................................................................................. 20
1.4.2 Caracterização das escolas municipais urbanas ...................................................... 20
1.4.3 A população e a amostra ....................................................................................... 22
1.4.3.1 A caracterização da população ............................................................................ 22
1.4.4
Procedimentos de coleta de dados........................................................................ 22
1.4.5
Análise das entrevistas ......................................................................................... 24
1.4.6
Plano de redação ................................................................................................. 26
2
REVISÃO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEÓRICO .......................27
2.1 Capitalismo: história e principais transformações......................................................27
2.2 A educação escolar, a escola e os docentes face às transformações contemporâneas..42
3
DO INGRESSO NA PROFISSÃO AO ADOECIMENTO: RESULTADOS E
DISCUSSÕES .....................................................................................................60
3.1 As categorias .............................................................................................................60
3.1.1 Motivos e/ou condicionantes que determinaram o ingresso na profissão .................60
3.1.2 Percepções sobre a condição da educação escolar e da escola na contemporaneidade .......................................................................................................................63
3.1.3 Percepções sobre a atividade docente.....................................................................67
3.1.4 Condições de realização da atividade docente.........................................................70
3.1.5 Percepções sobre a qualidade de vida .....................................................................74
16
3.1.6 Licenças tiradas no período de 2005 a 2007 ..........................................................77
3.1.7 Reações frente às licenças ....................................................................................82
3.1.8 Percepções sobre a possível relação entre a atividade docente e o adoecimento .....85
3.1.9 Estratégias adotadas pelos docentes frente ao seu adoecimento .............................89
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES......................................93
REFERÊNCIAS .................................................................................................96
17
1 INTRODUÇÃO
1.1 Caracterização do problema e justificativa
Essa dissertação tem como tema a atividade docente e sua relação com o adoecimento.
O interesse pelo tema é fruto da atuação profissional como psicóloga na Secretaria Municipal
da Educação de Santo Antônio do Monte/MG. Através de tal atuação, foi possível entrar em
contato com o cenário da educação escolar. A participação em situações corriqueiras da sala
de aula e em reuniões de planejamento pedagógico abriu espaço para que algumas inferências
sobre a educação escolar fossem efetuadas. Uma dessas inferências refere-se ao fato de que a
educação escolar não se explica por si mesma, mas pelas transformações que acontecem na
sociedade.
A educação escolar desenvolve suas atribuições de acordo com o modo de produção
vigente (PASQUALOTTO, 2006). Isso se torna evidente na medida em que são observadas as
novas demandas direcionadas pelo processo de reestruturação capitalista1 à educação escolar.
Verifica-se que o processo de reestruturação capitalista solicita mudanças no perfil dos
profissionais, bem como aponta para a valorização da polivalência, do comportamento
organizacional, da qualificação técnica, da participação criadora, da mobilização, da
subjetividade e da capacidade de diagnosticar e de decidir. Espera-se da educação escolar,
das
escolas e, principalmente, dos docentes, a formação de um profissional flexível e
polivalente.
É válido mencionar que, nas últimas décadas, todas as exigências estabelecidas pelo
processo de reestruturação capitalista impulsionaram transformações no processo de gestão
em educação escolar, com conseqüências para o exercício da atividade docente. Fatores como
a perda do controle sobre o trabalho e sua intensificação contribuíram significativamente para
a degradação das condições de realização da atividade docente (OLIVEIRA, 2003).
Estudos sobre o adoecimento docente foram realizados em várias cidades do mundo,
entre elas cita-se: Hong Kong e Nova Iorque. No Brasil, cidades como Belo Horizonte, São
Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis e Salvador já serviram de palco para a realização de
estudos sobre o adoecimento docente.
1
“Por reestruturação capitalista compreende-se o atual estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista em todas as suas dimensões: econômicas, políticas, culturais e sobretudo sociais” (OLIVEIRA, 2000, p.
234).
18
A maioria dos estudos sobre o adoecimento docente apresentados nas reuniões da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), no período de
2000 a 2007, foram realizados em cidades com maior população.
A base de dados eletrônica Scientific Electronic Library on Line PSI (SCIELO), bem
como o banco de teses e dissertações do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Santa Catarina, da Universidade Estadual de Campinas e da
Universidade Federal de Minas Gerais contêm estudos sobre o adoecimento docente. Muitos
desses estudos foram realizados nas referidas cidades.
Há muito estresse nas cidades2 grandes. Estresse ocasionado por vários fatores como:
a pressa, as horas intermináveis no trânsito, o medo de assalto, roubo e seqüestro, além de
muito barulho e poluição.
Santo Antônio do Monte/MG é uma cidade pequena3. Possui, atualmente, 24.751
habitantes. Em 2007, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a
população santantoniense estava distribuída da seguinte forma: 3.797 habitantes na zona rural
e 20. 954 habitantes na zona urbana. A cidade está localizada no centro oeste-mineiro, na
micro-região do Vale do Itapecerica, a 180 km de Belo Horizonte/MG. Sua maior fonte de
renda é a fabricação de fogos de artifício4. A cidade se destaca por sua infra-estrutura urbana,
com baixos índices de desemprego e violência e com uma boa qualidade de vida.
2
Para Lefebvre (2001, p. 132), “a cidade é o palco constante no qual se movimentam as categorias econômicas, o
salário, o capital, o subproduto e a mais-valia, desempenhando as suas cenas e seus dramas”. Segundo Lefebvre
(1991, p. 53), “a cidade e o urbano não podem ser compreendidos sem as instituições oriundas das relações de
classe e de propriedade”.
3
Sob o ponto de vista das relações entre as cidades, a rede urbana apresenta uma classificação hierárquica que é
determinada pela diversificação de serviços oferecidos. Entre os serviços oferecidos cita-se a rede viária. O
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2007) considera: cidades pequenas (com menos de 50 mil
habitantes) aquelas que possuem bens e serviços freqüentes o suficiente para suprir as necessidades básicas do
cotidiano: mercados, padarias, centro médico ou um pequeno hospital, lojas pouco sofisticadas, etc. Para
Caniello e Soarez (1989), as “cidades pequenas” são contextos em que a sociabilidade é largamente condicionada pela pessoalização porque os indivíduos estão incluídos em um ambiente social em que o alto grau de
proximidade produz uma “visibilidade inevitável”. Caniello e Soarez (1989) ressaltam que, nas cidades pequenas, os sujeitos são reconhecidos uns pelos outros em virtude de suas marcas pessoais e o mapeamento da rede
que produz essas marcas é amplamente dominado pela coletividade. Para Elias (1994, p. 108), a “cidade pequena
é um daqueles lugares onde a individualidade dissolve-se em uma rede de relacionamentos compulsórios ditados
pela freqüência do contato no cotidiano”.
4
As empresas pirotécnicas de Santo Antônio do Monte ficam localizadas na zona rural em obediência ao
decreto-lei nº 3.665/2000. De acordo com Patusco (2006), as empresas pirotécnicas geram na região
aproximadamente 12.000 empregos diretos e indiretos. Há trabalhadores de várias cidades: Lagoa da Prata,
Pedra do Indaiá, Itapecerica.
19
Mediante os fatos expostos, justifica-se a realização da pesquisa, cuja pergunta
principal é:
Será que as diferenças existentes no ambiente de vida dos docentes que
residem e trabalham em cidades pequenas mudam qualitativamente a relação
que se estabelece entre a atividade docente e os processos de adoecimento?
1.2 Hipóteses
Os docentes que residem e trabalham em cidades pequenas, assim como
aqueles que residem e trabalham em cidades grandes, vêem-se pressionados
pelos pais, supervisores e diretores a cumprir inúmeras exigências.
Na contemporaneidade, a atividade docente, seja nas cidades grandes ou
pequenas, já não é mais definida somente como atividade em sala de aula. As
reformas em curso contribuem para o adensamento e para a intensificação da
agenda profissional docente.
Os docentes são vistos pelas instituições gestoras como os principais
responsáveis pelo desempenho dos alunos, da escola e do sistema. A
responsabilidade exigida passou a ser percebida pelos docentes das cidades
grandes e pequenas como uma sobrecarga experimentada, geralmente, como
um conflito, cuja repercussão é o adoecimento dos mesmos.
Fatores como a calma, os baixos índices de violência e de desemprego e a boa
qualidade de vida presentes nas cidades pequenas não mudam a relação que se
estabelece entre a atividade docente e os processos de adoecimento.
20
1.3 Objetivos da pesquisa
1.3.1 Objetivo geral
Analisar se os fatores referentes ao ambiente de vida atenuam a relação entre a atividade docente e o adoecimento.
1.3.2 Objetivos específicos
Identificar a sintomatologia da atividade docente.
Investigar quais estratégias são adotadas pelos docentes frente ao seu adoecimento.
1.4 População de estudo e procedimentos de pesquisa
1.4.1 Natureza básica da pesquisa
A presente pesquisa é de natureza qualitativa. Torna-se importante afirmar que a
pesquisa qualitativa “preocupa-se em analisar e interpretar aspectos mais profundos,
descrevendo a complexidade do comportamento humano. Fornece análise mais detalhada
sobre investigações, hábitos, atitudes, tendências de comportamento etc” (LAKATOS;
MARCONI, 2004, p. 269).
1.4.2 Caracterização das escolas municipais urbanas
21
De acordo com os dados colhidos junto à Secretária Municipal da Educação, Célia
Rodrigues Filgueiras, no ano de 2008, a zona urbana de Santo Antônio do Monte / MG possui
uma escola municipal que oferece aos seus alunos a Educação Infantil e o primeiro ano do
Ensino Fundamental, uma escola municipal que oferece os anos iniciais do Ensino
Fundamental e três escolas municipais que oferecem a Educação Infantil e os anos iniciais do
Ensino Fundamental.
No ano de 2008, foram efetuadas 1.420 matrículas nas escolas municipais urbanas.
Nessas escolas, trabalham 66 docentes efetivos. Em cada sala de aula, há aproximadamente
27 alunos. Os docentes trabalham em regime estatutário, 24 horas semanais.
Pode-se afirmar que a maioria das escolas municipais urbanas possui localização
próxima ao centro. O transporte coletivo facilita o acesso dos alunos e dos docentes às escolas
municipais urbanas localizadas em bairros. Essas escolas ocupam uma área extensa. Possuem
banheiros, salas de depósito para merenda, sala de administração, sala de planejamento
pedagógico, secretaria, almoxarifado, biblioteca, cozinha, refeitório. As salas de aula são
equipadas com quadro, armário, mesas e cadeiras.
Todas as escolas municipais urbanas possuem diretora e vice-diretora. A maioria das
escolas municipais urbanas funciona em dois turnos (manhã e tarde) e, em cada turno, há uma
supervisora pedagógica, bem como um docente que oferece suporte pedagógico aos alunos
com dificuldades de aprendizagem5. Somente uma escola municipal urbana funciona em um
único turno (manhã). Essa escola também possui uma supervisora pedagógica, bem como um
docente que oferece suporte pedagógico aos alunos com dificuldades de aprendizagem.
As escolas municipais urbanas não possuem um serviço de atenção à saúde para os
alunos e funcionários. Quando ocorre algum acidente ou alguém passa mal, recorre-se à
Unidade Básica de Saúde mais próxima.
5
O processo de aprendizagem na rede municipal de ensino em Santo Antônio do Monte/MG se dá em uma
perspectiva sócio-interacionista. A abordagem sócio-interacionista concebe a aprendizagem como um fenômeno
que se realiza na interação com o outro. A aprendizagem acontece por meio da internalização, a partir de um
processo anterior de troca, que possui uma dimensão coletiva (VYGOTSKY, 1988). Para Vygotsky (1998), a
aprendizagem é um processo pelo qual o indivíduo adquire informações, habilidades, atitudes e valores a partir
de seu contato com a realidade, com o meio ambiente e com as outras pessoas. Devido à ênfase dada aos
processos sócio-históricos, na teoria vigotskiana, pode-se afirmar que a aprendizagem inclui a interdependência
dos indivíduos envolvidos no processo.
22
1.4.3 A população e a amostra
1.4.3.1 A caracterização da população
A população de estudo é constituída por docentes efetivos que lecionam nos anos iniciais do
Ensino Fundamental em escolas municipais da zona urbana de Santo Antônio do
Monte/ MG e que tiveram licenças médicas de, no mínimo, 15 dias, no período de 2005 a
2007.
1.4.4 Procedimentos de coleta de dados
Para se obter a lista com os nomes dos docentes efetivos que lecionam nos anos
iniciais do Ensino Fundamental em escolas municipais da zona urbana de Santo Antônio do
Monte/MG e que tiveram licenças médicas de, no mínimo, 15 dias, no período de 2005 a
2007, foi feita uma pesquisa documental junto ao arquivo da Secretaria Municipal da
Educação. Através da pesquisa documental constatou-se que há 23 nomes presentes nessa
lista.
Após a assinatura do termo de consentimento pelos docentes, foi agendada a data e o
horário das entrevistas6. Foram realizadas 16 entrevistas. Os docentes entrevistados possuem
entre 27 e 51 anos. É válido mencionar que três docentes entrevistados possuem magistério
(curso nível médio), oito docentes possuem nível superior e pós-graduação, três docentes
possuem nível superior e dois docentes estão fazendo curso nível superior. A maioria dos
docentes entrevistados possui experiência profissional superior a 20 anos.
6
Interessa enfatizar que as entrevistas foram realizadas em conformidade com as diretrizes e as normas
regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, advindas da Res. CNS nº 196/96. O projeto de
pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FUNEDI/UEMG no dia 26/02/2008, sob
parecer n° 05/2008. As entrevistas foram realizadas no período de 10 de março a 14 de março de 2008.
23
Sete docentes não participaram da pesquisa por motivos variados: três docentes
marcaram a entrevista e não compareceram e nem justificaram; dois docentes desmarcaram a
entrevista, pois não estavam se sentindo bem; um docente disse que não gostaria de participar
da entrevista, pois estava sem tempo devido às muitas atividades da escola; um docente disse
que não gostaria de participar da entrevista porque não consegue falar sobre o tema. Está com
depressão. Disse que o seu adoecimento estabelece relação com a sua profissão.
Todas as entrevistas realizadas foram semi-estruturadas. Nesse tipo de entrevista, o
entrevistador é livre para desenvolver cada situação em qualquer direção que julgue adequada,
podendo-se, assim, explorar a questão de forma mais ampla (LAKATOS; MARCONI, 2004).
De acordo com Ander-Egg (1978), as entrevistas semi-estruturadas podem ser de três
modalidades. Dentre elas, cita-se a focalizada, que é quando existe um roteiro de tópicos
relacionados ao problema a ser estudado. Nessa modalidade, o entrevistador é livre para
efetuar as perguntas que almejar. Essa modalidade foi usada durante a pesquisa de campo.
As entrevistas semi-estruturadas foram realizadas individualmente, bem como foram
gravadas em áudio. Também é importante dizer que as entrevistas semi-estruturadas foram
realizadas a partir de alguns tópicos:
1º) Motivos e/ou condicionantes que determinaram o ingresso nessa profissão.
2º) Percepções sobre a condição da educação escolar e da escola na contemporaneidade.
3º) Percepções sobre a atividade docente.
4º) Condições de realização da atividade docente.
5º) Percepções sobre a qualidade de vida (envolvimento em atividades sociais e de
lazer, tempo livre para práticas esportivas, etc).
6º) Licenças tiradas no período de 2005 a 2007, número de dias, o motivo e o
tratamento.
7º) Reações frente às licenças.
8º) Percepções sobre a possível relação entre a atividade docente e o adoecimento.
9º) Estratégias adotadas pelos docentes frente ao seu adoecimento.
24
1.4.5 Análise das entrevistas
As entrevistas foram interpretadas a partir da análise de conteúdo proposta por Bardin
(1979). Bardin (1979, citada por MINAYO, 2004) define a análise de conteúdo como
Um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando a obter, por,
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,
indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.7
Dentre as técnicas de análise de conteúdo desenvolvidas, optou-se pela análise
temática. Bardin (1979, citada por MINAYO, 2004) ressalta que, na análise temática, “o tema
é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado segundo certos
critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura”.8
Ressalta-se, ainda, que “fazer uma análise temática consiste em descobrir os núcleos
de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou freqüência signifiquem alguma
coisa para o objeto analítico visado” (MINAYO, 2004, p. 209).
Torna-se importante afirmar que todas as entrevistas semi-estruturadas foram
transcritas. O material transcrito passou pelas três etapas da análise temática9:
1ª) A pré-análise
Consistiu na escolha e na organização do material a ser analisado. Nessa etapa, foi
realizada uma leitura flutuante e exaustiva de todo o material transcrito, buscando-se
selecionar informações de interesse direto para a pesquisa com vistas a resultados que
explicitem claramente os objetivos.
Nessa fase pré-analítica determinam-se a unidade de registro (palavra-chave ou
frase), a unidade de contexto (a delimitação do contexto de compreensão da unidade
de registro), os recortes, a forma de categorização, a modalidade de codificação e os
conceitos teóricos mais gerais que orientarão a análise (MINAYO, 2004, p. 210).
7
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Trad. de Luiz Antero Reto e Augusto Pinheiro. Lisboa: Edições 70,
1979. 223 p.
8
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Trad. de Luiz Antero Reto e Augusto Pinheiro. Lisboa: Edições 70,
1979. 223 p.
9
MINAYO, 2004, p. 209-211.
25
2ª) A exploração do material
Correspondeu à operação de codificação. A partir da leitura do material, o texto foi
recortado em suas unidades de registro.
Tradicionalmente, a análise temática constrói índices que possibilitam alguma forma
de quantificação. Realizou-se a classificação e a agregação dos dados, “escolhendo as
categorias teóricas ou empíricas que comandarão a especificação dos temas” (MINAYO,
2004, p. 210).
Sendo assim, as informações foram categorizadas em nove temas10:
Tema 1: Motivos e/ou condicionantes que determinaram o ingresso
nessa profissão.
Tema 2: Percepções sobre a condição da educação escolar e da escola
na contemporaneidade.
Tema 3: Percepções sobre a atividade docente.
Tema 4: Condições de realização da atividade docente.
Tema 5: Percepções sobre a qualidade de vida.
Tema 6: Licenças tiradas no período de 2005 a 2007.
Tema 7: Reações frente às licenças.
Tema 8: Percepções sobre a possível relação entre a atividade docente
e o adoecimento.
Tema 9: Estratégias adotadas pelos docentes frente ao seu
adoecimento.
3ª) O tratamento dos resultados obtidos e interpretação
10
Na pesquisa qualitativa, a análise temática encaminha-se para a presença de determinados temas ligados a uma
afirmação a respeito de determinado assunto, podendo ser apresentado através de uma palavra, uma frase, um
resumo (MINAYO, 2000). Durante a pré-análise dos dados, fez-se uma leitura flutuante e exaustiva das
entrevistas, no sentido de dialogar com os dados. Percebeu-se que os tópicos usados durante a realização das
entrevistas permitiram a aquisição de informações de interesse direto para a pesquisa. Optou-se, então, por
agregar a fala dos docentes entrevistados a partir destes tópicos.
26
Nessa etapa, buscou-se desvendar o conteúdo subjacente ao que está sendo manifesto,
sem excluir as informações estatísticas. Gomes (2002, p. 76) ressalta que “[...] a busca deve se
voltar, por exemplo, para ideologias, tendências e outras determinações características dos
fenômenos” que estão sendo analisados.
1.4.6 Plano de redação
A dissertação encontra-se estruturada em quatro capítulos: dois teóricos, um empírico
e outro analítico.
“Capitalismo: história e principais transformações” é o título do primeiro capítulo.
Nele, discorre-se sobre a expansão capitalista, bem como identificam-se as novas
necessidades do capital conforme os seus atuais parâmetros de organização. Identificam-se,
também, os impactos da reestruturação capitalista sobre o mercado de trabalho. Esse capítulo
contextualiza o cenário no qual a atividade docente é realizada.
No segundo capítulo, “A educação escolar, a escola e os docentes face às
transformações contemporâneas”, abordam-se as mudanças que aconteceram na educação
escolar em decorrência da expansão e da reestruturação capitalista. Demonstra-se que a educação escolar reorganiza-se muitas vezes para atender às demandas do capital. Ainda no
segundo capítulo, dá-se destaque ao que as agências internacionais esperam das escolas e dos
docentes. O adensamento e a intensificação da agenda profissional, os processos de
adoecimento docente também são discutidos nesse capítulo.
O terceiro capítulo, “Do ingresso na profissão ao adoecimento: resultados e
discussões”, é dedicado à comparação entre o conteúdo das entrevistas e a literatura
consultada. Nesse capítulo, as hipóteses levantadas são confirmadas ou não.
Tem-se, no quarto capítulo, as considerações finais e as recomendações. Ao final,
apresentam-se as referências.
27
2
REVISÃO DE LITERATURA E REFERENCIAL TEÓRICO
2.1
Capitalismo: história e principais transformações
O capitalismo11, como sistema econômico e social, constituiu-se na Europa com o
declínio do feudalismo12. Em O Capital, Marx (2005, p. 828) afirma que “a estrutura
econômica da sociedade capitalista nasceu da estrutura econômica da sociedade feudal. A
decomposição desta liberou elementos para a formação daquela”.
O feudalismo passou por uma forte crise advinda da catástrofe demográfica
ocasionada pela Peste Negra13 que matou 30% da população européia (PEDRO; LIMA 2005).
O processo de degradação do feudalismo foi acelerado pela Peste Negra, uma vez que ela
tornou escassa a mão-de-obra e dizimou parte da aristocracia, concentrando o poder e a
propriedade14 da terra.
A escassez de mão-de-obra posterior à Peste Negra abriu espaço para que os
camponeses fizessem exigências por melhores condições e redução das obrigações.
Gradativamente, as obrigações servis em produtos e trabalhos foram substituídas por
11
Qualquer que seja a forma tomada pelo capital, a característica básica do capitalismo é a propriedade privada
do capital nas mãos dos capitalistas (BOTTOMORE, 1997).
12
Define-se o feudalismo como “um sistema sócio-político baseado numa economia rural e caracterizado pela
dispersão do poder através de uma variedade de domínios semi-independentes chamados feudos, mantidos sob
condição de prestação de serviço” (SILVA, 1987, p. 474). Para os autores Pedro e Lima (2005), o feudalismo foi
um sistema tipicamente europeu que se desenvolveu entre os séculos X e XI. A atividade econômica que
preponderava durante a época feudal era a agricultura. O feudo, a unidade básica de produção do sistema feudal,
era praticamente auto-suficiente. O que não era produzido pelo feudo era adquirido nos pequenos mercados das
aldeias. Os feudos territoriais ou senhorios encontravam-se divididos em três partes: a reserva senhorial ou
manso senhorial – terras de uso exclusivo do senhor, ainda que trabalhadas pelos servos; as reservas do camponês ou manso servil – terras exploradas pelos camponeses e suas famílias e as terras comunais que eram constituídas por pastos, florestas e baldios que forneciam frutas, madeiras, mel etc. Ao senhor era reservado o direito
exclusivo de caçar. A sociedade feudal era estratificada rigidamente. Ela era composta por três classes: o clero
(sacerdotes – camada mais importante), guerreiros (nobreza e aristocracia – lutavam para proteger a sociedade
dos males do mundo) e os trabalhadores que produziam o necessário para o sustento da sociedade. Durante o
período feudal, o servo foi o principal trabalhador. Originário do antigo colonus, o servo encontrava-se
ligado à terra e não podia ser retirado dela para ser vendido.
13
Epidemia altamente infecciosa que atingiu a Europa entre 1347 e 1348. Acredita-se que um dos meios de
disseminação do bacilo Yersinia pestis pelos portos europeus foi um navio italiano vindo do Mar Negro, cujos
tripulantes morreram todos dessa doença. A peste também pode ter sido transmitida através de pulgas advindas
dos ratos que infestavam os porões dos navios dos mercadores europeus medievais. Essa doença pode se
manifestar de três formas: bubônica - pelo corpo do doente verificam-se gânglios inflamados; pulmonar - os
pulmões do doente são destruídos e septicêmica - infecção generalizada (PEDRO; LIMA, 2005).
14
É correto dizer que, na teoria social marxista, o conceito de propriedade vai além da possibilidade de quem a
possui de usufruir os seus direitos. A propriedade privada possui “papel fundamental no complexo sistema de
classes e camadas sociais. Dentro desse sistema de categorias, a propriedade dos meios de produção tem
importância destacada” (BOTTOMORE, 1997, p. 304).
28
pagamentos de uma quantia fixa em dinheiro15. Sob o ponto de vista dos senhores feudais,
essa substituição garantia uma estabilidade dos rendimentos, pois estimulava o camponês a
aumentar a produção (PEDRO; LIMA, 2005).
É importante lembrar que essas mudanças de pagamento de taxas transformaram as
relações de produção16. Inúmeros camponeses se emanciparam dos domínios senhoriais
comprando a liberdade e se aglutinaram à volta dos castelos feudais, formando aldeias ou
burgos. Nos burgos, esses camponeses, de acordo com suas habilidades pessoais, dedicavamse ao labor artesão. E, aos poucos, o produto de seu trabalho que, inicialmente, era apenas
para consumo interno, foi se tornando uma mercadoria17.
A partir do século XII, para regulamentar o processo produtivo artesanal, surgiram as
corporações de ofício. Nas cidades recém-formadas, as corporações de ofício passaram a ter
um papel central. Cada corporação agregava trabalhadores que exerciam o mesmo ofício. “A
organização corporativa excluía [...] a divisão manufatureira do trabalho, embora muito
contribuísse para as condições de existência desta, especializando, separando e aperfeiçoando
os ofícios” (MARX, 2006, p. 414).
A corporação de ofício era composta basicamente por três classes: os mestres, os
jornaleiros e os aprendizes. Os mestres eram os donos da oficina, detinham as ferramentas,
forneciam a matéria-prima e alimentavam em suas casas seus jornaleiros e seus aprendizes.
Não havia separação entre os meios de produção18 e o produtor.
As leis das corporações da Idade Média limitavam o número de trabalhadores que o
mestre tinha o direito de empregar. “Também só lhe era permitido empregar companheiros no
15
O dinheiro é o intermediário da troca de mercadorias, servindo como meio de circulação. Marx (2006) define o
dinheiro como um cristal criado necessariamente pelo processo de troca. Por esse autor, é acrescentado que o
dinheiro serve para equiparar os variados produtos do trabalho, serve para convertê-los em mercadorias. O
dinheiro converte-se em capital a partir do momento em que a força de trabalho converte-se em mercadoria.
16
As relações de produção são as formas pelas quais os homens se organizam para executar a atividade
produtiva. “As relações de produção são constituídas pela propriedade econômica das forças produtivas”
(BOTTOMORE, 1997, p. 157). Segundo Marx (2006), as desigualdades sociais são provocadas pelas relações de
produção do sistema capitalista, as quais dividem os homens em proprietários e não-proprietários dos meios de
produção. Para esse autor, as desigualdades são a base da formação das classes sociais. No capitalismo, a
burguesia tem a propriedade dos meios de produção, enquanto que o proletariado tem apenas a sua força de
trabalho. As forças produtivas e as relações de produção constituem o modo de produção e são as condições
naturais e históricas de toda atividade produtiva que ocorre na sociedade.
17
Todas as sociedades “têm de produzir suas próprias condições materiais de existência. A mercadoria é a forma
que os produtos tomam quando essa produção é organizada por meio da troca” (BOTTOMORE, 1997, p. 265).
Observa-se que os produtos dos diferentes trabalhos privados têm de ser, na sociedade capitalista, trocados.
Pode-se chamar o produto a ser trocado, o resultado do trabalho, de mercadoria.
18
Os meios de produção são elementos que constituem a condição material da produção. Os meios de trabalho e
os objetos de trabalho são meios de produção. “Os produtos destinados a servir de meio de produção não são
apenas resultados, mas também condição do processo de trabalho” (MARX, 2006, p. 215). No capitalismo, a
burguesia tem a propriedade dos meios de produção (ferramentas, máquinas, matéria-prima, etc).
29
ofício em que era mestre” (MARX, 2006, p. 414). Os que desejavam entrar na corporação
deveriam ser aceitos por um mestre como aprendizes.
A extensão do aprendizado variava de acordo com o ramo, podendo durar um ano, ou
prolongar-se de dez a doze anos. Após o término do aprendizado, o aprendiz tornava-se
jornaleiro e depois mestre. Porém, com o renascimento do comércio e o aumento da demanda,
as corporações mudaram. Tornou-se mais difícil ao jornaleiro atingir a condição de mestre.
Isso acontecia principalmente em virtude do domínio que os membros mais ricos passaram a
ter sobre as corporações. O ciclo passou a se resumir em aprendiz-jornaleiro. Apenas os filhos
de um mestre artesão ou mestre tecelão poderiam aspirar a ocupar tal condição.
Mediante a subversão do sistema, os trabalhadores começaram a formar suas próprias
organizações, afastando-se das antigas corporações. As associações dos trabalhadores
começaram a incomodar as autoridades, bem como os patrões, e passaram a ser perseguidas.
A situação desses trabalhadores era pior do que a dos jornaleiros, pois não tinham permissão
para ingressarem nas associações e estavam à mercê dos industriais mais ricos.
O renascimento comercial19 e urbano da Europa Ocidental fez com que a produção
feudal de subsistência cedesse espaço forçosamente “a outra forma de produção e consumo,
voltada aos interesses do mercado” (DELL’AGOSTINO; VASCO; SILVA, 2007, p. 67).
A consolidação de uma nova classe social: a burguesia20 pode ser citada como uma
das principais transformações sociais decorrentes da crise do sistema feudal. “Essa classe foi
muito importante na desagregação do feudalismo, pois começou a deslocar, lentamente, o
eixo da economia para as atividades comerciais urbanas” (PEDRO; LIMA, 2005, p. 110).
Os lucros do comércio nos séculos XV e XVI foram imensos. Muitos comerciantes
financiaram a produção artística e literária. Esse período recebeu uma denominação especial:
Renascimento21.
19
As cruzadas do século XI ao XII contribuíram muito para o renascimento comercial. As Cruzadas possibilitaram o estabelecimento do comércio com o Oriente e aumentaram a circulação de moeda. Para Huberman
(1981), o comércio no século XI andou a passos largos. O mesmo autor salienta que as cruzadas se constituíram
em alavanca para o comércio.
20
Classe social que surgiu na Europa com o desenvolvimento dos burgos (vilas e pequenas cidades) medievais e
com o crescimento do comércio na sociedade feudal (DELL’AGOSTINO; VASCO; SILVA, 2007). Conforme o
exposto no Dicionário do Pensamento Marxista (1997), a burguesia é uma classe economicamente dominante.
Ela possui a propriedade dos meios de produção. Engels (1997), em O Manifesto Comunista, esclarece que a
burguesia é a classe dos capitalistas modernos. Também, a seu ver, a burguesia é a classe dos proprietários dos
meios de produção social que emprega o trabalho assalariado.
21
O Renascimento foi um movimento artístico e científico que teve início na península itálica e expandiu-se nos
séculos XV e XVI para as demais partes da Europa. Uma das justificativas do início desse movimento na
península itálica é que ela está entre as primeiras regiões onde o renascimento comercial e urbano se manifestou.
O Renascimento possui os seguintes traços marcantes: retorno à cultura greco-romana, valorização do homem,
mudança na concepção de ser humano. O ideal de homem medieval era o de que ele deveria ser puro e santificado. Para garantir a salvação da alma, o homem medieval deveria superar o pecado. O ideal do homem renascen-
30
Também nesse período, observou-se que a burguesia precisava de segurança para os
seus quarteirões, proteção contra assaltos nas estradas e isenção de taxas de pedágio.
Os senhores feudais tinham-se enfraquecido em disputas freqüentes e a Igreja Católica não
atendia aos anseios da emergente burguesia. Optou-se, então, por fortalecer o rei.
Até o final do século XVIII, o mapa político europeu caracterizava-se pelo predomínio
do Estado monárquico absolutista (FALCON, 2000). O rei, com a ajuda dos grupos
comerciais, formou seu exército permanente, passando a não mais depender dos exércitos dos
senhores feudais. Em contrapartida, o rei criou leis que proibiam os senhores feudais de
manterem exércitos regulares e de importunarem os comerciantes no exercício de seu ofício e
no transporte de suas mercadorias. As corporações de ofício passaram a ser um obstáculo ao
desenvolvimento livre do comércio e seus regulamentos passaram ao controle dos juízes de
paz. Não demorou muito e as corporações de ofício foram banidas na França. A intervenção
do rei na economia, fortalecendo-a e regulamentando-a, foi aceita pela burguesia, pois seus
interesses eram favorecidos.
Torna-se importante dizer que a política econômica do governo absolutista era o
mercantilismo (PEDRO; LIMA, 2005). Uma característica importante do mercantilismo foi o
metalismo, teoria segundo a qual o poder e a riqueza de um país eram medidos pela
quantidade de metais preciosos (ouro e prata) existentes dentro de suas fronteiras.
A política mercantilista, além de evitar a saída do ouro e da prata do país, deveria
provocar sua entrada, vendendo mais do que comprando, o que geraria um saldo favorável na
balança comercial. Também fazia parte da política mercantilista a busca por novas terras para
serem transformadas em colônias. As colônias eram uma das fontes de riqueza mais
importantes de que as monarquias nacionais européias dispunham para se consolidar como
Estados fortes e centralizados.
As metrópoles detinham o monopólio do comércio com as colônias.
Pelo monopólio, a burguesia mercantil da metrópole adquiria os produtos coloniais a
baixíssimos preços e os revendia, na própria metrópole ou em outras regiões da
Europa, obtendo elevados lucros. Ao mesmo tempo, a metrópole se reservava o
direito exclusivo de vender produtos manufaturados às colônias, o que aumentava os
lucros da burguesia mercantil (PEDRO; LIMA, 2005, p. 195).
tista é o homem culto e o artista. O homem típico do Renascimento dominava vários campos do saber e do
conhecimento. Leonardo da Vinci é um exemplo desse novo homem. Em diferentes épocas da vida, ele se
distinguiu na pintura, na escultura, na arquitetura, na engenharia, na literatura e nas ciências. Também se pode
citar a valorização da razão e da natureza como característica do Renascimento (PEDRO; LIMA, 2005).
31
O mercantilismo permitiu grande acúmulo de capitais nas mãos da burguesia. A
burguesia passou a fazer contestações ao poder do rei. Essas contestações resultaram na crise
do sistema absolutista.
As chamadas revoluções “burguesas”, marcadamente a Revolução Inglesa do século
XVII e a Revolução Francesa do século XVIII, tiveram intensa participação popular e
representaram a ruptura política com o absolutismo e a ruptura econômica com o
mercantilismo do Antigo Regime. Essas revoluções “provocaram a instalação de uma
monarquia parlamentar na Inglaterra e a república na França” (DELL’AGOSTINO; VASCO;
SILVA, 2007, p. 113).
É relevante dizer que a burguesia em ascensão foi fundamental na Reforma religiosa22.
O comércio, a acumulação de dinheiro, os empréstimos a juros, a busca do lucro eram
associados ao pecado e colocados sob suspeita na doutrina católica tradicional.
A sociedade capitalista que nascia [...] tinha na Igreja católica um obstáculo ao seu
desenvolvimento. A Reforma significou, nesse aspecto, a elaboração de doutrinas religiosas que, sem deixarem de ser cristãs, estavam mais adequadas às atividades e
aos interesses burgueses (PEDRO; LIMA, 2005, p. 161).
À propriedade das terras, do comércio, dos bancos e das ferramentas, a burguesia
somou o controle econômico e político. A burguesia passou a se interessar pelo
22
A Reforma Religiosa pode ser definida como um movimento que rompeu a unidade religiosa na Europa
Ocidental entre 1517 e 1564. Através desse movimento, os cristãos europeus dividiram-se em católicos e
protestantes. Devido a esse fato, a Igreja Católica perdeu o monopólio que possuía sobre a religião cristã na
Europa. Os movimentos reformistas fizeram com que novas organizações religiosas emergissem. Os reformistas
rejeitaram a pretensão da Igreja Católica de ser o único veículo de acesso ao mundo religioso, bem como questionaram a supremacia papal, abrindo espaço para uma nova perspectiva religiosa: a fé pessoal. Os movimentos
reformistas ocorreram paralelamente ao renascimento, à passagem do feudalismo ao capitalismo e ao fortalecimento das monarquias nacionais. Os movimentos reformistas provocaram guerras religiosas entre protestantes e
católicos como a guerra dos trinta anos (1618-1648). O seu avanço pela Europa impulsionou a Igreja Católica a
adotar a Contra-Reforma. Pode-se dizer que a Reforma começou na Alemanha em 1517 com Martinho Lutero.
Lutero defendia a fé como fundamento da salvação. Para ele, a verdade não estaria com o papa, mas sim na palavra de Deus, nas Sagradas Escrituras, as quais os fiéis poderiam examinar e interpretar conforme a sua consciência (doutrina do livre exame). Lutero estendeu a todos os homens o acesso à Bíblia e criticou o culto às imagens.
As idéias de Lutero foram aceitas pela nobreza. A nobreza alemã viu nas propostas de Lutero uma oportunidade
para se apoderar dos domínios da Igreja Católica na Alemanha. Quanto à Reforma anglicana, pode-se dizer que
ela foi promulgada em 1534 pelo rei Henrique VIII da Inglaterra. Henrique VIII era católico, porém rompeu com
o papa Clemente VII quando este se recusou a dissolver seu casamento com Catarina de Aragão, que não lhe deu
um filho. Em 1533, Henrique VIII casou-se com Ana Bolena e foi excomungado pelo papa. Havia também um
interesse da monarquia inglesa em tornar-se uma autoridade suprema. Em 1558, a Reforma anglicana
consolidou-se sob o reinado de Elizabeth I. A Reforma calvinista teve início em 1534 na França, com as
pregações de João Calvino. Calvino elaborou uma doutrina cristã adequada à burguesia emergente. De acordo
com sua doutrina, a salvação dependia exclusivamente da vontade divina. Os que seriam salvos já estariam
previamente escolhidos por Deus (doutrina da predestinação). Ser fiel à vocação que Deus deu a cada um seria
um sinal da predestinação. O calvinismo dignificou o trabalho. O trabalho era visto na doutrina católica
tradicional como um mal necessário, quase um castigo. O calvinismo estimulou a vida regrada e a busca pelo
conforto através do trabalho (PEDRO; LIMA, 2005).
32
aperfeiçoamento das técnicas de produção e a investir no trabalho de inventores na criação de
máquinas e experiências industriais.
Da mesma forma com que a manufatura suplantou o artesanato, ela também foi
suplantada pela maquinaria. Progressivamente, a maquinaria foi penetrando nos processos
parciais das manufaturas. “A organização rígida e cristalizada destas [...] dissolve-se, dando
lugar a transformações constantes” (MARX, 2006, p. 524).
A produção, que antes era feita por meio de ofícios manuais, passou a ser feita por
meio de máquinas, no espaço físico das fábricas e, posteriormente, das indústrias.
“Toda maquinaria desenvolvida consiste em três partes essencialmente distintas: o
motor, a transmissão e a máquina-ferramenta ou máquina de trabalho [...] É desta parte da
maquinaria, a máquina-ferramenta, que parte a revolução industrial no século XVIII”
(MARX, 2006, p. 429).
A eclosão da Primeira Revolução Industrial, na Inglaterra, marcou o início do
capitalismo industrial e significou um aumento, sem precedentes, na produção de
mercadorias. A “resistência” da máquina e não mais a do homem, eram os limites últimos do
volume de produção.
A revolução na produção da fiação se propagou a outros ramos industriais. A
mecanização da fiação tornou imprescindível a mecanização da tecelagem e ambas
ocasionaram a revolução química e mecânica no branqueamento, na estampagem e na
tinturaria. Com a revolução na fiação do algodão, foi necessário aumentar a escala de
produção do algodão e para que isso fosse possível criou-se a descaroçadora de algodão. A
revolução no modo de produção industrial e agrícola tornou necessária uma revolução nos
meios de comunicação e de transporte.
Para além da construção dos navios a vela, progressivamente, o sistema de transportes
e comunicações foi adaptado ao modo de produção de grande indústria por meio da
introdução dos navios fluviais, das vias férreas, dos transatlânticos e do telégrafo.
Mas as massas gigantescas de ferro que tinham então de ser forjadas, soldadas,
cortadas, brocadas e moldadas exigiam máquinas ciclópicas [...] A indústria
moderna teve então de apoderar-se de seu instrumento característico de produção, a
própria máquina, e de produzir máquinas com máquinas (MARX, 2006, p. 440-441).
No cenário da Primeira Revolução Industrial, duas classes distintas estavam presentes:
os donos das novas indústrias e a classe operária (trabalhadores das indústrias). Thompson
(1987) mantém a mesma postura de Marx (2006) ao ressaltar que não foi a máquina que criou
33
o operário, mas foi ela quem o expropriou do seu trabalho. Hobsbawm (2007) explica que o
surgimento da classe operária se deu com os operários têxteis, artesãos, tinteiros, tipógrafos e
sapateiros assalariados. A classe operária é um novo tipo de trabalhador, aquele expropriado
de seus meios de produção.
No interior das fábricas, cada operário vendia sua força de trabalho23 por salários24 e se
especializava numa determinada tarefa. O operário, devido à divisão do trabalho ocasionada
pela maquinaria, perdeu o domínio sobre o seu tempo de trabalho e o seu saber sobre o
produto todo. A especialização resultou na “dissociação entre os trabalhadores e a propriedade
dos meios pelos quais realizam o seu trabalho” (MARX, 2005, p. 828).
Os operários foram obrigados a seguir o ritmo das máquinas. E, não era suficiente que
houvesse produção geral, era necessário produzir mais-valia25.
Os operários passaram a
trabalhar sob o controle dos industriais a quem pertenceria o seu trabalho, “[...] o produto é
propriedade do capitalista, não do produtor imediato, o trabalhador” (MARX, 2006, p. 219).
De acordo com Marx (2001), o processo de alienação do trabalhador se dá através do
estranhamento deste em relação ao produto de seu trabalho. “[...] o trabalho se transforma em
objeto e assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele
estranho [...] ” (MARX, 2001, p.112).
A fábrica condicionou os operários a um disciplinamento constante na execução de
tarefas repetitivas. Sem distinção de sexo e idade, todos os membros da família eram
trabalhadores. “[...] a maquinaria transformou-se imediatamente em meio de aumentar o
número de assalariados, colocando todos os membros da família do trabalhador [...] sob o
domínio direto do capital” (MARX, 2006, p. 451).
23
“É a capacidade de realizar trabalho útil que aumenta o VALOR das mercadorias” (BOTTOMORE, 1997,
p.156). Em troca de um salário em dinheiro, os trabalhadores vendem a sua força de trabalho aos capitalistas. A
força de trabalho pode ser percebida no mercado como mercadoria somente quando é posta à venda por seu
próprio possuidor. A existência de um mercado onde se compra e se vende a força de trabalho é mais uma
característica do capitalismo. O valor da força de trabalho deve ter o valor dos meios de subsistência
imprescindíveis para que o trabalhador possa se manter em seu estado normal.
24
“Salários são a forma monetária pela qual os trabalhadores são pagos pela venda de sua força de trabalho”
(BOTTOMORE, 1997, p. 331).
25
Marx (2006) afirma que a produção capitalista não deve ser entendida apenas como produção de mercadoria,
uma vez que ela também é essencialmente produção de mais-valia. Esse autor desvendou o mecanismo da
exploração capitalista, definindo o conceito de mais-valia. Ele chamou de mais-valia o acréscimo do valor
primitivo do dinheiro posto em circulação. Para se obter a mais-valia, de acordo com Marx (2006), é decisivo
que o capitalista faça a descoberta no mercado de uma mercadoria cujo valor de uso seja dotado da
propriedade particular de ser fonte de valor, uma mercadoria cujo processo de consumo seja, ao mesmo tempo,
um processo de criação de valor e criação de mais-valia. A força de trabalho é essa mercadoria. Devido a dois
processos essenciais: o prolongamento da jornada de trabalho e a redução do tempo de trabalho necessário, é que
o aumento da mais-valia é possível. Para que a produção de mais-valia possa aumentar continuamente, é
necessária uma acumulação ininterrupta.
34
O trabalho de mulheres e crianças era usado, pois o baixo custo compensava, tendo em
vista que as mulheres ganhavam menos do que os homens e as crianças ganhavam menos que
as mulheres.
“Para a maioria dos trabalhadores, a experiência crucial da Revolução Industrial foi
percebida com uma alteração na natureza e na intensidade da exploração” (THOMPSON,
1987, p. 23).
Além da exploração, a insegurança era comum entre os trabalhadores. “Eles não
sabiam no princípio da semana quanto iriam levar para a casa na sexta-feira. Não sabiam
quanto tempo iria durar o emprego atual [...] não sabiam que acidentes ou doenças iriam
afetá-los [...]” (HOBSBAWM, 1996, p. 306).
A partir de meados do século XIX, as fábricas começaram a ter necessidade de
matérias-primas, de energia, de mão-de-obra e de mercados para seus produtos. A
industrialização passou a não mais se restringir ao Reino Unido. Ela expandiu para outros
países europeus, tais como a Bélgica e a França, bem como para países fora da Europa como
os Estados Unidos e o Canadá.
A dinâmica de produção, distribuição e consumo de bens, passou a ser regida por leis
próprias como a lei da oferta e da procura. Consolidou-se, assim, o liberalismo26. O
liberalismo expressou um momento de expansão do modo de produção capitalista.
Adam Smith (1983) foi o principal teórico do liberalismo. Ele se mostrou contra a
intervenção estatal e propôs uma economia dirigida pelo jogo livre da oferta e da procura, o
laissez-faire, laissez-passer (deixai fazer, deixai passar, em francês). A expressão laissez-faire
significava eliminar o intervencionismo, deixando que cada indivíduo produzisse e fizesse o
que lhe parecia melhor, enquanto laissez-passer consistia em romper as barreiras
alfandegárias, para estimular o comércio e a circulação de riquezas.
Em A Riqueza das Nações, Adam Smith escreve “[...] deixe-se a cada qual, enquanto
não violar as leis da justiça, perfeita liberdade de ir em busca de seu próprio interesse, a seu
próprio modo, e faça com que tanto seu trabalho como seu capital concorram com os de
qualquer outra pessoa ou categoria de pessoas” (SMITH, 1983, p. 47).
No final do século XIX, mudanças significativas aconteceram no interior das fábricas:
a produtividade e a capacidade de produção aumentaram rapidamente e a divisão do trabalho
26
“O liberalismo é um sistema de idéias elaboradas por pensadores ingleses e franceses no contexto das lutas de
classe da burguesia contra a aristocracia” (CUNHA, 1980, p. 27). Historicamente, constituíram-se como diretrizes fundamentais dessa doutrina, a igualdade de direitos e de oportunidades, a eliminação dos privilégios hereditários, o respeito às capacidades e iniciativas individuais e a educação universal. O individualismo, a liberdade, a
propriedade, a igualdade e a democracia representativa são princípios básicos do liberalismo.
35
aprofundou-se. Nesse período, aconteceu a Segunda Revolução Industrial e o capitalismo
entrou em sua fase financeira e monopolista.
Na segunda fase da Revolução Industrial, a pequena empresa do pioneiro capitalista
praticamente desapareceu. “[...] o capitalismo de livre concorrência – pequenas empresas
lutando pelo lucro – foi sendo superado pela concentração econômica. Empresas do mesmo
ramo de produção fundiam-se em uma só” (PEDRO; LIMA, 2005, p. 327).
O processo de concentração e centralização de capitais foi, portanto, uma das
conseqüências mais importantes do crescimento acelerado da economia capitalista no final do
século XIX. O mercado passou a ser dominado por grandes corporações em substituição à
livre concorrência e ao livre mercado, característicos da fase industrial, na qual empresas
menores predominavam. Ao mesmo tempo, a introdução de novas tecnologias e novas fontes
de energia no processo produtivo ganhou destaque.
Na primeira fase da Revolução Industrial, as descobertas que revolucionaram a
maneira de produzir não estavam ligadas à pesquisa científica, mas nasciam do
contato direto com o trabalho. Nessa segunda fase da Revolução Industrial,
entretanto, as máquinas mais complexas e as novas matérias-primas, como a
borracha, o petróleo etc., exigiam um novo tipo de pesquisa ligada à ciência
moderna (PEDRO; LIMA, 2005, p. 326).
Uma verdadeira revolução tecnológica estava acontecendo no final do século XIX.
Construíram-se os primeiros motores elétricos e a energia elétrica foi transmitida a distâncias
longas por meio de cabos. Verificou-se, no mesmo período, o surgimento das primeiras
lâmpadas elétricas, o telefone foi aperfeiçoado e o petróleo passou a ser usado como
combustível.
Ao contrário da Primeira Revolução Industrial, no século XVIII, quando os avanços
tecnológicos eram resultantes de pesquisas espontâneas e autônomas, a ciência, na Segunda
Revolução Industrial, era apropriada pelo capital, isto é, estava a serviço da produção
(MOREIRA; SENE, 2005).
As grandes empresas e os Estados passaram a se esforçar para realizar pesquisas
científicas visando a desenvolver novas técnicas de produção. Esse esforço conjunto resultou
na construção dos primeiros laboratórios de pesquisa das atuais grandes corporações
multinacionais.
Essa fase também foi marcada pela expansão imperialista. “[...] a rápida consumação
da colonização do mundo, as rivalidades internacionais e os conflitos armados pela divisão do
36
globo em esferas de influência econômica ou hegemônica inauguram a moderna era
imperialista” (BRAVERMAN, 1987, p. 216).
A concorrência acirrou-se com o crescente aumento da produção e com a expansão da
industrialização para outros países. A necessidade de garantir novos mercados consumidores,
novas fontes de matérias-primas e novas áreas para investimentos lucrativos aumentou. A
expansão imperialista européia na África e na Ásia aconteceu nesse contexto do capitalismo.
As potências da Europa, na Conferência de Berlim (1884-1885), retalharam o
continente africano, partilhando-o entre elas. Essa partilha imperialista estabelecida pelas
potências industriais consolidou a divisão internacional do trabalho. “[...] a velha divisão
internacional de trabalho tinha uma tendência inata de reforçar o monopólio industrial dos
velhos países-núcleo” (HOBSBAWM, 1995, p. 204).
Notavelmente no final do século XIX, emergiu uma potência industrial fora da
Europa: os Estados Unidos da América. Pode-se dizer que o imperialismo americano sobre a
América Latina foi diferente do imperialismo europeu sobre a Ásia e a África.
Enquanto as colônias desses continentes eram, na prática, uma continuidade dos
territórios das potências européias, havendo sobre eles um controle político e militar
direto, os norte-americanos exerciam um controle indireto, patrocinando golpes de
Estado e apoiando a ascensão de ditadores locais favoráveis aos Estados Unidos. As
intervenções militares eram localizadas e temporárias, como o controle exercido
sobre Cuba de 1899 a 1902 (MOREIRA; SENE, 2005, p. 170).
No início do século XX, os países capitalistas já tinham acertado os seus trustes, seus
cartéis, seus monopólios e os caminhos do imperialismo. Algumas empresas cresceram mais
que outras e a disputa por mercados levou à Primeira Guerra Mundial que devastou partes do
Velho Mundo, sobretudo da Europa. Os Estados Unidos não foram atingidos em seu
território. Suas fábricas não foram afetadas. Esse país produziu para si e para os aliados, bem
como apresentou um desenvolvimento industrial significativo durante e após a guerra.
O considerável desemprego nos países europeus, a progressiva degradação dos ideais
liberais democráticos, os sentimentos nacionalistas e a Revolução Socialista na Rússia podem
ser citados como conseqüências da Primeira Guerra Mundial.
Em 1929, o capitalismo enveredou por mais uma crise. A quebra da Bolsa de Nova
Iorque em 29 de outubro de 1929 afetou a economia do mundo inteiro. Devido a essa crise,
foi posto em prática, pelo presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, o plano New
Deal – novo plano
ou novo acordo. Esse plano representou um clássico exemplo de
intervenção do Estado na economia.
37
A política de intervenção estatal numa economia em que o oligopólio predominava
ficou conhecida como Keynesianismo, por ter sido o economista inglês John M. Keynes seu
principal teórico. Keynes aprovava o capitalismo, porém, com a interferência do Estado para
regulamentá-lo.
A criação da Liga das Nações não foi suficiente para evitar a ascensão de movimentos
totalitários na Alemanha e na Itália, bem como a eclosão da Segunda Grande Guerra Mundial,
que iniciou em 1939 e cessou em 1945. Os horrores dessas guerras e a crise social e
econômica que se abateu sobre a grande maioria dos países reforçaram as doutrinas pregadas
por
Keynes, dando vazão ao surgimento do Estado do Bem-Estar Social. Neste sentido, o
Estado passou a assumir políticas de planejamento e assistência social.
Norberto Bobbio (1992) define o Estado do Bem-estar Social (Welfare State) como
aquele que garante a todos os cidadãos renda mínima, alimentação, saúde, habitação e
educação como direito político e não como caridade.
De acordo com Saviani (2005), o Estado do Bem-Estar Social pode ser visto como um
compromisso entre Estado, empresas e sindicatos de trabalhadores. Esse compromisso
assegurou um equilíbrio social e impulsionou o desenvolvimento das forças produtivas
capitalistas.
Para Hobsbawm,
o argumento keynesiano em favor dos benefícios da eliminação permanente do
desemprego em massa era tão econômico quanto político. Os keynesianos
afirmavam, corretamente, que a demanda a ser gerada pela renda de trabalhadores
com pleno emprego teria o mais estimulante efeito nas economias em recessão
(HOBSBAWM, 1995, p. 100).
É importante ressaltar a amplitude e os limites desse Estado Keynesiano que tomou
forma nos anos 1930 e se consolidou no pós-guerra. As modificações impostas por essa nova
política não se limitaram à estrutura econômica, mas abriram espaço para mudanças
significativas no conjunto das relações sociais, dentre elas, a passagem histórica para novas
formas de relação entre Estado e a sociedade. Estabeleceu-se uma nova relação entre
capitalismo e instituições. O Estado apropriou-se das funções privadas de gestão e reprodução
da força de trabalho. O Estado passou a garantir o processo de acumulação através da
intervenção, bem como passou a promover a regulação da força de trabalho e das relações
sociais por meio de uma profunda reforma social. Estado/Capital/Trabalho tornaram-se um
tripé essencial dessa nova política.
38
A emergência de uma nova divisão do trabalho com o taylorismo e o fordismo é uma
outra mudança no conjunto das relações sociais. A introdução da organização científica
taylorista27 do trabalho na indústria automobilística e sua fusão com o fordismo28 foi a forma
mais avançada da racionalização capitalista do processo de trabalho ao longo, praticamente,
de todo o século XX. O insight de Ford foi descobrir que a produção em massa significava
consumo em massa.
Sobre o consumo em massa, Arendt, em seu livro A Condição Humana, expõe que o
espaço público estaria reduzido às trocas econômicas. O homem estaria escravizado na
relação de consumo.
No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, o processo produtivo
fordista-taylorista29 e o plano keynesiano de desenvolvimento deram sinais de esgotamento.
A uma Era de Catástrofe, que se estendeu de 1914 até depois da Segunda Guerra
Mundial, seguiram-se cerca de 25 ou trinta anos de extraordinário crescimento
econômico e transformação social, anos que provavelmente mudaram de maneira
mais profunda a sociedade humana que qualquer outro período de brevidade comparável. Retrospectivamente, podemos ver esse período como uma espécie de Era de
Ouro, e assim ele foi visto quase imediatamente depois que acabou, no início da
década de 1970. A última parte do século foi uma nova era de [...] incerteza e crise
(HOBSBAWM, 1995, p. 15).
27
Na busca pela eliminação do desperdício, da ociosidade operária, bem como pela redução dos custos de
produção, Taylor iniciou seus estudos sobre a Ciência da Administração, no começo do século XX. Desenvolveu
técnicas de racionalização do trabalho operário e, em 1903, analisou e controlou o tempo e o movimento do
homem e da máquina em cada tarefa, para aperfeiçoá-los e racionalizá-los gradativamente. Com base na idéia de
que a eficiência aumenta com a especialização, Taylor dividiu o trabalho e limitou cada operário à execução de
uma única tarefa, de maneira contínua e repetitiva. Para obter a colaboração dos funcionários, foram
estabelecidos remuneração e prêmios extras. Além de racionalizar o trabalho do operário, Taylor tentou mudar o
comportamento dos supervisores, chefes, gerentes e diretores que ainda trabalhavam nos velhos padrões,
criando, assim, a Administração Científica, que foi rapidamente aplicada na indústria americana, estendendo-se a
todos os países e campos de atividade. No entanto, seus princípios de superespecialização foram criticados por
robotizar o operário, fazendo-o perder a liberdade e a iniciativa de estabelecer sua própria maneira de trabalhar
(BRAVERMAN, 1987).
28
Logo nas primeiras décadas do século XX, em Detroit, Henry Ford colocou em prática, na sua fábrica de
automóveis, a produção em série através das famosas linhas de montagem. Essa nova forma de trabalho consistia
na avançada fragmentação de tarefas entre os diversos operários de sua fábrica. Ou seja, cada trabalhador seria
responsável por uma única tarefa, que deveria ser repetida de forma a se alcançar uma maior produtividade. O
sistema fordista de produção está diretamente ligado aos fundamentos propostos pelo conjunto de teorias desenvolvidas pelo engenheiro estadunidense Frederick W. Taylor para aumentar a produtividade do trabalho
industrial. A busca pela maior produtividade com o menor custo levou a fábrica de Ford a construir um carro
que, graças à racionalização do trabalho, teve seu custo reduzido significativamente: o Ford Modelo T,
completamente produzido dentro da fábrica Ford e respeitando na sua fabricação todos os preceitos fordistatayloristas (BRAVERMAN, 1987). Como o objetivo principal era a redução de custos e o aumento da
produtividade, o Modelo T só poderia ser fabricado de um mesmo jeito, inclusive na sua cor. Isso levou Ford a
criar uma campanha publicitária dizendo que todo americano poderia ter o seu Ford Modelo T da cor que
quisesse, contanto que a cor fosse preta. Era o paradigma da produção em série para atender a demanda de uma
sociedade tipicamente de massa.
29
O processo produtivo fordista-taylorista mesclou a produção em série fordista com o cronômetro taylorista.
Havia, também, nesse processo produtivo, uma separação entre a tarefa de elaboração e execução. “Para o
capital, tratava-se de apropriar-se do savoir faire do trabalho, “suprimindo” a dimensão intelectual do trabalho
operário, que era transferida para as esferas da gerência científica. A atividade de trabalho reduzia-se a uma ação
mecânica e repetitiva” (ANTUNES, 1999, p. 36).
39
Os antigos equilíbrios entre Estado e economia de mercado, entre acumulação e
consenso político foram decompostos. As limitações impostas pela crise às políticas “Welfare
State” levaram ao abandono dos compromissos econômicos e políticos que regulavam o seu
funcionamento. Os períodos expansivos ficaram mais curtos, as recessões ficaram freqüentes
e um aumento significativo da taxa de desemprego foi observado. Grande volume de recursos
foi desviado do investimento produtivo para aplicações no circuito financeiro. As indústrias,
especialmente as de transformação, não foram capazes de proporcionar uma taxa de lucro
adequada.
Assim, o surgimento de excesso de capacidade e de produção, acarretando perda de
lucratividade nas indústrias de transformação a partir da década de 1960, foi a raiz
do crescimento acelerado do capital financeiro do final da década de 1970 [...] As
raízes da estagnação e da crise [...] estão na compressão dos lucros do setor manufatureiro que se originou no excesso de capacidade e de produção fabril, que era em si
a expressão da acirrada competição internacional (BRENNER, 1999, p. 12-13).
A crise mundial do Estado capitalista gerou a necessidade de se buscar saídas que
permitissem a retomada dos objetivos de crescimento econômico, propiciando o surgimento
de um novo modelo de acumulação, denominado por Harvey (1994) de “acumulação
flexível”.
O novo modelo de acumulação se caracteriza pela:
[...] crescente capacidade de manufatura de uma variedade de bens e preços baixos
em pequenos lotes [...] Estes sistemas de produção flexível permitiram uma aceleração do ritmo da inovação do produto, ao lado da exploração de nichos de mercado
altamente especializados e de pequena escala [...] O tempo de giro - que sempre é a
chave da lucratividade capitalista - foi reduzido de modo dramático pelo uso de
novas tecnologias produtivas (automação, robôs) e de novas formas organizacionais
[...] (HARVEY, 1994, p. 148).
Dentre as formas de acumulação flexível, destaca-se o toyotismo30 cuja inserção no
universo fabril foi impulsionada pela Terceira Revolução Industrial e pela Globalização.
30
O toyotismo se destaca pelo impacto que tem causado, tanto pela revolução técnica que operou na indústria
japonesa, quanto pela potencialidade de propagação que hoje atinge uma esfera mundial. O toyotismo surgiu
como modelo alternativo ao taylorismo/fordismo e, de acordo com Antunes (1999), possui as seguintes características: produção vinculada à demanda que visa a atender às exigências mais individualizadas do mercado consumidor, diferenciando-se da produção em série de massa taylorista/fordista; fundamenta-se no trabalho operário
em equipe, com multivariedade de funções, o que rompe com o caráter parcelar típico do fordismo; produção
estruturada num processo produtivo flexível que possibilita ao trabalhador operar simultaneamente várias máquinas; possui como princípio o just in time, aproveitando o melhor tempo de produção; funciona segundo o
sistema kanban, placas ou senhas de comando para reposição de peças e de estoques; organiza os Círculos de
Controle de Qualidade, através de grupos de trabalhadores instigados pelo capital a discutir seu trabalho e
desempenho. Os CCQs visam a melhorar a produtividade. Eles representam um importante instrumento para o
capital se apropriar do saber-fazer intelectual e cognitivo do trabalho, que o fordismo desprezava.
40
O período que se refere à Terceira Revolução Industrial, também conhecida como
Revolução Informacional, se instalou na passagem do século XX para o século XXI, com a
difusão de diversas tecnologias – robôs, computadores, satélites, aviões a jato, cabos de fibras
óticas, telefones digitais, Internet etc – responsáveis pelo crescente aumento da produtividade
econômica e pela aceleração dos fluxos de capitais, de mercadorias, de informações e de
pessoas. A partir dessas inovações, o capitalismo atingiu a sua fase informacional-global. A
característica fundamental dessa fase é a crescente importância do conhecimento que
proporciona o aumento de capital e de poder. A importância do conhecimento equivale à sua
mercantilização.
Lyotard (1986) admite que as sociedades são comandadas, cada vez mais, pela
informação e pelo acesso a esta mesma informação.
O capitalismo é, cada vez mais,
informacional e global. Pode-se afirmar que nenhum país encontra-se imune aos interesses
das grandes corporações e a circulação crescente de capitais, mercadorias, informações e
pessoas, características essenciais da globalização.
A queda do muro de Berlim (1989), o fim da guerra fria (1946-1989), a desintegração
da União Soviética e o subseqüente desmantelamento do socialismo real (1991), a formação
de blocos econômicos e regionais entre os anos 1980 e 1990 foram fatores preponderantes
para a difusão da expansão capitalista. Na atualidade, a expansão capitalista é feita através da
globalização31.
A globalização é uma tendência internacional do capitalismo que, juntamente com o
projeto neoliberal, impõe aos países periféricos a economia de mercado global sem
restrições, a competição ilimitada e a minimização do Estado na área econômica e
social (OLIVEIRA; LIBÂNEO, 1998, p. 606).
Globalização e neoliberalismo32 são, sem dúvida, marcas da contemporaneidade, e
seus impactos recaem sobre o mercado de trabalho.
31
Para Ortiz (2005), em se tratando do termo globalização, pode-se salientar que o mesmo se refere ao conjunto
de transformações que vem ocorrendo nas últimas décadas, seja na ordem política ou na ordem econômica
mundial. A integração dos mercados numa “aldeia global”, explorada pelas grandes corporações transnacionais é
o ponto central da mudança. Essa autora salienta, ainda, que a globalização não é um fenômeno novo. A
globalização teve início com o processo das grandes navegações dos séculos XV e XVI e avançou à medida que
se desenvolveu o capitalismo. Partindo desse dado é que Ortiz (2005) salienta que o fenômeno não é novo. Os
vocábulos “global”, “globalizado”, “globalizante” são usados na atualidade como adjetivos para as mais variadas
temáticas e situações. O termo globalização, para alguns, costuma estar associado à paz, progresso, idéia de um
mundo melhor. Para outros, essa palavra mostra-se associada à idéia de ameaça, dependência e caos global. A
escolha por um significado tem a ver com o posicionamento político e teórico de cada um, comenta Ortiz (2005).
É lembrado pela autora que a globalização é um processo em grande parte econômico. A globalização foi estimulada e instaurada em nível mundial pelos setores interessados em reorganizar as relações capitalistas e de
classe (pós-crise anos 1970).
32
O neoliberalismo é “[...] um movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo
jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante,
41
Em O fim dos empregos, Rifkin (1995) descreve um cenário sombrio para o futuro do
trabalho. Para esse autor, a busca cega da redução dos custos de produção está promovendo
uma eliminação drástica de postos de trabalho nas empresas tradicionais.
Sennett (2006) esclarece, em A cultura do novo capitalismo, que o chamado emprego
vitalício estaria com seus dias contados. Também é dito por ele que se foi o tempo em que
estudar e se especializar era garantia de um futuro material tranqüilo.
O desemprego é visto como uma ameaça real em grande parte do continente europeu e
nos países subdesenvolvidos do resto do mundo. Dentre os tipos de desemprego, há o desemprego estrutural. Observa-se que, de forma diferenciada, o desemprego estrutural está atingindo os diversos segmentos sociais e étnicos, sendo maior entre os jovens, as mulheres e os
afro-descendentes. O subemprego, o trabalho em tempo parcial, temporário ou subremunerado é exercido, principalmente, por esses segmentos sociais e representam uma porta
aberta para a pobreza e para a exclusão social (ORTIZ, 2005).
A precarização do trabalho também está ocorrendo para aqueles que conseguem ter
ocupação. Há “um sentimento de receio a respeito da estabilidade futura da sua posição e do
seu papel no local de trabalho” (GIDDENS, 2004, p. 413).
A precarização do trabalho é expressa na maior extensão e intensificação da jornada de
trabalho e é traduzida no aumento das horas-extras e no crescimento do estresse, e numa
menor remuneração.
A necessidade de se realizar trabalhos precários para a sobrevivência da família, a
situação de desalento frente a um mercado de trabalho que oferece poucas oportunidades de
inserção e um quadro de crescente instabilidade econômica e social são fatos que ilustram a
situação dos trabalhadores na contemporaneidade.
Com freqüência, verificam-se
desigualdades sociais que se configuram na violência, no desemprego em massa e de
larga duração, nos salários irrisórios para os incluídos, na insuficiência das redes de
saúde e de ensino, assim como na nocividade das condições e das formas de organização de trabalho (BRITO; ATHAYDE; NEVES, 2000, p. 2).
lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional [...] Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do
capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos de seus objetivos, criando
sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e
ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou um êxito num grau com o qual seus fundadores
provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios,
que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se às suas normas [...] Este fenômeno chama-se
hegemonia” (ANDERSON, 1995, p. 22-23).
42
A rapidez e a complexidade das transformações do mercado de trabalho presentes nas
sociedades capitalistas constituem fontes geradoras de tensão, sobrecarga física e mental que
são acompanhadas de experiências de indignidade, inutilidade e desqualificação. Esse é o
preço de se viver “num mundo conquistado, desenraizado e transformado pelo titânico
processo econômico e tecnocientífico do desenvolvimento do capitalismo que dominou os
dois ou os três últimos séculos” (HOBSBAWM, 1995, p. 562).
2.2 A educação escolar, a escola e os docentes face às transformações contemporâneas
Baseando-se em estudos como o realizado por Pasqualotto (2006), pode-se dizer que,
ao se pensar em educação escolar, primeiramente, deve-se entender que ela se constitui de
modo diferenciado a cada momento histórico existente. A explicação do porquê, do como e
do que se ensina depende da época e do lugar em que acontece o processo educativo. Há
muitas situações históricas que ilustram o pensamento de Pasqualotto (2006).
Na Idade média, por exemplo, a aprendizagem e a educação escolar
tinham lugar como socialização direta de uma geração por outra, mediante a
participação das crianças nas atividades da vida adulta e sem a intervenção sistemática de agentes especializados que representa hoje a escola, instituição que até então
desempenhava um papel marginal [...] a criança que é enviada como aprendizservente a outra família está aprendendo algo mais que um ofício ou boas maneiras:
está aprendendo as relações sociais de produção (ENGUITA, 1989, p. 107).
Pode-se dizer que o ideal educativo da nobreza feudal não passava pelas letras. Os
filhos dos aristocratas podiam aprender as “primeiras letras no colo de suas mães, mas, de
qualquer forma, não iriam muito além disso” (ENGUITA, 1989, p. 108). Para os artesãos, a
aprendizagem literária era secundária e, no que se refere aos camponeses, os poucos que
acorriam a uma escola recebiam apenas ensinamentos religiosos e morais da época. Saviani
(1997) assinala que as atividades educacionais durante a Idade Média tinham como objetivo
“passar o tempo”.
Com a transição do feudalismo para o capitalismo, houve mudanças na educação
escolar. Ela precisou se reorganizar para atender às demandas da época. A educação escolar
43
passou a ser, historicamente, organizada para atender ao capital33 e às suas demandas de
socialização. A partir desse momento, tornou-se impossível “[...] compreender a história da
educação [...] sem se compreender o movimento do capital” (SAVIANI, 2005, p. 17).
E, em se tratando do capital e de sua relação com a educação escolar, pode-se afirmar
que o século XVIII, especificamente o seu final, representou um período-chave na história da
educação escolar. A educação escolar mostrou-se bem ligada aos interesses da sociedade capitalista em ascensão. “Os pensadores da burguesia [...] recitaram durante um longo tempo a
ladainha da educação para o povo [...] necessitavam recorrer a ela para preparar ou garantir
seu poder, para reduzir o da Igreja e, em geral, para conseguir a aceitação da nova ordem”
(ENGUITA, 1989, p. 110).
Em detrimento do ensino de cunho privado e religioso professado pela Igreja,
surgiram os movimentos em favor da instrução gratuita, laica e obrigatória. Iniciou-se, nesse
período, a formação dos sistemas nacionais de ensino34. Sua organização estava alicerçada no
princípio de que a educação escolar é direito de todos e dever do Estado.
O processo de estatização do ensino consistiu na substituição de um corpo docente
religioso e sob o controle da Igreja por um corpo de docentes laicos, agora recrutados pelo
Estado (JULIA, 1981). A origem da profissão docente35 teve lugar no seio de algumas
congregações religiosas que, mais tarde, transformaram-se em verdadeiras congregações
docentes (NÓVOA, 1991).
33
“Em linguagem comum, a palavra 'capital' é geralmente usada para descrever um bem que um indivíduo possui
como riqueza. Capital poderia, então, significar uma soma em dinheiro a ser investida de modo a assegurar uma
taxa de retorno, ou poderia indicar o próprio investimento: um instrumento financeiro, ou ações que constituem
títulos sobre meios de produção, ou ainda os próprios meios físicos de produção [...] Em resumo, o capital é uma
relação social coercitiva que aparece como coisa, seja essa coisa mercadoria ou dinheiro, e, na sua forma
dinheiro, compreende a mais-valia não-paga acumulada do passado e apropriada pela classe capitalista no
presente. É, assim, a relação dominante na sociedade capitalista” (BOTTOMORE, 1997, p. 44-46).
34
Sousa Junior (2002) ressalta que os sistemas nacionais de ensino originaram-se no contexto do capitalismo.
Para esse autor, os sistemas nacionais de ensino foram moldados pelos parâmetros dos ideais da democracia
liberal-burguesa. Os sistemas nacionais de ensino ganharam um impulso maior e se consolidaram efetivamente
com o desenvolvimento das forças produtivas, das relações de trabalho assalariado e com a complexificação da
vida social urbana. Também é mencionado por Sousa Junior (2002) que os sistemas nacionais de ensino podem
ser vistos como um esforço dos Estados-nacionais em consolidar as bases materiais e espirituais de unificação
política e moral das sociedades modernas. O Estado emerge como o agente político que articula, define e
controla a aplicação das leis de funcionamento desses sistemas. O Estado é ainda o financiador da maior parte
das iniciativas educacionais através de suas instituições oficiais.
35
Os jesuítas e os oratorianos, ao longo dos séculos XVII e XVIII, progressivamente, foram configurando um
corpo de saberes e de técnicas, bem como um conjunto de normas e de valores específicos, que contribuíram
para a profissionalização dos docentes (NÓVOA, 1991). A partir do século XVIII, não era permitido ensinar sem
uma licença ou autorização do Estado. Essa licença ou autorização era concedida após a realização de um exame
no qual os solicitantes deveriam preencher algumas condições: habilitações, idade, comportamento moral, etc.
Na medida em que colaborava para a delimitação do campo profissional de ensino e para a atribuição ao
professorado do direito exclusivo de intervenção nessa área, a licença ou autorização podia ser vista como um
suporte legal ao exercício da atividade docente (NÓVOA, 1991).
44
A constituição da educação escolar como “direito” teve seu ponto de partida na
Revolução Francesa; momento em que a burguesia, enquanto classe revolucionária,
conquistou o poder (NÓVOA, 1991).
A educação escolar tornou-se “um instrumento ideológico essencial à justificação das
relações de produção e à transmissão dos instrumentos de dominação no aprendizado
diferencial dos conhecimentos e das técnicas” (XAVIER, 1990, p. 124). O poder público via
na educação escolar a força civilizadora primordial para a construção do consenso necessário
à conformação do Estado. O poder público tomava os docentes como tentáculos na medida
em que estivessem identificados com os seus interesses (SCHAFFRATH, 2000).
Também no século XVIII, tem-se um outro exemplo da relação estabelecida entre o
capital e a educação escolar. Com a transição da manufatura para a grande indústria,
verificou-se a exigência de um novo tipo de trabalhador. A proliferação das indústrias ocasionada pela eclosão da Primeira Revolução Industrial tornou insuficiente o comportamento resignado do trabalhador, embora continuasse sendo conveniente e necessário. Agora, o trabalhador “deveria aceitar trabalhar para outro e fazê-lo nas condições que este outro lhe impusesse” (ENGUITA, 1989, p. 113).
A educação escolar, nesse contexto, passou a ser vista como um valioso instrumento
para “instilar o hábito da laboriosidade” (ENGUITA, 1989, p. 114) , bem como para fornecer
aos indivíduos os elementos necessários à sua adaptação na sociedade industrial.
[...] a introdução da maquinaria eliminou a exigência de qualificação específica, mas
impôs um patamar mínimo de qualificação geral, equacionado no currículo da escola
primária. Preenchido esse requisito, os trabalhadores estavam em condições de
conviver com as máquinas, operando-as sem maiores dificuldades [...] [foi] sob o
impacto da revolução industrial que os principais países se entregaram a tarefa de
constituir os seus sistemas nacionais de ensino, generalizando, assim, a escola básica
(ENGUITA, 1989, p. 114).
No século XIX, ocorreu a transferência do processo de instrução técnico-profissional,
que ocorria no ambiente do trabalho, para a escola. Efetivou-se uma “[...] aliança do saber
com a indústria [...]” (MANACORDA, 2002, p. 358). Verifica-se, nesse período, que a escola
assumiu “um modelo racional de organização análogo às formas de organização do trabalho
em outros setores da produção, particularmente o fabril [...]” (HYPÓLITO, 1997, p. 34).
Os docentes, no século XIX, transmitiam os conhecimentos necessários à formação
do trabalhador capaz de produzir ativamente. E, na medida em que, esses profissionais foram
se atrelando “ao Estado empregador [...] tornando-se assalariados [...] distanciarem-se das
comunidades [...] tendo uma ação cada vez mais direcionada para a consolidação do Estado e
45
para o
atendimento das necessidades políticas, ideológicas, pedagógicas e culturais do
capitalismo emergente” (GONÇALVES, 2003, p. 24).
No século XX, o processo educativo tornou-se mais objetivo e operacional visando
atender ao mercado capitalista. Saviani (2005) expõe que o processo educativo passou a ser
organizado conforme os ditames do taylorismo-fordismo.
Buscou-se planejar a educação de modo a dotá-la de uma organização racional capaz
de minimizar as interferências subjetivas que pudessem por em risco sua eficiência
[...] professor e aluno [ocupavam] posição secundária [...] [eram] executores de um
processo cuja concepção, planejamento, coordenação e controle [ficava] a cargo de
especialistas supostamente habilitados, neutros, objetivos, imparciais [...]
(SAVIANI, 1997, p. 24).
Vários centros de ensino foram criados. Entre eles, cita-se em 1942, o Serviço
Nacional da Indústria (SENAI)36 e em 1966, o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
(SENAC)37. Esses centros de ensino foram criados com o objetivo de ampliar e intensificar o
treinamento da mão-de-obra requerida pelo desenvolvimento e crescimento industrial
(FRIGOTTO, 1998).
“A economia de escala e a produção em série para o consumo de
massa, [implicava] o uso de um grande contingente de trabalhadores” (SAVIANI, 1997, p.
20-21).
A escola de massas38, no período de pleno funcionamento do “Welfare State”,
contribuiu para a “integração econômica da sociedade formando o contingente (sempre em
aumento) da força de trabalho que incorporaria ao mercado” (SAVIANI, 1997, p. 24).
Entretanto, a partir do final do século XX e início do século XXI, o cenário mudou.
A larga incorporação de “exércitos de trabalhadores” caiu em desuso. Conseqüentemente, foi
posta em discussão, a função social e econômica da escola. A escola de massas tinha no
trabalho assalariado um dos seus pilares fundamentais. Na contemporaneidade, a posse de
36
Segundo Oliveira (2000), o SENAI foi criado com o intuito de formar profissionais para a indústria nacional.
Entretanto, com as transformações no setor produtivo mundial, passou a rever o seu papel. O SENAI,
atualmente, está realizando programas que buscam conciliar o desenvolvimento da tecnologia com a formação
dos trabalhadores. O telecurso 2000 é um dos investimentos do SENAI na Educação Básica. A Educação Básica
é vista pelo SENAI como requisito fundamental para a inserção dos trabalhadores no processo produtivo.
37
Educar para o trabalho em atividades de comércio de bens, serviços e turismo é a missão do SENAC (ALVES,
2007).
38
Alves (2007) afirma que a escola de massas tornou-se central na criação de condições que deveriam permitir a
plena integração dos indivíduos à cidadania. A função simbólica da escola e da própria formação profissional
encontrava-se direcionada para o mercado de trabalho. A partir da promessa da modernização, criou-se um senso
comum que articulava trabalho, educação, emprego e individualidade. Alves (2007) salienta que, nesse período,
as políticas educacionais podiam e deviam ser um mecanismo de integração dos indivíduos à vida produtiva.
46
qualificações não garante a inserção do indivíduo no mercado de trabalho, e sim, habilita-o
para a competição, aumenta suas chances de empregabilidade39 ou laboralidade40.
As transformações no mercado de trabalho trouxeram novas demandas relacionadas à
educação escolar. A educação escolar deixou de ser vista como sendo capaz de responder plenamente às necessidades de uma melhor distribuição de renda “e, portanto, de saldar a dívida
social acumulada em décadas passadas” (OLIVEIRA, 2000, p. 244).
As políticas redistributivas, que sustentavam as reformas dos anos 1960 e que tinham
como eixo principal a “mobilidade social”, foram convertidas, nos anos 1990, em políticas
voltadas para a “eqüidade social”, formando os indivíduos para a empregabilidade ou
laboralidade.
Da educação escolar, no século XXI, espera-se que ela forneça “de algum modo, os
mapas de um mundo complexo e constantemente agitado e, ao mesmo tempo, a bússola que
permite navegar através dele” (DELORS, 1998, p. 89).
Vale dizer que a educação escolar passou a ser vista como um instrumento capaz de
permitir a entrada no novo padrão de desenvolvimento, no qual a produtividade e a qualidade
dos bens e produtos são decisivos para a competitividade internacional. Para países como o
Brasil, a educação escolar passou a ser vista como uma instância estratégica para promover a
inserção na economia global marcada por intensa competitividade41.
39
“A empregabilidade é um conceito mais rico do que a simples busca ou mesmo a certeza de emprego. Ela é um
conjunto de competências que você comprovadamente possui ou pode desenvolver - dentro ou fora da empresa.
É a condição de se sentir vivo, capaz, produtivo. Ela diz respeito a você como indivíduo e não mais à situação,
boa ou ruim da empresa - ou do país. É o oposto ao antigo sonho da relação vitalícia com a empresa. Hoje a
única relação vitalícia deve ser com o conteúdo do que você sabe e pode fazer. O melhor que uma empresa pode
propor é o seguinte: vamos fazer este trabalho junto e que ele seja bom para os dois enquanto dure; o
rompimento pode se dar por motivos alheios à nossa vontade [...] [empregabilidade] é como a segurança agora se
chama” (MORAES, 1998, p. 56).
40
É válido mencionar que na atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional o termo laboralidade é
adotado com freqüência. A educação profissional proposta pela atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional é comprometida com os resultados da aprendizagem e encontra-se centrada no desenvolvimento de
competências para a laboralidade. A expressão competências para a laboralidade pode ser entendida como a
capacidade do trabalhador mover-se entre muitas atividades produtivas. Essa mobilidade torna-se
imprescindível, pois aumenta as oportunidades de trabalho em face de um mundo em constantes transformações
(FREITAS, 2003). No que se refere a educação profissional, pode-se dizer também que, se ela for “eficaz para
aumentar a laboralidade, contribui para a inserção bem sucedida no mercado de trabalho, ainda que não tenha
poder, por si só, para gerar emprego” (BRASIL, 1999, p. 20).
41
Sobral (2007) afirma que a educação escolar, na década de 1990, foi considerada promotora de competitividade. A seu ver, a educação escolar que possibilita a competitividade fornece ao indivíduo a condição de empregabilidade, bem como traz para a sociedade a modernidade associada ao desenvolvimento sustentável. A autora
esclarece que o novo contexto mundial encontra-se marcado pela globalização e pela menor intervenção do
Estado na economia, o que estimula ainda mais a competição entre os países e entre as empresas. Na
contemporaneidade, observa-se que a educação escolar e o conhecimento estão muito associados ao
desenvolvimento científico e tecnológico que, por sua vez, levam à competitividade.
47
A busca da primazia econômica, política e cultural no movimento de globalização
encontra na educação os alicerces para enfrentar a alta competitividade da vida
moderna [...] recorre-se à educação como recurso imprescindível para assegurar as
bases da nova sociedade da informação onde o trabalho não se limita mais à mera
transformação instrumental da matéria, mas prioriza a ação sobre o humano e com o
humano (DELORS, 1998, p. 89).
Recorre-se a educação escolar com o intuito de preparar os jovens para lidar com as
constantes mudanças e as diversidades tecnológicas, econômicas e culturais, equipando-os
com qualidades como a interatividade, a criatividade, a flexibilidade, a iniciativa, a atitude e a
adaptabilidade.
Haddad (2001, p.192) menciona que
O paradigma da sociedade contemporânea é a mudança constante dos processos de
produção e das formas de relação social, devido a introdução de novas tecnologias
que rapidamente ficam superadas e à implantação vertiginosa das possibilidades de
comunicação e produção de informações. Esse cenário evoca, necessariamente, o
princípio da flexibilidade dos processos educativos e, por tanto, o imperativo de
ampliar o conceito de educação para além dos sistemas escolares. A educação passa
a ocupar cada vez mais espaço na vida dos indivíduos, não só das crianças, mas
também na dos adultos.[...]
Segundo Toro (1998), para lidar com os desafios do novo cenário, os cidadãos devem
estar munidos dos perfis descritos pelos códigos da modernidade, assim definidos: domínio da
leitura e da escrita; capacidade de fazer cálculos e de resolver problemas; capacidade de
analisar, sintetizar e interpretar dados, fatos e situações; capacidade de compreender e atuar
em seu entorno social; capacidade de receber criticamente os meios de comunicação;
capacidade para localizar, acessar e usar melhor a informação acumulada; capacidade de
planejar, trabalhar e decidir em grupo. Segundo o autor, o desenvolvimento dessas
capacidades e
competências mínimas para a participação produtiva no século XXI fica a
cargo das escolas.
Espera-se que as escolas formem uma mão-de-obra qualificada e adequada ao novo
perfil de produção. Espera-se que sejam capazes de preparar os jovens para a convivência
produtiva com os processos de propagação de conhecimentos propiciados pelas tecnologias da
informação.
A informação, do ponto de vista capitalista, constitui um bem econômico (uma
mercadoria). Sua produção, seu tratamento, sua circulação ou mesmo sua aquisição
tornaram-se fundamentais para a ampliação do poder e da competitividade no
mundo globalizado. Investir em informação ou adquirir informação qualificada
passou a ser, então, condição determinante para o aumento da eficácia e da
eficiência no mundo dos negócios (LIBÂNEO, p. 68, 2005).
48
Para as agências internacionais, a exemplo do Banco Internacional de Reconstrução e
Desenvolvimento (BIRD)42, do Fundo Monetário Internacional (FMI)43 e da Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)44, as escolas devem
preparar as novas gerações para trabalhar no marco de economias modernas e competitivas,
bem como desenvolver competências45 e atitudes necessárias à empregabilidade ou
laboralidade do trabalhador.
O que se espera das escolas, segundo Frigotto (1998), é que elas atuem no sentido de
oferecer os requisitos indispensáveis à reestruturação capitalista, dentre eles, uma formação
científica e tecnológica de alto nível que colabore para a formação de trabalhadores
polivalentes e com elevado grau de abstração. Tem-se a expectativa de que as escolas
capacitem o trabalhador do século XXI para encontrar alternativas de sobrevivência face aos
impactos da crise do trabalho assalariado.
Para atender a essas demandas, “os processos educativos e formativos, que ao mesmo
tempo são constituídos e constituintes das relações sociais, [...] [passaram e passam] por uma
ressignificação no campo das concepções e das políticas [...]” (FRIGOTTO, 1998, p. 14).
Oliveira (2000) ressalta que, no Brasil, os anos 1990, serviram de palco para mais um
conjunto de reformas no campo educacional. Frigotto (1998) alerta que essas reformas
baseiam-se nas diretrizes político-administrativas e pedagógicas dos organismos internacionais, principalmente do BIRD.
42
“[...] como órgão dependente da ONU, foi um dos promotores da Conferência Mundial sobre Educação para
Todos de 1990 [...] O BIRD nasce depois da Segunda Guerra Mundial, na Conferência de Bretton, tendo como
objetivo contribuir na reconstrução dos países devastados pela guerra. Sua atuação não se restringiu, contudo, a
esses países, tendo desempenhado importante papel na política mais recente das nações em desenvolvimento [...]
o banco com sua estrutura de agência financeira multilateral, comportando cerca de 180 países sócios, apresentase no cenário mundial como financiador de projetos tanto para o setor público quanto o setor privado [...] o
banco [...] acredita que a Educação básica poderá contribuir para a contenção da pobreza, a partir dos seus
reflexos na redução das taxas de natalidade, que viria como resultado do acúmulo de informações e maior
inserção das mulheres pobres no mercado de trabalho” (OLIVEIRA, 2000, p. 108-110).
43
O Fundo Monetário Internacional foi criado em 1944, em Bretton Woods, depois da Segunda Guerra Mundial,
para ajudar as potências capitalistas a coordenarem as suas políticas econômicas e evitarem crises semelhantes às
recessões que antecederam a guerra. O Fundo Monetário Internacional possui inúmeras funções: favorecer a
progressiva eliminação das restrições cambiais nos países membros, planejar e monitorar programas de ajustes
estruturais e oferecer assistência técnica e treinamento para os países membros (CARVALHO, 2004). Cabe ao
FMI estabelecer os códigos de conduta político-econômica que funcionam como precondição para a concessão
de créditos aos países (FONSECA, 1997).
44
Foi criada em 16 de novembro de 1945, no intervalo entre o Pós-Segunda Guerra Mundial e o período que
antecede a Guerra fria. A UNESCO foi criada para promover a paz e os direitos humanos com base na solidariedade intelectual e moral da humanidade. Observou-se, nesse período, a expectativa de que, a Organização das
Nações Unidas (ONU) e suas diversas agências especializadas, elaborassem um sistema político estável com
base na perspectiva de construção de um mundo melhor mediante os catastróficos efeitos advindos conflito
mundial de 1939-1945 (MAIO; SÁ, 2000).
45
O termo competência é definido “como uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiado em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles” (PERRENOUD, 1999, p. 7). “As competências
representam potenciais desenvolvidos sempre em contextos de relações disciplinares significativas, prefigurando
ações a serem realizadas em determinado âmbito de atuação” (MACHADO, 2002, p. 144).
49
Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional46 (Lei 9.394/96), a Educação
Básica passou a ser compreendida como uma modalidade de ensino composta pela Educação
Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. A subordinação da educação escolar aos
preceitos neoliberais, com sua associação às necessidades do mercado de trabalho, implicou
numa maior centralidade no Ensino Fundamental47.
Oliveira (2000) lembra que um dos argumentos usados pelas agências internacionais
para justificar a centralidade dada ao Ensino Fundamental é o de que este nível de
escolarização é indispensável para todos os indivíduos em geral. Pelas mesmas agências é
afirmado que o Ensino Fundamental concentra a maior parte da escolarização básica e que ele
seria o mínimo exigido à inserção dos trabalhadores no processo produtivo, bem como no
mercado de trabalho. O Ensino Fundamental tornou-se uma mola propulsora na
“qualificação” imediata para o mercado de trabalho; passou a ser relacionado com a
possibilidade dos indivíduos terem acesso ao mercado de trabalho.
Pode-se afirmar que, de acordo com o artigo 32 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, o Ensino Fundamental tornou-se obrigatório e gratuito na escola pública.
Ainda, de acordo com o artigo 32, essa etapa de escolarização deve garantir a formação básica
do cidadão mediante:
I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno
domínio da leitura, da escrita e do cálculo;
II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia,
das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade;
III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição
de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores;
IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e
de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.
Haddad salienta que (2001) as mudanças no Ensino Fundamental dão maior
importância à qualificação de mão-de-obra do que à formação do cidadão. A preocupação
com a qualificação dos trabalhadores subordinados à lógica do mercado também fica evidente
nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)48.
46
Fogaça (1999) acredita que os PCNs
Define e regulariza o sistema de educação brasileiro com base nos princípios presentes na Constituição. Encontra-se baseada no princípio do direito universal à Educação para Todos (OLIVEIRA, 2000). Com a promulgação da Constituição de 1988, as LDBs anteriores foram consideradas obsoletas, mas apenas em 1996 o debate
sobre a nova lei foi concluído.
47
Com a função de organizar e controlar os investimentos no Ensino Fundamental foi criado o Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (FUNDEF) em 1996. O FUNDEF foi instituído pela
Emenda Constitucional nº 14, em 12 de setembro de 1996. Foi regulamentado pela Lei nº 9.424, de 24 de
dezembro do mesmo ano, bem como pelo Decreto nº 2.264, de 27 de junho de 1997. Foi implantado em 1º de
janeiro de 1998 (OLIVEIRA, 2000).
48
“[...] constituem um referencial de qualidade para a educação no Ensino Fundamental em todo o País. Sua
função é orientar e garantir a coerência dos investimentos no sistema educacional, socializando discussões, pesquisas e recomendações, subsidiando a participação de técnicos e professores brasileiros, principalmente daque-
50
tendem a privilegiar os conteúdos indispensáveis ao mercado de trabalho, “entendidos [...]
como aqueles que embasam atividades práticas/produtivas” (FOGAÇA, 1999, p. 61).
Um outro marco das reformas educacionais dos anos 1990, é a criação do Plano
Decenal de Educação para Todos49 (1993-2003). Akkari (2001) afirma que o Plano Decenal
segue a lógica tecnicista, sobretudo, devido às seguintes características: ênfase sobre a
produtividade e a eficiência da escola; ênfase sobre os recursos materiais, mais
particularmente, sobre as técnicas de educação à distância, como uma solução contra a baixa
de “qualidade do ensino” e como uma opção para a formação de docentes.
Segundo Saviani (1998), o Plano Decenal de Educação para Todos parece ter sido
elaborado para atender às condições de financiamento internacional da educação,
principalmente às condições ditadas pelo BIRD.
Nesse plano, também foram estabelecidas as diretrizes a serem seguidas por todas as
instâncias da administração educacional, visando à ampliação e a racionalização dos recursos
que são destinados à educação escolar.
Oliveira (2000) esclarece que as reformas educacionais foram estendidas à gestão dos
sistemas de ensino. Muitas mudanças foram introduzidas na administração dos sistemas de
ensino em âmbito municipal, estadual e federal. O Estado de Minas Gerais pode ser citado
como o primeiro a reformar o seu sistema público de ensino a partir de referências advindas
da Conferência Mundial de Educação para Todos50.
O programa de reforma desenvolvido pela Secretaria de Estado da Educação de
Minas Gerais ocasionou significativas mudanças na configuração de suas redes escolares,
principalmente, nos aspectos relativos à organização e funcionamento das escolas, no
les que se encontram mais isolados, com menor contato com a produção pedagógica atual [...] podem funcionar
como elemento catalisador de ações na busca de uma melhoria da qualidade da educação brasileira [...]”
(BRASIL, 1997, p. 13).
49
Este plano derivou da Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em Jomtien, Tailândia, em
1990. Foi assinado no final de 1993 pelo presidente da República Itamar Franco. Indica as diretrizes da política
educacional sem a pretensão de uniformizar os procedimentos nos estados e municípios (OLIVEIRA, 2000).
“[...] sua preocupação inclui mudanças na gestão escolar que sejam capazes de melhorar a escola e as condições
de trabalho do professor. O plano limita-se, entretanto, ao campo da Educação Básica para Todos [...] As
principais críticas ao Plano [...] apontam-no como um conjunto de intenções que nunca saíram do papel,
limitando-se apenas a orientar algumas ações na esfera federal (OLIVEIRA, 2000, p. 147-148).
50
Para Oliveira (2000) a Conferência Mundial sobre Educação para Todos pode ser considerada como um
marco no que diz respeito à formulação de políticas governamentais para a educação escolar. Essa conferência
foi convocada pela UNESCO, pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), pelo Programa das
Nações unidas para o desenvolvimento (PNUD) e pelo BIRD. Ela foi realizada em Jomtien, na Tailândia, entre
os dias cinco e nove de março de 1990. “Da conferência resultaram as posições consensuais que deveriam
constituir as bases dos planos decenais de educação, especialmente dos países mais populosos do mundo,
signatários da Declaração Mundial de Educação para todos” (OLIVEIRA, 2000, p. 105). Também, é exposto
pela mesma autora que, essa conferência tem exercido influências nas reformas educacionais dos países em
desenvolvimento.
51
atendimento e matrícula, na estrutura administrativa do sistema, bem como na gestão e
composição do quadro de pessoal (OLIVEIRA, 2000).
A reforma desenvolvida em Minas Gerais contou com o suporte de dois programas: a
Gerência da Qualidade Total na Educação51 (GQTE) e o ProQualidade52, projeto financiado
com recursos do BIRD. A gestão escolar passou a ser orientada por princípios relacionados às
teorias de administração de empresas que foram transpostos para a escola seguindo os
mesmos critérios de produtividade, eficácia, excelência e eficiência (OLIVEIRA, 2000).
O objetivo central da reforma em Minas Gerais foi a eliminação do “fracasso
escolar”53, ou seja, a redução dos índices de repetência e evasão, interpretados como
indicadores de ineficiência do sistema escolar. A principal preocupação foi a busca de uma
maior eficiência e de uma maior racionalidade administrativa. Por esse motivo, o
fortalecimento da gestão da escola foi eleito como prioridade pela Secretaria de Estado da
Educação.
A nova gestão educacional preconizada pela reforma deve orientar-se por diretrizes
como a “descentralização e municipalização das redes públicas de ensino não como fim em si
mesmas,
mas
como
estratégia
mais
eficiente
para
promover
o
fortalecimento
administrativo-financeiro das unidades escolares e a autonomia pedagógica” (MELLO, 2004,
p. 28). Pode-se afirmar que, os anos 1990 foram marcados pela adoção de formas mais
flexíveis de planejamento e de gestão, condizente com os novos ordenamentos mundiais
direcionados à administração pública. Constata-se
que as políticas de descentralização
estimulam a revisão dos conteúdos escolares para adequá-los aos novos conhecimentos
51
“[...] o programa de gerenciamento da Qualidade Total em Minas Gerais foi adotado como a regulamentação
da gestão democrática na educação. Compondo-se de um conjunto de procedimentos gerenciais com o intuito de
resolver os problemas vivenciados pelo Sistema de Ensino no Estado de Minas Gerais e implantar a gestão
democrática na escola pública [...] o objetivo do programa é a gestão do sistema como um todo, objeto da
Gerência da Qualidade Total na Educação, articulando diretrizes gerais provenientes dos órgãos centrais de
administração com alterações no processo de trabalho nas escolas. As intervenções procuraram constituir-se na
formulação de uma nova política de gerenciamento das escolas e do sistema, visando uma maior otimização dos
recursos empregados e consumidos no processo” (OLIVEIRA, 2000, p. 279-281).
52
Tanto o ProQUALIDADE quanto o GQTE tinham a finalidade de eliminar o “fracasso escolar” representado
pelos acentuados índices de reprovação e repetência que provocaram altos níveis de evasão escolar, principalmente na educação básica. Vale mencionar que o objetivo global do ProQualidade era “procurar a melhoria do
ensino e dos resultados do sistema público definidos em termos da redução significativa das taxas de repetência e
do aumento da aprendizagem” (OLIVEIRA, 2000, p. 282).
53
Em 1996, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o PNUD (1996), o fracasso escolar é
um dos principais fatores determinantes do custo da educação. Constatou-se, em 1990, que mais de 50% dos
alunos repetiram a primeira série do ensino fundamental (ARAÚJO; LUZIO, 2005). Os resultados do Sistema de
Avaliação da Educação Básica (SAEB) de 2003 revelaram que cerca de 38% dos alunos, na 4ª série do ensino
fundamental, estavam em situação de atraso escolar (ARAÚJO; LUZIO, 2005). Em 2004, verificou-se que os
estudantes brasileiros prestes a concluir a educação básica apresentaram desempenho escolar bem abaixo dos
patamares adequados. Cerca de 38,2% dos alunos da 3ª série do ensino médio não desenvolveram habilidades de
leitura compatíveis com esse nível de escolarização e estavam classificados nos estágios de rendimento considerados “crítico” ou “muito crítico” (ARAÚJO; LUZIO, 2005).
52
científicos e tecnológicos da sociedade contemporânea. Vinculado a isso, propõe-se também
uma renovação metodológica e o fortalecimento das relações entre a escola e o seu meio
social imediato. “[...] o papel do Estado torna-se secundário e apela-se para a benemerência e
voluntariado” (SAVIANI, 2005, p. 23).
A transferência de competências para as escolas é uma característica da
descentralização. Rotinas burocráticas, antes concentradas nos órgãos centrais, foram
repassadas para as escolas. “[...] o processo de descentralização tem exigido da organização
da escola um domínio de capacidades inerentes à contabilidade, compras, pagamentos, entre
outros” (OLIVEIRA, 2000, p. 252).
O processo de descentralização, como estratégia para melhorar o desempenho da
escola, passou para esta, não só a
autonomia, mas também a responsabilidade pela
administração dos recursos.
[...] o Estado, agindo em consonância com os interesses dominantes, transfere
responsabilidades, sobretudo no que se refere ao financiamento dos serviços
educativos, mas concentra em suas mãos as formas de avaliação institucional.
Assim, também na educação, aperfeiçoam-se os mecanismos de controle,
inserindo-a no processo mais geral de gerenciamento das crises no interesse da
manutenção da ordem vigente (SAVIANI, 2005, p. 23).
À medida que o Estado vai se tornando mais invisível, fica difícil culpabilizá-lo, isto é,
responsabilizá-lo pela administração educativa. À medida que, desaparece a responsabilidade
do Estado, “é previsível que as exigências e as culpas atribuídas pela sociedade às instituições
escolares sejam excessivas” (SANTOMÉ, 2001, p. 21).
Oliveira (2003) sustenta que, para além das mudanças observadas na gestão dos
sistemas de ensino, as reformas educacionais dos anos 1990 resultaram em uma intensificação
da atividade docente. Gonçalves (2003) comenta que essa intensificação, muitas vezes,
concretiza-se através da imposição e sobrecarga de atividades e tarefas, presença de
mecanismos de cobrança e pressão por certos resultados, a perda do poder aquisitivo e a falta
de tempo para investir no próprio trabalho.
Segundo Apple (1995), a intensificação54 da atividade docente traz vários “sintomas”,
do trivial ao mais complexo – desde não ter tempo sequer para ir ao banheiro, tomar uma
xícara de café, até ter uma falta total de tempo para conservar-se em dia com sua área. Além
54
Segundo Apple (1995), a intensificação da atividade docente é acompanhada de dois processos historicamente
em desenvolvimento: a desqualificação do trabalhador e a separação entre concepção e execução no trabalho.
Para Apple (1995), a intensificação tem algumas características: destrói a sociabilidade, aumenta o isolamento e
dificulta o lazer.
53
disso, é possível perceber também, docentes envolvidos com suas atividades fora de seu
horário de trabalho e, com muita freqüência, durante sua hora de lanche. Em muitos
momentos, chegam à escola antes do horário de início e saem depois do horário de término,
além de, muitas vezes, gastarem horas de trabalho em casa, durante a noite.
Esteve (1999) salienta que, aos docentes, falta tempo para atender as inúmeras
responsabilidades que foram se acumulando sobre eles. Existe tanta coisa a ser feita que
simplesmente cumprir o que é especificado exige quase todos os esforços dos docentes, não
existindo tempo para problematizar o que se está sendo produzido e nem a forma como está
sendo produzido.
Os docentes tornaram-se reféns:
[...] do tempo de que necessita, mas de que não dispõe, para superar deficiências
básicas de formação; [...] da própria consciência que lhe revela sua impotência para
realizar uma avaliação qualitativa, tal qual se preconiza atualmente; dos alunos, que
hoje o enfrentam e desafiam abertamente, em muitos casos; da família dos alunos,
que perdeu a autoridade sobre os filhos e pressiona a escola para fazê-lo em seu
lugar [...] (ZAGURY, 2006, p. 65).
Para Sacristán (1991), a burocratização55 existente no modo de organização do
trabalho escolar está condicionando as práticas dos docentes a prestar mais contas às
exigências instrucionais que a seus alunos. Essa postura contribui para inibir a autonomia e a
criatividade profissional dos docentes.
Os docentes passaram a ser vistos pelas instituições gestoras como os principais
responsáveis pelo desempenho dos alunos, da escola e do sistema. Eles “têm sido assediados
pelas mais diversas imposições, para as quais não tiveram [...] uma formação adequada e nem
contam
com
uma
sustentação
pedagógico-administrativa
e
financeiro-econômica”
(LINHARES, 2005, p. 170).
Oliveira (2003) afirma que, diante das variadas funções assumidas pela escola pública,
o docente desempenha papéis que estão para além de sua formação. Desempenham funções de
“agente público, assistente social, enfermeiro, psicólogo, entre outras. Tais exigências
contribuem para um sentimento de desprofissionalização, de perda de identidade profissional,
da constatação de que ensinar às vezes não é o mais importante” (OLIVEIRA, 2003, p. 33).
Os desafios da atividade docente não são poucos na atualidade. Eles têm mudado com
55
O termo burocratização é usado por Sacristán (1991) no intuito de mostrar que o desenvolvimento das ações
pedagógicas e administrativas das escolas está cada vez mais vinculado às demandas e exigências institucionais.
Há um excesso de normas e regulamentos a serem seguidos pelos docentes. O conteúdo técnico dos currículos e
a sua elaboração prévia por especialistas, bem como uma maior regulamentação da atividade pedagógica seriam,
segundo Gonçalves (2003), fatores de desqualificação dos docentes.
54
o tempo. Tendo em vista o artigo 13 da Lei 9.394/96, os docentes incubir-se-ão de:
I - participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;
II - elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;
III - zelar pela aprendizagem dos alunos;
IV - estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento;
V - ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento
profissional;
VI - colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade.
Observa-se que o papel dos docentes extrapolou a mediação do processo de
conhecimento do aluno. A missão do profissional foi ampliada para além da sala de aula.
Houve um adensamento da agenda profissional. Os docentes, além de ensinar, devem
participar da gestão e do planejamento escolar, o que significa uma dedicação mais ampla,
que se estende às famílias e à comunidade.
A atividade docente no contexto das reformas educacionais está se tornando cada vez
mais complexa. Aos docentes é requerida uma função social. Os docentes devem deixar de
ser lecionadores para serem gestores do conhecimento social (DOWBOR, 1998). No
Relatório de Jacques Delors (1998), produzido para a UNESCO, atribui-se aos docentes o
papel de agente de mudanças na sociedade.
Cabe aos docentes reverter o quadro de fracasso escolar presente nas escolas
brasileiras. Espera-se que os docentes desenvolvam:
[...] um trabalho sério, sem prioridades político partidárias, de valorização da escola
pública, de seus clientes internos e externos, com o reconhecimento de que o gerenciamento dos sistemas educacionais terá de ser rapidamente modificado para um
modelo que, de fato, retire do caos a realidade do ensino fundamental no Brasil
(LONGO, 1995, p. 2).
Outros papéis são atribuídos aos docentes: “construir hábitos de saúde (aprender a
comer, higiene e cuidado corporal, prevenção contra enfermidades), assessoramento
psicológico, educação para o trânsito, educação anti-sexista, anti-racista e anticlassista,
educação para o consumo, etc...” (SANTOMÉ, 2001, p. 43). Nota-se que os docentes terão
que ser polivalentes para se adaptarem às exigências do ofício no século XXI.
Mello (2004, p. 98-99) traçou o perfil do trabalhador docente do século XXI:
[...] quanto às características pessoais, é voz unânime que o professor deste século
deverá acolher a diversidade, estar aberto à inovação [...] quanto à formação
intelectual, [aponta-se] uma sólida formação científica e cultural [...] quanto à formação profissional, destaca-se a capacidade de: articular conteúdos curriculares a
conhecimentos educacionais, pedagógicos e didáticos para assegurar uma gestão
55
eficaz do processo de ensino-aprendizagem [...] quanto ao estilo cognitivo e prático,
o professor [...] precisa saber [...] decidir na incerteza, improvisar com criatividade e
inteligência e sentir-se estimulado com a imprevisibilidade que caracteriza o
trabalho docente.
A partir da análise das mudanças que a sociedade vem sofrendo, Perrenoud (2000)
deixa claro que, para ter êxito na difícil e delicada tarefa de ensinar, é preciso que os docentes
desenvolvam competências básicas, tais como:
1. Organizar e dirigir situações de aprendizagem.
2. Administrar a progressão das aprendizagens.
3. Conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação.
4. Envolver os alunos em sua aprendizagem e em seu trabalho.
5. Trabalhar em equipe.
6. Participar da administração da escola.
7. Informar e envolver os pais.
8. Utilizar novas tecnologias.
9. Enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão.
10. Administrar sua própria formação contínua (PERRENOUD, 2000, p. 14).
Salienta Enguita (1991) que, se por um lado, há um movimento de profissionalização
docente56 com o aumento das demandas e das competências exigidas, a proletarização é o seu
contraponto. Enguita (1991) acredita que a atividade docente, na contemporaneidade, está
passando por um profundo processo de proletarização57, entendido como a perda gradativa do
controle do processo de trabalho e de autonomia das ações, em função da centralização das
decisões sobre os resultados do mesmo, além do aspecto relativo à venda da força de trabalho
como mercadoria. 58
Observa-se que, se antes, nas escolas públicas, existia a figura do docente efetivo
como regra, agora, observa-se mais duas formas de contratação: o docente temporário e o
docente precarizado. O docente efetivo corresponde ao servidor público, concursado, estável.
O docente temporário corresponde ao profissional contratado por tempo determinado, em
substituição ao incompleto quadro efetivo, organizado sob o regime da Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT). O docente precarizado corresponde ao profissional que realiza a
56
A profissionalização, para Enguita (1991), não deve ser entendida como sinônimo de capacitação, qualificação,
conhecimento, formação. Enguita (1991) diz que a profissionalização refere-se a uma posição social e
ocupacional. Refere-se à inserção em um determinado tipo de relações sociais de produção e de processo de
trabalho. Para Enguita (1991), os profissionais docentes, diferentemente de outras categorias de trabalhadores,
são autônomos. Não se submetem à regulação.
57
No que se refere ao processo de proletarização, pode-se dizer que Enguita (1991) emprega essa expressão
exatamente no sentido oposto ao que correntemente é dado à profissionalização. A proletarização pode ser
caracterizada pela perda de controle do processo de trabalho pelos docentes.
58
Todas as sociedades “têm de produzir suas próprias condições materiais de existência. A mercadoria é a forma
que os produtos tomam quando essa produção é organizada por meio da troca” (BOTTOMORE, 1997, p. 265).
Observa-se que os produtos dos diferentes trabalhos privados têm de ser, na sociedade capitalista industrial,
trocados. A troca revela-se como uma condição fundamental para a subsistência de todos nessa sociedade.
56
ampliação de carga horária via contrato provisório, na maioria dos casos, sem direitos
trabalhistas, tais como: férias, 13º salário (MIRANDA, 2006).
Diferentes autores têm afirmado que muitos docentes estão adoecendo mediante as
inúmeras exigências que lhes são direcionadas e às precárias condições de trabalho. Um
desses autores é Esteve (1999). Ele enfatiza que a atividade docente está sofrendo de um
“mal-estar”59 que tem ocasionado faltas ao trabalho e, mais gravemente, o abandono da
profissão.
Observa-se que, nos ambientes escolares, não há aplicação das Normas do Ministério
do Trabalho que regulamentam a Saúde e a Segurança no ambiente de trabalho, mesmo
sabendo que as instituições de ensino também são empresas que envolvem trabalhadores em
educação: docentes, diretores, secretárias, coordenadores de curso, dentre outros (TEIXEIRA,
1994).
Pesquisas realizadas pela Organização Internacional do trabalho (OIT), em 1991,
assinalam que as situações de desgaste dos docentes podem estar associadas não só ao
excesso de alunos em sala de aula, mas a outras influências da jornada e das condições gerais
de trabalho, acrescidas da condição de enfrentamento dos docentes de questões de ordem
social e econômica, tais como desprestígio da profissão e a exposição a situações da vida
social moderna, consideradas estressantes.
Nos relatórios sobre a atividade docente, divulgados pela OIT em 1981, 1984 e 1991,
são explicitados resultados de levantamentos, realizados em diferentes países, que indicam o
desgaste dos profissionais, a propensão a exposição contínua a situação de estresse, a partir de
algumas variáveis, tais como: volume e intensidade da atividade docente; situações impostas
para a carreira (avaliações de desempenho e concursos para cargos de progressão funcional ou
de salários); embates da carreira docente como classe profissional; modificações no status
social da profissão decorrentes de perdas salariais e de significado social da profissão e
modificações nas exigências de jornada de trabalho.
59
O termo “mal-estar docente” é usado por Esteve (1999) para designar os efeitos permanentes de caráter negativo que afetam a personalidade dos docentes, como resultado das condições psicológicas e sociais em que a docência é exercida. Esse termo pode ser caracterizado pela morte do prazer de educar, que se manifesta no estado
de saúde e doença dos docentes. Na pesquisa de Esteve (1999), os problemas de saúde dos docentes foram estudados de forma exaustiva no período de 1982 a 1984 e as causas de licença mais importantes foram os diagnósticos de traumatologia, geniturinários e obstétricos e os neuropsiquiátricos. Esteve (1999) aponta como indicadores do mal-estar docente: fatores secundários (contextuais), tais como: a modificação no papel dos docentes e dos
agentes tradicionais de socialização; a função dos docentes (contestação e contradições); a modificação do contexto social; os objetivos do sistema de ensino e o avanço do conhecimento; a imagem dos docentes. Como fatores principais, Esteve (1999) cita os recursos materiais e as condições de trabalho; a violência nas instituições
escolares; o egostamento e a acumulação de exigências sobre os docentes.
57
Messing et al. (1999) suspeitam que os problemas de saúde mental dos docentes
pode ser uma conseqüência das estratégias usadas por eles para conciliar as necessidades dos
alunos com os meios muito limitados que dispõem.
Através de uma pesquisa realizada na Argentina em 345 escolas, Martínez et al.
(1997) concluíram que os docentes ao permanecerem em seu posto de trabalho acumulam
fadiga podendo chegar num estado em que se produz uma desorganização severa de sua saúde
mental ou se instala uma patologia orgânica, tendo como conseqüências o absenteísmo, a
saída do trabalho, a incapacidade ou até mesmo o abandono. Martínez et al. (1997), revelam
que os docentes se encontram sós, isolados ou com pouco apoio institucional e/ou profissional
a um universo de demandas e exigências. Segundo esses autores, o caráter precário da
atividade docente é uma condição que afeta o processo de trabalho em sua estrutura e, em
termos subjetivos é uma causa direta do mal-estar e da autodesqualificação.
Chan (2003), através de um estudo realizado em Hong Kong, constatou que cerca de
um terço dos docentes pesquisados apresentavam sinais de estresse. Alguns docentes
apresentavam sinais mais graves do que outros, variando de quadros leves de frustração,
ansiedade e irritabilidade até o quadro de exaustão emocional, com sintomas psicossomáticos
e depressivos severos.
Shonfeld (1992), na cidade de Nova Iorque , desenvolveu uma pesquisa que envolveu
255 docentes recém-contratados. Os resultados demonstraram uma forte associação entre
sintomas depressivos e ambientes de trabalho nocivos, bem como o surgimento precoce dos
efeitos pesquisados, que se mantêm mesmo quando outros fatores de risco são controlados.
Pitthers & Fogarty (1995) avaliaram o estresse e a tensão ocupacional em docentes
através do Occupational Stress Inventory, instrumento que avalia estresse ocupacional, sobrecarga acumulada e estratégias adotadas. Viu-se que os maiores escores estão entre docentes,
quando comparados com outros profissionais.
As pesquisas desenvolvidas por Volpi (1994), Mosquera & Stobäus (1996), Nunes &
Teixeira (2000), também demonstram algumas causas apontadas pelos entrevistados como
desencadeadores do mal-estar docente: a burocratização do trabalho, planilhas, dados a
preencher, controle avaliativo e o conflito de papéis: ora docente, ora pesquisador, ora
administrador, etc.
Siqueira & Ferreira (2003) pesquisaram sobre o absenteísmo docente no ensino
fundamental, na rede pública de ensino da cidade de Florianópolis/SC.
A pesquisa foi
realizada com os docentes que se afastaram do trabalho para tratamento de saúde. Verificouse que as causas mais freqüentes geradoras dos afastamentos em ordem decrescente foram as
58
doenças do aparelho respiratório, os problemas do aparelho locomotor, os problemas de saúde
na
família e problemas psicológicos e/ou psiquiátricos.
Uma outra pesquisa sobre o adoecimento docente foi realizada pelo Centro de Estudos
da Saúde do Trabalhador (CESAT), órgão da Secretaria da Saúde de Salvador/BA. Esse
órgão registrou, no período de 1991 a 1995, o atendimento de 76 docentes. Das pessoas
atendidas, 93,4% eram mulheres, com faixa de idade predominante entre 40 a 49 anos. Após
avaliação, 46 docentes (60,5%) foram diagnosticados como portadores de doenças
ocupacionais. As doenças encontradas foram: calos nas cordas vocais (41,3%); rinosinusite
(34,8%); asma (13,0%); lesões por esforços repetitivos (6,5%); dermatose (2,2%) e varizes
(2,2%).
Na rede particular de Salvador/BA, as queixas mais freqüentes dos docentes
entrevistados foram o uso contínuo da voz; dor nas costas e pernas como conseqüência da
postura corporal mantida durante as atividades e no âmbito psico-emocional, referiram
cansaço mental e nervosismo. Encontraram-se distúrbios psíquicos menores em 20% dos
docentes estudados (ARAÚJO et al., 1998; SILVANY et al., 2000).
O estudo realizado por Noronha (2001), em Belo Horizonte/MG, identificou
sentimentos de insatisfação, frustração e ansiedade entre os docentes entrevistados.
Gomes (2002), através de um estudo ergonômico realizado com um grupo de onze
docentes (sete mulheres e quatro homens), com idade entre 26 e 60 anos, em uma escola
estadual do Rio de Janeiro/RJ, constatou que há pouca autonomia dos docentes face às normas
educacionais vigentes. A sensação de intenso mal-estar generalizado está dentre as queixas
identificadas no estudo.
Codo & Vaques-Menezes (1999), através de um estudo realizado com trabalhadores
em educação em todo o Brasil, identificaram que 48% dos entrevistados apresentavam algum
sintoma de burnout60, uma síndrome da desistência de quem ainda está lá, já desistiu e ainda
permanece no trabalho. Constatou-se, nos estudos de Codo & Vaques-Menezes (1999), que
um em cada quatro docentes tinha exaustão emocional.
Vasconcellos (1996) diz que a neurose e a depressão têm afastado, em média, 33
docentes por dia letivo, das salas de aula no Estado de São Paulo. Através de sua pesquisa,
verificou-se que:
60
“Burnout foi o nome escolhido, em português, algo como 'perder o fogo', 'perder a energia' ou 'queimar (para
fora) completamente' (numa tradução mais direta). É uma síndrome através da qual o trabalhador perde o sentido
da sua relação com o trabalho, de forma que as coisas já não o importam mais e qualquer esforço lhe parece ser
inútil” (CODO; VAQUES-MENEZES 1999, p. 238).
59
[...] a nível mundial, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta que, em
termos de doença ocupacional - doença adquirida em decorrência do exercício da
profissão-, [...] os docentes só perdem para os mineiros, enquanto categoria
profissional, incluindo aí desde alergia a giz, calos nas cordas vocais, varizes,
gastrite, labirintite, reumatismo e até esquizofrenia (VASCONCELLOS, 1996, p.
104).
Por último, interessa enfatizar que, na maioria das pesquisas realizadas, no Brasil e no
exterior, há um consenso quanto ao caráter altamente estressante da atividade docente.
Observa-se uma significativa contribuição dos aspectos relacionados ao ambiente escolar e à
organização do processo de trabalho na produção de diferentes formas de adoecimento.
As condições de trabalho, ou seja, as circunstâncias sob as quais os docentes
mobilizam as suas capacidades físicas, cognitivas e afetivas para atingir os objetivos
da produção escolar podem gerar sobreesforço ou hipersolicitação de suas funções
psicofisiológicas. Se não há tempo para a recuperação, são desencadeados ou
precipitados os sintomas clínicos que explicariam os índices de afastamento do
trabalho por transtornos mentais (GASPARINI; BARRETO; ASSUNÇÃO, 2005, p.
192).
60
3
DO INGRESSO NA PROFISSÃO AO ADOECIMENTO: RESULTADOS E
DISCUSSÕES
3.1 As categorias
3.1.1 Motivos e/ou condicionantes que determinaram o ingresso na profissão
Pode-se afirmar que são múltiplos os motivos pelos quais se escolhe a atividade
docente como profissão. A partir da análise de conteúdo das entrevistas, constatou-se que a
vocação é o maior motivo para o ingresso na profissão. Isso fica evidente mediante as falas
abaixo61:
“Sempre quis ser docente, por vocação. Continuo por vocação. Para
vencer as
provações e as dificuldades, é preciso ter vocação”
(Docente 2).
“Desde pequena, quis ser docente. Vocação. Ainda estou aqui por
vocação. Só a vocação é que nos leva para frente e nos ajuda a
passar por cima das dificuldades” (Docente 6).
“Não me via em outra profissão.Vocação. Depois de anos em sala de
aula, posso dizer que continuo como docente por causa da vocação.
Se não fosse pela vocação, não estaria aqui. São muitas dificuldades e
perigos que a gente enfrenta” (Docente 9).
61
As autoras França & Vasconcellos (2007) salientam que o itálico pode ser usado para dar ênfase ou destaque a
palavras, expressões ou trechos de uma citação. Nesta dissertação, usou-se o itálico e as aspas na fala dos
entrevistados para dar destaque. As mesmas autoras recomendam que as citações longas devem constituir um
parágrafo recuado, com tamanho de letra menor do que o utilizado no texto e com espaçamento 1 entre linhas.
Usou-se o tamanho 12 e o espaçamento de 1,5 entre linhas nas citações longas para que as mesmas fiquem
legíveis. Também, usou-se o recuo para citações curtas com a mesma finalidade.
61
“Sempre me vi dando aulas. Foi por causa da vocação que entrei e
que continuo na profissão. Só a vocação é que nos dá suporte para
continuar, para vencer os desafios e obstáculos” (Docente 11).
“Desde pequena, eu falava que queria ser docente. Vocação. É a
vocação que nos dá força para seguir” (Docente 14).
Os docentes entrevistados fizeram referência à vocação como algo inerente à atividade
docente e necessária para que suportem as dificuldades encontradas. A vocação estaria aliada
à tendência para o sacrifício. Interessa enfatizar que a tendência para o sacrifício estabelece
relação com os pressupostos teóricos de Nóvoa (1991) usados nessa dissertação. De acordo
com esse autor, os religiosos foram uma das primeiras e fundamentais representações do
magistério. Talvez, pelos primórdios da educação religiosa, o docente sacerdotizou e
sacralizou o seu trabalho, revestindo-o de uma aura missionária e salvadora. São provações,
desafios, obstáculos, enfrentamento de perigos, tudo para comprovar a condição heróica e ter
acesso à sagração.
Cita-se o gosto por crianças e a influência de pessoas como o segundo maior motivo
do ingresso na profissão.
Em se tratando do gosto por crianças, verificou-se que, para alguns entrevistados, é
como se o trabalho dos docentes dos anos iniciais do Ensino Fundamental fosse mais
importante do que os demais níveis da docência.
“Gosto de trabalhar com criança. É o trabalho mais importante da
escola” (Docente 1).
“O trabalho com crianças é o mais importante da escola. Gosto de
trabalhar com criança” (Docente 4).
“Gosto de trabalhar só com crianças. É o trabalho mais importante
da escola. Gosto de trabalhar com criança” (Docente 5).
No que tange à influência de pessoas, dois docentes entrevistados responderam que
ingressaram no magistério por imposição da família e um disse que foi por causa de dicas de
uma amiga.
62
“Na minha casa, tinha várias pessoas formadas em Contabilidade. No
primeiro momento, foi meu pai que determinou a minha entrada no
magistério [...] Fiz o curso por causa dele” (Docente 7).
“No início, fiz por imposição do meu pai, porque ele não gostava da
idéia de eu estudar à noite [...]” (Docente 10).
“[...] foi por causa da influência de uma amiga [...] Essa amiga tinha
um papel importante na minha vida. Ela me falou que emprego tava
difícil e que o magistério era um curso técnico. Vocação para o
magistério eu nunca tive” (Docente 13).
O terceiro maior motivo do ingresso na profissão refere-se à sobrevivência.
Os docentes se preocuparam em encontrar uma profissão em que, mesmo ganhando
pouco e não sendo reconhecidos, tivessem como garantir a sobrevivência e ter uma certa
estabilidade.
“[...] Porque podia garantir a minha sobrevivência, mesmo ganhando
pouco e não sendo reconhecida. Emprego tá difícil, né ?” (Docente
8).
“[...]Questão de sobrevivência” (Docente 12).
Em seguida, cita-se a admiração pelos docentes. Os entrevistados buscaram, entre as
suas reminiscências, um herói, o grande docente que tiveram, o melhor. A admiração por um
docente, em especial, transformou-se em motivo para ingressar na profissão.
“[...] substituí uma professora no curso de magistério que era um
modelo para mim, era a melhor” (Docente 3).
“Eu tive bons docentes. Docentes que eram modelos, eram os
melhores. Eles sabiam tudo. Entrei na profissão por admiração pelos
docentes” (Docente 16).
63
Na lista dos motivos citados pelos docentes entrevistados, a superação de dificuldades
ocupa a última posição. A escolha do magistério surgiu como uma forma do docente
entrevistado superar uma dificuldade de caráter emocional.
“Eu tive um docente que me marcou negativamente. Dar aulas foi um
sonho, fruto de uma educação que podava [...] Tive muitas
dificuldades e quis passar os conhecimentos de forma diferente para
os meus alunos” (Docente 15).
O conteúdo das entrevistas remete à importância da escolha da profissão. Caso a
escolha profissional não seja consciente e coerente com os interesses pessoais dos docentes, a
profissão poderá ser exercida com pouca motivação. Ao longo do percurso profissional,
situações de desconforto e frustrações podem surgir, trazendo inúmeras implicações pessoais
e sociais aos docentes.
Para além dos casos de adoecimento docente descritos nessa dissertação, há os casos
de abandono da profissão (ESTEVE, 1999). O docente 2 disse: “[...] tem gente que entra e
não agüenta, abandona o magistério”. O estudo sobre a incidência de burnout entre docentes
ilustra essa fala. Esse estudo foi realizado entre 1990 e 1995 por Lapo & Bueno (2003). As
autoras realizaram seu estudo na rede de ensino público do Estado de São Paulo. Elas
procuraram compreender de que modo o abandono do magistério é tecido, ao longo da vida e
da experiência profissional dos docentes. O estudo baseou-se em dados quantitativos obtidos
na Secretaria Estadual da Educação de São Paulo e em dados qualitativos obtidos através de
questionários direcionados a 158 ex-docentes da rede pública e de 16 entrevistas sobre
histórias de vida profissional. Verificou-se um aumento significativo nos pedidos de
exoneração do magistério. Entre os motivos que mais contribuem para os docentes deixarem
a profissão, além dos baixos salários, estão as precárias condições, a insatisfação e o
desprestígio profissional. Segundo as autoras, as análises evidenciam, também, que o
processo de abandono do magistério se dá lentamente, por meio de uma série de mecanismos
pessoais e institucionais que os docentes utilizam, até chegar ao abandono definitivo.
3.1.2
Percepções
contemporaneidade
sobre
a
condição
da
educação
escolar
e
da
escola
na
64
Alguns docentes entrevistados sentem-se satisfeitos por terem acesso a mais cursos
de capacitação profissional.
“[...] a educação escolar e a escola já caminharam no sentido de
mais reciclagens e cursos que são ministrados para o docente [...]”
(Docente 1).
“A educação escolar e a escola estão mudando [...] A gente vê mais
ofertas de cursos para os docentes. Parece que está começando a
existir uma preocupação em melhorar a qualidade da educação
escolar através de uma melhor capacitação dos profissionais”
(Docente 6).
“[...]
atualmente,
nós
temos
mais
cursos
de
capacitação.
Antigamente, não tínhamos cursos [...]” (Docente 11).
Os avanços tecnológicos são vistos por um docente entrevistado como aliados, pois
contribuem para deixar as aulas mais interessantes.
“Hoje, os recursos que a gente tem são melhores do que quando
comecei. A tecnologia trouxe facilidades para o docente, entre elas,
pode-se citar o computador, a máquina de tirar cópias, etc. Quando
eu comecei, as condições da educação escolar e da escola eram
precárias [...] Para se fazer bem a educação escolar, pode-se contar
com escolas equipadas com retroprojetor, DVD, vídeo, televisão e
som. Os avanços tecnológicos são nossos aliados na hora de preparar
aulas mais prazerosas” (Docente 15).
É válido mencionar que há um saudosismo na fala dos entrevistados. As palavras:
“antigamente” e “antes” estiveram presentes durante as entrevistas. Os docentes sentem falta
do apoio familiar.
“Antigamente, era mais fácil fazer a educação escolar acontecer e a
escola funcionar porque tinha mais envolvimento dos pais [...]”
(Docente 7).
65
“Antigamente, era mais fácil [...] Os pais não estão ajudando nos
deveres e não estão acompanhando os filhos na escola. Alguns não
ajudam por falta de interesse e outros não ajudam por causa da falta
de tempo (trabalham em fábrica de fogos e chegam em casa cansados,
sem disposição para ajudar os filhos nos deveres) [...]”(Docente 14).
“[...] Antes, a família incentivava suas crianças a estudarem e, agora,
não há apoio familiar para que a educação escolar aconteça e a
escola funcione [...]” (Docente 10).
Para Zagury (2006, p. 89), “a família abriu mão de seu papel essencial de geradora da
ética e de primeira agência socializadora das novas gerações”. Zagury (2006, p. 95)
também afirma que “se a família não atua ou não sabe atuar para colocar a escola como
prioridade [...] ou, ainda, se se deixou seduzir pelos valores da sociedade de consumo, os
alunos fatalmente considerarão que o compromisso com a aprendizagem não é essencial”.
Na literatura consultada, foi exposta a importância da educação escolar e da escola no
que se refere à tentativa de inserção dos indivíduos na economia global, marcada pela
competitividade. Em algumas entrevistas, o que se viu foi a perda de valor da educação
escolar e da escola.
“Hoje em dia, não está fácil dar aulas, porque há um descrédito da
educação escolar e da escola [...]” (Docente 8).
“Os alunos de hoje não dão o mesmo valor à educação escolar e à
escola [...]” (Docente 9).
“[...] é uma pena que a educação escolar e a escola tenham perdido
o seu valor. Hoje em dia, educar está sendo uma tarefa difícil”
(Docente 16).
A educação escolar e a escola na contemporaneidade estão passando por um
processo de desvalorização tal que os alunos fazem perguntas como: “Estudar para quê?”
66
“[...] há muita desvalorização da educação escolar e da escola [...]
Hoje em dia, a educação escolar e a escola estão desacreditadas. Elas já não possuem o mesmo valor. As frases que a gente mais ouve:
Estudar para quê? Você não me manda [...] Eu faço se eu quiser”
(Docente 5).
Também foi exposto pelos docentes que a educação escolar e a escola estão
perdendo o seu foco, o seu sentido. “[...] o foco não é mais o ensinar... é organizar festas,
vender rifas, visando levantar dinheiro para manter a escola”. A fala do docente 4 ilustra
bem o processo de descentralização (SAVIANI, 2005) abordado nessa dissertação.
A fala do docente 12 também ilustra a perda de foco e de sentido da educação escolar.
“[...] Agora, o docente tem que ser tudo dentro da escola: babá, tem
que ser mãe, tem que impor limites [...] Cobra-se cada vez mais um
ensino de qualidade. Só que esse ensino de qualidade está se
perdendo. É tanta função para desempenhar que o ensino mesmo fica
com pouco tempo, perdeu o seu sentido” [...]
Há, nessa fala, a mesma constatação feita por Oliveira (2003): às vezes ensinar não é o
mais importante.
A disputa entre os docentes e a má interpretação do construtivismo são percebidas
pelos entrevistados como obstáculos para que a educação escolar aconteça com qualidade e a
escola funcione adequadamente.
“[...] para se fazer educação escolar é importante ter união e menos
disputa entre os docentes. A disputa entre os docentes atrapalha o
bom andamento da escola e desqualifica a educação escolar”
(Docente 2).
“[...] o que posso falar sobre a escola e a educação escolar? Posso
falar que elas pioraram e um dos fatores causadores dessa piora é o
construtivismo mal interpretado [...]” (Docente 3).
67
“O construtivismo e a sua má interpretação prejudicaram o
andamento da educação escolar [...]” (Docente 13).
3.1.3 Percepções sobre a atividade docente
Sob o ponto de vista do docente 10, a atividade docente “é uma missão de muita
responsabilidade [...] é uma missão que exige grande esforço [...] É uma profissão que exige
grande amor”. Para o docente 15, a atividade docente é “[...] um desafio diário, pois, na sala
de aula, há problemas de todos os tipos”.
A atividade docente, segundo Esteve (1999), está passando por uma crise que se
arrasta há longos anos e as conseqüências dessa situação são desmotivação pessoal, altos
índices de absenteísmo e de abandono. A fala do docente 16: “[...] tem dia que eu levanto da
cama e vou obrigada” ilustra a desmotivação de muitos docentes, bem como evidencia a
morte do prazer de educar (ESTEVE, 1999).
A maioria dos entrevistados considera que, assim como a educação escolar e a escola,
o docente também perdeu o seu prestígio na sociedade.
“[...] há uma perda de prestígio do docente na sociedade [...] a gente
pensa assim: quantos alunos já passaram pelas minhas mãos, desde
que eu comecei [...] o docente já não tem mais o mesmo prestígio.
Antes, ser docente era chique, dava status [...]” (Docente 1).
“Gosto do que faço, mas a gente está sem prestígio. Tanta gente fala
mal da profissão [...] Se a gente não colocar o amor na frente, não dá
para ser docente” (Docente 2).
“[...] Faço o que gosto, só que o docente não tem valor perante aos
pais e aos diretores [...]” (Docente 3).
“[...] a gente passa por muita desvalorização social e financeira. A
gente tenta cumprir com as atividades exigidas, com os horários e a
gente não tem valor [...]” (Docente 6).
68
“[...] O docente é muito desprestigiado. Antigamente, ser docente
significava status, a profissão era bem vista pela sociedade, tinha um
lugar lá no alto, todo mundo respeitava” [...] (Docente 12).
“O magistério é uma das piores profissões, pois a valorização do
docente é zero [...] O profissional que é a base da educação escolar
não tem valor nenhum [...]” (Docente 13).
“Gosto do que faço e só tô nessa profissão por amor mesmo [...] A
gente batalha, batalha e não tem valor [...] Muitas pessoas não dão o
devido reconhecimento ao nosso trabalho” (Docente 9).
“[...] Pelo tanto que a gente trabalha, deveríamos ter mais valor
[...]” (Docente 11).
“[...] Gosto do que faço, mas se fosse para começar hoje essa
profissão, não começaria, pois não há valorização social e nem
financeira [...]” (Docente 4)
“[...] A minha percepção sobre a atividade docente é que ela é
desvalorizada. O docente é desvalorizado tanto socialmente quanto
financeiramente. Não tenho estimulação social e nem financeira”
(Docente 8).
O mestre, visto antes como uma figura profissional essencial para a sociedade, hoje é
um profissional que luta pela valorização e reconhecimento social das atividades que realiza.
Assim como na literatura consultada, os docentes em Santo Antônio do Monte/MG vivenciam
um momento de desvalorização social e financeira. A valorização do docente é uma tarefa
urgente e imprescindível.
Para além da desvalorização social e financeira, os docentes, em Santo Antônio do
Monte/MG, enfrentam inúmeras dificuldades. A indisciplina é uma delas.
“[...] A gente esforça muito, prepara a aula e tem vezes que não dá
certo por causa da indisciplina. A gente fica triste com isso, fica com
69
um sentimento de derrota. Não é questão de manejo. O problema da
indisciplina é geral [...] A gente tenta criar uma aula diferente e não
dá certo. Fico chateada e até mesmo com raiva dos alunos [...]”
(Docente 14).
O docente 14 vê a sua relação com os alunos deteriorada. Sente-se derrotado. Esse
profissional, na consciência de suas limitações, “percebe que as metas desejadas muitas vezes
não podem ser cumpridas. A impossibilidade de realização plena do educador, o retorno à
realidade crua das dificuldades cotidianas o impele para a dor [...]” (VASQUES-MENEZES
& GAZZOTTI, 1999, p.374).
A fala do docente 4 denuncia a destituição do controle imediato da prática
profissional. O docente se “perde num mundo sem referenciais e desprovido de significado”
(FIGUEIREDO, 1989, p. 65).
“O docente perdeu o espaço na escola e na condução de sua turma. O
docente perdeu os seus direitos e o respeito das pessoas [...] O
docente era a autoridade dentro da sala de aula. O docente não tem
mais autonomia para resolver as questões que acontecem dentro da
sala de aula. Sempre há interferência de pessoas externas como os
pais, a diretora e a secretária da educação” (Docente 4).
Nas falas citadas abaixo, observa-se que houve um aumento das responsabilidades, das
funções e das cobranças.
“As exigências em relação ao docente também aumentaram [...]
Houve um aumento das responsabilidades, das funções e das
cobranças direcionadas aos docentes. Os pais cobram, os diretores e
os supervisores também” (Docente 5).
“[...] Dar limites é um papel a mais para o docente [...] Se a gente
percebe um déficit de atenção ou hiperatividade, a gente tem que
encaminhar para atendimento na prefeitura [...] A gente ajuda na
elaboração de projetos e discute sobre melhorias do currículo dos
alunos. Há um acúmulo de funções e cobrança dos pais, diretores e
supervisores” (Docente 7).
70
3.1.4 Condições de realização da atividade docente
Sobre as condições de realização da atividade docente, o que ficou em maior evidência
é o adensamento e a intensificação da agenda profissional. Em vários momentos das
entrevistas, foi possível confirmar a hipótese de que a atividade docente não é mais definida
somente como atividade em sala de aula.
Esteve (1999), em seus estudos na Espanha, observou que, aos docentes, falta tempo
para atender as inúmeras responsabilidades que lhes são direcionadas. O conteúdo das
entrevistas realizadas em Santo Antônio do Monte/MG demonstra que as reformas em curso
estão trazendo novas demandas direcionadas aos docentes.
“Depois que começou as reformas na educação escolar, depois que
começou as mudanças na educação escolar [...] a gente começou a
fazer de tudo. A gente discute e elabora projetos da escola. A gente
marca atendimento psicológico e fonoaudiológico [...] até visita
domiciliar eu já fiz para explicar a importância dos atendimentos.
[...] Acho que o nosso trabalho tem aumentado [...] É muita
responsabilidade para o docente. Até caderno a gente encapa, cuida
de material escolar [...]” (Docente 6).
Os docentes de Santo Antônio do Monte/MG mostram-se sobrecarregados. Eles não
encerram suas atividades quando o horário de aula encerra. Eles levam atividades para casa.
“[...] uma coisa que eu observo na sala de aula é o aumento das
tarefas. Todo dia a gente tem obrigação [...] Tem auditório, muita
festinha, muito cartãozinho, é muita coisinha que a gente tem que
fazer. Tudo isso pesa para o docente. Além de a gente ter uma
jornada desgastante dentro da sala de aula, a gente tem atividadesextras, tem atividades que a gente leva para casa” (Docente 11).
“[...] A gente chega em casa e vai logo preparando aula. É depois do
horário de aula, é no sábado, é no domingo e a gente tá lá de frente
para o computador pesquisando, preparando aula” (Docente 12).
71
“[...] a gente trabalha com uma sobrecarga diária. O docente leva
muita coisa para casa. É trabalho, é prova, é exercício, é projeto...
tudo isso a gente leva para casa [...]” (Docente 13).
“[...] o docente anda sobrecarregado. Em cada turma há 25, 27
alunos [...] Sempre levo atividades para casa. Nem sempre consigo
corrigir todas as atividades dentro da sala de aula. É muita coisa que
está na responsabilidade do docente. É auditório, diário, festinhas em
datas especiais, etc” (Docente 14).
“O trabalho do docente não termina quando o horário de aula
termina. A gente leva muita coisa pra casa. A gente tem que corrigir
exercícios, tem que corrigir provas. A gente participa também do
módulo 2. A tarefa do docente é pesada” (Docente 16).
Grande parte do tempo dos docentes é dedicado à escola.
“[...] A gente desgasta muito fisicamente e emocionalmente [...] A
gente deixa a própria família de lado pra viver em função do aluno
[...] O trabalho aumentou muito. Tem muitas provas e muitos
exercícios para corrigir e isso não deixa de sobrecarregar a gente”
(Docente 9).
Entende-se que os docentes entrevistados, muitas vezes, comportam-se como os
operários das fábricas. Eles trabalham em ritmo acelerado, atuando dentro e fora da sala de
aula, para produzir a mais-valia (MARX, 2006).
Há cobranças por resultados e sobrecarga de atividades e tarefas.
“[...] a partir de 2005, tive que voltar para a sala de aula. Passei a
exercer a minha profissão sob pressão. Vários empecilhos me
atrapalharam profissionalmente. Teve várias acareações de diretor
comigo [...] Toda hora, batia na porta e me tirava da sala. Havia uma
marcação. Havia uma cobrança por resultados. Claro que podia
72
melhorar o meu trabalho, mas passei por muita marcação” (Docente
8).
A sobrecarga impede o desempenho profissional suposto como adequado, o que,
invariavelmente, suscita ansiedade.
“[...] uma coisa que prejudica é a cobrança em relação aos
conteúdos. São muitos os conteúdos que a gente tem que dar e se a
gente não consegue vencer esses conteúdos é porque somos
incompetentes [...] Muitas vezes, me sinto pressionada pelo supervisor para vencer os conteúdos e isso me preocupa, me deixa ansiosa
[...]” (Docente 10).
A hipótese de que os docentes de Santo Antônio do Monte/MG, assim como os
docentes de cidades grandes, vêem-se pressionados pelos pais, supervisores e diretores a
cumprir inúmeras exigências foi confirmada durante as entrevistas.
Também, torna-se importante salientar que há docentes em Santo Antônio do
Monte/MG desempenhando papéis que estão para além de sua formação.
“[...] todo dia a gente desempenha várias funções. A gente é mãe na
sala de aula” (Docente 9).
“[...] Agora, a gente tem que ensinar cidadania, responsabilidades da
família, nutrição, internet, computação. A gente participa de
planejamento e da elaboração de projetos [...] Tudo isso tá sendo
jogado para cima da gente” (Docente 5).
“[...] a gente tem que saber de tudo um pouco [...]” (Docente 2).
Essa situação vai ao encontro dos pressupostos teóricos de Oliveira (2003) e Santomé
(2001). As autoras enfatizam que os docentes estão desempenhando vários papéis. Nesse sentido, Apple (1995) atesta que os docentes, na contemporaneidade, precisam aprender uma
gama maior de habilidades. Porém, eles não têm tempo para conservar-se em dia com sua
especialidade. Apple (1995) enfatiza que a intensificação traz uma grande contradição: ao
73
mesmo tempo em que os docentes devem ter mais habilidades, não conseguem manter-se
atualizados em sua especialidade.
A precarização do trabalho descrita por Giddens (2004) aplica-se à atividade docente.
Em Santo Antônio do Monte/MG, constata-se que a precarização da atividade docente é
expressada no aumento das tarefas, das cobranças e das responsabilidades.
Para alguns docentes entrevistados, os salários pagos à categoria não correspondem às
suas reais necessidades e, principalmente, apresentam discrepância com relação aos custos e
esforços exigidos na efetivação das suas atividades.
“[...] a remuneração é baixa e eu trabalho em dois cargos para
completar o salário. Tenho atividades em dobro. Todo o dia tem
cadernos para corrigir e atividades para fazer no computador”
(Docente 5).
“[...] O salário não é compatível com a importância que o docente
possui na educação escolar e na escola. Não dá para cobrir o que a
gente gasta durante o trabalho. A gente gasta muito com folhas,
sacolinhas e por aí vai” (Docente 6).
“[...] Eu falo que eu gostava mais de dar aulas. O meu trabalho
intensificou porque trabalho como docente na escola e dou aula
particular para complementar o meu salário” (Docente 7).
Com menor freqüência, há também um descontentamento em relação à:
falta de sala de aula
“[...] Tem vezes que falta sala de aula. A gente tem que unir a sala de
vídeo, de contos e biblioteca em um único local [...]” (Docente 1).
74
falta de ética
“[...] a dificuldade que eu encontro no exercício da atividade docente
é a falta de ética. Falta ética entre os professores [...]” (Docente 3).
falta de ajuda econômica para participar de cursos
“[...] atualizar é [...] um desafio para o docente. Quando aparece
curso novo fora da cidade, não há incentivo para que se faça o curso.
O docente tem que tirar do bolso [...]” (Docente 4).
falta de apoio psicológico
“[...] falta um suporte psicológico para os docentes dentro da escola
[...] Os docentes precisam de um suporte emocional para dar conta de
seu dia-a-dia. Os docentes precisam de um suporte psicológico para
ajudá-los a resolver os problemas familiares de seus alunos [...]”
(Docente 15).
3.1.5 Percepções sobre a qualidade de vida
O conteúdo das entrevistas revela que uma boa parte dos docentes está com uma
qualidade de vida insatisfatória. A sobrecarga de tarefas, inclusive nos finais de semana, está
retirando de boa parte dos docentes a oportunidade de estar com seus familiares, amigos ou
mesmo a oportunidade de realizar atividades físicas, culturais e sociais, comprometendo,
assim, sua qualidade de vida.
“Eu vejo que não sobra muito tempo pra mim e minha família. A
gente
ocupa
muito
tempo
com
atividades
extras
(diários,
planejamento, auditório) e não sobra tempo para o lazer. Por causa
da escola, eu deixei os meus filhos muito jogados. A atenção para
minha família fica a desejar. Praticamente não saio” (Docente 3).
75
“Não sobra tempo para cuidar do lado social, porque a escola toma
boa parte do tempo. Tem muitas provas para corrigir. Tem muita
coisa para fazer. A escola fica em primeiro plano, a família e a gente
fica em segundo plano” (Docente 4).
“[...] trabalho também aos sábados pela manhã. O sábado é meu dia
de planejamento. Planejo para a semana. Às vezes, até para 15 dias,
quando é possível. Mas continuo fazendo ficha diária, recortando, colando, organizando cadernos... é muito trabalho. Tenho pouco tempo
para a minha família. O cansaço é tanto que, depois de cumprir as
inúmeras tarefas, não tenho disposição para sair. Avalio que a minha qualidade de vida não é boa. Não tenho tempo e nem
disposição para praticar esportes” (Docente 5).
“A escola toma quase que o tempo todo [...] É dever para corrigir, é
prova, é caderno para dar visto e, quando a gente vê, o tempo passou
e a gente não fez nada para ter uma qualidade de vida melhor [...] Em
primeiro lugar, vem a escola, depois vem a família e depois, em último lugar, vem o espaço pra mim. A prioridade vem dessa forma. O
meu lado social praticamente é nulo” (Docente 7).
“[...] quem é docente não tem jeito de não levar atividade pra casa, a
qualidade de vida não é boa. Final de semana e mesmo durante a
semana, depois do horário de aula, faço muitas atividades escolares
[...] Quando termino tudo o que tenho para fazer, estou exausta e isso
não acontece só com a gente que mora aqui não” (Docente 8).
“[...] a minha vida social tá totalmente comprometida por causa das
tarefas escolares. Não tô com tempo pra fazer nada pra mim. Minha
qualidade de vida não é boa. Dou aula de manhã na escola e aula à
tarde em minha casa, dou aula de reforço [...]” (Docente 9).
76
“[...] no período que estou trabalhando, não tenho tempo para o lazer
e nem para praticar esportes [...] No final de semana, a gente já está
cansada para sair. Tem final de semana que vou dormir às 23:00 hs.
[...] é muito cansativo. A agenda é cheia e os meus dias ficam tomados pela escola. Não é boa a minha qualidade de vida” (Docente 11).
“[...] muito difícil. É muito difícil o docente ter vida social e lazer,
porque é muita tarefa e isso é em qualquer lugar. O que é isso:
qualidade de vida? Docente não tem isso não. Ele praticamente tem
que dedicar à escola e aos alunos de forma integral” (Docente 13).
“[...] o docente que abraça a causa não tem vida social e isso
acontece com o docente daqui ou de qualquer outro lugar [...]
praticamente não sobra tempo pra mim. Eu sou a última na fila de
prioridades. Em primeiro lugar, vem a escola, em segundo, vem a
família e eu fico com o último lugar” (Docente 15).
“Aqui em Samonte ou em outro lugar, o docente não tem qualidade de
vida, porque é muita coisa [...] a gente chega do serviço muito
cansada. A qualidade de vida é péssima [...]” (Docente 16).
Algumas das características da intensificação da atividade docente citadas por Apple
(1999) foram observadas durante as entrevistas. Entre elas, cita-se a redução da sociabilidade
e o aumento do isolamento. A fala do docente 1 ilustra o isolamento da atividade docente na
escola:
“[...] a qualidade de vida do docente não é boa e muita coisa a gente
tem que fazer individualmente. Não há aquele trabalho em conjunto.
Cada docente em sua sala de aula e acabou”.
Há docentes que consideram difícil ter uma vida social, ter uma boa qualidade de vida.
E há aqueles docentes que se esforçam para ter um tempo para si e aproveitá-lo da melhor
forma possível.
77
“Passo noites em claro para deixar o final de semana livre para mim,
meu marido e filhos. Aproveito o meu tempo da forma que o dinheiro
que recebo permite” (Docente 14).
“Tentei melhorar a minha qualidade de vida não mexendo com coisas
da escola no final de semana” (Docente 6).
“Eu não ocupo o meu tempo de lazer com escola. O sábado eu tiro
para mim e o domingo também. Sou docente durante a semana (de 2ª
a 6ª feira)” (Docente 2).
“[...] apesar de levar muita coisa da escola pra casa, busco tirar um
tempo pra mim e pra minha família. A minha qualidade de vida é
satisfatória” (Docente 10).
“[...] quando chego em casa, estou desmaiando de cansaço [...] Tento
arrumar um tempinho para dar uma saidinha no final de semana, pois
se não a gente não agüenta” (Docente 12).
3.1.6 Licenças tiradas no período de 2005 a 2007
No que se refere às licenças médicas, pode-se inferir que elas seriam um mecanismo
de defesa utilizado pelos docentes entrevistados contra a tensão derivada do exercício de sua
profissão.
A sintomatologia da atividade docente em Santo Antônio do Monte/MG é muito
parecida com a sintomatologia apresentada pelos docentes das cidades citadas na dissertação.
Verifica-se que o maior motivo gerador das licenças médicas é a depressão.
“Eu tirei, em 2005, uma licença de 15 dias e trabalhei fora de sala.
No ano de 2006, também trabalhei fora de sala e tirei três licenças de
15 dias. Foi um ano difícil. Fiquei doente mesmo. O acompanhamento
78
psiquiátrico e psicológico me ajudou muito. Todas licenças foram
pelo mesmo motivo: depressão” (Docente 16).
“Em 2006, tirei uma licença de 15 dias porque não estava bem [...]
Estava emocionalmente abalada, parecia ser uma depressão. A turma
era difícil, era confusão todo dia [...] a pressão dentro da sala de
aula era grande. Fiquei 15 dias descansando e não foi preciso
medicamentos [...]” (Docente 12).
“[...] Em 2000, eu comecei a ter medo de ir pra escola. Eu ia
apavorada para a escola. Eu ia na marra, obrigada mesmo. Só de
pensar em entrar na sala de aula, eu nem dormia. À noite, via barata,
baratas grandes descendo pelas paredes. Parecia que eu tinha
alucinações. Eu olhava pra parede e via. Eu ia pra escola e voltava
chorando. Procurei um médico que diagnosticou o meu caso como
sendo depressão. Comecei o tratamento com psiquiatra e tomo
medicamentos até hoje [...] Tomo antidepressivo [...] Ainda tenho
depressão. Já tirei muitas licenças. As licenças que mais lembro são
as que tirei em 2007. Foram licenças de 45 dias, 30 dias, 15 dias e
todas pelo mesmo motivo: a depressão (Docente 13).
“No ano de 2007, tirei licença de 15 dias [...] era uma depressão.
Ficar em casa me fez bem, eu descansei, fiz um repouso. Não tomei
medicamentos” (Docente 1).
Os problemas relacionados à voz podem ser citados como o segundo motivo gerador
de licenças médicas.
“O meu problema começou em 2003 [...] eu comecei com uma tosse
que não parava [...] fui ao otorrino e, após exames mais detalhados,
ele disse que estava com nódulo na corda vocal direita [...] Fiz um
tratamento de 06 meses com o otorrino e fiquei afastada, também, por
06 meses. O otorrino me encaminhou para a fono. Eu fiz 24 sessões
com a fono. Após três meses de acompanhamento com a fono, fiz
79
novos exames e eles mostraram uma melhora. Continuei fazendo sessões com a fono e o nódulo desapareceu totalmente. Em 2005,
foram aproximadamente seis licenças de 15 dias. Em 2006, tive mais
duas licenças de 15 dias [...] Dava aulas e precisava tirar licenças.
Quando eu voltei, em fevereiro de 2007, na fono, para fazer novos
exames, ela ficou horrorizada e queria até me aposentar [...] Tirei
mais umas licenças de 15 dias cada. Também tive que tirar férias
prêmio para eu descansar mais a voz. Eu fiz exames, vários exames,
testes alérgicos com 12 componentes e eu era alérgica a 10”
(Docente 11).
“[...] Em 2005, voltei a trabalhar em dois horários e, como as crianças eram mais dependentes, tive que usar muito a voz [...] Quando eu
fui ao otorrino, em setembro de 2005, foi constatado que estava
novamente com pólipos nas cordas vocais. Ele me deu duas licenças
de 15 dias. Fiz novamente acompanhamento com a fono. Em
fevereiro de 2006, fiz novos exames e estava tudo bem. Continuei
fazendo acompanhamento com a fono por mais 03 meses. No ano de
2006, trabalhei um horário dentro da sala de aula e um horário como
eventual. Nesse período, fiquei menos rouca e aprendi a cuidar da
minha voz [...] Em 2007, dei aula até o finalzinho de abril e aí
comecei notar que estava ficando rouca novamente, estava com dores
nas articulações. Tirei licença de 15 dias e depois tirei férias prêmio e
fiquei só um horário. A voz apresentou melhoras” (Docente 10).
“[...] Em 2007, no início de abril, a voz sumiu. Eu tive que tirar um
mês de licença. Chegava no final da tarde eu já não falava mais. Eu
tomei antidepressivo e fiz acompanhamento com fono” (Docente 5).
Nesse momento, interessa enfatizar que três docentes entrevistados tiraram licenças
médicas relacionadas a mais de um motivo.
“[...] em 2005, tirei licença de 15 dias, pois não estava bem, estava
deprimida. Em 2006, tirei várias licenças de 15 dias, acho que seis.
80
Tive atestados também e o motivo dessas licenças foi uma falha na
articulação do lado direito do rosto - houve um desgaste de massa
óssea e eu tive que colocar pino e platina no local do desgaste. Eu
tinha uma má formação congênita que foi intensificada por causa do
desgaste da profissão. A profissão exige que se fale muito [...] O
dentista pediu o meu remanejamento. Fui remanejada para a função
de eventual. Em 2007, tirei mais licenças pelo mesmo motivo que tirei
no ano de 2006, tirei uma licença de 30 dias e licenças com duração
menor que 15 dias” (Docente 4).
“[...] tirei várias licenças nesse período de 2005 a 2007. De 15 dias,
de 30 dias, de 40 dias [...] posso dizer que elas possuem motivos
variados. Já fiquei de licença em 2006, 15 dias, por causa de
esgotamento. Em 2007, fiquei novamente de licença de 15 dias por
causa de esgotamento. Fiz acompanhamento psiquiátrico por causa
do esgotamento. Não lembro o nome do remédio que tomei. Nesse
mesmo ano, 2007, fiquei de licença de 30 dias e de 40 dias por causa
da cirurgia de varizes que eu fiz (a gente fica muito em pé e dá nisso).
Fiquei de repouso em casa” (Docente 8).
“[...] no ano de 2005, tive uma conjuntivite forte e não podia ter
contato com o pó de giz. Tirei licenças de 15 dias. O tratamento foi a
aplicação de colírio. No ano de 2006, tive uma pneumonia muito
forte, era crônica e eu tive que tirar licença por causa do pó de giz.
Fui hospitalizada. No ano de 2007, tive hipertensão (desmaiei duas
vezes na escola). Por causa da sobrecarga, descuidei da saúde. Tirei
licença de 15 dias. Depois do que aconteceu, fiz uma bateria de
exames. Vi que o meu colesterol estava alto, que o meu fígado tava
com excesso de gordura ao redor dele. Procurei fazer alterações na
alimentação” (Docente 9).
Licenças médicas também foram concedidas aos docentes devido a:
sinais de esgotamento
81
“Tirei licença por esgotamento em 2006. Foram 15 dias. Não lembro
o nome do medicamento” (Docente 3).
retirada do útero
“Em 2006, fiz uma cirurgia de retirada do útero. A gente não tem
muito tempo para cuidar da saúde. Tirei licença de 15 dias. Fiquei de
repouso. Não queria me afastar da sala de aula. Não tirei licença por
outro motivo. A licença é um tempo que a gente tem para cuidar da
saúde, pois dar aulas ocupa muito do nosso tempo” (Docente 2).
cirurgia de hérnia
“O tempo que o docente tem para cuidar da saúde é pouco. A gente
até fica descuidada. Em 2007, eu tirei uma licença de 30 dias para
fazer uma cirurgia de hérnia. Fiquei de repouso” (Docente 6).
bactéria
“[...] é válido dizer que a gente não tem muito tempo para cuidar da
saúde. A gente fica envolvida com as coisas da escola e acaba
descuidando da saúde. Tirei licença em 2006, 15 dias, foi por motivo
de saúde. Eu peguei uma bactéria e a medicação estava sendo forte e
eu não consegui dar aulas nesse período. Não lembro o nome da
medicação” (Docente 7).
doença na família
“Nesse período, já tive atestados. Em 2007, tirei uma licença de 19
dias quando soube que o meu filho estava doente. Havia a suspeita de
câncer. Eu não estava bem emocionalmente, pois a sala de aula é um
local desgastante e a doença do meu filho me desgastou mais. Não
estava em condições de dar aulas e o período de licença me ajudou
muito. Tive tempo para cuidar de mim e do meu filho. Não foi preciso
82
medicamento. Depois da licença, não fui para a sala de aula, fiquei
como eventual” (Docente 14).
labirintite
“Tirei uma licença, nesse período, por causa da labirintite. Não
lembro o ano. Foi uma tensão tão grande, me doei muito e adoeci.
Tomei e tenho em casa remédio para labirintite. Tomo Rivotril por
causa da minha ansiedade [...]” (Docente 15).
Entre as causas do mal-estar docente (ESTEVE, 1999), os entrevistados apontaram a
sobrecarga de tarefas, a pressão, a cobrança e a tensão.
A fala do docente 16: “Não queria mais nada na vida. Eu estava sem energia para
trabalhar na escola. Parecia que as coisas já não importavam para mim” ilustra os
pressupostos teóricos de Codo & Vasques-Menezes (1999) sobre burnout. O burnout é uma
desistência de quem ainda está no campo da educação. O docente 16 continuou no posto sem
sonhos e sem ideais. Esse “desistir sem desistir” foi a forma que o docente encontrou para
lidar com o seu sofrimento.
Uma outra fala do docente 16: “Eu via o meu trabalho e não me reconhecia nele. Eu
achava que nada mais tinha sentido” ilustra os pressupostos teóricos de Marx (2001) sobre
processo de alienação.
Tem-se a percepção de que a atividade docente, independentemente do local onde é
realizada, seja em cidades pequenas ou grandes, gera sobrecarga física e mental. A hipótese
de que a calma, os baixos índices de violência e de desemprego, bem como a boa qualidade de
vida presentes em cidades pequenas não muda a relação que se estabelece entre a atividade
docente e os processos de adoecimento foi confirmada no decorrer das entrevistas. Um fato a
ser lembrado é que há 66 docentes efetivos lecionando nas escolas municipais urbanas de
Santo Antônio do Monte/MG e 23 deles já tiraram licenças médicas. Alguns desses docentes
já tiraram licenças mais de uma vez.
3.1.7 Reações frente às licenças
83
As licenças médicas são manifestações do mal-estar docente descrito por Esteve
(1999). A reação frente às licenças médicas indica a forma pela qual cada docente lida com o
seu adoecimento.
Para alguns entrevistados, as licenças médicas significam um momento de descanso.
“Eu gostei de tirar a licença e aceitei a licença. É um tempo pra
gente poder descansar. É um tempo pra gente descansar a cabeça,
aliviar a cabeça. É muito tumulto. São muitas coisas pra gente
pensar” (Docente 6).
“Gostei da licença e também aceitei a licença. Foi um momento de
descanso. Fiquei com vontade de não voltar. Fiquei com vontade de
ficar em casa” (Docente 12).
Há docentes que relacionam as licenças médicas ao sofrimento.
“Não queria tirar licença. Não me sinto bem tirando licença. Fico
mal quando isso acontece” (Docente 2).
“Me senti mal” (Docente 3).
“Me sinto mal com as licenças. Mostro os laudos para comprovar o
que estou dizendo” (Docente 4).
“A gente sente mal por isso. Tirei a licença, mas não gostei, pois não
gosto de faltar” (Docente 7).
“[...] Não me sinto bem tirando licença [...] eu me sinto mal, porque
eu acho que fica parecendo que a gente está incapacitada, incapaz
para as atividades e eu trabalhei tanto tempo e gosto do que faço [...]
Acho que, no meu caso, poderia ter sido feito alguma coisa que
ajudasse no meu problema e nada foi feito. Há docentes que dão aula
por dar. Há docentes que dão aula porque gostam e esse é o meu
caso” (Docente 11).
84
“Fiquei triste porque não gosto de tirar licença. Não gosto de me
afastar da sala de aula. Quando fiquei de licença, eu sofri muito”
(Docente 15).
“[...] foi muito difícil tirar a licença. Eu sofri muito. Não queria
aceitar que aquilo estivesse acontecendo comigo. Eu chorava muito,
transpirava muito [...]” (Docente 13).
O sentimento de culpa mediante a licença médica também foi citado durante as
entrevistas.
“[...] Senti culpa por tirar a licença [...] existe uma ficha de
avaliação do docente que é preenchida no final de ano. Se você tiver
muitas faltas ou licenças, isso prejudica o resultado da avaliação”
(Docente 14).
Boa parte dos docentes entrevistados não queriam tirar as licenças médicas devido a
vários motivos, entre eles, cita-se a discriminação. Os entrevistados deram uma ênfase maior
à discriminação por causa das licenças médicas.
“[...] Parece que a gente tá tirando uma coisa que não é da gente.
Quando o otorrino me deu a licença, eu não queria e disse a ele que
iria dar as aulas. Quando retornei lá, ele foi bem taxativo, então, tirei
a licença. Há muita discriminação, fica parecendo que não é
necessário, que a escola precisa mais de você, que você dessa licença.
Só de você chegar com o atestado ou com a licença, todo mundo te
olha” (Docente 5).
“Fiquei muito triste [...] porque o pessoal não encara você como uma
pessoa que tá precisando. Quando eu voltei para a escola, parecia
que alguns colegas não queriam que eu voltasse, queriam que eu
desistisse do cargo. Eu tirei licenças porque eu precisava” (Docente
8).
85
“Foi péssimo. Pensam que a gente está tirando sem motivo. As
pessoas não entendem. Não é bom tirar licença” (Docente 16).
Podem-se citar outros motivos pelos quais os docentes não queriam tirar as licenças
médicas:
“Não gosto de faltar e nem de adoecer, porque a gente perde a
identidade do aluno e o vínculo de afetividade” (Docente 1).
“Detesto tirar licença [...] a gente perde o contato com os alunos [...]
eles acostumam com a gente e a gente se torna uma segunda mãe
deles. Não é do meu feitio tirar licença” (Docente 9).
“[...] ia muito na escola. O meu marido me disse: “vão pensar que
você não está doente porque você vai todo dia na escola”. Eu ia
porque tinha loucura com a minha turma. Eu havia me apegado muito
a essa turma [...]” (Docente 10)
Embasando-se na literatura consultada, pode-se afirmar que os docentes entrevistados
vendem a sua força de trabalho (MARX, 2006) para uma instituição educacional municipal.
Esses docentes realizam atividades profissionais de grande valor de uso e são remunerados.
Durante as licenças médicas, não há como os docentes venderem sua força de trabalho
(MARX, 2006). Desse modo, os docentes vivenciam situações de inutilidade e de indignidade
(HOBSBAWM, 1996). A fala do docente 16 ilustra o sentimento de inutilidade: “[...] Não é
bom tirar licença. Quando a gente não consegue trabalhar, fica parecendo que a gente é
inútil. É muito melhor a gente levantar e ir para o trabalho”.
3.1.8 Percepções sobre a possível relação entre a atividade docente e o adoecimento
86
Assim como na maioria das pesquisas realizadas, no Brasil e no exterior, em Santo
Antônio do Monte/MG também há um consenso quanto ao caráter estressante da atividade
docente. Dos docentes entrevistados, 15 consideram que há uma relação entre a atividade
docente e o adoecimento.
“Alguns docentes aproveitam da situação e dizem que estão doentes,
mas muitos andam sobrecarregados. Os docentes adoecem porque
não agüentam essa sobrecarga” (Docente 1).
“[...] acho que existe uma relação entre a atividade docente e o
adoecimento. Muitos docentes estão adoecendo. É muita pressão,
cobrança” (Docente 3).
“Só trabalha sem adoecer quando se está feliz e muitos docentes
continuam na educação sem motivação nenhuma [...]” (Docente 4).
“Há relação entre a atividade docente e o adoecimento. E nada é
feito [...] no meu caso, foi a voz. Não há palestras que ensinem a usar
adequadamente a voz [...] o quadro de giz, que já é substituível, não
mudou. Nenhuma medida foi feita para evitar que o docente adoeça
[...]” (Docente 5).
“Acho que tem relação entre a atividade docente e o adoecimento. A
caminhada é longa e difícil [...] quase tudo é o docente que tem que
resolver. Uma mãe já me falou que, se eu quisesse bater, que eu podia. Já teve momentos que eu fui autorizada a ser mãe [...] A cirurgia
que fiz não tem a ver diretamente com a minha profissão. Acho que
poderia ter feito antes se eu tivesse tido mais tempo para cuidar de
mim” (Docente 6).
“Existe uma relação entre a docência e o adoecimento [...] a escola
absorve muito do nosso tempo e não passa orientações para que os
docentes enfrentem o dia-a-dia sem muito estresse” (Docente 7).
87
“Acho que ser docente adoece. Eu adoeci. Conheço colegas que
também adoeceram. A gente adoece por não ter uma boa qualidade
de vida. Quando menos esperamos, sentimos que estamos doentes. O
corpo dá sinais, só que a gente acha que dá para continuar [...]”
(Docente 8).
“Acho que todo profissional que é muito cobrado, infelizmente tá
correndo risco de adoecer, mas o docente corre mais esse risco [...]
existe mesmo a relação entre a docência e o adoecimento [...] é muita
cobrança dos pais, dos supervisores e da sociedade em geral e isso
nos prejudica e nos leva ao adoecimento [...]” (Docente 9).
“Existe relação entre a docência e os casos de adoecimento [...]
Quando fico nervosa e estressada na sala de aula é a minha voz que é
afetada. O dia que a turma está mais difícil é o dia que a minha voz é
mais prejudicada” (Docente 10).
“Adoecer adoece. Meu caso foi nas cordas vocais, mas tem casos de
docente que adoeceu com depressão. Uma outra doença que vai
surgir é a LER por causa dos trabalhos repetitivos (muito recorte,
muito trabalho para correção) [...]” (Docente 11).
“O docente adoece com certeza e não há orientações para prevenção
[...] Eu tirei pouca licença, mas tem docente tirando licença uma
atrás da outra, com todo tipo de doença: nervoso, estresse, problema
na fala, depressão. Em 2007, quase que tirei outra licença por causa
do estresse. Eu acho que estou com problema no braço, com
problema de coluna e estou com varizes (a gente fica muito tempo em
pé) [...]” (Docente 12).
“[...] acho que existe relação entre a docência e o adoecimento.
Aconteceu comigo. É muita pressão, cobrança, tudo é dever do
docente. Tudo é o docente que tem que resolver [...]” (Docente 13)
88
“[...]
a
cobrança
deixa
a
gente
abalada
fisicamente
e
emocionalmente. É muita cobrança. Sinto dores de cabeça. Já tive
que internar por causa da glicose baixa. Sempre fico por último na
lista de prioridades. Já tive problema de rins porque segurava para
não ir ao banheiro. A gente é muito cobrada, então a gente acha que
tem que dar conta de tudo e rápido [...] No horário do recreio, são 10
minutos, a gente tem que merendar e olhar as crianças [...] Acho que
ser docente não é fácil. É uma profissão que acaba prejudicando a
nossa saúde” (Docente 14).
“É muita pressão e cobrança. Diante das cobranças, não há quem
diga que não vai adoecer. Eu já adoeci e já vi docente ao meu redor
doente [...] Há casos de depressão, de varizes, calos nas cordas
vocais” (Docente 15).
“[...] Dar aulas adoece? Adoece. Trabalhar na escola adoece?
Adoece. Independente de estar dentro ou fora da sala de aula. A
educação escolar é uma área muito pesada. Parece que só a
educação escolar pode resolver tudo. É uma área muito pesada.
Porque a gente é cobrada, estou falando só de direção da escola não.
Todo mundo cobra: a família cobra, o aluno cobra [...]” (Docente
16).
Um dos entrevistados considera que os docentes adoecem, mas vai depender do jeito
que eles encaram as coisas.
“O docente adoece, mas depende do jeito que ele encara as coisas. Se
ele quiser fazer tudo de uma vez, acho que ele adoece com mais
facilidade. Para mim, cada coisa é ao seu tempo. A qualidade de vida
que a gente leva determina se a gente vai adoecer ou não”
(Docente 2).
Acredita-se que a atividade docente poderia ser uma fonte de realização pessoal e
profissional e, no entanto, está se tornando penosa e frustrante. Nas escolas de Santo Antônio
89
do Monte/MG, os docentes se queixam dos alunos, da falta de apoio dos pais, da
desvalorização da profissão, do salário. Mas nos consultórios, para os médicos que lhes
concedem licenças para tratamento de saúde, as queixas e os sintomas apresentados mais
freqüentemente são outros: depressão, problemas relacionados à voz, esgotamento,
hipertensão, etc.
Os docentes entrevistados queixam-se de que sofrem e adoecem. Quando adoecem,
afastam-se da sala de aula e, às vezes, definitivamente, da escola. Do ponto de vista
sociológico, a escola é o lugar do ordenamento, da estabilidade, do controle. Desse modo, o
mal-estar é recusado. Há uma resistência da escola em reconhecer esse mal-estar. A escola
teme ser desestabilizada ao reconhecer que o mal-estar existe. A fala do docente 11: “Na
minha opinião, na educação escolar, está faltando mais o lado humano, porque nem todo dia
você está bem e as pessoas não estão nem aí para o que a gente está sentindo, às vezes mal
falam um bom dia [...]” ilustra bem a negação do mal-estar. A negação de qualquer mal-estar
pela escola possui conseqüências: “a instituição, quando sutura o mal-estar, transforma-o [ela
mesma] em fonte de mal-estar” (DINIZ, 1998, p. 205).
A responsabilização dos docentes em Santo Antônio do Monte/MG apresenta-se como
uma das fontes de mal-estar e de sofrimento psíquico para estes profissionais. A lista de
competências que os docentes devem possuir aumenta na mesma medida que seu
sentimento de inadequação e medo de fracassar.
Toda a responsabilidade depositada sobre os docentes passou a ser percebida pelos
mesmos como uma sobrecarga. Pode-se dizer que essa hipótese foi confirmada durante as
entrevistas. O caráter quase redentor atribuído à educação escolar, como se somente a partir
dela fosse possível iniciar a construção de novos paradigmas de convivência na sociedade,
está recaindo de forma pesada sobre os ombros dos docentes residentes em Santo Antônio do
Monte/MG e, em muitos casos, o resultado disso é o adoecimento dos mesmos.
3.1.9 Estratégias adotadas pelos docentes frente ao seu adoecimento
Cada vez mais, é exigido que os docentes ofereçam qualidade de ensino dentro de um
sistema de massa. Nota-se que muitos docentes estão com excesso de atividades.
90
O exercício da atividade docente na escola pública é complexo, abarcando inúmeras
problemáticas que envolvem desde aspectos macros - como a globalização, as transformações
no mercado de trabalho, entre outros - até questões do cotidiano em sala de aula, como, por
exemplo, a desmotivação dos alunos.
O estado atual em que os docentes exercem suas atividades tem chamado a atenção
devido ao grande número de adoecimentos e afastamentos desses profissionais.
Em Santo Antônio do Monte/MG, muitos docentes não ficaram estáticos frente ao seu
adoecimento. Ao contrário, criaram estratégias, inclusive para não adoecer.
A religiosidade é a principal estratégia citada pelos docentes.
“Rezo. Rezo muito” (Docente 1).
“Vou ao grupo de oração e rezo para não adoecer e para me libertar
de qualquer mal-estar que esteja sentindo” (Docente 2).
“A minha estratégia para tentar não adoecer é rezar” (Docente 3).
“[...] a fé, participo de muitos eventos dentro da igreja [...]” (Docente
10).
Em segundo lugar, vem a busca da melhoria da qualidade de vida.
“[...] estou tentando melhorar a minha qualidade de vida; não faço
coisas da escola no final de semana” (Docente 6).
“Uma estratégia pra não adoecer é diminuir o ritmo [...] a gente
tenta não adoecer e, quando a gente adoece, é preciso diminuir o
ritmo” (Docente 7).
“[...] busco ter uma alimentação saudável quando estou bem de saúde
e quando não estou. Para tentar não adoecer, tô tentando ter uma
alimentação saudável” (Docente 9).
91
Estratégias relacionadas à esperança e às recomendações de profissionais ocupam o
terceiro lugar.
“Tento acreditar que tudo se resolve. Essa é a estratégia que tenho
adotado para não adoecer ou para sair do adoecimento” (Docente
15).
“Eu adoeci. Ainda estou na educação escolar porque acredito no ser
humano. Porque eu já falei que o dia que eu deixar de acreditar no
ser humano eu vou fazer veterinária. Ainda acredito que as coisas vão
mudar pra melhor. Tem que mudar porque não é possível a educação
escolar continuar do jeito que está. Acreditar que vai mudar é a
minha estratégia frente ao adoecimento” (Docente 16).
“A estratégia que uso para tentar preservar a minha voz é o que a
fono indicou. Tento não ficar nervosa e tomar água. A minha
estratégia para não perder a voz é tentar não ficar nervosa e tomar
água” (Docente 5).
“Tomo água direto, sempre hidratando a voz porque eu começo a
falar muito e o primeiro sintoma é a tosse [...] Sempre tomo muita
água e faço os exercícios da fono, os exercícios que aprendi com a
fono [...]” (Docente 11).
Há também as estratégias relacionadas às novas perspectivas de atuação profissional.
“A estratégia que uso para tentar não ficar pior do que já estou:
lembro da nova faculdade que estou fazendo. Penso que estou fazendo
a faculdade e que o curso que estou fazendo abre novas perspectivas
de trabalho” (Docente 4).
O distanciamento dos problemas da escola está entre as estratégias usadas pelos
docentes entrevistados. Aqui, não há o distanciamento físico, ou seja, o docente comparece à
92
escola, cumpre as obrigações burocráticas, mas executa essas atividades dentro de um limite
que representa o mínimo necessário para manter-se no emprego.
“Tento me desligar dos problemas da escola para não adoecer, penso
que não é comigo. Tem vezes que eu consigo fazer isso e tem outras
vezes que não dá” (Docente 13).
Uma outra estratégia citada durante as entrevistas é o uso dos feriados. Eles
significam um recurso de “fuga” às adversidades cotidianas e reduzem o tempo de se
defrontar com a sala de aula e com os problemas que dela advêm.
“Os feriados podem ser vistos como estratégias. Servem para a gente
tentar sair do adoecimento ou para tentar não adoecer, eles
representam uma ilha de salvação. Pena que esse ano não tem muito
feriado, tem uma semana de folga em outubro” (Docente 12).
A organização do tempo também foi citada como estratégia.
“Organizo o meu tempo. A estratégia para tentar não adoecer é a
organização do tempo. Para sair do adoecimento, é também a
organização do tempo” (Docente 14).
Afastar-se das atividades configura uma estratégia de defesa construída pelo
docente entrevistado.
“[...] tenho a fama dos atestados e eu tiro mesmo, se eu preciso, eu
tiro mesmo [...] acho que quem é docente é vulnerável às doenças,
não tem jeito” (Docente 8).
Alerta-se para o fato de que as queixas e as lamúrias imobilizam e impedem um
processo ativo e transformador, representado pela crítica-reflexão-ação. É fundamental que
os docentes sempre busquem tornar a profissão menos desgastante.
93
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES
A partir da realização das entrevistas, foi possível compreender que, na sociedade
contemporânea, os docentes atuam sob condições sociais e históricas adversas: o pleno
desempenho de suas atividades, a transmissão e a apropriação de saberes práticos mostram-se
aprisionados pela lógica do modo de produção, que submete ou busca submeter toda a ação a
uma funcionalidade do capital: formar o futuro profissional e criar capacidades e habilidades
com a finalidade de produzir um profissional flexível, polivalente e competitivo.
Além disso, é válido destacar que apresentam-se outras situações adversas, pois os
docentes, submetidos às exigências atuais do mercado de trabalho, podem apresentar no corpo
as marcas do sofrimento sob a forma de doenças ocupacionais.
Nota-se que o global se repete no local. Assim como em várias cidades do mundo:
Hong Kong, Nova Iorque, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis e
Salvador, Santo Antônio do Monte/MG também apresenta casos de adoecimento docente.
Baseando-se nessa informação, pode-se inferir que há uma relação entre a atividade docente e
o adoecimento.
A atividade docente possui características peculiares, geradoras de problemas físicos e
psíquicos. Diferente de muitas profissões, a atividade docente reveste-se de peculiaridades
que, muitas vezes, não são levadas em conta. Podem-se citar como peculiaridades da atividade docente a necessidade do estudo continuado e o trabalho extra-classe.
Independentemente do local onde os docentes lecionam, vê-se que as suas atividades
continuam além da sala de aula. Provas devem ser corrigidas, figuras devem ser recortadas
para ilustrar os novos conteúdos, exercícios de fixação devem ser elaborados. Enfim, as
tarefas continuam e nem por isso há uma compensação financeira ou mesmo o
reconhecimento social merecido.
O conteúdo das entrevistas revelou que os docentes podem adoecer em qualquer
localidade, seja em cidades grandes ou pequenas. Acredita-se que medidas devem ser tomadas
com o objetivo de ajudar os docentes em suas atividades profissionais. Entende-se que a assistência à saúde dos docentes não deveria estar relacionada apenas aos exames admissionais,
mudanças de cargos ou mesmo rescisórios ou quando os docentes afastam-se de suas atividades por doenças ocupacionais.
94
Torna-se viável a elaboração de ações educativas, visando sempre à promoção da saúde e à prevenção de doenças. As ações educativas podem acontecer no processo de formação
dos docentes e durante todo o exercício da atividade docente.
Recomenda-se que, por meio das políticas vigentes, a Secretaria de Saúde e da
Educação de Santo Antônio do Monte/MG redimensionem e reestruturem a atenção à saúde
dos docentes, visando a interpretar mais precocemente os possíveis sinais de adoecimento dos
mesmos. Também será necessário traçar linhas de ações que consolidem uma política de
valorização do docente, a fim de que se possam minimizar os afastamentos.
É útil que os docentes recebam informações que sirvam de alerta para o risco de
disfonias ocupacionais, de problemas posturais, problemas respiratórios, bem como
problemas psicológicos e psiquiátricos. Propõe-se um trabalho transdisciplinar a ser
desenvolvido pelos profissionais da Prefeitura Municipal de Santo Antônio do Monte/MG:
psicólogos, pedagogos, fonoaudiólogos, médicos e fisioterapeutas. O uso dos conhecimentos
dessas diversas áreas abrirá um caminho na direção mais próxima das reais necessidades dos
docentes. Já dizia Chanlat (1992) que a visão estreita e parcelada precisa ser combatida, pois a
apreensão da totalidade do indivíduo nas organizações não será esgotada por nenhuma
abordagem isolada.
Destaca-se que a transdisciplinaridade pode facilitar o delineamento de novos
serviços e a elaboração de ações eficazes em saúde coletiva direcionadas aos docentes. “A
transdisciplinaridade comparece como uma abordagem alternativa para a produção de
conhecimento” (ALMEIDA FILHO, 2000, p. 13).
Freitas & Morim (1994), no Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, realizado
em Portugal, afirmaram:
[...] a transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar: faz emergir
da confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos
uma nova visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o
domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as
atravessa e as ultrapassa.
Também recomenda-se o desenvolvimento de um plano de ação voltado para a
adequação acústica, térmica e luminosa das escolas municipais, indicando pistas para futuros
projetos arquitetônicos.
A sensibilização dos alunos, dos pais e da sociedade como um todo para os aspectos
relacionados ao adoecimento dos docentes é uma outra ação que pode facilitar a concretização
de estratégias de preservação desses profissionais.
95
Considera-se essencial que as escolas de Santo Antônio do Monte/MG transformem-se
em locais onde se discuta sobre a saúde e o adoecimento dos docentes. Gonçalves (2003)
afirma que, embora as escolas sejam locais onde acontece a formação da classe trabalhadora,
campanhas de prevenção às doenças ocupacionais não são desenvolvidas nelas.
Devido a sua abrangência, o setor educacional revela-se como “[...] um aliado
importante para a concretização de ações [...] voltadas para o fortalecimento das capacidades
dos indivíduos [...] para a consolidação de uma política intersetorial voltada para a qualidade
de vida, pautada no respeito ao indivíduo [...]” (BRASIL, 2002, p. 533).
Há de se construir, nas escolas, um espaço de escuta dos docentes. Fundamentalmente,
os docentes precisam de “uma presença humana que escute” (DOLTO, 1980, p.13). Alerta-se
para a necessidade que os docentes têm de ser ouvidos.
Por muitas vezes, os docentes entrevistados expressaram que as atividades profissionais que realizam são pouco significativas e pouco valorizadas. “Professores, como todas as
pessoas, precisam sentir-se importantes, amados e de alguma forma especiais” (FARBER,
1999, p. 165). Um espaço de escuta direcionado aos docentes contribuirá para que eles se
sintam mais valorizados.
E, no que se refere aos docentes e ao que eles podem fazer para si, espera-se que
respeitem “[...] os limites do próprio corpo [...], pois se constituem em importante referência
de profissional para seus alunos [...]” (GONÇALVES, 2003, p. 168-169).
Por fim, ressalta-se que o bem-estar dos docentes na contemporaneidade depende de
múltiplos fatores externos, mas também, e muito, deles próprios, visto que os mesmos podem
dar vários passos para melhorar a sua situação. “[...] as soluções para os problemas advindos
[do exercício da atividade docente] devem, igualmente, ser construídas coletivamente,
facilitando assim a promoção das condições para que as mudanças necessárias se viabilizem”
(GONÇALVES, 2003, p. 170).
Observa-se que as estratégias de intervenção de maior eficácia são as que partem dos
docentes, pois eles possuem um conhecimento mais profundo de suas atividades. É indicado
que os docentes tenham consciência do que está acontecendo objetivamente em suas aulas e
em seu cotidiano, para que percebam até que ponto é necessário modificar sua postura para
não sofrer ainda mais com a realidade vivenciada.
96
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Atividade docente e adoecimento: estudo em uma