“ESTOU AQUI PAGANDO MEUS PECADOS!” PERCEPÇÕES DAS PACIENTES EM PROCESSO DE ABORTAMENTO NO HOSPITAL MATERNIDADE SANTA CATARINA, NATAL-RN. Mayra Balza – UFRN1 RESUMO O presente trabalho trata-se de uma análise da violência institucional sofrida pelas pacientes em casos de abortamento no Hospital Maternidade Santa Catarina, Natal-RN. Os objetivos desta etnografia incidem em compreender como ocorrem essas violências pela ótica das pacientes e por meio de observação empreendida pela pesquisadora no cotidiano do hospital pesquisado. Busca-se também problematizar como concepções e representações acerca da sexualidade feminina, repercutem no atendimento e na aplicação da norma técnica de atenção humanizada ao abortamento (BRASIL,2005). Foi constatada uma enorme lacuna entre o que sugere a norma técnica e o que realmente ocorre no cotidiano do hospital pesquisado. Do ponto de vista metodológico, a investigação foi realizada a partir de observação participante, entrevistas semiestruturadas e abertas, conversas informais e pesquisa bibliográfica. Palavras-chave: Aborto. Violência Institucional. Norma técnica. Maternidade. 1 Aluna de graduação ciências sociais UFRN, orientada pela Prof. Doutora Rozeli Porto e-mail- [email protected] Atualmente o tema aborto é pauta de discussão em todo o mundo e o direito à saúde da mulher é um fator essencial dos direitos humanos e desenvolvimento. No Brasil, a prática é considerada crime de acordo com o Código Penal Brasileiro (1940), exceto em casos onde a gravidez deriva de estupro, risco a saúde da gestante e anencefalia onde a legislação permite a interrupção da gravidez. A pesquisa nacional do aborto (PNA/2010) realizada nos centros urbanos do país mostra que uma em cada cinco mulheres já realizaram o aborto e que essa prática “ilegal”, ocorre no Brasil causando riscos à saúde e integridade física das mulheres, sendo assim, uma das maiores causas de mortalidade materna no Brasil, de acordo com Debora Diniz e Marcelo Medeiros (2010). Nesse sentido, com o objetivo de garantir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o Ministério da Saúde elaborou a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, que visa dar suporte aos profissionais e serviços de saúde para novas abordagens com base nas necessidades das mulheres, assegurando a saúde e a vida, por meio de acolhimento, atendimento e tratamentos dignos. Essa publicação aponta como pilares do modelo de atenção a casos de abortamento, o correto acolhimento e a orientação, a atenção clínica ao abortamento e o planejamento reprodutivo pósabortamento (BRASIL, 2005). Desta forma, o principal objetivo desta pesquisa, consiste em, por meio de um enfoque qualitativo, analisar a violência institucional sofrida pelas pacientes em casos de abortamento no Hospital Maternidade Santa Catarina, localizado na zona norte de Natal-RN compreendendo como ocorrem essas violências pela ótica das pacientes e por meio de observação empreendida no cotidiano do hospital pesquisado. O principal aspecto a ser discutido é de que maneira as mulheres que buscam assistência e acolhimento nesta unidade de saúde percebem o atendimento e de que maneira tal atendimento repercute em sua saúde física e psicológica. Para tanto, a análise do recorte da realidade no Hospital Santa Catariana é fundamental, considerando a relevância e contribuição que o conhecimento local pode proporcionar no que concerne à questão da saúde e dos direitos reprodutivos da mulher no contexto da capital potiguar. O texto se propõe a problematizar como o gênero pode ser uma variável de pesquisa para a compreensão e análise dos conflitos morais em saúde (DINIZ, 2008). Empreendendo uma investigação que utiliza a categoria de gênero como lente de análise dos discursos das mulheres sobre o atendimento e as práticas dos profissionais, visualizando como essas questões estão imbricadas nas concepções políticas e religiosas, comprometendo a qualidade da assistência as pacientes. Tendo em vista que os profissionais de saúde têm um papel central no drama social (TURNER, 1974) vivido pelas mulheres que buscam atendimento nos casos de aborto e considerando toda a rede de cuidado e acolhimento necessário, a análise da violência institucional através de um consistente trabalho de campo é fundamental para desmistificar problemas que dificultam à melhoria da assistência prestada às mulheres dentro dos serviços de saúde. No campo metodológico, para a realização desta pesquisa utilizou-se de observação participante (MALINOWSKI, 1978) junto às áreas correspondentes ao centro obstétrico deste hospital, conversas informais (FONSECA, 1998) e entrevistas semiestruturadas com técnicas de enfermagem, enfermeiras, médicas e pacientes que aguardavam o atendimento e/ou estavam internadas, ou realizavam procedimentos. Sem dúvidas, a questão da naturalização do exercício da maternidade, esta envolvida nas representações acerca do aborto. Quando pelos profissionais de saúde, repercutem no atendimento e; quando pela paciente, demonstra por vezes certa resistência e, por outras, sofrimento. Sherry Ortner (1979) tem uma contribuição fundamental quando problematiza essa questão, fazendo um paralelo com a ideia do masculino como próximo à cultura em detrimento do feminino como algo natural. A “naturalização” das funções femininas passou a ser demarcada por características necessárias a uma “boa mãe”, o que por vezes convergiram na identificação da feminilidade e maternidade. Historicamente, a maternidade foi construída como o ideal maior da mulher, passando a ser entendida como algo voluntário e indispensável para a “mulher normal”, o que ainda hoje está imbricado no pensamento social. Além disso, é preciso levar em consideração que “as múltiplas representações que se configuraram sobre o corpo das mulheres estiveram, a partir da modernidade, articuladas a diversas formas de controle” (MATOS; SOIHET, 2003 p.161). Para dar continuidade às discussões sobre a construção do feminino é necessário resgatar o pensamento de Joan Scott (1990) acerca da relação entre gênero e poder. Para a autora “o gênero é um primeiro campo no seio do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado” (SCOTT, 1990, p.16), pensando aqui na desconstrução das desigualdades binárias com naturais, a autora indica que as normas têm objetivo de gerir o exercício da sexualidade feminina, funcionando como instrumentos de controle social. As questões apontadas nos levam ao processo histórico de medicalização do corpo feminino que passa pela ideia de que existe uma natureza biológica determinante e dominante da condição feminina. O que faz com que a medicina se aproprie do corpo das mulheres. Voltamos então a ideia de natureza feminina baseada em fatos biológicos que ocorrem no corpo da mulher. Neste sentido Elisabeth Vieira aponta: [...] Na medida em que essa determinação biológica parece justificar plenamente as questões sociais que envolvem este corpo é que ela passa a ser dominante, como explicação legítima e única sobre estes fenômenos. Daí decorrem ideias sobre a maternidade, instinto maternal e divisão sexual do trabalho como atributos "naturais e essenciais" à divisão de gênero na sociedade. (Vieira 1999 p.68). Dessa forma podemos convergir com o conceito da Biopolítica de Foucault (2012), quando aponta uma série de técnicas e procedimentos que têm por finalidade dirigir a conduta dos indivíduos. Nesse contexto as normas jurídicas e as políticas desenvolvidas para mulheres agiram de forma a normalizar e adestrar seus corpos, gerindo suas vidas por meio de técnicas de poder sobre o biológico, as quais estariam refletidas no campo político. Essa relação de controle está presente na relação paciente profissional de saúde. Sendo constatada através de discursos e práticas que trazem à tona a negação do exercício dos direitos reprodutivos das mulheres. Neste sentido a análise de fatores que podem ser visualizados no cotidiano de um hospital, na prática de profissionais de saúde que repercutem de forma violenta na vida de mulheres que buscam atendimentos em decorrência de abortamentos na rede pública. Sendo necessário frisar que mesmo antes da entrada no hospital, problemas de sucateamento como a sobrecarga da demanda assistencial o que faz com que as mulheres passem por uma verdadeira peregrinação em busca de uma vaga na rede pública, também deve ser caracterizado por uma forma de violência institucional (MENEZES, 2001). Por outro lado, segundo Janaína Aguiar (2010), a falta de respeito para com os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, além da imposição de normas e valores morais depreciativos por parte dos profissionais, também são apontados como fatores na formação da complexa trama de relações que envolvem os atos de violência institucional contra as mulheres. De acordo com D'Oliveira e Schraiber (1999) a violência começa quando é potencialmente aniquilada a 'intransitividade de liberdade' que existe no cerne de cada relação de poder e um dos lados toma-se um corpo inerte, sem possibilidades de reação. Em análise ao material pesquisado as autoras apontam que: [...] Relações de poder e violência - estão intimamente entrelaçados, interessando-nos discutir exatamente a possibilidade de reação, diálogo e de produção de alternativas pelo sujeito dominado. Isto porque estaremos nos valendo da noção de que a violência não é apenas um excesso de poder, mas uma situação outra, em que as relações são negadas e não há jogos de poder pelo simples fato de que um dos sujeitos da relação está vazio de poder. (D'Oliveira e Schraiber 1999, p.343). Desta forma, como aponta Bispo e Souza (2007), a mulher não tem autonomia para decidir sobre seu corpo e sua saúde e acaba por submeter-se ao poder dos profissionais de saúde. As autoras apontam que a violência surge pela dominação que o profissional postula ter sobre o corpo da mulher, “numa relação hierárquica em que este ocupa a posição de senhor do saber, podendo valer-se disso para usar de autoridade e decidir o que é direito ou não da mulher e, até mesmo, punir ou agredir.” (BISPO; SOUZA, 2007, p 25). Neste sentido, o que incitou o empreendimento dessa pesquisa foi entender como se dá e porque ocorre a violência institucional no contexto de um hospital/ maternidade em Natal-RN. Para isso buscou-se compreender como essa realidade era percebida e vivida pelos atores envolvidos: Profissionais de saúde e pacientes. A escolha da abordagem metodológica qualitativa foi crucial para o desenvolvimento da pesquisa, tendo em vista que o tema nos situa no campo do simbólico e da subjetividade. O recorte do trabalho em uma maternidade públicas se deu por questões de viabilidade, pois já havia autorização para realização de pesquisa sobre o aborto nesse hospital em um contexto mais amplo, relativo à pesquisa da qual faço parte como bolsista de iniciação científica2. 2 O presente trabalho surge como um desdobramento de um projeto de pesquisa maior intitulado “Práticas e representações de Profissionais de Saúde relativas ao aborto legal e suas relações com mulheres usuárias Para sua realização, foi priorizado um trabalho de campo maciço e consistente para que fosse possível compreender e apreender as variáveis do atendimento aos casos de aborto. Utilizou-se do uso alternado de várias metodologias a fim de investigar de forma mais profunda, as várias representações que envolvem o atendimento a casos de aborto. A observação participante (MALINOWSKI, 1978) associada de uma averiguação cuidadosa, empreendida de maneira minuciosa, foi fundamental para o levantamento de muitas questões que por vezes são naturalizadas no contexto hospitalar. Bem como as conversas informais (FONSECA, 1998) e entrevistas com técnicas de enfermagem, enfermeiras, médicas e pacientes que aguardavam o atendimento e/ou estavam internadas, ou realizavam procedimentos. Em relação às entrevistas e as conversas informais com participantes da pesquisa, pelo fato de o trabalho contemplar uma temática delicada que traz situações de confronto com crenças, práticas e convicções pessoais, os informantes não terão seus nomes mencionados no texto. Serão utilizados nomes fictícios com o intuito de preservar e respeitar a integridade dos informantes. A esse respeito, Claudia Fonseca (2009) informa que a garantia do anonimato das pessoas que ofereceram suas narrativas “não implica uma atitude politicamente omissa do pesquisador, muito pelo contrário” (FONSECA 2009, p.42). Pois se trata de uma forma de respeitar a privacidade das pessoas que permitiram o compartilhamento de suas experiências com o pesquisador. Desse modo, a autora propõe ainda que: “o anonimato seria a maneira de o antropólogo assumir sua responsabilidade autoral vis a vis das pessoas que colabora na pesquisa, além de avançar uma determinada concepção de antropologia”. (FONSECA 2009, p.49) No caso desse tema de pesquisa, pelo fato de por vezes os depoimentos denotarem um ato ilegal, como no caso dos depoimentos de mulheres que induziram abortos, a revelação de suas identidades poderia proporcionar constrangimentos e censuras judiciais. Todas as entrevistas foram realizadas dentro do hospital, porém em contextos diferentes. Com as pacientes as entrevistas eram realizadas quando já haviam realizado o procedimento e estavam aguardando em seus leitos. As entrevistas foram gravadas em áudio formato digital e realizadas pela própria pesquisadora do estudo bem como as transcrições. do SUS em hospitais/maternidades no Rio Grande do Norte” coordenado pela Professora Dra. Rozeli Porto. Situado na zona norte de Natal-RN, mais especificamente no conjunto Santa Catarina, o Hospital Dr. José Pedro Bezerra, também conhecido como Hospital Santa Catarina, é o segundo maior da capital onde são oferecidos serviços padrões de um hospital geral. A unidade é maternidade estadual de referência em gestação de alto risco e recebe uma demanda expressiva de usuários do SUS, pois atende a população tanto dessa região da cidade, quanto o considerável volume de pacientes oriundos dos municípios da Grande Natal e do interior do Estado. A demanda para procedimentos de limpeza da cavidade uterina (curetagens/ Amil) são constantes. De acordo com entrevista realizada com uma ginecologista obstetra, neste hospital são realizadas uma média de seis Amil/curetagens por dia, correspondendo a uma boa parte dos atendimentos realizados no hospital. Esses dados locais são significativos e consonantes com a expressividade do aborto no Brasil. Problemas de sucateamento nos hospitais públicos faz com que as mulheres passem por uma verdadeira peregrinação em busca de atendimento, além de ser caracterizado como grave forma de violência institucional, infelizmente constitui um dado constante na capital potiguar. O hospital pesquisado sofre frequentemente com a superlotação fazendo com que as pacientes passem por várias horas de espera para o atendimento, tal qual observado em pesquisa empreendida em outra maternidade deste mesmo município (DANTAS; PORTO, 2013). Através da observação participante, por várias vezes tive a oportunidade de presenciar, a entrada de pacientes para a consulta e acompanha-las durante a internação captando discursos referentes ao ponto de vista das pacientes e suas acompanhantes, sobre a maneira pela qual os profissionais de saúde/ sistema de saúde tratavam os casos de aborto e suas trajetórias. Sendo assim farei as discussões em dois movimentos, no sentido sistema de saúde- usuárias e profissionais de saúde- usuárias. Em relação aos problemas detectados no que se refere a o sistema de saúde, apresentarei à entrevista realizada com a paciente Juliana. Durante a entrevista Juliana explicitava seu medo em ser denunciada pelo aborto induzido, ficando um tanto receosa quanto a sua exposição. Após ser tranquilizada pela pesquisadora a paciente se sentiu apta a denunciar o descaso sofrido desde a sua entrada no hospital. “Olha eu cheguei aqui desde ontem às nove horas da manhã. Quando fui atendida por medo fingi que não sabia do aborto e disse apenas que estava sangrando muito, a médica nem me examinou, mandou que eu fizesse uma ultrassonografia e retorna-se com o exame. Fui a uma clínica particular na frente do hospital, quando retornei a maternidade estava cheia ,fiquei aguardando até anoitecer, não consegui o atendimento e voltei para casa. Na manhã de hoje depois de esperar um tempão lá fora eu consegui o internamento já está anoitecendo e até a agora espero pra fazer a curetagem, sinto muita dor e dizem que é normal, faz parte do procedimento... não sei quanto tempo mais vou passar aqui!” (Juliana, 23 anos, 03/04/2014) Neste sentido, conforme podemos observar na literatura brasileira sobre o assunto, Stella Aquino, Greice Menezes, Thália Velho Barreto de Araújo entre outras pesquisadoras, observam que: “São constantes as denúncias do movimento de mulheres acerca de problemas enfrentados pelas usuárias de serviços de saúde, incluindo desde a dificuldade de acesso a uma vaga até situações de discriminação sofridas durante a internação. Esses problemas foram evidenciados em pesquisas qualitativas, realizadas em serviços públicos por profissionais de saúde, principalmente enfermeiras, mas ainda são insuficientes os estudos sobre a qualidade da atenção recebida nos hospitais pelas mulheres que abortam” (AQUINO, MENEZES, BARRETO-DE-ARAÚJO, et al, 2012, p. 1766). Assim como o relato de Juliana, estas autoras indicam que a forma de tratamento dispensado as mulheres esta longe do que sugere a Norma Técnica Brasileira (Ministério da Saúde 2005) que, como já apontado anteriormente, visa o correto acolhimento e a orientação, a atenção clínica e o planejamento reprodutivo pósabortamento. Em relação às discriminações sofridas durante a internação, uma das interlocutoras que conheci já em seu segundo dia de internamento ainda na espera para a realização do procedimento, descreveu que logo quando chegou ao hospital ainda na recepção foi informada por uma enfermeira que o hospital estaria lotado, que buscasse atendimento em outro local, pois ali era “lugar de se fazer nascer” e não morrer. O pensamento da maternidade como o lugar de “fazer nascer” já pressupõe certa diferenciação entre os atendimentos de parto e aborto, podemos visualizar isso como uma forma de naturalização de ser mãe, o da mãe como instinto com aponta BADINTER (1985). Nesta publicação a autora mostra que ao longo do tempo os “papéis de mãe” são um tanto mutáveis e que só a partir do século XVII, modifica-se a representação de mãe e passam a exercer “a maternidade instintiva” sob forma de culpabilidade e ameaça surge então o “mito do amor materno”. Assim fica claro pensar que para a profissional de saúde acima citada seu posicionamento circula entorno do destino natural da mulher em ser mãe. A interlocutora Milena continuou relatando deforma exaltada o descaso da enfermeira: “Ela disse isso mais nem sabia da minha condição, das minhas dores. Meu cartão do SUS está com o meu endereço da zona norte seria muito mais difícil conseguir o atendimento em outro lugar, só com o encaminhamento, mas pelo visto ela não queria nem que eu entrasse! Como num sou mais menina eu insisti... e estou aqui pagando meus pecados!” (Milena, 33 anos, 23/08/2014) O relato de Milena nos mostra de forma angustiante o que muitas mulheres descreveram sentir quando são atendidas na maternidade. Se sentem deslocadas como se não fossem dignas de serem cuidadas e até certo ponto se preparam psicologicamente para “pagarem seus pecados”, o que acaba por naturalizar certas violências, e por vezes deixando as mulheres sem ação. Para além de se sentirem deslocadas, muitas mulheres descreveram se sentir impotentes ali naquele ambiente. Como relataram Raimunda e Rita. “ Desde que cheguei aqui só recebo ordens. Me mandam fazer isso, me mandam fazer aquilo... já me mandaram até deixar de fazer zuada! Mas quando eu pergunto alguma coisa ninguém me diz direito. Fico aqui só fazendo o que eles querem. Ontem eu cheguei a desmaiar de tanta fome, só depois eles arranjaram uma vaga para mim...” (Raimunda, 29 anos, 17/09/2014) Ai, eu aqui com essa roupinha, andando pelo hospital no meio de todo mundo.... num pode nem por calcinha! É horrível da vergonha. Dai a Doutora chega toda bonitona e chic com aquele jaleco. A gente fica assim... sei lá! (Rita, 19 anos, 15/09/2014) Neste sentido Bispo e Souza apontam: Percebemos que as rotinas hospitalares acabam despersonalizando a mulher, quando as rotinas de vida são ignoradas. A mulher torna-se propriedade da equipe de saúde. Todos têm controle sobre seu corpo. Já na entrada do hospital, ela se depara com uma gama de fatores de afastamento. (Bispo e Souza, 2007, pg.24) Rita demonstrou sentir-se oprimida pela forma com que se sentia usando a roupa do hospital. Fator que era enfatizado perante o poder do jaleco da médica e tudo o que ele representava para ela. É neste sentido que abortaremos o segundo movimento da violência institucional. A relação paciente- profissional de saúde. “Foi... ontem eu cheguei a desmaiar de fome! Ora eu já estava aqui a mais de doze horas esperando. Não podia comer nada. Eu pedia para as enfermeiras ao menos agua. Elas diziam que não podia, que era ordem dos médicos. Eu já tava branca passando mau... quando a médica veio aqui e eu pedi pra ela deixar eu comer, que não tinha problema nenhum. Ela mandou que eu para-se de reclamar. Que sabia muito bem o que fazer com pessoas como eu...” (Raimunda 17/09/2014) O relato acima descrito pode ser visto através do conceito de violência por Chauí (1985), segundo o qual a “violência é a transformação de uma diferença em desigualdade numa relação hierárquica de poder com objetivo de explorar, dominar e oprimir o outro que é tomado como objeto de ação, tendo sua autonomia, subjetividade e fala impedidas ou anuladas”. (apud Aguiar 2012). Nesse sentido essas práticas autoritárias que agem sobre a vida das usuárias dos sistemas de saúde, podem ser vistas como um exercício de poder dos profissionais, no sentido (de poder) descrito por Foucault, “O corpo é ao mesmo tempo objeto e alvo de poder, agregando-se a ele um significado técnico-político, enquanto elemento que permite exercer constante vigilância sobre ele” Foucault (1998, p. XX). Sobre a relação de poder pelos profissionais de saúde que acabam por decidir sobre os corpos das mulheres Bianca relatou: “Eu trouxe pra médica todo o meu caderninho do pré-natal, desde os meus primeiros exames até minha ultima ultrassonografia que dizia que o feto estava morto. Na hora parecia que ela só viu a minha ultra... fiquei muito chateada! Ela disse que eu teria que fazer a curetagem. Como o médico da ultra tinha comentado sobre um outro exame, perguntei a ela se não precisava fazer. Ela mandou que eu não me preocupasse pois o trabalho dela ela sabia fazer muito bem. (Bianca, 23 anos, 03/09/2014) É importante informar aqui que mesmo se sentindo insatisfeitas e chateadas com algumas posturas dos profissionais de saúde na maioria das vezes as mulheres não associaram o uso de poder como violência, pelos profissionais. Sobre a forma com que as mulheres percebem essas certas atitudes, Carla, Roberta e Vanessa disseram: “Acho que não é certo o jeito que eles tratam a gente. Vi as enfermeiras comentando alguma coisa sobre mim para uma paciente que ganhou neném. Isso é muito chato... Quando peço alguma ajuda parece que elas me debocham sabe? Às vezes me senti como um bicho!” (Carla, 26 anos, 23/05/2014) “ Eu já fiz isso antes a uns anos atrás, antes de ter meu filho. Pelo menos dessa vez não foi tão ruim. Eu esperei muito tempo para ser atendida, e fiquei morrendo de dor ali nas cadeiras sem ninguém pra me ajudar, mas depois da curetagem me deixaram na maca. Da outra vez assim que terminaram de tirar me mandaram levantar... que eu pegasse minhas coisas que já podia ir pra casa. Eu levantei e foi cambaleando até o banheiro, sai pingando sangue por todo o caminho.” (Vanessa, 29 anos, 08/07/2014) “Se depender de mim nunca mais passo por isso. A pessoa já se sente mal por fazer uma coisa dessas... Dai quando chega aqui parece que piora. Eu fiquei ali gritando de dor por horas... eles não deram a mínima. A médica ainda falou que eu deixasse de reclamar porque as mulheres que estavam pra parir sentiam muito mais dor do que eu. Só eu sei a dor que eu senti! Fiquei jogada ali por muito tempo até que vagou pra mim fazer a curetagem”. (Roberta, 33 anos, 19/ 08/2014) Silvia Pimentel (1994), nos mostra que a Organização dos Estados Americanos (OEA) compreende que “[...] a violência contra a mulher é definida como qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher tanto na esfera pública como na esfera privada.” (p.25) Complementando este dado, Nogueira (1994), argumenta que dentro do contexto hospitalar, a violência institucional ocorre na relação das pacientes com os serviços de saúde, se traduzindo tanto na falta de acesso a esses serviços quanto na má qualidade. Neste sentido Bispo e Souza (2007) complementam que “Podemos estender também às próprias relações entre clientes e profissionais de saúde, dentro das instituições que atendem a população feminina.”( BISPO; SOUZA 2007, p.27) Ainda sobre as percepções sobre o atendimento recebido, algumas pacientes relatam a demora para o atendimento como uma forma de castigo. “Logo que eu entrei na recepção já disseram que estava cheio e que meu atendimento ia demorar, que tinha muita mulher pra parir... acho que é só porque ela sabia que era aborto”. (Carla, 22 anos, 23/05/2014) “Eu passei muito tempo aqui já internada para fazer a curetagem, todo mundo pariu. Eu tive que ficar esperando, parece que eles deixam a gente de castigo... e é estou aqui pagando meus pecados!” (Juliana, 23 anos, 20/04/2014) Essas entrevistas denotam que as mulheres percebem a demora no atendimento como uma forma de punição, um castigo para que não mais voltem a realizar um aborto. O depoimento de Carla, acima citado expõe ainda que essas atitudes já estão naturalizadas, tendo em vista que já na recepção onde preenchia a ficha foi informada que por se tratar de um caso de aborto seu atendimento iria demorar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para além das polêmicas que envolvem o aborto nos diversos campos sociais, é fato que ele se revela como um fator essencial dos direitos humanos. De tal forma que no âmbito internacional passa a ser discutido como problema de saúde pública que reconhece o direito de todo indivíduo decidir sobre sua reprodução, livre de discriminação, tratando-o de forma humana e solidária. No Brasil embora a prática ainda seja considerada ilegal, ressalvo algumas exceções, já se sabe que ele continua a ocorrer causando riscos a saúde e integridade física das mulheres, sendo uma das maiores causas de mortalidade materna no país (DINIZ; MEDEIROS, 2010). Para tanto, como via de garantir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, visa assegurar a saúde e a vida das mulheres, por meio de acolhimento, atendimento e tratamentos dignos (BRASIL, 2005). Neste sentido ao empreender uma pesquisa qualitativa dentro de uma instituição que deve acolher e atender as mulheres para procedimentos pós-abortamento, com sujeitos intimamente envolvidos na questão como os profissionais de saúde e as próprias pacientes, oportunizou a análise de detalhes desta problemática sob a perspectiva dos próprios atores sociais. Possibilitando relevantes conclusões e contribuindo com o conhecimento local no que concerne à questão da saúde e dos direitos da mulher. Ajudando a pensar o problema de maneira consonante com as várias demandas apresentadas. Assim, o trabalho etnográfico demonstrou uma realidade diferenciada das disposições propostas pela Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento (2005). Onde a qualidade dos cuidados disponíveis e a forma com que são ministrados causam transtornos e sofrimentos as pacientes, além de ameaçar sua saúde. Iniciando desde a peregrinação em busca de uma vaga na rede pública, postergação do atendimento na unidade de saúde priorizando partos, discursos e práticas dos profissionais que trazem à tona a negação do exercício dos direitos reprodutivos das mulheres e abuso de poder por parte dos profissionais de saúde. Como evidenciado no decorrer deste texto estas características remetem a um quadro de violência institucional. Está fundamentada em uma violência de gênero pautada em significados culturais estereotipados de desvalorização e submissão da mulher, que perpassa por ideologias médicas de controle dos corpos femininos. O que parece naturalizar e consentir a cultura da violência institucional. Os relatos dos profissionais de saúde, por vezes denotaram as dificuldades ou negligências no atendimento em função dos problemas estruturais enfrentados no hospital, como a superlotação. Por outras suas concepções subjetivas, suas representações em torno do aborto atravancam o atendimento. Nos casos de aborto legal a maior parte dos ginecologistas obstetras afirmaram declarar objeção de consciência. Nos casos de aborto clandestino a maioria evidenciou “não ter cabimento” que um caso de aborto fosse tratado da mesma forma que os partos, ainda mais se tratando de uma maternidade de alto-risco. Nos relatos das pacientes ficou evidente o descontentamento dos serviços prestados. Com denúncias de represálias, tratamento grosseiro, desvalorização do sofrimento da paciente, demora no atendimento. Outro “ponto alto” das entrevistas foram ás confidências de algo que envolve o imaginário do atendimento hospitalar para mulheres que abortam. Todas as mulheres entrevistadas tinham relatos de abortos, delas ou de outras e todas descreviam o medo que tiveram de chegar ao hospital, para além de sanções judiciais. Desta forma o presente trabalho mostrou nitidamente o medo e descontentamento com os serviços prestados na visão das usuárias e a rejeição ao aborto nesta unidade de saúde pública por parte dos profissionais que nela atuam. Se propondo a pensar a interrupção de gravidez no Brasil, reconhecendo e comprovando que o aborto é um fato social e que assim deve ser reconhecido. Finalmente, espera-se com este trabalho trazer contribuições para a discussão sobre as dificuldades de implantação prática, da norma técnica de atenção humanizada ao abortamento e ao atendimento quanto aos casos de aborto legal. Almeja-se, sobretudo contribuir para garantia de uma melhor atuação e comunicação entre os profissionais de saúde e mulheres, as quais em geral são as mais afetadas em seus direitos sexuais e reprodutivos. 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