UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO PRATICAS PEDAGÓGICAS NO ENSINO SUPERIOR: UM ESTUDO EXPLORATÓRIO ATRAVÉS DO CONCEITO DE DISPOSITIVOS DE DIFERENCIAÇÃO PEDAGÓGICA ADELINA MARIA GRANADO ANDRES 2003 UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO PRATICAS PEDAGÓGICAS NO ENSINO SUPERIOR: UM ESTUDO EXPLORATÓRIO ATRAVÉS DO CONCEITO DE DISPOSITIVOS DE DIFERENCIAÇÃO PEDAGÓGICA ADELINA MARIA GRANADO ANDRES 2003 Adelina Maria Granado Andrês PRATICAS PEDAGÓGICAS NO ENSINO SUPERIOR: UM ESTUDO EXPLORATÓRIO ATRAVÉS DO CONCEITO DE DISPOSITIVOS DE DIFERENCIAÇÃO PEDAGÓGICA Dissertação apresentada na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, para obtenção do grau de Mestre em Ciências da Educação, Especialização em Educação, Políticas Educativas e Ensino Superior Orientador: Professor Doutor Stephen Stoer í RESUMO Este trabalho tem como objecto de estudo a exploração/verificação do modelo teórico de Steve Stoer e de Luiza Cortesão (1999) sobre práticas pedagógicas no ensino superior, representadas num quadro de dupla entrada: a abcissa representa a fonte do conhecimento utilizado na aula, com três situações - do manual; de outrem; do próprio (em gradação de menor para maior produção de conhecimento); a ordenada representa o modo como o conhecimento é apresentado aos alunos, com três situações - transmissivo; activo; e contextualizado (em gradação de menor para maior emancipação). O cruzamento destas situações é representado por nove casas, cada uma revelando as implicações das várias pedagogias em termos de emancipação e de produção de conhecimento. Para conhecer as práticas pedagógicas de professores de ensino superior e a sua adequabilidade ao modelo referido, utilizou-se metodologia qualitativa - entrevistas semi-dirigidas e análise de conteúdo. Foram entrevistados três professores da Universidade do Porto de diferentes áreas: ciências naturais; ciências sociais e humanas; e ciências exactas. Para a análise de conteúdo, criaram-se três grandes categorias (que incluem outras oito): aulas; alunos; professores. Os resultados do estudo estão de acordo com o modelo estudado, na medida em que prevê que o maior grau de emancipação e de produção de conhecimento só poderá ocorrer em pós-graduações. 2 RESUME Ce travail a comme objet d'étude l'exploration/vérification du modèle théorique de Steve Stoer e de Luíza Cortesão (1999) sur les pratiques pédagogiques de l'enseignement supérieur, représentées dans un tableau d'entrée double: l'absysse représentant la source de connaissance utilisée en cours, avec trois situations - du livre; d'une autre personne; de la personne elle-même (organisées de la plus petite vers la plus grande production de connaissance); l'ordonnée présente la manière comme la connaissance est présentée aux élèves, avec trois situations - transmissif; actif; et contextualisé (organisées de la plus petite vers la plus grande émancipation). Le croisement de ces situations est représenté par neuf cases, chacune révélant les implications de plusieurs pédagogies en matière d'émancipation et de production de connaissance. Pour connaître les pratiques pédagogiques de professeurs de l'enseignement supérieur et son adéquation au modèle référé, une métodologie qualitative a été utilisée - interviews- semi-dirigées et analyse de contenu. Trois professeurs de domaines différents(sciences naturelles; sciences sociales et humaines; et sciences exactes ) de l'Universitée de Porto ont été interviewés. Pour l'analyse du contenu, trois grande catégories ont été créées (qui en incluent huit autres): cours; élèves; professeurs. Les résultats de l'étude sont en accord avec le modèle étudié puisqu'il prévoit que le plus grand degré d'émancipation et de production de connaissance arrivera seulement en situation après-diplôme. 3 ABSTRACT This thesis use, as the theory study object of Steve Stoer and Luiza Cortesão about pedagogies practices in Universities, presented on a table of 2 dimensions; the source of know lodge used in the classroom, with tree situations - the manual; other scientific elements; from himself (from the minor to the greatest know lodge production) the other element represents how the know lodge is presented to the students, with tree situations - transferred; active and in context (from the minor to the greatest). The results of these situations are represented in nine cells, each one revels the implications of the various pedagogies about know lodge production and the pedagogies practices. To know the teachers pedagogies practices in University and the usual of the referred model, we use the qualitative methodology - interviews semi-directed and main analysis. There was tree Oporto University teachers from different areas: Natural Sciences, Social and Human Sciences and Exact Sciences. For the main analysis there were created tree big categories (that includes eight) class, students and professors. The study results match with the presented model, because generates grater know lodgment and only can occur in post-graduations. 4 AGRADECIMENTOS Ao António, à Inês e à Beatriz, e à minha mãe, que são os meus mais amigos no mundo. A Stephen Stoer a orientação neste percurso, Professor de há anos que me disponibilizou os pontos cardeais do seu mapa das ciências sociais e humanas e, mais especificamente, "... de uma sociologia da pedagogia..." (Stoer, S.), e que me (re)cria o gosto de pensar em caminhos por onde o conhecimento possa chegar a cada vez mais pessoas... Aos meus colegas e amigos do ISCAP - Área das Ciências Sociais e Humanas: à Sofia Silva que partilha, ao Geraldo Ramos que age e compreende, e à Margarida Matos que ajuda a encontrar. Aos meus amigos: Márcia Andrade, o apoio em todas as circunstâncias e, nesta especialíssima, em especial os quadros que fez no computador; Fátima mãe e Nicolau filho, a tradução do resumo; Mário Barroco de Melo, Coelho e Bruno filho do Coelho, a grande ajuda em momentos de grande agonia do meu computador; Teresa Barbosa, o livro de Sedas Nunes e o alerta sistemático para terminar o trabalho. Finalmente, um reconhecimento muito especial aos três professores entrevistados não apenas pelas suas entrevistas, mas principalmente pela disponibilidade e pela entrega com que as fizeram - o que possibilitou a realização deste trabalho tal como agora se apresenta. 5 ÍNDICE VOLUME 1 Introdução 11 I. A Universidade Portuguesa 13 Desde os Fins dos Anos 60 até 25 de Abril de 1974 em Portugal 15 Contexto Político e Social: Principais Repercussões no Ensino Superior 15 Estudo de Sedas Nunes: A Universidade Portuguesa, 1969 17 A Reforma de Veiga Simão 23 Depois da Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal Contexto Político e Social de 1974 a 1976: Principais Repercussões no Ensino Superior 27 27 Contexto Político e Social nos Anos Seguintes: Principais Repercussões no Ensino Superior II. Pedagogias na Universidade 29 36 Pedagogias na Universidade: Apresentação 38 O Método Pedagógico Transmissivo 39 Noção fundamental 39 As aulas 41 Os alunos 42 Os professores 43 Adequação/Desadequação ao Contexto Actual 44 As Pedagogias Activas 47 Noção fundamental 47 As aulas 49 6 Os alunos 50 Os professores 51 Adequação/Desadequação ao Contexto Actual 52 Que (Outras) Pedagogias? 53 III. Enquadramento Conceptual dos Dispositivos de Diferenciação Pedagógica 55 Enquadramento Conceptual dos Dispositivos de Diferenciação Pedagógica: Apresentação 57 Escola de Massas: Diversidade/Heterogeneidade/ Falsa Homogeneidade 58 A Construção do Professor Monocultural ou Professor Daltónico Cultural 60 O Multiculturalismo Benigno ou a Folclorização da Diferença 62 O Professor Intermulticultural e os Dispositivos de Diferenciação Pedagógica 63 Comparação entre o Professor Monocultural e o Professor Intermulticultural 67 Outros Contributos Relevantes para os Dispositivos de Diferenciação Pedagógica 69 Campos de Recontextualização Pedagógica, Enquadramentos e Pedagogias- Basil Bernstein 69 Educação Dialógica - Paulo Freire 71 Educação Contextualizada - Dispositivos de Diferenciação Pedagógica: Apontamento Conclusivo 72 Quadro 1: QUÊ; COMO; ONDE 74 Eixo de Aquisição de Saberes - Reprodução/Produção: QUÊ Eixo Metodológico - Domesticação/Emancipação: COMO Cruzamento dos Eixos QUÊeCOMO: ONDE 7 75 76 77 IV. Trabalho Pedagógico na Universidade: Exploração através de Entrevistas a Três Professores Metodologia 83 84 Realização de Entrevistas 86 Análise de Conteúdo 93 Análise das Entrevistas 97 Síntese de Cada Categoria por Sujeito Síntese de Todas as Categorias por Sujeito Síntese Global de Todas as Categorias dos Três Sujeitos Análise da Relação entre os Dados e o Modelo Teórico Considerado 97 114 121 125 Análise da Relação entre os Dados e o Modelo Teórico Considerado: Introdução 127 Eixo de Aquisição de Saberes: QUÊ 128 Eixo Metodológico: COMO 130 Cruzamento dos Eixos QUÊ e COMO: ONDE V. Conclusões 169 171 O Discurso Educativo como Dispositivo de Diferenciação Pedagógica 173 Emancipação e Produção de Conhecimento em Práticas Pedagógicas no Ensino Superior 175 Maior Emancipação e Maior Produção de Conhecimento em Práticas Pedagógicas no Nível de Pós-Graduação 177 Os Resultados e o Modelo Teórico Considerado: Correspondências 178 Estes Três Professores São Especiais?: Pistas para Outros Desenvolvimentos 181 Bibliografia 183 8 VOLUME 2 ANEXOS Anexo I - Guião de Entrevista Anexo II - Entrevistas Entrevista a Manuel Rebelo - FCUP Entrevista a Jaime Almada - FPCEUP Entrevista a Francisco Couto - FEUP Anexo III - As Categorias Anexo IV - Quadros de Categorias por Sujeito Manuel Rebelo-FCUP Jaime Almada - FPCEUP Francisco Couto - FEUP Anexo V - Quadros de Sínteses de Categorias por Sujeito Manuel Rebelo-FCUP Jaime Almada - FPCEUP Francisco Couto - FEUP Anexo VI - Sínteses de Categorias por Sujeito Manuel Rebelo-FCUP Jaime Almada - FPCEUP Francisco Couto - FEUP 9 "... um certo número de docentes do Ensino Superior concedem um lugar à pedagogia metodológicas e ou vêm à didáctica modificando nas mais suas ou preocupações menos o seu comportamento. (...) Reflectir nos problemas pedagógicos e introduzir modificações, nesse âmbito, no Ensino Superior não equivale, contudo, a que ocultemos os problemas sociopolíticos: é uma forma de agir que, (...) fazendo parte da complexidade da realidade em evolução, acaba por inscrever-se na sua dialéctica." (Bireau, Annie, 1995: 14-15) 10 INTRODUÇÃO Tendo presentes, por um lado, a heterogeneidade tendencialmente crescente que existe no público discente no ensino superior em Portugal e, por outro, os instrumentos pedagógicos possibilitadores de sucesso para todos os alunos desse grau de ensino, propomo-nos fazer um estudo exploratório do modelo teórico de Stoer e Cortesão (1999) sobre práticas pedagógicas, que trataremos especificamente no âmbito do ensino superior e no que diz respeito aos seus dois níveis - pré-graduação e pós-graduação. Para isso, apresentamos em primeiro lugar uma exposição sobre a Universidade Portuguesa, no que principalmente diz respeito aos conceitos de massificação e de ensino de massas - dando conta do número e da heterogeneidade crescentes que, desde os fins dos anos 60, passaram a incluir a população discente neste grau de ensino. Em seguida, descrevemos dois modelos pedagógicos aí existentes - o ensino transmissivo ou educação bancária, e a educação activa e/ou investigativa para se compreender que, tanto num como noutro, se ignora aquela heterogeneidade. Assim sendo, estas pedagogias revelam-se desadequadas ao contexto actual do ensino superior se este se pretende de cariz democrático e adequado a um mercado de trabalho relacionado com um contexto pósfordista de produção - já que aqueles modelos pedagógicos são essencialmente domesticadores e reprodutores. Outra proposta educativa configura-se no modelo teórico de Stoer e Cortesão (1999) sobre práticas pedagógicas - trata-se da educação contextualizada dispositivos de diferenciação pedagógica. Neste modelo pedagógico, identifica-se e rentabiliza-se a heterogeneidade que a população do ensino superior contém, considerando-se cada aluno como um indivíduo único, original, com uma identidade sociocultural específica que o professor tem necessariamente que conhecer - o professor é um investigador 11 sócio-antropológíco - para, depois e através desse conhecimento, este professor ser capaz de construir um outro conhecimento de tipo educativo - o professor é também um investigador educativo. Ambos os conhecimentos (sócio-antropológico e educativo) se revelam na criação e na utilização daqueles dispositivos de diferenciação pedagógica pelo professor - o que pressupõe e exige, da sua parte, uma capacidade de bilinguismo cultural que lhe permite interagir com todos os alunos (considerando a pertença de cada um deles a qualquer/quaisquer grupo/s sociocultural/ais). Trata-se da figura do professor intermulticultural, cujo perfil reúne fundamentalmente as características referidas - o modelo de educação contextualizada visa essencialmente a produção de conhecimento (em oposição à sua reprodução), e a emancipação dos indivíduos (em oposição à sua domesticação). A partir deste quadro teórico, pretendemos conhecer as práticas pedagógicas de professores de ensino superior, pelo que considerámos os discursos de três professores da Universidade do Porto, pertencentes estes a diferentes áreas científicas: um da Faculdade de Ciências (ciências naturais); outro da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação (ciências sociais e humanas), e outro da Faculdade de Engenharia (ciências exactas). Para tal, recorremos a metodologias qualitativas, que consistiram na recolha de dados através de entrevistas semi-directivas e posterior tratamento através de análise de conteúdo. Fundamentalmente, concluímos que estes professores utilizam o discurso nas aulas como dispositivo de diferenciação pedagógica, incluindo-se as suas práticas pedagógicas predominantemente no modelo de educação contextualizada em ambos os níveis de ensino superior, e principalmente no nível de pós-graduação - pelo que também promoverão a emancipação e a produção de conhecimento, especialmente no nível de pós-graduação. 12 I A UNIVERSIDADE PORTUGUESA 13 "... sempre a universidade funcionou em termos de, ao reproduzir uma certa concepção do mundo e da vida, ter de agir no sentido de a transmitir. E como as exigências da organização social não podem, com maior ou menor grau de consciência do facto, deixar de difundir e de reproduzir as ideologias direccionais do conjunto da vida colectiva de cada época histórica, é claro que a universidade, juntamente com todo o restante sistema escolar, representa um dos veículos de transmissão da ideologia socialmente dominante." (Castro, Armando, 1985: 50) 14 DESDE OS FINS DOS ANOS 60 ATÉ 25 DE ABRIL DE 1974 EM PORTUGAL Contexto Político e Social: Principais Repercussões no Ensino Superior Nos fins dos anos 60, com o governo de Marcelo Caetano, o contexto económico-político-social que se vivia em Portugal era de relativa flexibilidade e abertura (comparando-o com a rigidez e fechamento do governo de Salazar): "... do Regime Estado Novo (1926-1974), podemos distinguir 4 fases de evolução, correspondendo a 4 a ao período marcelista (1968-1974), e que é marcada por uma certa abertura política no seu início e pela subsequente agonia do regime que culmina com a Revolução de Abril de 1974" (Manuel Carmelo Rosa, s/d: 135). Neste contexto, deu-se a abertura da economia portuguesa à EFTA - que implicou algum desanuviamento na política de Condicionamento Industrial e consequente melhoria das condições económicas das famílias e expansão dos sectores secundário e terciário - e paralelamente foram introduzidas as ideias funcionalistas e a teoria do capital humano1, cabendo à OCDE2 um papel fulcral nesta mudança com o Projecto Regional do Mediterrâneo, o qual apela para a necessidade de encontrar resposta urgente para o desfasamento entre as necessidades do país e o ensino superior. Este conjunto de factores reflectiuse, nas universidades, num grande aumento da sua frequência que conduziu ao ensino superior de massas. Nesta perspectiva, e relativamente à educação, o que mais importa é a sua relação com a economia, no sentido da teoria do capital humano - a estratégia seguida é, pois, ajustar as necessidades da educação às do mercado de trabalho. 2 A OCDE fornecia pareceres e peritagens. 15 Deste modo, a afluência de massas às universidades relaciona-se com a industrialização e a tecnologia que se originou e desenvolveu noutros países, e que depois chegou a Portugal criando novas necessidades de formação de mão-de-obra qualificada a que estas instituições deveriam dar resposta. Mas este afluxo extraordinário de estudantes desencadeou uma crise generalizada da universidade portuguesa, já que as instituições existentes não se encontravam preparadas para o receber - tanto pelas suas grandes proporções numéricas, como também pela diversidade de públicos que comportou. A este propósito, António Sedas Nunes revelou a inadequação existente entre características de novas populações de discentes (diferentes dos tradicionais), e características dessa universidade, nos seguintes termos: "Em Portugal, (...) as Universidades encontram-se institucionalmente concebidas e ordenadas em função de uma discência juvenil, socialmente desprovida de responsabilidades familiares ou profissionais. Decerto, o aluno adulto, empregado, casado, não é delas inteiramente excluído: para o acolher criou-se mesmo o regime de escolaridade "voluntária", mais liberto de obrigações de assiduidade do que o regime "ordinário". Mas, de facto, um tal aluno representa, no seio da instituição que o recebe, uma "anormalidade" tolerada, à qual não faria sentido que o sistema, dados os seus pressupostos, se adaptasse mais que superficialmente. Porém, (...) essa "anormalidade" institucional revela-se estatisticamente tão frequente (...) que não parece justificável tratá-la como simples excepção. Objectivamente, a sua presença, sendo tão ampla quanto é, institui, na população universitária, uma outra "normalidade", contraposta à que o sistema adoptou e mantém. De modo que, enquanto o sistema universitário repousa, essencialmente, sobre uma noção de "normalidade" discente, a própria composição do "estudantado" consagra duas: a do "aluno jovem", isento de responsabilidades sociais directas, e a do "aluno adulto", com encargos de família e/ou de trabalho." (Nunes, A. Sedas, s/d: 90-91). 16 Para além do citado, foram realizados naquela época outros trabalhos sobre esta matéria dos quais resultaram algumas publicações - salienta-se a colectânea "A Universidade na Vida Portuguesa", em 1969, composta por dois volumes I e II, a qual foi também da responsabilidade de António Sedas Nunes - e que inclui textos deste autor e de outros das ciências sociais e humanas daqueles anos3. É principalmente com base neste documento que procuraremos caracterizar e compreender o fenómeno do ensino superior de massas em Portugal - no que diz fundamentalmente respeito às implicações em termos de diversidade nas suas populações discentes, e eventuais repercussões nas práticas pedagógicas dos seus docentes. Estudo de Sedas Nunes: A Universidade na Vida Portuguesa, 1969 Relativamente ao referido contexto de fins dos anos 60 em Portugal, afirma-se que os diplomas universitários passaram a tornar-se apetecíveis - e potencialmente disponíveis - a indivíduos de determinados grupos sociais que, até aí, não tinham tido acesso à Universidade, constituindo garantia de mobilidade social ascendente "... numa sociedade em vias de modernização, o nível educacional representa, como o lembrou Rui Machete, "um título de legitimação do status do indivíduo de importância crescente": as oportunidades individuais de ascensão social e mesmo a simples sustentação das posições herdadas tornam-se fortemente dependentes, à escala social, do grau de instrução atingido." (Sedas Nunes in Sedas Nunes, 1969: 106). Para além dos textos de António Sedas Nunes, encontramos outros de autores como Alberto Ralha, Fernando Dias Agudo, Rui Machete, Alfredo Sousa, Miller Guerra. 17 Nesses anos, para além da até então população discente habitual - jovens do sexo masculino vindos directamente do ensino secundário e oriundos de estratos sociais favorecidos - muitos outros passaram a frequentar as universidades - mulheres, e outros jovens e adultos já inseridos na vida activa4. Assim, as universidades passaram a acolher grandes massas de população com um vincado carácter de heterogeneidade sociocultural para as quais não estavam preparadas, nem do ponto de vista do número propriamente dito desmesurado para as infraestruturas existentes - nem relativamente a características específicas dessas novas/outras populações. Esta situação traduziu-se numa "crise generalizada", segundo Sedas Nunes.5 Se, por um lado, era importante para o país produzir mais licenciados para responder à sua solicitação crescente "... a abertura de mais largos acessos ao ensino superior é questão de sobrevivência nacional, pois que dela depende a formação, em número suficiente, dos cientistas, pesquisadores e técnicos necessários." (Sousa, Alfredo in Sedas Nunes, 1969: 248); por outro lado, a grande maioria dos estudantes universitários pertenciam ainda às classes sociais mais favorecidas, encontrando-se as outras pouco representadas6. Assim, e com vista a um ensino superior democrático, Miller Guerra e Sedas Nunes partem deste pressuposto que adjectivam como fundamental: "... é indispensável fomentar, em Portugal, uma democratização do acesso7 às Universidades" (Guerra, Miller; Nunes, Sedas, 1969: 433). 4 Como tivemos oportunidade de referir com base em outro trabalho do mesmo autor: Nunes, A. Sedas (s/d) A Situação Universitária Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte. Sedas, A. Nunes O Sistema Universitário em Portugal: Alguns Mecanismos, Efeitos e Perspectivas do seu Funcionamento in Sedas Nunes (org.) (1969: 99) A Universidade na Vida Portuguesa 6 Segundo Sedas Nunes (1969), no ano lectivo de 1963/64 havia um estudante por cada sete famílias pertencentes a grupos socioprofissionais considerados elevados; enquanto que nos grupos socioprofissionais considerados baixos a relação era de um estudante por cada 1191 famílias. De ano para ano cresce a representatividade destes últimos grupos nas Universidades, mas na comparação com a dos primeiros ela é sempre menor. No entanto, e no total da sociedade, o número de famílias pertencentes a grupos socioeconómicos considerados baixos é largamente maior que o das pertencentes a grupos socioeconómicos considerados elevados. Por isso, Sedas Nunes considera que a população universitária, relativamente à sua origem social, apresenta um triângulo invertido. Estes autores referem o termo acesso, e não se referem - pelo menos explicitamente - ao processo posterior à entrada (que actualmente designamos pelo termo sucesso). 18 Explicitamente para tentar dar resposta a esta situação e porque a grande procura do ensino superior justificava a selecção de um leque maior e mais diversificado de alunos para as universidades no contexto político e económico referido, defendeu-se uma lógica de igualdade de oportunidades: "A análise das origens sociais dos estudantes portugueses revela profundas desigualdades no acesso ao ensino superior. Por outro lado, o princípio da igualdade das oportunidades, conduzindo a uma selecção dos mais aptos, impõe-se hoje, não apenas por razões de ordem ética, mas também por motivos económicos e sociais." (Machete, Rui in Sedas Nunes, 1969: 213) 8 . Nesta perspectiva, a selecção a ser feita seria com base no mérito académico dos candidatos - independentemente de outros critérios económicos e sociais, como se afirmou - ou seja, independentemente da posição do indivíduo na hierarquia social, já que esta capacidade ou mérito se encontraria aleatoriamente distribuída pelos indivíduos em todos os estratos sociais. Assim, no sentido de Portugal passar a ter um ensino superior de massas e democrático - tal como tem vindo a ser caracterizado no estudo que estamos a tratar - para além daquela medida da selecção pelo mérito, foram consideradas outras atendendo ao seguinte: por um lado, a massificação das Universidades apresentava-se como negativa porque se tinha vindo a considerá-la enquanto sinónimo de congestionamento do sistema universitário e, deste modo, seria necessário evitá-la (sabendo que esse congestionamento se devia ao desajustamento entre a dimensão da população discente e a do mesmo sistema e respectiva capacidade material e institucional para acolher mais alunos); por outro lado, a grande e tendencialmente crescente procura do ensino superior processava-se de acordo com as necessidades de desenvolvimento e de progresso do país e, paralelamente, de acordo com os anseios dos estudantes - então ter-se-ia que a promover. As soluções delineadas passariam pela ampliação e pela adaptação das estruturas do sistema universitário, sem evitar o aumento do número de estudantes. O discurso de Rui Machete insere-se claramente numa perspectiva meritocrática e da teoria do capital humano. 19 As implicações do grande número de estudantes reflectiram-se, por um lado, na qualidade do corpo docente - o ratio alunos/professores catedráticos diminuiu consideravelmente e houve, como recurso, o recrutamento de muitos assistentes9 - e, por outro lado, reflectiram-se na qualidade e na frequência de contactos/comunicação entre os elementos dos corpos docente e discente, que também diminuíram: "... o número médio dos alunos por professor era pequeno, o que facultava oportunidades de contactos relativamente frequentes e directos entre ambas as partes. Esta situação encontra-se hoje substancialmente modificada." (Guerra, Miller em Nunes, Sedas, 1969: 456). Sublinhe-se que, no que se refere especificamente ao decréscimo de comunicação entre professores e alunos, este não terá acontecido apenas devido ao grande número de alunos, mas também devido àquele recente carácter de heterogeneidade sociocultural que a população adquiriu (e que já referimos) - associado ao tipo de práticas pedagógicas que largamente predominavam nas universidades, e que era conhecido por ensino escolástico10, o qual foi caracterizado e comentado deste modo por Alberto Ralha: "... consiste na mera transmissão de conhecimentos, tem as suas raízes na Idade Média, quando o professor lia (leitor) e ditava o texto das lições para os alunos escreverem. A facilidade com que se obtém hoje os livros tornou desnecessária a cópia das lições, mas o sistema de aulas magistrais ainda se usa com muita frequência, embora se reconheça, unanimemente, não ser 9 Como não é possível ter mais professores porque só pode haver um por cadeira e o número de cadeiras se mantém, aumenta-se extraordinariamente o número de assistentes. Estes, na sua grande maioria e contrariamente ao que era hábito acontecer, acumulam actividades fora das universidades já que os salários são baixos e as perspectivas de aí fazer carreira, e dentro de um espaço de tempo considerado aceitável, apresentam-se diminutas - por um lado, são muitos, mas só muito poucos poderão prosseguir; por outro lado, o assistente candidato deve dispor de tempo e de dinheiro para fazer a respectiva carreira, já que o necessário doutoramento demora oito anos no mínimo a concluir, e tem que ser feito a expensas próprias. Nestas condições, a função de assistente poderá deixar de ser aliciante para muitos licenciados o que poderá conduzir, da sua parte, ao abandono deste projecto e à consequente redução do padrão das qualificações exigidas na admissão dos novos assistentes. E, deste modo, se reduz também, em princípio, a qualidade de ensino. 10 O tipo de ensino escolástico utiliza apenas a palavra, falada e escrita - através de prelecções expostas pelo professor nas aulas teóricas e, nas aulas práticas, fazem-se exercícios de aplicação dos conhecimentos adquiridos daquela forma. Os alunos são, depois, avaliados mediante exame escrito ou oral. 20 aconselhável que os alunos percam quase todo o seu tempo a ouvi-las. Não quer dizer que as aulas magistrais não devam também desempenhar um papel importante no ensino superior moderno. (...) Contudo, as aulas teóricas não devem nunca constituir o único método de ensino utilizado, pois tendem a criar nos alunos uma atitude passiva em relação aos assuntos apresentados, habituando-os a escrever a opinião dos outros em vez da sua própria." (Ralha, Alberto in Nunes, A. Sedas, 1969: 103). A este propósito, e sobre os alunos e as suas aprendizagens no que se refere ao ensino escolástico, disse Sedas Nunes: "O papel que lhes cabe (...) reduzse ao re-emitir, para o professor e nos exames, a informação que o professor, nas aulas e para os alunos, previamente emitiu. Metaforicamente, poder-se-ia dizer que exercem uma função de reflector." (Nunes, A. Sedas, 1969: 163). E acrescenta que, se para os tradicionais alunos das universidades este tipo de ensino já não seria o mais adequado, a situação pioraria com os provenientes de meios familiares educacionalmente pobres11, os quais não partilhariam com o professor as mesmas "categorias de percepção, de linguagem, de pensamento e de apreciação" (Bourdieu, Pierre citado em Nunes, A. Sedas, 1969: ). Assim, a obrigatoriedade de re-emitir a informação do professor tornarse-ia problemática, observando-se um desajustamento, em termos de comunicação, entre estes alunos e respectivos professores - o que se repercutiria, negativa e inegavelmente, ao nível das aprendizagens dos alunos. Observou-se que o confronto entre as características daquele tipo de ensino com as desta nova população não terão resultado favoravelmente em termos de comunicação entre professores e alunos, tendendo a reduzi-la: "Quando os estudantes portugueses provinham, essencialmente, de meios sociais educacionalmente privilegiados, a pedagogia dita "escolástica" (...) não lhes levantava decerto especiais dificuldades, porque havia, entre os docentes e os discentes, uma fundamental e sólida comunidade de pensamento, de linguagem e de quadros culturais. (...) 11 categorias de O monólogo Sedas Nunes O Sistema Universitário em Portugal: Alguns Mecanismos, Efeitos e Perspectivas do seu Funcionamento in Sedas Nunes (org.) (1969: 170) A Universidade na Vida Portuguesa Manteve-se a expressão usada por Sedas Nunes em 1969. 21 professoral, mais ou menos completado por "exercícios de aplicação" em aulas práticas, deixou de constituir, para muitos dos alunos, um processo eficaz de comunicação pedagógica..." (Guerra, Miller em Nunes, Sedas, 1969: 456), e Sedas Nunes acrescentou que "A redução do nível educacional médio das famílias de onde os estudantes provêm suscita, por conseguinte, um problema de desajustamento crescente entre a natureza da pedagogia que principalmente se pratica nas nossas Universidades e as características culturais originárias da respectiva população estudantil." (Nunes, A. Sedas, 1969: 98). Nesta sequência, salientamos que, apesar de se referir à democratização do ensino superior num quadro meritocrático, Sedas Nunes fez algumas alusões sobre a natureza da selecção feita pela escola a qual - porque assentava no mérito - seria, em última instância, de carácter social12. O autor defende que a conservação das elites sociais que se tem verificado nas universidades devese a amputações sucessivas que ocorreram nos anteriores graus de ensino e que têm tido como alvo estudantes pertencentes a classes sociais educacionalmente pobres. A não se ter verificado esta situação, muito provavelmente e já há anos atrás se teria assistido a uma crise generalizada das estruturas universitárias em Portugal. O evitamento desta crise acarretou inegavelmente custos humanos e sociais que não se deveriam repetir e que se traduziram "... na privação - suportada pela imensa maioria das crianças e dos adolescentes - do acesso aos escalões menos baixos do sistema educacional português. (...) numa sensível restrição da capacidade cultural da sociedade portuguesa para se desenvolver - capacidade que manifestamente depende (...) das suas "minorias cultas"" (Nunes, A. Sedas, 1969: 146-147). Aliás, o mesmo autor refere-se a: "... um recrutamento estudantil socialmente menos "selectivo", ou, por outras palavras, socialmente mais democrático." (Nunes, A. Sedas, 1969: 100). Com a meritocracia, as desigualdades no acesso ao ensino superior manter-se-iam já que o critério seleccionador - a capacidade escolar - se encontra directamente relacionado com a pertença a grupos sociais favorecidos, e inversamente relacionado com a pertença a grupos sociais desfavorecidos. O que se afirmou não é frequentemente explícito nos textos estudados, mas observa-se principalmente nos textos cujo autor é Sedas Nunes. Veja-se, por exemplo, o que foi dito sobre as repercussões do ensino escolástico nos estudantes oriundos de famílias educacionalmente pobres. 22 Admitiu-se que se se mantivesse a situação que se vivia naqueles fins de anos 60 - conjugação entre o ensino escolástico, o aumento progressivo do "ratio" alunos/professores, e o aumento da proporção relativa dos alunos oriundos de meios socioculturais educacionalmente pobres - as universidades portuguesas iriam continuar em declínio, até finalmente acabarem por entrar em colapso. E considerou-se que, se estas se mostraram adequadas, nas suas estruturas e no seu funcionamento, em determinada época13, naquele contexto isso já não acontecia; no que diz especificamente respeito às práticas pedagógicas neste nível de ensino essencialmente "... as Universidades o método escolástico (...) portuguesas - que - não oferecem utilizam condições favoráveis." (Ralha, Alberto, in Nunes, A. Sedas, 1969: 99). Pelo exposto, defendeu-se como necessário proceder a reformas no sistema universitário português - as quais tomaram depois corpo com a chamada Reforma de Veiga Simão. A Reforma de Veiga Simão No contexto de crise das universidades portuguesas que os trabalhos de Sedas Nunes et ai apresentados revelam, a necessidade demonstrada de uma reforma do ensino tomou corpo em 1970-1973, com a Reforma de Veiga Simão, então Ministro da Educação Nacional14. Depois do surgimento das Universidades - na Idade Média, na Europa - o seu apogeu deu-se no período de ascensão da burguesia, do qual se mantêm praticamente inalteráveis, nos anos que estamos a tratar, as estruturas e o funcionamento. A Reforma de Veiga Simão surgiu nestes anos, mas já havia trabalhos prévios com ela relacionados desde os anos 50 com os ministros de educação nacional Leite Pinto, Galvão Teles e José Hermano Saraiva (cronologicamente ordenados). 23 A assunção, pelo governo, dessa necessidade de reformar o ensino superior em Portugal pode observar-se neste excerto do discurso de tomada de posse do Ministro Veiga Simão, no início de 1970: "A reforma da Universidade constitui (...) a preocupação primeira deste Ministério e, ouvidos todos os seus elementos representativos, serão ensaiadas soluções que lhe assegurem a posição de vanguarda nos domínios do pensamento e lhe confiram uma eminente dignidade."15 (citado em Teodoro, António, 1978: 72). Sobre esta Reforma, Sedas Nunes declarou que "... chegara num momento oportuno, permitindo, particularmente, a democratização da Universidade sem a sua subordinação aos interesses do capital multinacional." (Nunes, A. Sedas, citado em Stoer, Stephen, 1986: 81) - o que é discutível dado o contexto internacional de modernização que influenciou as políticas de educação em Portugal, e que já referimos. Neste contexto, "A Reforma baseou-se nas teorias do capital humano e nas sugestões da OCDE, e teve como objectivos explícitos garantir a igualdade de oportunidades para todos - falava-se na democratização do ensino (em termos meritocráticos) - e promover o desenvolvimento económico e social do país" (Stoer, Stephen; Stoleroff, Alan; Correia, José Alberto, 1990: 23). Esta terminologia meritocrática pode observar-se também em outro excerto de outro discurso do mesmo ministro: "... todos, na base de oportunidades iguais, deverão poder encontrar nesse sistema (de ensino) a via que garanta o seu direito inalienável a ser educado."16 (citado em Stoer, Steve, 1982: 31). Aliás, Veiga Simão defendia explicitamente que o desenvolvimento económico não deveria condicionar o sistema educativo, já que era a educação de todos os indivíduos o que efectivamente interessava, e que expressava através do slogan Educar Todos os Portugueses. Ora, no contexto da OCDE importa sobretudo o desenvolvimento económico e a sua consonância com o sistema educativo no sentido de este último corresponder, em termos de recursos Veiga Simão propôs um debate e uma crítica nacionais dessa reforma - o que aconteceu pela primeira vez no regime. 16 Excerto do discurso sobre a "Reforma Geral de Educação em Portugal" que foi apresentado ao país através da rádio no dia 6 de Janeiro de 1971. 24 humanos, às crescentes necessidades daquele; por outro lado, era necessário alargar a elite dirigente do país através de maior número de diplomados. Nesta perspectiva, a Reforma de Veiga Simão surgiu adequada - como também o revela a sua apresentação ao país (pela voz de Marcelo Caetano, na rádio). Efectivamente existe relação entre o mercado e o princípio de igualdade de oportunidades fundamentado na noção de meritocracia, o qual revela uma intenção económica, como defendem Finn, Grant e Johnson. Contudo, existe na Reforma um "cunho democrático e popular" pelo facto de se verificar a expansão das oportunidades e recursos educativos, como contrapõe Williams. Assim, o discurso de Veiga Simão poderá ser compreendido na contextualização de Portugal na época como um país na periferia da Europa capitalista com necessidade de se desenvolver economicamente, em que um sistema educativo com base na igualdade de oportunidades no sentido meritocrático era tido como fundamental para o progresso económico do país e para a sua integração na Europa: "Portugal (...) precisava da Reforma para se modernizar e "europeizar" (Stoer, Stephen, 1982: 31; 95; 115). Nas respectivas medidas promulgadas pelo governo, apontava-se como objectivo a democratização da educação que "... devia ser concedida a todos os portugueses, numa base meritocrática, para permitir que os mais capazes integrassem a elite da Nação, independentemente de determinantes sociais e económicas." (Stoer, Stephen, 1986: 88). Para além de corresponder aos anseios da população relativamente a igualdade de oportunidades na educação, este tipo de discurso legitimava o processo, resultando afinal na manutenção do estatuto herdado para os indivíduos dos estratos sociais mais elevados, e na ascensão social para alguns indivíduos mais capazes oriundos das classes trabalhadoras - cumpria-se, desta forma, o alargamento das elites do país e do seu desenvolvimento como pretendia Marcelo Caetano, mantendo e consolidando o controle político camuflado sob a capa de uma falsa democratização. António Reis e Sottomayor Cardia referem que a Reforma Veiga Simão foi "... uma cautelosa adaptação da máquina política à satisfação das necessidades do desenvolvimento do modo de produção capitalista no nosso país..." (Stoer, Stephen, 1986: 99). 25 Por outro lado, e segundo Stoer, Stoleroff e Correia (1990), se o Estado enquanto "... representante do médio capital modernizador na conjuntura política e económica de crise fiscal e de legitimação" que se vivia na época em Portugal originou a Reforma (Dale, Roger citado em Stoer; Stoleroff; Correia, 1990: 41-42), esta acabou também por se revelar "... um ponto central na constituição de uma nova organização política e económica das forças sociais..." (Stoer; Stoleroff; Correia, 1990: 41-42) como a consideraram alguns analistas sociais. Nesta perspectiva, a Reforma Veiga Simão despoletou um incremento geral das aspirações e conduziu ao alargamento do acesso ao ensino oficial, tendo-se traduzido "... na primeira tentativa séria do Estado para institucionalizar a escola de massas" (idem). No que diz especificamente respeito às medidas relativas ao ensino superior, a Reforma contemplou a expansão do sistema através da criação de novas Universidades e de uma rede de Institutos Politécnicos e de Escolas Normais Superiores, bem como a diversificação e disseminação dessas instituições pelo país, e a reestruturação de alguns cursos de modo a corresponder às necessidades educativas da população e às solicitações do mercado de trabalho17. Desta forma se tentou dar resposta também ao grande número de estudantes que procuravam o ensino superior: "Foi neste sentido que se criaram três novas Universidades, um Instituto Universitário e uma rede regionalizada de Institutos Politécnicos e de Escolas Normais Superiores." (Rosa, Carmelo, s/d: 145). 17 A necessidade de produzir mais quadros e a sua distribuição por determinados sectores foi diagnosticada pela OCDE, sendo que a criação destas novas instituições está relacionada com este facto. De referir, ainda, que aquela disseminação terá possibilitado a grande número de estudantes residentes na proximidade dessas instituições de ensino superior a sua frequência o que poderia não ter acontecido de outra forma. 26 DEPOIS DA REVOLUÇÃO DE 25 DE ABRIL DE 1974 EM PORTUGAL Contexto Político e Social de 1974 a 1976: Principais Repercussões no Ensino Superior Depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, e fundamentalmente durante os dois anos que se lhe seguiram, viveu-se em Portugal um clima caracterizado pela mobilização social e cultural que teve fortes implicações nas políticas governamentais. No que ao ensino superior diz respeito, e com base também em conteúdos da Reforma Veiga Simão, expandiu-se e diversificou-se ainda mais este nível de ensino - promoveram-se cursos de formação e actualização profissional; aumentou-se a oferta de serviços à comunidade; criaram-se novas escolas e cursos, bem como universidades regionais. Refere Stoer que "O súbito deflagrar da revolução de 1974 sugeria que, no essencial, a Reforma não fez mais do que alargar a fenda na barragem já em ruptura (...) Com a ruptura da barragem, em 25 de Abril de 1974, o Estado português viu-se submerso pela cheia de energias e organizações de uma sociedade civil revitalizada e refeita." (Stoer, Stephen, 1986: 254). Foi neste contexto que ocorreu a gestão democrática nas universidades devido às actividades de mobilização dos seus agentes: "... a universidade abre-se à luta política e a novos protagonismos (...) que hão-de reconduzi-la a mudanças não negligenciáveis e ao ensaio de práticas sociais e educativas de signo democrático..." (Lima, Licínio, 1996: 65) - e que deslocou o poder em termos de tomada de decisão do Ministério da Educação para as próprias instituições. Com esta forma de gestão participativa caminhava-se para uma efectiva democratização da tomada de decisões no ensino. Se a Reforma Veiga Simão tinha servido de base para realizar mudança no ensino superior durante este período de tempo, com a gestão democrática das escolas "... foi ultrapassada de facto, porque, agora, a educação, além de assegurar os mecanismos necessários para a democratização do ensino, (i. e. modificações 27 estruturais, modificações nos métodos e no conteúdo), significaria também educar cidadãos para uma sociedade democrática." (Stoer, Stephen, 1986: 128). No ano lectivo de 1974/1975, a pressão reivindicativa dos estudantes impediu a realização de exames de admissão ao ensino superior, como até aí acontecia. Paralelamente, o número de candidatos ao ensino superior vinha continuamente aumentando18. E, devido àquele grande número, as matrículas para os primeiros anos foram suspensas já que não havia condições de funcionamento - devido à falta de instalações e de professores nas universidades, ficando 14000 estudantes sem lugar. É então criado o Serviço Cívico Estudantil, no qual os estudantes não trabalhadores teriam que prestar um serviço à comunidade durante um ano como condição necessária para fazer a matrícula no ensino superior no ano lectivo seguinte. A criação do Serviço Cívico Estudantil obedecia, segundo o ministro da educação da altura Vitorino Magalhães Godinho, a uma "... dupla finalidade: por um lado, aproximar de facto (...) estudantes das classes trabalhadoras do mundo do trabalho efectivo; por outro lado, levá-los a tomar contacto directo com as realidades nacionais autênticas"19 (Godinho, Vitorino, 1981: 42) - o que se poderá relacionar com alguma preocupação pelo estabelecimento de aproximações entre a escola e o mundo do trabalho; mas também, e fundamentalmente, com um projecto de sociedade de progresso social que a revolução de 25 de Abril se revestiu, e que é também social, tal como se pode ver no Programa do Governo de 1975: "A política de educação tem o seu lugar neste Programa de Política Económica e Social como sendo um dos apoios fundamentais para impulsionar o desenvolvimento económico e bem assim como um meio de transição para uma nova sociedade e um novo humanitarismo, que em última análise serão os alicerces deste Programa."20. 18 O ministro Vitorino Magalhães Godinho referiu-se-lhe como a um "verdadeiro maremoto" (em Sérgio Grácio, 1998) 19 Quando o ministro escreve a palavra estudante, refere-se certamente aos estudantes não trabalhadores, isto pela própria definição de Serviço Cívico Estudantil. 20 Programa do Governo (1975: 137) citado em Amaral et ai (2001) O Ensino Superior pela Mão da Economia 28 Aliás, as mudanças ocorridas nas universidades, nestes dois primeiros anos a seguir à revolução, fizeram-se mais num quadro de preocupações sociais, e não tanto económicas - tendo-se observado paralelamente um afastamento das organizações de países de economia de mercado. Mas a criação daquele ano de Serviço Cívico - de cariz predominantemente social - também se terá dado pela necessidade de tempo que a reorganização do sistema educativo e a resolução das questões logísticas de falta de estabelecimentos e de docentes terão necessariamente implicado - e isto, devido ao desmesurado número de estudantes para as infra-estruturas existentes na altura (fenómeno que, como vimos, vinha acontecendo e crescendo, em Portugal, desde os fins dos anos 60). Contexto Político e Social nos Anos Seguintes: Principais Repercussões no Ensino Superior Mais tarde, em 1977/1978, o Ano Propedêutico (de ensino à distância) veio substituir o Ano de Serviço Cívico21, que foi depois também substituído, por sua vez, pelo 12° ano, em 1980/1981 - ano este projectado desde o início dos anos 70, integrado no ensino secundário e leccionado nas respectivas escolas. Segundo Sérgio Grácio, este ano suplementar de ensino secundário fora concebido naquela altura como resposta à grande afluência que se verificava no ensino superior, no sentido de a reduzir: "As condições eram na altura propícias a invocar a razão pedagógica, embora já se antecipasse a necessidade de reduzir o volume de candidatos ao superior. Não foi entretanto O Ano de Serviço Cívico Estudantil foi substituído pelo Ano Propedêutico de ensino à distância que se manteve até ao início do funcionamento do 12° ano, no ano lectivo de 19801981, este leccionado em escolas secundárias. "O currículo do Ano Propedêutico, constituído por 5 disciplinas, visava uma preparação adicional para a frequência do curso universitário. Funcionava por via televisiva, em regime de ensino à distância, com o apoio de centros instalados em 70 escolas secundárias (...) a condição de ensino à distância tornava-o altamente discriminatório, o que era agravado pelo facto da cobertura televisiva do país estar longe de ser igual para todas as regiões, sendo mais incompleta no interior." (Vítor Crespo, 1993: 101 Uma Universidade para os anos 2000). 29 decretado até a razão da urgência acabar por impô-lo." (Grácio, Sérgio, 1998: 204). Portanto, esta "razão da urgência" terá mais a ver com a grande quantidade de estudantes - que se terá tornado cada vez mais incomportável do que propriamente com razões de carácter pedagógico. Paralelamente, no decurso destes anos foi-se verificando o ressurgimento da relação entre educação e economia de mercado, a qual vinha ocorrendo desde 197622: "A recuperação do Estado, com o começo da "normalização" e a redefinição entre o Estado e a sociedade civil, auxiliada pela orientação e pelos recursos das organizações internacionais, reestabeleceram uma nova ligação entre educação e crescimento económico, embora agora no contexto duma sociedade civil mais forte, mais capaz e mais resistente. (Stoer, Stephen, 1986: 254). Assim, com a tomada de posse do 1 o Governo Constitucional naquele ano, deu-se uma alteração na abordagem à educação: ao projecto de sociedade de progresso social dos primeiros tempos da Revolução seguiu-se um outro caracterizado essencialmente por uma abordagem tecnocrática à educação. Nas universidades constituem exemplos disso: a gestão democrática - que, apesar de continuar a existir, verificava-se de fontes oficiais e não oficiais alguma oposição ao seu funcionamento; e, para além da extinção do Serviço Cívico Estudantil, foi instituído o numerus clausus em Psicologia e em Medicina Veterinária - que se generalizou no ano seguinte aos restantes cursos e que perdura até hoje. E, até hoje, parece igualmente perdurar e prevalecer uma abordagem meritocrática relativamente às questões do ensino superior, no sentido do acesso legitimado pelo princípio de igualdade de oportunidades - que se relaciona directamente com a valorização do eixo educação/mercado de trabalho, mas que se relaciona inversamente com o eixo educação/democracia. Coincidentes com esta data são as da extinção do Ano de Serviço Cívico e da introdução do numerus clausus - o que é, por si só, indiciador de uma mudança de atitude política. Salientese que, com o numerus clausus e o estabelecimento de uma nota mínima de entrada para cada curso houve, desde logo, pelo jogo da oferta e da procura, exclusão de cerca de metade dos candidatos ao ensino superior e também hierarquização dos cursos e dos estabelecimentos de ensino por área de estudos, bem como o acesso a cursos não pretendidos pelos estudantes. 30 A este propósito, Stoer, Stoleroff e Correia, bem como Dale, referem-se ao (re)surgimento em Portugal, a partir dos anos 80, de uma tendência vocacionalista que se origina a partir da concepção de que é preciso formar recursos humanos qualificados para se conseguir a modernização da economia: "... os apelos constantes às novas "necessidades" económicas exprimem, de facto, uma subordinação da política educativa às preocupações conjunturais das políticas industrial e económica e o consequente abandono de preocupações democratizantes." (Stoer, Stephen; Stoleroff, Alan; Correia, José Alberto, 1990: 12). E, como escreveu Stoer em 1986: "A educação tem vindo a significar crescimento económico associado à construção de uma sociedade meritocrática "moderna", segundo o padrão das sociais-democracias do Noroeste europeu. As organizações internacionais desempenham um papel essencial em ambos os aspectos. (Stoer, Stephen, 1986: 70). Relativamente a essas organizações internacionais, saliente-se o caso do Banco Mundial - que teve um papel de grande protagonismo no processo de desenvolvimento do ensino superior em Portugal nesta altura, mais especificamente no Ensino Superior Politécnico - e que assumia explicitamente como objectivo a redução do fosso entre as nações ricas e pobres, financiando projectos e iniciativas a determinados sistemas educativos, desde que esses projectos e iniciativas se enquadrassem no âmbito daquelas organizações o qual é, obviamente, consonante com a economia global. Segundo Morrow e Torres, 1991, a formulação das políticas educativas nos países em desenvolvimento segue os padrões educativos dos países centrais estabelecidos pelas suas organizações internacionais específicas como o Banco Mundial e a UNESCO. Estas organizações têm uma presença forte na formulação das políticas educativas desses países devido sobretudo àqueles financiamentos e à legitimação que estas organizações externas possibilitam. Assim, o processo de planeamento político público faz-se através do marketing em vez da racionalidade da escolha pública e do planeamento, isto é, apresentando os tipos de projectos mais prováveis de serem financiados dentro do âmbito neoliberal - em detrimento de outros. Verifica-se então que 31 estas organizações condicionam e determinam, muitas vezes, o modo como as reformas educativas são conduzidas, como as prioridades são estabelecidas, como as pesquisas são concebidas, implementadas e usadas na reforma educativa, e como as iniciativas públicas são seleccionadas, avaliadas e estabelecidas23, o que se relaciona com o carácter hegemónico dos países centrais relativamente a estes outros e com a sua capacidade de expansão da agenda neoliberal. No ensino superior, onde os processos de financiamento impõem grandes limites à autonomia das universidades, tem-se verificado a criação de novas estruturas e incentivos para determinadas áreas de estudos contra a extinção e desincentivos para outras, consoante estas se relacionam, ou não, com os princípios neoliberais - trata-se do capitalismo académico, segundo Slaughter e Leslie: (cit in Morrow e Torres, 1991: 45). Nesta perspectiva, a intervenção do Banco Mundial terá sido mais ideológica do que instrumental, no sentido em que o auxílio prestado pressupunha o desenvolvimento económico que Portugal deveria atingir tendo como padrão os países "auxiliadores", bem como o restabelecimento do Estado no sentido da "normalização". O objectivo do auxílio seria, em última análise, a preparação da entrada de Portugal na então Comunidade Económica Europeia: "... a educação, que sob a Reforma Veiga Simão e durante a revolução visava democratizar Portugal vem, com o projecto do Ensino Superior Politécnico e o envolvimento do Banco Mundial, a dar prioridade à preparação de Portugal para entrar na CEE." (Stoer, Stephen, 1986: 240). Efectivamente, tanto para o governo como para o Banco Mundial, a educação constituía um meio necessário à formação de técnicos, de forma a normalizar a economia de Portugal e, deste modo, ter acesso à Comunidade Económica Europeia - o que veio a acontecer em Janeiro de 1986. Foi principalmente desde essa altura "... que o apelo sistemático ao contexto internacional, sobretudo como forma de legitimação de decisões políticas e educacionais, mais fortemente se faz sentir." (Afonso, Almerindo, s/d: 65). A OCDE dispõe de equipas de certificação para avaliar as condições de pesquisa das universidades nos países em desenvolvimento, e as suas certificações têm um peso substancial no financiamento local, na acreditação e na avaliação institucional. 32 No mesmo ano, com a Lei de Bases do Sistema Educativo, verifica-se esta orientação da educação para o mercado de trabalho. Especificamente em relação ao ensino superior, essa Lei aponta como um dos principais objectivos "Formar diplomados nas diferentes áreas do conhecimento, aptos para a inserção em sectores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade portuguesa..." (citado em Amaral et ai, 2001: 12). Este contexto implica e traduz, necessariamente, uma relação de dependência das políticas educativas portuguesas perante aqueles outros estados de economia de mercado, ou seja, a hegemonia do mercado relativamente à educação. Assim, quando é aprovada na Assembleia da República, em 1988, a Lei de Autonomia para as Universidades portuguesas - sendo-lhes concedidas autonomias estatutária, científica, pedagógica, administrativa, financeira e disciplinar - essa Lei prevê também que seja institucionalizado um mecanismo de avaliação das mesmas Universidades24. Ora, segundo Neave e Van Vught (1991), o discurso da auto-regulação das instituições reverte mais a favor de um maior poder para o Estado sobre estas do que numa verdadeira autonomia para as mesmas instituições. Paralelamente, com o sistema de avaliação do ensino superior legitimado pelo discurso político, direcciona-se o desempenho das várias instituições nos termos determinados pelo centro de poder - trata-se do surgimento do "Estado avaliador", segundo Neave (1988). Neste contexto e em Portugal, diversos autores defendem que, desde que foi aprovada a Lei de Autonomia para as Universidades até aos dias de hoje, o Estado exerce controle sobre o ensino superior servindo-se daqueles seus dois instrumentos (a autonomia e a avaliação), acabando condução/avaliação política pelo centro de poder regulador que opera um controle remoto, por fazer uma trata-se do Estado encoberto pela aparente descentralização25 o qual, por sua vez, é também objecto de controle no âmbito das políticas da economia de mercado. Em Novembro de 1994 a Assembleia da República aprovou um sistema nacional de avaliação da qualidade para aplicar a todas as instituições de ensino superior. 25 Até à segunda metade dos anos 80, o Estado era claramente centralizador no que se referia às decisões fundamentais relativas ao ensino superior - concentrava-as em órgãos políticos e 33 Neste âmbito, o período que decorreu desde a aprovação da Lei de Autonomia para as Universidades é caracterizado por um forte pendor económico na educação, bem como pela expectativa de o continuar a ser nos anos que se irão seguir. Nesse mesmo 1988, o então ministro da educação Roberto Carneiro apresenta os factores que irão determinar o desenvolvimento do ensino superior em Portugal nos próximos vinte anos, entre os quais se contam "... o reforço e consolidação das estruturas e actividades do tipo empresarial, e a ligação institucional da "escola" com unidades produtivas..." (Carneiro, Roberto, 1988: 19). E acrescenta que se deverá criar um tipo de investigação interdisciplinar que sirva para intervir "na vida económica" (idem: 21). A vida económica prevalece relativamente à educação, ou seja, esta última é condicionada pela primeira. A consolidação da autonomia das instituições de ensino superior, acompanhada de uma maior responsabilização do seu papel no desenvolvimento económico do país, bem como uma cada vez maior assunção da ligação dos seus planos de desenvolvimento com as regiões onde se localizam, parece ser inegável. Nesta perspectiva, ao afirmar-se que este processo se realiza com base nos objectivos da política nacional, podemos compreender que esta política nacional e respectivos objectivos se constroem no âmbito das políticas e dos programas da União Europeia - isto é, no âmbito de políticas de Mercado. Segundo Roger Dale, 2001 26 , a governação educacional cabe ao controlo do estado que é, por sua vez, controlado externamente através de agendas estabelecidas pela economia política global: "... todos os quadros regulatórios nacionais são agora, em maior ou menor medida, moldados e delimitados por forças supranacionais, assim como por forças político-económicas nacionais. E administrativos exteriores ao sistema - mas, com a autonomia do ensino superior, passou-se a ter este Estado regulador. 26 Roger Dale desenvolveu uma teoria baseada em trabalhos recentes sobre economia política internacional, denominada por agenda globalmente estruturada para a educação (AGEE) - que se caracteriza essencialmente pela assunção de que é a mudança de natureza da economia capitalista mundial a força directora da globalização, e considera a existência de forças económicas que operam supra e transnacionalmente, determinando assim as políticas educativas dos Estados. 34 é por estas vias indirectas, através da influência sobre o estado e sobre o modo de regulação, que a globalização tem os seus mais óbvios e importantes efeitos sobre os sistemas educativos nacionais." (Dale, 2001: 18). Pelo que temos vindo a apresentar, podemos consider que, desde os fins dos anos 60 em Portugal, e através de processos de globalização, existe um ensino superior meritocrático27 - como se verifica nas democracias neoliberais dos referidos países da Europa - onde a economia é privilegiada e o Estado caminha em consonância com ela, sendo as políticas educativas construídas e implementadas neste quadro. Paralelamente, considerando a população discente actual no ensino superior em Portugal em termos de homogeneidade/heterogeneidade sociocultural, não ignoramos que aqui se verifica um maior grau de homogeneidade relativamente aos outros graus de ensino, onde a selecção se foi processando: "Lê-se nas oportunidades de acesso ao ensino superior o resultado de uma selecção que, ao longo do percurso escolar, se exerce com um rigor muito desigual segundo a origem social dos sujeitos; na realidade, para as classes mais desfavorecidas trata-se pura e simplesmente de eliminação." (Bourdieu, Pierre; Passeron, Jean-Claude in Grácio, Sérgio; Miranda, Sacuntala; Stoer, Stephen, 1982: 41). Contudo, existe diversidade neste nível de ensino em Portugal - como observou Sedas Nunes nos fins dos anos 60 (e que já referimos) - a qual tem vindo constantemente a aumentar: "... diversidade progressivamente, vai tendo maior representação sociocultural no ensino que, superior." (Cortesão, Luiza; Stoer, Stephen, 1999: 44). Ora, no actual contexto educativo que apresentamos - de economia de mercado - com um tipo de ensino meritocrático de igualdade de oportunidades de acesso ao ensino superior, como será gerida esta diversidade discente? Qual o papel dos professores de ensino superior em termos de práticas educativas e respectivas implicações em termos de reprodução/produção e domesticação/emancipação dos alunos? * Com excepção para o período revolucionário de 1974-1976, como vimos no decorrer do trabalho. 35 Il PEDAGOGIAS NA UNIVERSIDADE 36 "A Universidade do nosso tempo foi, ainda, uma Universidade fundada na Idade Média sobretudo em dois pontos muito importantes: a inexistência de livros e a caridade. Quem queria estudar não tinha livros à disposição, quando muito havia em alguma biblioteca um códice manuscrito, preso com uma corrente a uma estante, que tinha de ser consultado ali, à distância permitida pela corrente, com as pessoas atrás a querer 1er o manuscrito sem poder. Houve, então, naturalmente, a ideia de quem possuía um livro podia lê-lo a outros acrescentando os comentários que a leitura lhe despertasse e é por isso, ainda, que em português o professor universitário se chama lente, o que significa aquele que lê (...) Hoje as coisas mudaram completamente, há livros para todos (...) a Universidade de hoje tem os livros que quer. Por outro lado, há os meios técnicos que substituem os livros." (Silva, Agostinho da, 1998: 108-109). 37 PEDAGOGIAS NA UNIVERSIDADE: APRESENTAÇÃO Apesar das mudanças que Agostinho da Silva, 1998, refere, e que não justificariam hoje aquele tipo de ensino, verifica-se que ocorrem ainda com frequência, no ensino superior, práticas pedagógicas daquela natureza - tratase do chamado método transmissivo, o qual foi considerado, no fim dos anos 60, o mais utilizado pelos docentes nas universidades portuguesas "O tipo de ensino que predomina em Portugal, por larga margem, é o escolástico."^ (Nunes, A. Sedas, 1969: 98) - e ao qual este autor atribuiu características de indução de passividade nos alunos e de selecção social. Actualmente coexistem no ensino superior outras práticas pedagógicas que se pretendem de cariz menos reprodutor e mais emancipatório: é o caso da educação activa e/ou investigativa - que se traduz por um maior grau de participação activa dos alunos na construção das próprias aprendizagens. Mas nem um nem outro daqueles dois modelos pedagógicos consideram a heterogeneidade que actualmente existe no ensino superior, pelo que se revela necessário procurar outro modelo pedagógico mais adequado a esta nova realidade. Esse outro modelo poderá encontrar-se na educação contextualizada - que recorre à construção de dispositivos de diferenciação pedagógica2 - porque considera os alunos diferentes entre si enquanto indivíduos com percursos de vida singulares, procurando o professor valorizar e rentabilizar as suas diferenças, no processo educativo, através daqueles dispositivos. 1 O método transmissivo é referido por Sedas Nunes como ensino escolástico. Ignoramos se actualmente se mantém como prevalecente no ensino superior em Portugal; no entanto, nas universidades francesas isso acontece, pelo menos até ao fim dos anos 90: "... não podemos deixar de sublinhar que se trata do modelo pedagógico mais usado e aquele a que a maioria dos professores da Universidade permanecem fiéis." (Bireau, Annie, 1995: 47). 2 Consideramos as práticas pedagógicas e respectivas denominações com base em Cortesão, Luiza; Stoer, Stephen Acerca do Trabalho do Professor: Da Tradução à Produção do Conhecimento no Processo Educativo in Revista Brasileira Educação, n° 11, 1999: 33-45). 38 Assim, considerando sobretudo que este terceiro modelo não parece encontrarse actualmente estabelecido, naqueles termos, para o ensino superior em Portugal3, neste capítulo desenvolveremos os dois primeiros modelos pedagógicos referidos: o método pedagógico transmissivo; e a educação activa e/ou investigativa. O MÉTODO PEDAGÓGICO TRANSMISSIVO Noção Fundamental O método pedagógico transmissivo é também conhecido por método pedagógico tradicional. Ambos os termos utilizados - transmissivo e tradicional - terão tido origem no tipo de ensino praticado nas primeiras universidades da Idade Média: o ensino escolástico que se fazia através da aula magistral ou de expositio (expositiva) onde o lente lia os respectivos textos para os alunos que o escutavam4. Tal como Coménio afirma, "a boca do professor é a fonte de onde para eles (alunos) correm os arroios do saber (...) todas as vezes que notam que esta fonte se abre, se habituem a colocar logo debaixo dela o vaso da atenção, para que nada passe sem entrar no vaso" (cit in Not, Louis, 1991: 282) - estabelece-se, assim, uma correspondência entre os alunos e os vasos/receptáculos do saber/conhecimento que o professor verte sobre eles. 3 Também, porque a educação contextualizada ou dispositivos de diferenciação pedagógica nos merece um desenvolvimento posterior mais detalhado devido à sua eventual adequação à nova realidade do ensino superior em Portugal - o que faremos no capítulo seguinte. 4 Para além destas aulas de expositio havia, também na Idade Média, outras conhecidas por quaestiones disputatae as quais consistiam em debates que envolviam professor e alunos, e que eram muito procuradas por estes últimos: "Se lembramos do exitoso magistério de Abelardo, é seguramente por suas quaestiones, que atraíam levas e levas de estudantes para as suas aulas." (Castanho, Sérgio in Veiga, lima et ai (org.), 2000: 22). 39 Trata-se, na terminologia freireana, da educação bancária, na qual aos alunos cabe fundamentalmente um papel passivo de assimilação dos conteúdos que o professor transmite, podendo-se caracterizar a relação professor-alunos como hegemónica no que se refere à figura do professor. Ou seja, este é o sujeito do processo educativo, e aqueles os objectos desse mesmo processo: "O educador é o que educa; os educandos, os que são educados. O educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem. O educador é o que pensa; os educandos, os pensados. O educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente. O educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados. O educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos, os que seguem a prescrição. O educador é o que actua; os educandos, os que têm a ilusão de que actuam, na actuação do educador. O educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele. O educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele." (Freire, Paulo, 1987: 59). De referir que este modelo pedagógico deverá ao desenvolvimento das ciências sociais e humanas - particularmente à Psicologia Experimental - no século XIX, a legitimação científica desta sua característica fundamental. No âmbito da teoria behaviorista, as experiências com animais sobre reflexos condicionados5 serviram de base ao desenvolvimento de uma pedagogia planificada em que os indivíduos/alunos assimilariam os conhecimentos apenas através de prémios e castigos, já que o comportamento seria um 5 Experiências levadas a cabo por Ivan Pavlov, Edward Thorndike e Burrhus Skinner nas quais foram usadas animais (cão e ratos, respectivamente), e que permitiram concluir que a determinado estímulo correspondia uma determinada resposta - trata-se da teoria behaviorista do estímulo-resposta (E-R). 40 produto exclusivo do meio. Com este pressuposto, o processo de ensino/aprendizagem caberia totalmente ao professor - sujeito activo - que teria a responsabilidade de o transmitir ao aluno o qual teria como única função assimilar essa transmissão - objecto passivo. 6 Segundo Not, o modelo transmissivo assenta em dois pressupostos: "o primeiro é o de que se pode, a partir do exterior, exercer sobre alguém uma modelação da sua inteligência ou do seu saber"; o segundo "que tem como possível a transmissão do saber daquele que sabe para aquele que o ignora." (Not, Louis, 1991: 14). Com esta característica fundamental e geral do modelo pedagógico transmissivo - o educador como sujeito activo, e o educando como objecto passivo - relacionam-se outras mais particulares que identificam o mesmo modelo, as quais passamos a desenvolver incluindo-as em quatro sub-títulos: as aulas; os alunos; os professores; a adequação/desadequação ao contexto actual. As Aulas As aulas são expositivas, e utiliza-se o método dedutivo de ensinoaprendizagem - percorre-se um caminho do geral para o particular e do abstracto para o concreto. Os conteúdos transmitidos deste modo pelo professor aos alunos resultam dos conhecimentos e valores tradicionais acumulados pela humanidade ao longo do tempo, e tidos como verdades absolutas. Para além da exposição das matérias, o professor pode também apresentar exercícios práticos - os mesmos para todos os alunos - cujas resolução e 6 Burrhus Skinner, adepto deste modelo transmissivo, sustenta que a escola deve ser autoritária porque tem que inculcar nos alunos os comportamentos sociais adequados. 41 repetição, levadas a cabo individualmente pelos alunos, servem para facilitar e verificar a memorização dos respectivos conteúdos. Os conhecimentos apresentam-se fragmentados de modo a serem mais facilmente memorizados. Para isso, recorre-se habitualmente a manuais - a chamada sebenta, no ensino superior. Actualmente, o recurso às novas tecnologias - como os audiovisuais de modo geral - tem vindo a conquistar espaço na apresentação destas aulas, como é o caso da utilização do computador que pode tornar mais interessantes a transmissão e a resolução de exercícios do ponto de vista da imagem, mas que não altera esse carácter transmissivo já que a concepção pedagógica que lhe subjaz é a que tem vindo a ser referida, com o professor como sujeito da acção educativa: "...novas técnicas, tais como os programas pedagógico-informáticos (...) muitas vezes, certas práticas que podem parecer novas inserem-se perfeitamente no quadro do modelo tradicional." (Bireaud, Annie, 1995: 48). Neste contexto, e segundo Jean Vial, 1982, refere-se que o ensino programado pode ser considerado como um melhoramento do ensino transmissivo. Os alunos Os alunos são representados como um grupo homogéneo, sendo os conhecimentos transmitidos a uma mesma sequência e a um mesmo ritmo para todos. Cada aluno "nunca aparece tal como é enquanto indivíduo, com as suas particularidades e a sua história própria, mas como deve ser, não só em relação a um ideal que pode atingir pessoalmente, mas sobretudo em relação à imagem que se tem, em todos os domínios, da perfeição." (Gilbert, Roger, 1976: 41). Para controlar e avaliar o seu grau de perfeição, ou seja, o seu desempenho em termos da acumulação e da retenção dos conteúdos considerados fundamentais existem os exames - que assumem a forma de interrogatórios escritos e orais (dos respectivos resultados positivos ou, pelo contrário, negativos, depende o prosseguimento, ou não, do aluno no seu percurso escolar). 42 Refira-se que esta capacidade retentiva que se premeia alarga-se a outras atitudes: um bom aluno é aquele que, porque é um receptáculo de saberes, é um executor disciplinado das ordens do professor cujas normas e valores são também os seus. Trata-se do aluno-objecto, como já referimos. Neste contexto, a relação professor-aluno decorre num clima de grande autoritarismo, em que ao aluno é pressuposta e exigida obediência em relação ao professor e às normas e aos valores vigentes que ele representa. Os professores Na sequência do que temos vindo a apresentar cabe ao professor, neste modelo transmissivo, o papel central no processo de ensino-aprendizagem ele é tido como o agente da transmissão dos conhecimentos encerrados nos livros e, como tal, o dono da verdade. Um bom professor é um facilitador das aprendizagens que os alunos devem adquirir, já que ele reúne - para além de outras competências fundamentais tais como uma boa preparação científica a clareza e a segurança na exposição (o que suscita o interesse da audiência), bem como a precisão, a facilidade e a rapidez necessárias para dar a conhecer aos alunos, em tempo considerado reduzido, trabalhos científicos que estes demorariam por si-próprios muito tempo a assimilar (e até o poderiam fazer com erros): "Uma lição bem dada, qualquer que seja a disciplina, proporciona aos alunos o resultado de um longo trabalho da inteligência humana. PoupaIhes lentos e penosos esforços de pesquisa pessoal. Em poucos minutos (o professor) resume o conteúdo de um grande livro; dele selecciona as noções essenciais; desenvolve uma ciência já pronta" (Compayré, G. citado em Not, Louis, 1991: 15). Crê-se assim, nesta perspectiva, que os alunos não devem ser confrontados directamente com o saber - isso acontece exclusivamente através do discurso do professor (quer seja oral, quer seja escrito nos manuais). Paralelamente, o professor apresenta-se como uma figura autoritária e disciplinadora, e exerce sobre os seus alunos uma acção modeladora no que se refere à assimilação 43 das normas e valores sociais, equipando-os assim para enfrentarem a vida futura. Esta centralidade do professor que o modelo pedagógico transmissivo pressupõe é conhecida como magistercentrismo: "... a função magistral (...) define-se pelo direito e pelo dever daquele que tudo sabe e tudo pode para educar e instruir aquele que nada sabe e nada pode. (...). É o que se chama magistercentrismo." (Gilbert, Roger, 1976: 39). Adequação/Desadequação ao Contexto Actual As críticas ao modelo pedagógico transmissivo apontam sobretudo para a separação entre os conteúdos leccionados e as realidades vividas por muitos alunos, bem como o alheamento ao meio social em que estes se inserem. Isto, acrescido da sobrecarga de informação a qual também, muitas vezes, não é compatível com os interesses destes alunos o que conduz, frequentemente, a que determinadas matérias se lhes apresentem como destituídas de significado. Assim, o ensino/aprendizagem deste tipo - o saber vertido, pelo professor, para os alunos/receptáculos - decorre mecanicamente e é passivo, restringindo-se à memorização por imitação e repetição dócil por parte dos alunos sem ocorrer, necessariamente, a compreensão daqueles conteúdos já que "a organização do pensamento e a estruturação do saber resultam, essencialmente, da actividade do sujeito" (Not, Louis, 1991: 16). Neste contexto, Francisco Varela refere que existirá um elo circular entre acção e saber - a que chama enacção - e defende que a aprendizagem só ocorrerá se também ocorrer acção por parte daquele que se pretende que aprenda: "A ideia fundamental é (...) que as faculdades cognitivas se encontram inextricavelmente ligadas ao historial do vivido..." (Varela, Francisco citado em Bireaud, Annie 1995: 68). Nesta perspectiva, admitindo que cada indivíduo terá 44 que construir activamente o seu próprio saber, consideramos que, no modelo transmissivo, se "o aluno aprende, é como executante de tarefas que o que ensina lhe prescreve e que o fazem agir" (Not, Louis, 1991: 19)7. Também, e contrariamente ao que as teorias behavioristas preconizam, os indivíduos não reagem de modo absolutamente idêntico quando expostos a um mesmo estímulo exterior, ou a um mesmo reportório de recompensas e castigos, já que cada um deles transporta consigo um diferente "historial do vivido" (Gilbert, Roger, 1976: 61-62)8. Mas, com a pedagogia transmissiva, assente nesta corrente behaviorista, pretende-se a homogeneidade dos indivíduos - através daquele processo de recompensas (quando o indivíduo se comporta de acordo com os cânones socialmente aceites - neste caso, assumindo-se como aluno-objecto- receptáculo) e de castigos (quando o indivíduo se desvia dos cânones socialmente aceites - neste caso, não se assumindo como aluno-objectoreceptáculo). Trata-se de mecanismos de controle social que promovem a homogeneidade, e cujo resultado se traduz no afastamento dos indivíduos que não se perfilam naquele grupo pré-estabelecido rejeitando, assim, a diversidade. Como tal, a utilização deste modelo opõe-se ao desenvolvimento de uma educação para todos. Ora, no actual contexto de universidade de massas em Portugal - que, desde os anos sessenta, vem comportando índices crescentes de heterogeneidade no que se refere à sua população estudantil - a utilização do modelo pedagógico transmissivo, nesta perspectiva, revela-se inegavelmente desadequado. 7 Mesmo esta acção do aluno no sentido em que ele próprio resolve exercícios relacionados com a matéria, por exemplo, depende da iniciativa do professor - que os prescreve - e não da sua. 8 Expressão usada por Francisco Varela. Relativamente a este "historial do vivido" - e no contexto do ensino superior de massas que tratamos neste trabalho - será de referir que a diversidade dos alunos e respectivas idades (desde jovens adultos a adultos) traduzirá certamente também diversos percursos no que diz respeito a quantidade e a qualidade de experiências. 45 Considerando, também, a submissão do aluno ao professor e ao que essa figura representa (e que já referimos) aliada à concepção do primeiro como objecto a modelar do exterior - negando-lhe o estatuto de sujeito enquanto fonte de iniciativas e acções - relaciona-se mais com mecanismos de domesticação do que de emancipação. Mas o período que actualmente vivemos - desde o fim do milénio anterior até este início do terceiro milénio, e habitualmente denominado pós-fordista - temse vindo a caracterizar pela exigência e procura de indivíduos reflexivos, críticos, flexíveis, criativos, autónomos, capazes de se converterem em sujeitos do seu próprio desenvolvimento pessoal e profissional. Ou seja, estes são indivíduos cujo grau de emancipação não se nos afigura compatível com a formação que o modelo pedagógico transmissivo pode proporcionar. Annie Bireaud, a propósito do ensino superior em França, refere: "As modificações nas suas funções, público e estruturas levam a que o modelo pedagógico tradicional cada vez mais degradado se torne também cada vez mais inadequado." (Bireaud, Annie, 1995: 15)9. Pelo que acabámos de expor - e tendo por base o contexto de ensino superior de massas - podemos afirmar que o modelo pedagógico transmissivo se apresenta também actualmente desadequado em Portugal. 9 No entanto, este é o método mais utilizado nas universidades francesas: "... não podemos deixar de sublinhar que se trata do modelo pedagógico mais usado e aquele a que a maioria dos professores da Universidade permanecem fiéis." (Bireaud, Annie, 1995: 47). Ignoramos se esta situação ocorre também, actualmente, em Portugal. Com base no estudo de Sedas Nunes sobre as Universidades portuguesas, sabemos que no fim dos anos sessenta era este o método pedagógico prevalecente: "O tipo de ensino que predomina em Portugal, por larga margem, é o escolástico." (Nunes, A. Sedas, 1969: 98). 46 AS PEDAGOGIAS ACTIVAS Noção Fundamental Este modelo pedagógico surge como reacção/oposição ao modelo transmissivo ou tradicional, e é conhecido também por outras expressões - Nova Pedagogia; Pedagogia Conducionista, Pedagogia Construtivista...10. Mas importa, desde já, salientar que o que fundamentalmente as caracteriza e agrupa no conjunto das Pedagogias Activas relaciona-se com o novo papel do aluno: de objecto passivo a modelar do exterior (no modelo transmissivo) passa, agora (nas pedagogias activas), a sujeito activo e centro da acção educativa do seu desenvolvimento e da sua aprendizagem; o professor deve orientar o aluno, proporcionando-lhe as condições que favoreçam essa autoaprendizagem. A educação é tida como um processo de socialização, e deve capacitar os indivíduos para intervirem activamente na sociedade. Assim, como reacção ao modelo de ensino transmissivo e ao que aquele pressupunha surge, nos fins do século XIX (até cerca dos anos 20 do século XX), o movimento da chamada Escola Nova. Nesta altura, o contexto era de ideias novas - relacionado com os últimos avanços da psicologia e da biologia - como "trocas com o meio, exigências de adaptação, papel da acção, carácter global das situações, recapitulação pelo indivíduo das etapas transpostas pela espécie, exigência de liberdade e repúdio dos constrangimentos" (Not, Louis, 1991: 94). Crê-se que é a educação que se deve adaptar ao indivíduo (e não o contrário, como preconizava o modelo anterior), já que cada indivíduo é o 10 Existem outras expressões para além das consideradas, e que também se inserem no conjunto das pedagogias activas - por exemplo: moderna; renovada; livre; progressista; operativa; institucional;... - mas aquelas são as mais frequentes na bibliografia consultada. Nomes relacionados com estas pedagogias activas são: Maria Montessori; Decroly; Cousinet; Claparède; Dewey; Freinet; Lobrot... Ora, no âmbito do presente trabalho, importa sobretudo apresentar as grandes linhas do referido modelo pedagógico no âmbito do ensino superior, pelo que não iremos alargar-nos mais do que aquilo que considerarmos fundamental na apresentação do mesmo modelo. 47 resultado de um conjunto de fases que se sucedem e justapõem numa determinada sequência desenvolvimental, sendo que cada uma destas fases apresenta características muito próprias. Assim, "A educação deve adaptar-se à marcha da evolução mental." (Claparède, 1940: 101-102). Dá-se grande relevância à acção do educando na própria aprendizagem, acreditando-se que o aprender implica necessariamente o fazer - se, há um século atrás, já Rousseau defendera que a educação deveria ser fundada na própria acção do educando, é agora neste contexto favorável que essa convicção se realiza. Para além deste da acção, outros conceitos/atitudes se relacionam de perto com a nova corrente pedagógica: a interacção da escola com o meio, e viceversa - com as respectivas aberturas e trocas; a liberdade da escola - que deve ser autónoma e democrática; a individualidade - o reconhecimento do aluno como sujeito autónomo e centro do processo pedagógico; a colectividade - a valorização da cooperação e do trabalho em grupo como base do processo de formação dos alunos enquanto indivíduos. Trata-se, portanto, de uma escola aberta, descentralizada e crítica da sociedade11. Depois dos anos 20 e a partir daquela Escola Nova, deu-se à acção na aprendizagem um peso ainda mais pronunciado com a chamada Escola Activa. Nos anos 60 e baseada nas teorias cognitivistas principalmente de Jean Piaget, de Bruner, de Novak, e de Eliot, surge a Escola Construtivista - que considera a necessidade de cada aluno construir a própria aprendizagem através de um percurso passível de o "ensinar a aprender". Não se contempla tanto a aprendizagem de conceitos e de conteúdos culturais como unidades fechadas, mas antes os procedimentos e estratégias cognitivas que permitem realizar essa própria aprendizagem. Nos anos 70 surgiu e desenvolveu-se a Escola Conducionista12. Nesta, pretendia-se um ensino disciplinado com elevados padrões de eficácia cujo modelo era a pedagogia por objectivos como "... uma estratégia que organiza acções em ordem a obter um resultado bem definido; a acção não encontra 11 A mudança ocorrida no processo educativo foi tão marcante que Claparède a comparou com a que Copérnico realizou no domínio da Astronomia. 12 Baseada nas teorias behavioristas (de John Watson, Skinner e outros) e na reflexologia (de Pavlov) para além das abordagens sistémicas do ensino. Embora se considere uma pedagogia activa, observa-se alguma semelhança entre esta corrente e o modelo pedagógico transmissivo. 48 finalidade em si própria, mas no efeito que permite obter. Trata-se de uma estratégia de eficácia..." (Bireaud, Annie, 1995: 137) "... onde os únicos resultados válidos e dignos de consideração são os que encontravam previstos nos objectivos." (Guigou, J. citado em Bireaud, Annie, 1995: 151). Assim, a pedagogia por objectivos caracteriza-se essencialmente pela especificação detalhada dos objectivos e sua tradução em termos de comportamentos observáveis. Neste tipo de pedagogia, o processo educativo decorre num contexto de tecnologia programada de ensino, cabendo ao professor o papel de executante da técnica utilizada, enquanto que os alunos devem reagir adequadamente aos estímulos apresentados sob a forma de actividades. Procura-se apenas adequar a escolha do programa ao respectivo ritmo de aprendizagem dos grupos de alunos. A característica fundamental e geral das pedagogias activas - os alunos como sujeitos activos construtores das próprias aprendizagens e considerados enquanto grupos homogéneos nas várias fases que atravessam - relaciona-se com outras mais particulares que identificam este modelo, e que passamos a desenvolver incluindo-as em quatro sub-títulos: as aulas; os alunos; os professores; a adequação/desadequação ao contexto actual. As Aulas Valoriza-se a acção dos alunos nas suas próprias aprendizagens que ocorrem através da descoberta - com base nas experiências e realidades concretas dos alunos inseridos numa situação social. Recorre-se, assim, a um caminho indutivo que conduz a acção e o pensamento do particular para o geral, e do concreto para o abstracto. Por isso, o ensino baseia-se preferencialmente em determinadas actividades realizadas pelos alunos - de acordo com o seu nível de desenvolvimento cognitivo - tentando-se adaptar o ensino ao aluno. Nesta perspectiva, os livros de texto são utilizados pelos alunos como um recurso nas suas experiências e actividades. 49 Acrescenta-se que, pelas próprias especificidades (já referidas) das escolas construtivista e conducionista, existem também especificidades nas respectivas aulas: cuidada planificação e organização das actividades dos alunos (que conduzem à descoberta) e dos recursos (tempo, materiais), e um atento controlo (que permite observar e reflectir as práticas, no sentido de continuamente as melhorar) - escola construtivista; na escola conducionista, a pedagogia por objectivos traduz-se numa compartimentação do saber em pequenas unidades/conteúdos previamente divididos - em função de objectivos específicos que possam vir a ser medidos e, como tal, expressos em condutas observáveis em cada objectivo - os quais não têm necessariamente relação com quaisquer conhecimentos prévios dos alunos. Os alunos O que mais identifica as pedagogias activas é o papel central do aluno como sujeito activo - assume especial importância a actividade do que aprende, realizador das suas próprias aprendizagens e do seu desenvolvimento no processo educativo, o qual se desenrola num contínuo estabelecimento de trocas com o meio. Neste contexto, as características que um bom aluno deve ter relacionar-se-ão com estas atitudes: criatividade, iniciativa, liberdade individual, acção, descoberta. Importa, mais do que chegar ao resultado de um problema, percorrer o respectivo processo para lá chegar - muitas vezes, existem vários caminhos tendo o aluno, para isso, que se confrontar muitas vezes com situações novas para si. Se este é tido como o protagonista do seu próprio desenvolvimento, isso não significa que o faça isoladamente - pelo contrário, a socialização é fundamental nessa construção de cada indivíduo e, como tal, as actividades devem ser realizadas, sempre que possível, em grupo. A avaliação de que o aluno é alvo não ocupa um papel importante no processo educativo - prescinde-se frequentemente - mas, quando existe, incide mais no percurso de aprendizagem do que propriamente no resultado final desse 50 percurso - valoriza-se mais as capacidades adquiridas pelos alunos naquele percurso, e não tanto as suas condutas observáveis - e tende a expressar-se qualitativamente. Contrariamente, na corrente conducionista avaliam-se os alunos através das suas condutas observáveis já que é com base na realização de cada uma das etapas do processo de ensino/aprendizagem - que se crê poderem ser verificadas através daquelas condutas - que se estabelece a continuação do mesmo processo, avançando para o passo seguinte. Neste contexto, todas as etapas são objecto de controlo através de instrumentos fiáveis de avaliação. Os professores O professor, embora já não seja o protagonista de todo o processo de ensinoaprendizagem, revela-se aí no entanto uma figura não prescindível - j á que lhe cabe o papel de mediador e facilitador na conquista que os alunos devem fazer dos próprios saberes. Compete-lhe programar, orientar, organizar, proporcionar recursos e animar as actividades realizadas pelos alunos - e é capaz de, por um lado, ajudar o aluno a relacionar os novos conhecimentos com os anteriores e, por outro lado, de deixar que este controle todo o processo: este professor "organiza o meio e esconde-se na sombra" (Snyders, 1974: 119). Na organização das várias actividades de aprendizagem pelo professor deve existir sempre subjacente a preocupação de estas se adaptarem às características psicológicas daqueles grupos de alunos - que, portanto, tem que conhecer - para, desse modo, desenvolver mais eficazmente as capacidades intelectuais dos mesmos. Relacionada com esta, outra preocupação fundamental que o professor deve ter é a de fomentar nos alunos o desejo e a capacidade de aprender continuamente (pela própria experiência, e pensando no futuro com que se irão confrontar). No caso da pedagogia por objectivos, a função do respectivo professor - que se aproxima da de um burocrata - inclui a verificação sistemática daquilo que os alunos conseguiram atingir com referência aos respectivos objectivos 51 previamente delineados: "... o discurso sobre a eficácia do sistema educativo mostra que doravante se considere esse sistema como um sector de produção igual a qualquer outro e do qual, portanto, convém aperfeiçoar o mais possível os resultados. Os professores teriam tendência para a calcular a partir da aprendizagem realizada." (Bireaud, Annie, 1995: 14-15). Adequação/Desadequação ao Contexto Actual No contexto actual de uma economia de mercado global - que vários autores consideram pós-fordista para a distinguir da anterior caracterizada pela organização industrial fordista - o tipo de pedagogias activas afigura-se adequado no sentido de pretender formar indivíduos/trabalhadores flexíveis e criativos, capazes de trabalhar em equipa, gerando e aplicando eficazmente o conhecimento. No entanto, neste modelo pedagógico e segundo Annie Bireaud (1995: 153), a aprendizagem das matérias consideradas curricularmente importantes nas várias áreas científicas do ensino superior nem sempre se poderá fazer, na sua totalidade, por parte dos alunos - a progressão nas várias etapas do ensino depende do ritmo da actividade destes (para passar ao objectivo seguinte, é preciso que o anterior tenha sido cumprido). Também, há aprendizagens que não se podem fazer apenas pela actividade dos próprios alunos, mas que exigem a intervenção directa e activa da figura do professor para a sua realização - sob pena de, a não ser assim, se verificarem falhas na aquisição dos saberes considerados importantes e necessários. Daqui resultará, não raras vezes, a adulteração de funcionamento deste modelo: por exemplo, é suposta uma pedagogia centrada nos alunos, mas observa-se uma formação rígida onde a iniciativa daqueles é praticamente nula. Assim sendo, a adequação do funcionamento do modelo àquele contexto não se verificará. 52 Para além disto, e na perspectiva do ensino superior de massas em Portugal que contém uma crescente diversidade sociocultural discente - as pedagogias activas não identificam essa diversidade, considerando-se os alunos enquanto grupos homogéneos. Como tal, e tendo em vista o desenvolvimento da cidadania que pressupõe necessariamente a observação da heterogeneidade existente na sala de aula, este modelo pedagógico não se revela adequado ao contexto actual do ensino superior em Portugal. QUE (OUTRAS) PEDAGOGIAS? Como temos vindo a expor, nem as pedagogias transmissivas nem as pedagogias activas se revelam adequadas ao contexto do ensino superior de massas em Portugal, já que nenhuma delas identifica e considera a heterogeneidade que actualmente o caracteriza. Tal como acontece aqui, também em França "... o sistema educativo ignora o projecto pessoal do aluno, assim como o do estudante universitário. É o que diz Louis Not: "O nosso ensino procede como se ignorasse que todo o aluno traz consigo um projecto relativo à realização da sua pessoa; reclamamos deles actos que não se inscrevem em nenhuma perspectiva pessoal." (Bireaud, Annie, 1995: 162). Para reverter esta situação, afigura-se necessário procurar/encontrar outras pedagogias para o ensino superior capazes de considerar cada "perspectiva pessoal". Ou seja: "... como responder a esta pergunta: para "fazer passar" uma determinada noção, o que é que os actores da situação vão ter de fazer (...)? Para se dar uma resposta a essa questão (...) os principais elementos a ter em conta são as características do público: características genéricas e, sobretudo, características individuais. (Bireaud, Annie, 1995: 64). 53 Estas outras pedagogias de que se fala traduzir-se-ão numa "educação contextualizada" - na qual se considera a heterogeneidade na sala de aula - e onde cada aluno é tido como um indivíduo com características particulares nos domínios social, cultural e antropológico, procurando o professor rentabilizar essas características através de "... dispositivos de diferenciação pedagógica (...) propostas educativas que visam constituir uma "boa ponte" na ligação necessária entre a cultura da escola e a da comunidade envolvente, comunidade essa representada através da presença dos alunos na instituição." (Stoer, Stephen e Cortesão, Luiza, 1999: 60), e "... cujo objectivo final é o domínio por parte de cada aluno e aluna de um bilinguismo cultural (...) e o usufruto activo de cidadania numa sociedade, como a actual, baseada na economia de mercado." (idem: 88). Este modelo pedagógico tem vindo a ser desenvolvido por Stephen Stoer e Luiza Cortesão, e é apresentado mais detalhadamente neste trabalho no capítulo seguinte: III. Enquadramento Diferenciação Pedagógica. 54 Conceptual dos Dispositivos de Ill ENQUADRAMENTO CONCEPTUAL DOS DISPOSITIVOS DE DIFERENCIAÇÃO PEDAGÓGICA 55 "É (...) esta preocupação em conseguir articular situações, por vezes aparentemente divergentes, de culturas eruditas (previstas oficialmente nos currículos) e da cultura que informa a socialização primária do aluno que estrutura as características de um "dispositivo pedagógico". Nesta caracterização, está esboçada a definição de "bilinguismo cultural" que é, afinal, a situação-limite para a consecução da qual os dispositivos pedagógicos podem (e/ou têm a intenção) de contribuir. (Cortesão, Luiza; Stoer, Stephen, 1999: 36) 56 ENQUADRAMENTO CONCEPTUAL DOS DISPOSITIVOS DE DIFERENCIAÇÃO PEDAGÓGICA: APRESENTAÇÃO O texto apresentado neste capítulo corresponde a uma selecção e compilação de conceitos presentes em vários trabalhos produzidos por Stephen Stoer e por Luiza Cortesão sobre educação intermulticultural. Estes autores desenvolveram um modelo teórico relativo a diferentes práticas pedagógicas nos diferentes níveis do sistema educativo português1 onde, para além das pedagogias transmissiva e activa, consideram um outro tipo de práticas pedagógicas a que chamam dispositivos de diferenciação pedagógica. Para a compreensão destes dispositivos, recorreremos aos conceitos necessários, com base essencialmente nos trabalhos dos mesmos autores. São estes os conceitos (tratados nos subcapítulos correspondentes): escola de massas, diversidade, heterogeneidade, falsa homogeneidade; a construção do professor monocultural ou professor daltónico cultural; o multiculturalismo benigno ou a folclorização da diferença; o professor intermulticultural e os dispositivos de diferenciação pedagógica; os campos de recontextualização pedagógica, os enquadramentos fortes e fracos e as pedagogias visíveis e invisíveis - Basil Bernstein; a educação dialógica - Paulo Freire. Passamos depois a apresentar o Quadro relativo ao modelo teórico desenvolvido por Stoer e Cortesão. 1 Incluído neste texto, no último subcapítulo - e que estamos a estudar no contexto do ensino superior. 57 ESCOLA DE MASSAS: DIVERSIDADE/ HETEROGENEIDADE/ FALSA HOMOGENEIDADE Se, até à construção da escola de massas em Portugal, podíamos caracterizar o seu público como sendo um grupo homogéneo no que se refere a classe social, género, religião, raça - maioritariamente alunos brancos católicos da classe média urbana - essa situação já não se verifica, sendo actualmente este público constituído por uma heterogeneidade considerável de indivíduos provenientes dos mais variados grupos socioculturais. Assim, no mesmo espaço físico e com o grupo original, coexistem outros alunos oriundos de meios suburbanos e rurais, de outras raças e de outros países. E, para além destas, dever-se-ão considerar ainda outras diversidades menos visíveis decorrentes da progressiva complexificação sociocultural que vem acontecendo já que, como refere McCarthy (1995) "...existem diferenças significativas entre os tipos de alunos presentes na sala de aula, desde situações muito visíveis até nuances cada vez mais subtis, mas nem por isso menos carregadas de significado. 0 conceito inicialmente quase confinado a questões étnicas tem vindo a estender-se a níveis económicos, socioculturais, religiosos, de género, ocupacionais, regionais, etc., e ainda a situações decorrentes de cruzamentos entre estas (e outras) diversidades." (Cortesão, Luiza, 2000: 62). Essas diversidades traduzem valores, interesses, percursos e modos de estar na vida característicos e resultantes das socializações de que os respectivos indivíduos foram alvo, os quais se exprimem em comportamentos, realizações e atitudes particulares, mas muitas vezes diferentes daqueles que a escola espera, exige e aceita. É que a escola meritocrática pressupõe a igualdade de oportunidades para todos - independentemente das diferenças de cada indivíduo - que se traduz na oferta das mesmas situações de ensino/aprendizagem a todos os alunos do mesmo ano escolar. Ora, o que resulta desta igualdade de ofertas educativas é a desigualdade de sucessos educativos, cabendo aos grupos socioculturais 58 mais recentes na frequência da escola, e já referidos, penalizações sob a forma de insucesso escolar, como têm revelado investigações várias no domínio das Teorias da Reprodução. Também, "... quanto maior é a distância que separa o nível sociocultural dos alunos do tipo de saberes que a escola arbitrariamente impõe como únicos aceitáveis, maior é a violência simbólica que é exercida pela escola sobre os alunos" (Bourdieu e Passeron, cit in Stoer, Stephen e Cortesão, Luiza, 1999: 36). Considera-se, pois, que esta escola que ignora a heterogeneidade que efectivamente existe na população escolar actual está desadequada, e deve ser alterada no sentido de contemplar estas diferenças: segundo Sousa Santos "num mundo que muda, que está diferente, como é que a educação pode arrogar-se ao direito de permanecer idêntica ao que era, ficando indiferente à diferença?" (cit in Stoer, Stephen e Cortesão, Luiza, 1999: 35). Observam Stoer e Cortesão que se vive um clima de mal-estar nesta escola selectiva - que serve um sistema económico assente na eficácia e na competição - tanto por parte de alunos como também de professores, estes últimos não compreendendo atitudes, comportamentos e desempenhos de alunos que traduzem a diversidade social e cultural com a qual não foram preparados para trabalhar. Neste contexto, "... se nada se inverter nos processos de organização social e educativa que acompanham (e servem) a evolução das economias cada vez mais competitivas que se desenvolvem com a globalização tudo até parece indiciar que, realmente, esta situação de malestar tenderá muito provavelmente a agravar-se." (Cortesão, Luiza, 2000: 20). Pelo que foi apresentado, e se se pretender a construção de uma escola democrática, é urgente não ignorar, mas antes considerar a diversidade da população escolar procurando formas de trabalhar com todos os alunos, e não apenas para alguns como acontece no contexto da escola meritocrática. Os professores têm nessa construção um papel fundamental pelo que o seu contacto directo com a população discente permite no sentido da identificação das "diferentes diferenças" para, depois de as conhecerem, trabalharem com todos os alunos no sentido do sucesso. 59 Mas esta tarefa apresenta dificuldades no que diz respeito, também, à figura do professor. Muitos professores portugueses foram socializados num determinado contexto histórico-sócio-cultural não propício ao trabalho com a heterogeneidade na sala de aula, como a seguir se expõe. A CONSTRUÇÃO DO PROFESSOR MONOCULTURAL OU PROFESSOR DALTÓNICO CULTURAL O advento da escola de massas em Portugal coincidiu, no tempo, com a existência de um Portugal Continental, Insular e Ultramarino no qual, por razões de natureza política, havia a necessidade de considerar todos estes territórios como um só, revelando-se esta situação na escola através de um currículo único para a grande diversidade de populações que se distribuíam pelos diferentes continentes - pretendia-se que toda e qualquer diferença sociocultural fosse ignorada/anulada, vivendo-se um clima de uma aparente homogeneidade. Foi neste contexto que muitos dos actuais professores foram socializados enquanto alunos e cidadãos, o que se terá repercutido na concepção destes professores sobre os seus alunos como se tratando de um grupo homogéneo. Também poderá acontecer que o professor "neutralize" a diferença pelo hábito de com ela se deparar em várias situações do quotidiano, e considerá-la então como algo que não constitui um problema no domínio educativo. No entanto, quando o professor reconhece a existência de grupos diferentes na sala de aula, dirige-se preferencialmente ao grupo que representa a norma cultural. A esta atitude subjaz a convicção de que é correcto preparar todos os alunos para um mercado de trabalho que se rege por regras da sociedade hegemónica que ele deve transmitir, e onde não cabem outras linguagens, outros saberes e outros valores que não sejam os das classes dominantes. Esta situação ocorre frequentemente em Portugal. 60 Nos casos apresentados os respectivos professores consideram a existência de um só grupo sociocultural na escola, no sentido em que dirigem as suas práticas pedagógicas a apenas esse grupo específico de discentes (e que já caracterizámos) - trata-se da figura do professor monocultural, figura essa directamente relacionada com a oferta de igualdade de oportunidades para todos que reverte em desigualdade de sucessos para muitos já que "... oferecer as mesmas propostas educativas a alunos culturalmente diversificados significa contribuir para a exclusão de muitos deles." (Stoer, Stephen e Cortesão, Luiza, 1999:57). Baseando-se no conceito de "arco-íris de culturas" de Boaventura de Sousa Santos, Stephen Stoer e Luiza Cortesão adoptam o conceito de "daltonismo cultural" que se traduz na "... dificuldade de ver as diferenças decorridas do "arco-íris sociocultural" que, na modernidade, sempre existe em qualquer escola." (Cortesão, Luiza e Stoer, Stephen, 1999: 35). Assim, o professor monocultural é daltónico cultural, já que não identifica a heterogeneidade dos grupos socioculturais com que trabalha. Como tal, este tipo de professor não vê qualquer necessidade de mudança nas suas práticas pedagógicas e configura um agente de reprodução social revelador da escola que existe na modernidade, e que é selectiva e meritocrática. Os efeitos do daltonismo cultural traduzem-se em graves penalizações sofridas pelos indivíduos que não pertencem àquele grupo sociocultural que a escola meritocrática considera, como é sustentado por trabalhos vários no domínio da educação, e mais particularmente a nível das teorias da reprodução: para Bernstein, os estudantes cuja socialização primária decorreu em contextos diferentes do considerado na escola são, aqui, objecto de violentas recontextualizações - a comunicação recorre apenas a códigos elaborados; há rejeição das culturas orais que muitos alunos transportam (Boaventura de Sousa Santos) impondo-se mesmo e unicamente a cultura letrada (Iturra); Bourdieu denuncia a violência simbólica que a imposição de determinados valores tidos como únicos aceitáveis constitui; e Althusser revela os efeitos perversos da escola enquanto "aparelho ideológico de estado" que exclui os indivíduos das classes desfavorecidas e serve as classes dominantes. 61 O MULTICULTURALISMO BENIGNO OU A FOLCLORIZAÇÃO DA DIFERENÇA Dentro deste quadro e com uma população sempre crescente em número e em heterogeneidade, a escola meritocrática e respectivo daltonismo cultural dos seus professores revelam-se desadequados. Contrariamente ao que tem vindo a acontecer, a nível do discurso oficial passam a ser explícitas preocupações relacionadas com a diversidade dos alunos que a escola comporta, verificandose orientações educativas no sentido de sensibilizar os professores para as diferenças na sala de aula, apelando à aceitação e ao respeito por essas diferenças. Mas, como não raro acontece, as respectivas medidas tomadas poderão classificar-se de "reformistas moderadas" (J. Chaubaux) já que se configuram apenas no mínimo de mudanças necessárias de modo a impedir grandes convulsões sociais - é o caso de várias propostas que foram surgindo no domínio da educação multicultural, e às quais está subjacente a valorização das diferenças através da simples identificação daquilo que as diferentes culturas apresentam de mais visível. Estas práticas - cuja ênfase se situa apenas nas manifestações e aspectos visíveis das culturas - são classificadas por Stoer como "folclorização das diferenças", e revelam uma atitude de separação entre estilos de vida e entre oportunidades de vida, separação essa que traduz a pretensão de considerar a primeira e de ignorar a segunda. Estas práticas de educação multicultural inscrevem-se no que tem vindo a ser conhecido como "multiculturalismo benigno" e "educação multicultural benigna" e resumem-se a "... uma tentativa "caridosa" e/ou tecnocrática de enfrentar a diversidade cultural na escola." (Stoer, Stephen e Cortesão, Luiza, 1999: 26). Assim, no contexto do "multiculturalismo benigno", a constatação das diferenças não é acompanhada de análise crítica sobre as relações de poder que sempre se verificam quando diferentes grupos socioculturais coexistem no mesmo espaço. Ora, a adopção/acção acrítica da diferença comporta riscos apesar de serem promovidas com "boas intenções", as práticas educativas que referimos têm muitas vezes efeitos contrários ao esperado e penalizantes para 62 as culturas dominadas: pretende-se uma maior afirmação dos grupos minoritários, mas resulta a acentuação de determinado exotismo; pretende-se melhorar a auto-imagem pessoal e grupai, mas resulta a falta dos saberes que a sociedade dominante exige; pretende-se consciencializar para os direitos e deveres enquanto cidadãos, mas resulta a guetização... Estes são riscos a não correr, sendo por isso necessário ultrapassar a simples constatação das diferenças existentes e passar a considerar e a compreender as relações de poder que se estabelecem entre grupos dominantes e minoritários. Especificamente no que diz respeito aos professores, para além da consciência da heterogeneidade que existe na sala de aula e das relações de poder que lhe estão associadas, devem ocorrer outras mudanças significativas que se relacionem com a aquisição de instrumentos possibilitadores de realizar trabalho com todos os alunos, no sentido do desenvolvimento de uma escola mais democrática. O PROFESSOR INTERMULTICULTURAL E OS DISPOSITIVOS DE DIFERENCIAÇÃO PEDAGÓGICA Num contexto em que se privilegia o sucesso de todos os alunos, a diversidade que existe na escola deve ser entendida pelos professores enquanto recurso e não enquanto obstáculo, como acontece na escola meritocrática - na medida em que revela as diferenças socioculturais dentro da população escolar, o que permite ao professor conhecê-las, e trabalhar no sentido desse sucesso. Importa, para isso, promover o desenvolvimento de um tipo de professor diferente do professor monocultural, onde o daltonismo cultural esteja ausente e o conhecimento etno-social, aliado à capacidade de crítica, façam parte do seu equipamento - trata-se de um professor investigador crítico: o professor intermulticultural. O professor intermulticultural é um investigador na área da etno-sociologia, porque é capaz de analisar, identificar e compreender as diferentes 63 características que a heterogeneidade contém - possui um conhecimento do tipo sócio-antropológico (sobre os alunos); e é também um investigador educador, porque questiona a adequação de métodos e conteúdos aos vários e diferentes grupos de alunos, criando e recriando métodos e conteúdos de ensino/aprendizagem adequados a esses grupos - possui um conhecimento do tipo educativo (para os alunos). Trata-se, portanto, de um trabalho de produção de conhecimento por parte do professor, o qual poderá ocorrer durante as próprias aulas, e "... que conduz o professor do papel menor de objecto de instrumento reprodutor de um sistema que o transcende, para a possibilidade de se assumir também como actor interveniente e criador no processo educativo e social." (Cortesão, Luiza, 2000: 49). Se se constata que a socialização dos professores não parece ser compatível com a construção deste outro professor, também se crê que isso não se afigura impossível já que, como afirma Bourdieu, o "habitus é durável, mas não imutável" (Bourdieu, Pierre cit in Cortesão, Luiza e Stoer, Stephen, 1999: 38). Nesta perspectiva, qualquer indivíduo, confrontado no seu percurso de vida adulta com vivências para si muito significativas, pode sofrer mudanças a nível da estrutura do próprio habitus, passando a tomar consciência de determinadas situações que antes ignorava, bem como a assumir novas atitudes que crê coerentes com essas novas situações2. Deste modo, o flexibilizar o professor tornando-o "vulnerável à diferença", em paralelo com a compreensão e assunção dos efeitos que têm as relações de poder tanto nos bons como nos maus resultados obtidos pelos seus alunos, pode responsabilizá-lo e implicá-lo a si próprio também nesses mesmos resultados. Esta nova consciência é geradora de um questionamento sobre as próprias práticas pedagógicas e, por sua vez, potencialmente desencadeadora de mudanças também a nível dessas práticas. Essas mudanças tomam corpo na criação e desenvolvimento do que Stoer e Cortesão designam por dispositivos de diferenciação pedagógica "... que decorrem de um quadro teórico bem explícito e que se constroem, 2 Aqui, a formação de professores pode desempenhar um papel fundamental, no sentido de flexibilizar o professor tornando-o vulnerável à diferença. 64 conscientemente, de acordo com uma intencionalidade de contribuir para o desenvolvimento reflexivo e para a consciencialização dos direitos dos alunos." (Stoer e Cortesão, 1999: 61), no sentido de articular e de estabelecer pontes entre a cultura da escola e a(s) cultura(s) da(s) comunidade(s) onde esta se localiza, e que constitui habitualmente o meio onde os diferentes grupos de alunos fizeram a sua socialização primária. Assim sendo, os dispositivos de diferenciação pedagógica deverão constituir-se em instrumentos simultaneamente capazes, por um lado, de desencadear aprendizagens curricularmente consideradas como importantes e, por outro lado, de considerar e valorizar as raízes culturais dos alunos, numa atitude de reconhecimento, respeito e interacção por e entre as várias culturas3. Aquilo que afinal se pretende com a utilização dos dispositivos de diferenciação pedagógica é dotar os indivíduos que pertencem a grupos minoritários de instrumentos que lhes permitam o usufruto activo de cidadania numa sociedade baseada na economia de mercado. Atendendo a que a sua socialização primária - que é estruturante - terá decorrido em contextos cujas características não são favoráveis a essa cidadania, crê-se que a escola através da figura do professor intermulticultural que utiliza dispositivos de diferenciação pedagógica - pode desempenhar aqui um papel fundamental, no sentido de equipar estes alunos com um bilinguismo cultural, ou seja, a capacidade de os indivíduos se moverem em duas culturas diferentes, mantendo e assumindo as próprias raízes culturais mas integrando também outros valores, outros comportamentos, outros conhecimentos, que são característicos da cultura dominante. Como tal, "Alguém que usufruísse de um bilinguismo cultural sentir-se-ia "em casa" em mais do que um contexto sociocultural, experimentaria sentimentos de pertencimento a mais do que uma cultura. Seria um cidadão nos diferentes 3 A construção de genealogias constitui um exemplo de dispositivo de diferenciação pedagógica que foi já ensaiado por Stoer numa escola de meio rural. Pôde, por isso, observarse que os alunos conseguiram realizar as aprendizagens curriculares com um grau de dificuldade menor em relação ao que antes se verificava, num contexto onde se promoveu o conhecimento, a valorização e o respeito pelas suas raízes culturais, estimulando nos alunos um autoconhecimento reflexivo. 65 contextos; teria acesso ao poder em mais do que uma cultura." (Stoer, Stephen e Cortesão, Luiza, 1999: 54). Assim, e na prossecução da cidadania para todos, é necessário concretizar a chamada interface de educação intercultural que se realiza através do desenvolvimento do professor intermulticultural e é materializada na criação e utilização de dispositivos de diferenciação pedagógica, os quais têm como objectivo final dotar os indivíduos de grupos minoritários da capacidade de se moverem também na cultura dominante, utilizando a faculdade de bilinguismo cultural. Deste modo, crê-se que a escola terá menos possibilidades de exercer a sua hegemonia relativamente àqueles grupos socioculturais. Pelas características do professor intermulticultural, defende-se que a construção em Portugal do respectivo conceito se fará no terreno e dentro dos limites do desenvolvimento da chamada Escola para Todos onde se podem identificar dois pólos: a Escola Meritocrática - que se relaciona com o tipo de professor monocultural e com a instituição da democracia representativa - e a Escola Democrática - que se relaciona com o tipo de professor intermulticultural e com a instituição da democracia participativa. No percurso da Escola para Todos, A Escola Meritocrática tem sido hegemónica relativamente à Escola Democrática, mas a mudança pode ocorrer se se der uma apropriação do espaço democrático de cidadania que a escola oficial possibilita. Para isso, é necessário que se reforce a autonomia relativa da escola e se produza conhecimento sobre as culturas aí presentes, o que pressupõe considerá-la como parte da comunidade local. Deste modo, a "... realização do princípio de igualdade de sucesso dependerá, pois, de uma confrontação cultural no interior da escola de massas. Esta confrontação só pode realizar-se valorizando dentro da escola as culturas da comunidade local." (Stoer, Stephen;Cortesão, Luiza, 1999: 49). A construção de uma escola democrática realiza-se, assim, na construção contra-hegemónica do conceito do professor intermulticultural e na respectiva construção de dispositivos de diferenciação pedagógica. 66 COMPARAÇÃO ENTRE O PROFESSOR MONOCULTURAL E O PROFESSOR INTERMULTICULTURAL Tanto o professor monocultural como o professor intermulticultural correspondem a tipos-ideais, pelo que será de esperar encontrar professores que se aproximam mais ou de um, ou de outro tipo: "Na verdade, pode dizer-se que todos os professores são, até certo ponto, mono e intermulticulturais..." Stoer, Stephen e Cortesão, Luiza, 1999: 46). O professor monocultural pode descrever-se como cientificamente competente, equipado com uma sólida preparação profissional que passa pela capacidade de traduzir, para os alunos em geral, os conhecimentos científicos considerados necessários, expondo-os claramente e de modo seguro. As dificuldades na aprendizagem dos seus alunos são objecto da sua preocupação, mostrando-se disponível para os ajudar e corrigir. Como tal, é justo e exigente nas avaliações que faz. Este professor contribui para a construção do aluno-tipo ideal, situando-se neste enquadramento teórico: A escola garante a oferta de igualdade de oportunidades de acesso para todos e é tida como um campo neutro de aquisição de saberes onde a prioridade é transmitir os saberes considerados importantes. Valorizam-se as metodologias e os materiais estandardizados, bem como a manutenção da cultura erudita e nacional. Relativamente aos alunos, estes constituem conjuntos homogéneos pelo que qualquer diferença é passível de penalização; no entanto, identificamse determinados handicaps de aprendizagem a que se atribuem causas de foro psicológico e biológico. Os objectivos são o incremento da competência e da eficácia, e a normalização. 67 No que diz respeito ao professor intermulticultural, este pode descrever-se como um professor não "daltónico cultural", flexível e vulnerável à dúvida, sendo capaz de investigar nas áreas da sociologia e da etno-sociologia, e é também um investigador/educador na medida em que identifica e analisa problemas de aprendizagem, e elabora respostas adequadas às diferentes situações educativas. Proporciona formas de aquisição de saber, de poder e de exercício de cidadania aos seus alunos, situando-se neste enquadramento teórico: Valoriza-se o papel que a escola pode ter no sucesso e no insucesso dos alunos, compreendendo-a como local de práticas conflituais, de cruzamento de diferentes poderes, interesses e valores - o que permite a identificação de factores explícitos e ocultos passíveis de interferir em processos educativos, bem como o alargamento de espaços de autonomia relativa dos professores e da escola. Também, a consciência do "arco-íris de culturas", a par da aceitação e rentabilização das respectivas diferenças possibilita práticas de diferenciação de ensino através de dispositivos de diferenciação pedagógica e o domínio de um bilinguismo cultural crítico com vista ao sucesso de todos os alunos. O objectivo é a consciência do direito à cidadania. E, assim... "... vai uma distância grande entre, por um lado, o olhar passivo sobre a diferença, lendo-a como algo que é necessário corrigir, como um olhar que a reconhece sem a querer conhecer, e, por outro lado, a adopção da educação intermulticultural não só como filosofia educativa mas também como projecto a realizar nesta época de globalização." (Stoer, Stephen e Cortesão, Luiza, 1999: 46). 68 OUTROS CONTRIBUTOS RELEVANTES PARA OS DISPOSITIVOS DE DIFERENCIAÇÃO PEDAGÓGICA Campos de Recontextualização Pedagógica, Enquadramentos e Pedagogias - Basil Bernstein Para realizar este projecto de educação intermulticultural é necessário, por um lado, que os professores abandonem conscientemente eventuais "daltonismos culturais", assumindo uma postura não etnocêntrica relativamente aos seus alunos - trata-se da capacidade de "atravessar fronteiras", a qual constitui o primeiro passo do desenvolvimento da "racionalidade transcultural" (Archer, 1990) no professor, e que é imprescindível para o processo de "tradução das culturas" possibilitador do aproveitamento/rentabilização das diferenças na sala de aula. O segundo passo para o desenvolvimento dessa racionalidade consiste na construção do professor investigador que integra dois domínios de investigação: um relacionado com a análise racional, e outro relacionado com o ensino-acção, sendo que a síntese destes dois domínios resulta naquilo que Sue Atkinson (1994) chama "multi-thinking" ou "pensamento multirreferencial". Ora, o professor só poderá "atravessar fronteiras" e usufruir deste "pensamento multirreferencial" para produzir conhecimento se dispuser de um determinado grau de autonomia relativa, pelo que será relevante considerar estes dois passos no âmbito do "campo de recontextualização pedagógica" - conceito desenvolvido principalmente por Basil Bernstein, e que se define "como aquele espaço que gera os enquadramentos, as possibilidades e os próprios espaços da teoria pedagógica, da investigação sobre educação e das práticas educativas." (Stoer, Stephen e Cortesão, Luiza, 1999: 78) - considerando que a enquadramentos fracos e a pedagogias invisíveis correspondem metodologias de ensino flexíveis e orientadas para o desenvolvimento da criatividade e para o estímulo à descoberta por parte dos alunos - o que se relaciona com um maior grau de emancipação e de produção; enquanto que a enquadramentos 69 fortes e a pedagogias visíveis correspondem metodologias de ensino rígidas e orientadas para a reprodução e domesticação. Nesta perspectiva, há que ter em atenção o grau de consolidação do campo de recontextualização pedagógica já que, não sendo suficientemente forte, poderá desencadear situações ou de aculturação ou de "folclorização das diferenças" para os grupos minoritários. No que diz respeito à racionalidade transcultural - construída através dos dois passos referidos - esta só poderá ser realizada no interior da escola se o campo de recontextualização pedagógica estiver então suficientemente consolidado, na medida em que se torne possível um processo de "tradução cultural" desenvolvido através de uma "interface cultural" que pressupõe a existência de um potencial confronto entre as várias culturas presentes capaz de conduzir à construção de identidades mais vulneráveis e permeáveis. Salienta-se que a não existência do campo de recontextualização pedagógica acarreta mesmo a impossibilidade da gestão da diversidade pelo professor no sentido em que esta passa a ser dominada pelo discurso oficial, não se verificando a autonomia relativa - assim, verifica-se também a impossibilidade de o discurso pedagógico se realizar como espaço pedagógico, realizando-se antes como espaço de dominação: "O campo de recontextualização pedagógica é, de facto, o espaço da constituição do discurso pedagógico, i.e., o espaço da constituição de diálogo." (Stoer, Stephen e Cortesão, Luiza, 1999: 82). Pelo exposto, pode-se considerar que a produção de conhecimento pelo professor depende fundamentalmente do grau de desenvolvimento do campo de recontextualização pedagógica. Acerca das diferentes pedagogias e respectivos enquadramentos que habitualmente ocorrem em diferentes graus de ensino do sistema educativo, Bernstein considera que apenas nos níveis mais baixos do sistema se verificam enquadramentos fracos e pedagogias invisíveis. Mas, à medida que se vai subindo nos vários níveis do sistema educativo até ao ensino superior, os saberes disciplinares organizados e a obediência a regras explícitas vão tendo uma presença cada vez mais forte - o que se relaciona directamente com um crescente grau de domesticação e de reprodução. Esta última situação 70 decorrerá das pressões da nova classe média4 que procura assegurar, para os seus filhos, a manutenção do estatuto sociocultural de que a escola é veículo, num contexto neoliberal. Assim, confrontada com uma proximidade cada vez maior do mercado de trabalho e com a respectiva pressão das economias no sentido da aquisição de eficácia e de competitividade, esta classe média exige e identifica-se, em termos de educação, com os enquadramentos mais fortes e com as pedagogias mais visíveis - principalmente no nível de ensino superior o que trará, a médio prazo, implicações em termos de reprodução sociocultural. Educação Dialógica - Paulo Freire Estas pedagogias visíveis e de enquadramentos fortes têm a sua máxima expressão no modelo pedagógico transmissivo - ou educação bancária, na terminologia de Paulo Freire. A esse modelo, Freire contrapõe um outro - a pedagogia do diálogo ou educação dialógica - cujas práticas educativas apresentam grandes diferenças relativamente às do modelo anterior (caracterizadas pelo monólogo do professor) e respectivas implicações, as quais se traduzem, na educação dialógica, em emancipação dos indivíduos e produção de conhecimento. Como se sustenta na palavra que é instrumento de reflexão e de acção, o diálogo tem a capacidade de despertar a consciência crítica dos aprendentes. A educação dialógica pressupõe interrelação entre educador e educando, ambos considerados sujeitos activos e aprendentes no processo educativo que se desenvolve fundamentalmente pelo diálogo entre eles: "... o educador já não é só o que educa mas aquele que, enquanto educa é educado através do diálogo com o educando, quem, ao ser educado, também educa. Assim, ambos se transformam em sujeitos do processo em que crescem juntos." (Freire, Paulo, 1978: 90). 4 Segundo Bernstein, a classe média mantinha tradicionalmente o seu lugar na estrutura hierárquica através da propriedade, enquanto que esta nova classe média só pode assegurar actualmente esse lugar recorrendo ao sistema educativo como veículo. 71 Nesta perspectiva, o autor enfatiza: a necessidade de valorizar e aproveitar os saberes e interesses pessoais prévios dos alunos no decurso do processo educativo - já que considera não ser possível a aprendizagem de algo exterior e imposto aos indivíduos, mas antes daquilo que para eles faz sentido; a educação deve privilegiar a capacidade de criar, contrariando a mera reprodução - os indivíduos são naturalmente activos e criativos. Salienta-se que, nesta concepção de educação de Paulo Freire, o processo de ensino/aprendizagem é desenvolvido com o aluno e para o aluno. A partir da caracterização do modelo de educação dialógica, poderemos relacioná-lo com pedagogias invisíveis e enquadramentos fracos - capazes de promover a emancipação versus domesticação, e a produção versus reprodução. EDUCAÇÃO CONTEXTUALIZADA DISPOSITIVOS DE DIFERENCIAÇÃO PEDAGÓGICA: APONTAMENTO CONCLUSIVO O percurso que fizemos por estes conceitos - escola de massas e heterogeneidade; o professor monocultural; o multiculturalismo benigno; o professor intermulticultural; os campos de recontextualização pedagógica; os enquadramentos fortes e fracos, e as pedagogias visíveis e invisíveis; a educação dialógica... - tem como meta um outro modelo pedagógico diferente daqueles dois conhecidos por educação bancária e educação activa, já que considera a heterogeneidade. Stephen Stoer e Luiza Cortesão chamam-lhe educação contextualizada - que utiliza dispositivos pedagógica através da figura do professor intermulticultural. 72 de diferenciação As práticas pedagógicas relacionadas com este modelo são as mais adequadas5 à nova realidade educativa portuguesa - e em todos os níveis do sistema educativo, já que o conceito de dispositivo de diferenciação pedagógica se tem vindo a alargar e a flexibilizar: "... evidencia-se que o dispositivo de diferenciação pedagógica não se limitaria a poder ajudar a contribuir para aquele "bilinguismo cultural" (...) adaptam-se agora a qualquer nível de ensino, adquirindo características específicas em cada um deles..." (Cortesão, Luiza, 2000: 78) Este modelo de educação contextualizada tem vindo a ser já pontualmente utilizado nos vários níveis de ensino, sobretudo em escolas do nível básico onde a heterogeneidade discente é mais visível, e também onde não existe tanta pressão da nova classe média no sentido do recurso a pedagogias visíveis e enquadramentos fortes, segundo Bernstein. Especificamente no que diz respeito ao ensino superior, não se conhecem aí propostas de utilização de dispositivos de diferenciação pedagógica, embora se considere relevante e necessária a sua utilização6, adequando-os às especificidades deste nível de ensino: "... no Ensino Superior a vertente mais significativa deste dispositivo residiria na possibilidade de contribuir, sobretudo, para estimular de forma diferenciada os alunos a olharem o mundo criticamente e a serem capazes de alterar algumas "regras do jogo" que orientam esse mundo, através da capacidade de actuarem como investigadores críticos." (Cortesão, 2000: 78). 5 Recorde-se que nem a educação bancária nem a educação activa consideram a heterogeneidade dos alunos - pelo que nenhum destes dois modelos pedagógicos se adequa ao contexto educativo actual. 6 Como temos vindo a referir, devido à heterogeneidade discente e as implicações em termos de emancipação e produção de conhecimento que práticas pedagógicas invisíveis e enquadramentos fracos - como é o caso da educação contextualizada/ dispositivos de diferenciação pedagógica - podem proporcionar. 73 QUADRO 1 QUÊ; COMO; ONDE O quadro que a seguir se apresenta, proposto e construído por Stoer e Cortesão, constitui um instrumento que permite a caracterização e análise de diversas formas de acção do professor na sua prática educativa. Eixo Metodológico Domesticação/ /Emancipação Educação Contextual izad a (Disp. De Dif. Pedagógica) Educação Activa e/ou Investigativa Eixo da Aquisição de Saberes: Reprodução/ Produção Educação Bancária Conteúdo do manual Utilização da produção cientifica de outrem s K Produção de conhecimento educativo | Produção de conhecimento científico Produção de conhecimento disciplinar pelo próprio (investigação) E. Sup. - Ensino Superior E. Não Sup. Ensino não Superior O quadro é constituído por dois eixos: o Eixo da Aquisição de Saberes: Reprodução/Produção; e o Eixo Metodológico: Domesticação/Emancipação. 74 Eixo de Aquisição de Saberes - Reprodução/Produção: QUÊ Neste eixo estão registados os tipos de conhecimento e os diferentes modos a que o professor poderá recorrer para adquirir esses conhecimentos que vai utilizar nas suas aulas - corresponde ao que Bernstein designa por QUÊ. Consideram-se aqui três diferentes possibilidades, ordenadas numa sequência que constitui um percurso gradativo desde a simples reprodução até uma cada vez maior produção de conhecimento: - Conteúdo do Manual O professor recorre a manuais cujos conteúdos foram previamente objecto de tradução, apresentando-se seleccionados e simplificados; - Utilização da Produção Científica de Outrem O professor recorre a textos científicos produzidos por outrem e que irão sofrer, da sua parte, um processo de tradução, selecção e relocalização; - Produção de Conhecimento Disciplinar pelo Próprio (Investigação) O professor produz conhecimento através da investigação que realiza. 75 Eixo Metodológico - Domesticação/Emancipação: COMO Neste eixo estão registados os diferentes tipos de estratégias a que o professor poderá recorrer para transmitir ou suscitar nos alunos esses conhecimentos corresponde ao que Bernstein designa por COMO. Consideram-se também aqui três diferentes possibilidades, ordenadas numa sequência que constitui agora um percurso gradativo que vai de um nível muito elementar de emancipação (ou mesmo nulo) para outros níveis no sentido de uma cada vez maior emancipação: - Educação Bancária O professor recorre a um ensino transmissivo e expositivo, revelando os alunos uma atitude passiva e tidos como recipientes vazios onde os conhecimentos curriculares são depositados; - Educação Activa e/ou Investigativa O professor propõe e solicita aos alunos acção e investigação através de metodologias activas e de variados materiais didácticos, tornando-os colaboradores na conquista das próprias aprendizagens; - Educação Contextualizada (Dispositivos de Diferenciação Pedagógica) O professor propõe e solicita aos alunos acção e investigação através de dispositivos de diferenciação pedagógica, estabelecendo pontes entre os conhecimentos curriculares e outros conhecimentos que os alunos transportam dos seus grupos de origem. Deste modo, as aprendizagens tornam-se mais significativas e promove-se a consciência crítica dos direitos e deveres dos alunos como cidadãos. 76 Cruzamento dos Eixos QUÊ e COMO: ONDE Para analisar as práticas dos docentes, propõe-se o cruzamento destes dois eixos com o contexto e o nível de ensino em que o professor está a trabalhar o qual corresponde ao ONDE de Bernstein. Assim, devem ser considerados na análise simultaneamente o QUÊ, o COMO e o ONDE. Deste cruzamento resultam nove situações educativas diferentes, as quais correspondem no quadro às casas que estão numeradas de 1 a 9, e que passaremos desde já a caracterizar. Casa 1 O professor recorre exclusivamente a manuais estandardizados cujos conteúdos se apresentam seleccionados e simplificados - foram previamente objecto de tradução - e expõe o mais claramente possível esses conteúdos. Numa atitude "daltónica", dirige o seu discurso aos alunos que vê como um grupo homogéneo e a quem cabe o papel de receptor. Trata-se de uma mera reprodução do saber, e constitui um processo de educação monocultural que contribui para a reprodução sociocultural. Ocorre no ensino não superior (manuais do básico e secundário) e no ensino superior (com as "sebentas"). Casa 2 O professor recorre directamente a textos científicos produzidos por outrem e que irão sofrer, da sua parte, um processo de selecção, relocalização e tradução. Tentando manter a correcção científica dos mesmos, apresenta-os 77 numa outra linguagem que crê simples e clara, dirigindo o seu discurso aos alunos que vê como um grupo homogéneo e a quem cabe o papel de receptor. Tal como a anterior, esta situação constitui um processo de educação monocultural de efeitos quase exclusivamente reprodutores. Ocorre no ensino não superior e no ensino superior (com as "sebentas"). Casa 3 Os professores que fazem investigação na sua área disciplinar e cujos conhecimentos transmitem aos alunos através de um ensino expositivo, usando a linguagem científica da área7. Estes professores vêem os seus alunos como um grupo homogéneo e a quem cabe o papel de receptor. Tal como a anterior, esta situação constitui um processo de educação monocultural de efeitos quase exclusivamente reprodutores. Ocorre apenas no ensino superior. Casa 4 O professor recorre ao manual, mas adequa aquele saber aos seus alunos, propondo-lhes um conjunto de situações activas de aprendizagem. Esta atitude revela a importância que o professor atribui à conquista do saber pelos próprios alunos. O interesse pelo processo educativo na ausência de investigação - aqui presente - não se atribui ao perfil do professor do ensino superior universitário, pelo que será de esperar encontrar esta situação no ensino não superior. 7 Trata-se de professores de ensino superior cujo público deverá compreender essa linguagem já que supostamente se está entre pares - quer sob o ponto de vista sociocultural quer etário (em termos de idades, os alunos são jovens adultos e adultos). Mas estes professores são, muitas vezes, tidos pelos seus alunos como difíceis e incompreensíveis... 78 Casa 5 O professor recorre directamente a textos científicos originais produzidos por outrem e suscita situações activas de aprendizagem sobre os respectivos conteúdos - através de debate, por exemplo. Ocorre pontualmente no ensino não superior, e frequentemente no ensino superior. Casa 6 Os professores que fazem investigação na sua área disciplinar e que procuram recontextualizar os seus textos, suscitando a participação dos alunos - por exemplo, através de debate ou de apresentação desses textos nas aulas, em pequeno e/ou em grande grupo. Ocorre quase exclusivamente no ensino superior. Casa 7 O professor recorre ao manual, mas adequa aquele saber aos seus alunos - os quais conhece porque desenvolveu determinadas actividades com esse objectivo de os conhecer. Como tal, considera as suas características particulares e a rentabilização dos saberes que já possuem. Esta situação educativa ocorre no Ensino Básico e Secundário, embora pouco frequentemente - com professores cuja prática é enformada por preocupações multiculturais; e ocorre no ensino superior muito raramente (ainda com menor frequência do que a relativa à casa 4). 79 Casas 8 e 9 Recorre-se a textos científicos produzidos por outrem (casa 8) e aos próprios (casa 9), e há também a produção de situações de trabalho originais que se pretende serem adequadas aos alunos com que se trabalha. Ou seja, estes professores, para além da sua área disciplinar, são também capazes de produzir outros dois tipos de conhecimento: um conhecimento socioantropológico sobre os seus alunos; e um conhecimento educativo para os seus alunos o qual, partindo do primeiro, possibilita a criação dos chamados dispositivos de diferenciação pedagógica. Deste modo, será estimulada a aquisição dos conteúdos curriculares pelos alunos. No que se refere especificamente a 9, tratar-se-á actualmente de uma situação educativa ideal (no sentido de não real) e que poderá vir a realizar-se através da figura de um professor investigador atento à diversidade sociocultural a qual tem vindo a aumentar também no ensino superior. Estas situações ocorrem sobretudo no ensino superior. Depois desta caracterização, consideremos de novo o quê e o como do processo educativo. Verifica-se que: - relativamente ao quê, observa-se no quadro três diferentes tipos de situações, assim representadas: 1, 4 e 7 (1 a situação); 2, 5 e 8 (2a situação); 3, 6 e 9 (3a situação) - que, nesta sequência, traduzem uma crescente produção de conhecimento; e - relativamente ao como, é também possível observar no quadro três diferentes tipos de situações, assim representadas: 1, 2 e 3 (1 a situação); 4, 5 e 6 (2a situação); 7, 8 e 9 (3a situação)8 - que vamos especificar em seguida. 8 As duas primeiras situações relacionam-se com o tipo de professor monocultural; a terceira situação relaciona-se com o tipo de professor intermulticultural. 80 - 1, 2 e 3 - recorre-se a pedagogias transmissivas - pedagogias visíveis - cujos professores consideram os alunos como sendo um grupo homogéneo (não consideram a heterogeneidade dos alunos), o que identifica os professores monoculturais que se movem e actuam no domínio de uma escola reprodutora; - 4, 5 e 6 - recorre-se a métodos activos - ou pedagogias invisíveis que tornam as aprendizagens mais estimulantes e são responsáveis pelo desenvolvimento de determinadas capacidades dos alunos, os quais constituem, para os professores, um grupo homogéneo (também estes não consideram a heterogeneidade dos alunos). Tal como na situação anterior, trata-se de professores monoculturais que se movem e actuam no domínio de uma escola reprodutora. - 7, 8 e 9 - recorre-se a pedagogias invisíveis, tendo os professores a preocupação de adequar as propostas de ensino/aprendizagem aos seus alunos já que existe, da sua parte, a consciência da heterogeneidade na sala de aula - o que identifica os professores intermulticulturais e, paralelamente, revela atitudes mais emancipatórias. No que se refere mais especificamente à existência, ou não, de processos de produção de conhecimento - a) de conteúdos disciplinares e b) de tipo socioantropológico e educativo (ou científico e pedagógico) - naquelas situações educativas, verifica-se que: - não há qualquer produção de conhecimento nas casas 1, 2, 4, e 5; - há produção de conhecimento nas casas 3, 6, 9, 8 e 7, e especifica-se que esta produção de conhecimento é relativa a a) conteúdos disciplinares nas casas 3, 6 e 9, e b) de tipo socioantropológico e educativo nas casas 7, 8 e 9. 81 Considerando os vectores perpendiculares A e B que atravessam diagonalmente o quadro, pode observar-se que: A - atravessa duas situações extremas: - uma em que não existe qualquer produção de conhecimento (sendo apenas reprodutiva) - corresponde à casa 1, e - outra em que existe produção de conhecimento socioantropológico e educativo, e disciplinar - corresponde à casa 9; B - separa duas zonas diferentes: - uma onde predomina a produção de conhecimento (zona localizada acima do vector), e - outra onde predomina a reprodução de conhecimento (zona localizada abaixo do vector). Isto encontra-se em consonância com a ideia de que aquelas duas vertentes dependem das escolhas que se fazem relativamente ao quê e ao como do processo educativo. 82 IV TRABALHO PEDAGÓGICO NA UNIVERSIDADE: EXPLORAÇÃO ATRAVÉS DE ENTREVISTAS A TRÊS PROFESSORES 83 METODOLOGIA 84 "... o método das entrevistas está sempre associado a um método de análise de conteúdo. Durante as entrevistas trata-se, de facto, de fazer aparecer o máximo possível de elementos de informação e de reflexão, que servirão de materiais para uma análise sistemática de conteúdo..." (Quivy, 1998: 195) 85 REALIZAÇÃO DE ENTREVISTAS Para estudar o modelo teórico de Stoer e Cortesão (1999) sobre as práticas pedagógicas de professores - neste trabalho, aplicado ao contexto do ensino superior - foram utilizadas metodologias qualitativas: entrevistas em profundidade, semiestruturadas1, e respectivo tratamento através de análise de conteúdo. A escolha desta metodologia deveu-se às características do objecto de estudo e da população alvo - professores do ensino superior. Como referem Ludke e André (1986), "... a entrevista semi-estruturada, que se desenrola a partir de um esquema básico, porém não aplicado rigidamente (...). As informações que se quer obter, e os informantes que se quer contactar, em geral professores (...) são mais convenientemente abordáveis através (deste) instrumento mais flexível." (Ludke e André, 1986: 34). Pelo exposto, a recolha de dados realizada a partir dos discursos dos professores, orientados para as suas práticas pedagógicas, e obtida através de entrevistas semi-estruturadas, poderá fornecer maior quantidade e qualidade de dados relativamente a outras metodologias, já que o seu objectivo consiste em explorar "A análise do sentido que os actores dão às suas práticas e aos acontecimentos com os quais se vêem confrontados: os seus sistemas de valores, as suas referências normativas, as suas interpretações de situações conflituosas ou não, as leituras que fazem das próprias experiências..." (Quivy, 1998: 193). Assim, este autor e outros por nós consultados reconhecem à entrevista um considerável "... grau de profundidade dos elementos de análise recolhidos." (Quivy, 1998: 194) e consideram que constitui "... uma das principais técnicas de trabalho em quase todos os tipos de pesquisa utilizados nas ciências sociais." (Ludke e André, O termo profundidade refere-se, segundo Madeleine Grawitz, à informação de "acesso reservado" que em princípio se obtém a partir destas entrevistas (Carmo e Ferreira, 1998: 130), que podem ser também consideradas semidirigidas e semidirectivas - o entrevistado responde com um determinado grau de liberdade, ou seja, o seu discurso não é completamente livre na medida em que é orientado pelo entrevistador, o qual age de acordo com o que crê ser relevante, ou não, para o seu objecto de estudo. 86 1986: 33), afirmando-se que é "... a mais utilizada em investigação social." (Quivy, 1998: 192). Para conseguir este "grau de profundidade" deve ser evitada determinada formulação de perguntas "... uma estratégia-chave (...) consiste em evitar, tanto quanto possível, perguntas que possam ser respondidas com "sim" e "não". Os pormenores e detalhes particulares são revelados a partir de perguntas que exigem exploração." (Bogdan e Biklen, 1994: 136). No entanto, e atendendo aos diferentes momentos da entrevista, será oportuno considerar que, na sua fase inicial, terão cabimento determinadas perguntas cujo objectivo fundamental não será a recolha de dados propriamente dita, mas antes o estabelecimento de condições propícias a essa recolha. Neste contexto, diversos autores referem a necessidade de "quebrar o gelo" que eventualmente existirá à partida - já que numa situação de entrevista os indivíduos do par entrevistado-entrevistador não se conhecem necessária e previamente - e isso poderá ser feito "... recorrendo a perguntas de aquecimento..." (Carmo e Ferreira, 1998: 136) as quais podem também incluir informações necessárias à localização do indivíduo no seu contexto de vida, o que é habitualmente relevante para a investigação. De acordo com o que foi dito, a sequência das perguntas colocadas no decurso da entrevista deve respeitar um continuum crescente desde a menos informal até à mais informal no sentido de mais delicada: "Por vezes o entrevistador tem de fazer perguntas melindrosas. Tais questões devem ser posicionadas no fim da entrevista, altura em que existe um maior clima de confiança." (Carmo e Ferreira, 1998: 136). Relativamente ao nosso estudo, foram realizadas entrevistas a três professores da Universidade do Porto: um da Faculdade de Ciências (área das ciências da natureza); outro da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação (área das ciências sociais e humanas); e outro da Faculdade de Engenharia (área das ciências exactas).2 Com o objectivo de ser respeitada a confidencialidade relativamente a estes três professores, passaremos a referi-los pelos nomes fictícios de Manuel Rebelo (FCUP), Jaime Almada (FPCEUP) e Francisco Couto (FEUP). 87 Como já se deixou dito no decurso do trabalho, o modelo teórico de Stoer e Cortesão (1999) contempla dois eixos: Aquisição de Saberes (em abcissa), que inclui três possibilidades - através do conteúdo do manual, da produção científica de outrem, da produção científica própria; e Metodológico (em ordenada) que inclui outras três possibilidades - educação bancária ou transmissiva, educação activa ou investigativa, educação contextualizada. Assim sendo, o guião da entrevista foi construído com a preocupação de obter respostas que nos permitissem uma compreensão o mais abrangente possível da realidade das práticas pedagógicas dos professores entrevistados relativamente a estes dois eixos, critério que presidiu à escolha das perguntas constantes no mesmo guião3. Considerámos, então, três grandes temas: como o professor dá as aulas - indagámos sobre o material didáctico e método(s) pedagógico(s) utilizado(s), e sobre o eventual recurso à investigação própria e/ou alheia no respectivo trabalho lectivo; como o professor vê os alunos - em termos de homogeneidade e/ou heterogenidade, se tem feed-backs dos alunos dentro e fora das aulas, e que características positivas e negativas lhes atribui; como se vê a si próprio enquanto professor, e a outros professores - onde foram referidos os piores defeitos e as melhores qualidades que se podem encontrar num professor de ensino superior. Tratando-se de entrevistas semi-estruturadas, crê-se que "Será preferível e mesmo aconselhável o uso de um roteiro que guie a entrevista através dos tópicos principais a serem cobertos." (Ludke e André, 1986: 36). Deste modo, o guião constitui um recurso para os temas considerados e sua sequência, não podendo restringir os mesmos a um plano rígido e inflexível porque completamente pré-determinado: "O processo de entrevista requer flexibilidade. (...) Ser flexível significa responder à situação imediata, ao entrevistado sentado à sua frente e não a um conjunto de procedimentos ou estereótipos determinados" (Bogdan e Bicklen, 1994: 137), especificando Quivy (1998) que "... o investigador dispõe de uma série de perguntas-guias, relativamente abertas, a propósito das quais é imperativo receber uma informação da parte do entrevistado. Mas não colocará necessariamente todas as perguntas pela '! Ver Anexo I - Guião de Entrevista 88 ordem em que as anotou e sob a formulação prevista. Tanto quanto possível, "deixará andar" o entrevistado para que este possa falar abertamente..." (Quivy, 1998: 192). Nesta sequência, deveremos referir que o investigador "... intervém ocasionalmente para reenquadrar a entrevista e colocar questões complementares..." (Riutort, 1999: 48). Assim, durante as entrevistas, não raras vezes se deu a alteração da ordem das perguntas constantes no guião; outras vezes, houve imbricação de conteúdos relativos a perguntas diferentes daquela que se estava a tratar no momento dado e, deste modo, algumas não chegaram a ser por nós verbalizadas, porque o entrevistado já se lhes tinha referido e respondido no seu discurso; outras perguntas foram propositadamente apresentadas pela entrevistadora de forma ambígua, com o intuito de aceder a determinada informação4; finalmente, contempladas previamente, aconteceu surgirem as quais foram outras questões sendo desencadeadas não no desenrolar da entrevista5. A este propósito, salientamos que "... a entrevista permite correcções, esclarecimentos e adaptações que a tornam sobremaneira eficaz na obtenção das informações desejadas. Enquanto outros instrumentos têm o seu destino selado no momento em que saem das mãos do pesquisador que os elaborou, a entrevista ganha vida ao se iniciar o diálogo entre o entrevistador e o entrevistado" (Ludke e André, 1986: 34); e diz Quivy (1998) "Instaura-se, assim, em princípio, uma verdadeira troca, durante a qual o interlocutor do investigador exprime as suas percepções de um acontecimento ou de uma situação, as suas interpretações ou as suas experiências, ao passo que, através das suas perguntas abertas e das suas reacções, o investigador facilita essa expressão, evita que ela se afaste dos objectivos da investigação e 4 A pergunta 8 do guião "Que características positivas procura fomentar nos alunos? A que atribui os seus sucessos e insucessos?" é um exemplo do que acabamos de referir: neste contexto, a palavra "seus" é susceptível de duas leituras diferentes por parte do professor entrevistado - pode ser entendida como "dele/professor" ou "dos alunos". O modo como a resposta irá ser construída poderá fomecer-nos dados, neste caso, sobre a atitude daquele professor relativamente à própria responsabilização dos sucessos e/ou insucessos ou, pelo contrário, à responsabilização dos alunos nesta matéria. 5 Como exemplo, referimos o caso da avaliação dos professores feita pelos alunos - esta questão não se encontrava explícita no guião, e surgiu logo na primeira entrevista; depois, constou também das outras duas entrevistas. 89 permite que o interlocutor aceda a um grau máximo de autenticidade e de profundidade." (Quivy, 1998: 192). Neste carácter de interacção entrevistado-entrevistador que pressupõe necessariamente influência recíproca entre os dois elementos do par, não podemos ignorar também a responsabilidade que cabe à figura do entrevistador, no sentido do estabelecimento de uma relação o mais geradora possível de um clima de confiança necessário à obtenção de uma boa entrevista: "As boas entrevistas caracterizam-se pelo facto de os sujeitos estarem à vontade e falarem livremente sobre os seus pontos de vista (...) produzem uma riqueza de dados, recheados de palavras que revelam as perspectivas dos respondentes. (...) Na medida em que houver um clima de estímulo e de aceitação mútua, as informações fluirão de maneira notável e autêntica." (Ludke e André, 1986: 34). Segundo Bogdan e Bicklen (1994), este clima só acontecerá se o entrevistador comunicar - verbal e não verbalmente - o seu interesse pelo discurso do entrevistado podendo, por exemplo, o primeiro solicitar ao segundo clarificações sobre algo dito6. No entanto, será de evitar a emissão de juízos de valor, por parte do entrevistador, sobre aquilo que está a ouvir: se, por um lado, essa atitude tende a inibir o discurso de quem fala - o que acarretará repercussões negativas em termos de quantidade e qualidade de dados a recolher - também é contrário a uma investigação desta natureza no sentido em que "O seu papel, enquanto investigador, não consiste em modificar pontos de vista, mas antes em compreender os pontos de vista dos sujeitos e as razões que os levam a assumi-los." (Bogdan e Bicklen, 1994: 138). Pelo que acabámos de referir, uma atenção cuidada por parte do entrevistador no decurso da entrevista é fundamental para o seu êxito, no sentido de os dados recolhidos se tornarem o mais abrangentes possível da realidade a estudar. Neste contexto, "... o espírito teórico do investigador deve (...) 6 Neste contexto, frases como: "O que quer dizer com isso?" (...) Pode explicar melhor?" (Bogdan e Bicklen, 1994: 136) são pertinentes porque, para além do esclarecimento solicitado, revelam o interesse do entrevistador estimulando e orientando a continuação do discurso do entrevistado. No caso das nossas entrevistas, isto aconteceu algumas vezes. 90 permanecer continuamente atento, de modo que as suas intervenções tragam elementos de análise tão fecundos quanto possível." (Quivy, 1998: 192) e, paralelamente, a atenção de que falamos deve incluir também a captação e registo de sinais não verbais emitidos pelo entrevistado - trata-se da "atenção flutuante" (Thiollent, 1980): "O entrevistador precisa estar atento não apenas (...) ao roteiro pré-estabelecido e às respostas verbais que vai obtendo ao longo da interacção. Há (...) toda uma comunicação não-verbal cuja captação é muito importante para a compreensão e a validação do que foi efectivamente dito. (...) É preciso analisar e interpretar esse discurso à luz de toda aquela linguagem mais geral e depois confrontá-lo com outras informações da pesquisa e dados sobre o informante." (Ludke e André, 1986: 36). Nesta sequência, importa acrescentar que "... as entrevistas gravadas são transmitidas (na íntegra) e as gravações conservadas (para informação paralinguística)..."(Bardin, 1995, 100). Durante o processo das entrevistas, procurámos respeitar o mais possível estas condições; e, na fase da sua transcrição, registámos por escrito a partir do gravador não só o verbalizado, mas também as pausas, as hesitações, as interjeições, as repetições, os risos... Considerando ainda os contextos onde decorreram as entrevistas (a), bem como o tipo de relação prévia que havia, ou não, entre a entrevistadora e cada entrevistado (b), importa registar o seguinte: relativamente a (a), estas entrevistas decorreram nas instituições dos respectivos professores, nos seus gabinetes de trabalho - com excepção da segunda parte da de Manuel Rebelo, a qual foi realizada no jardim do IPATIMUP7 - em todas as situações entrevistado e entrevistadora encontravam-se sozinhos, sem eventuais constrangimentos de assistência; relativamente a (b), referimos que Manuel Rebelo não é desconhecido da entrevistadora (foi seu professor), Jaime Almada é conhecido da entrevistadora (há uma relação de amizade), e Francisco Couto era desconhecido da entrevistadora (o contacto foi estabelecido a partir do orientador da mesma, a quem este entrevistado já tinha recorrido num contexto de trabalho de âmbito pedagógico). 7 IPATIMUP - Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto. Instituição privada sem fins lucrativos de utilidade pública, dedicada à investigação, educação contínua e difusão científica, etc., naquela área. Foi criada sob a égide da Universidade do Porto. 91 Nesta sequência, salientamos que "... as respostas são afectadas por um certo número de enviesamentos, pelo menos potenciais, decorrentes da consciência que os sujeitos têm de que estão a ser observados ou testados, dos constrangimentos associados ao papel de entrevistado ou respondente, da interacção entrevistador-entrevistado..." (Vala, in Santos Silva e Madureira Pinto, 1987: 106-107). Finalmente, cada entrevista decorreu num clima de quase uma conversa informal entre a entrevistadora e o entrevistado, cabendo-nos a nós o papel de estimular, orientar e "deixar ir" o discurso daquele, de acordo com a sua relevância para o nosso objecto de estudo. Assim, cada entrevista acabou também por adquirir um percurso e um corpo específicos - características próprias que o entrevistado lhe imprimiu, as quais podem constituir uma considerável fonte de informação acrescida e relevante para este estudo. 92 ANÁLISE DE CONTEÚDO "A maioria dos procedimentos de análise organiza-se (...) em redor de um processo de categorização." (Bardin, 1995: 117). Assim, para analisar as entrevistas, considerámos três grandes categorias (A, B e C) que incluem outras oito categorias (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8) assim distribuídas e denominadas: A. Como o professor dá as aulas 1. Material Didáctico 2. Modo/Métodos Pedagógicos 3. Investigação/Trabalho Lectivo B. Como o professor vê os alunos 4. Homogeneidade/Heterogeneidade dos Alunos 5. Feed-back dos Alunos nas Aulas/Fora das Aulas 6. Características Positivas/Negativas dos Alunos C. Como o professor se vê e a outros professores 7. Piores Defeitos do Professor 8. Maiores Qualidades de Professor e Ideal de Ensino Se se aceita que a construção de um sistema de categorização pode ser estabelecido tanto a priori como a posteriori (relativamente às entrevistas), e também na combinação destes dois momentos (consoante se julgar mais pertinente atendendo às características de cada investigação) neste caso específico a sua construção fez-se a priori - no guião da entrevista considerámos aqueles temas que convertemos em categorias - já que o nosso trabalho reunia as condições que se adequavam a esse tipo de procedimento: "Se a interacção entre o quadro teórico de partida do analista, os problemas concretos que pretende estudar e o seu plano de hipóteses permitem a 93 formulação de um sistema de categorias (...) então o analista optará por categorias definidas a priori." (Vala, in Santos Silva e Madureira Pinto, 1987: 111). Deveremos no entanto recordar que, no decurso das entrevistas, surgiram questões não consideradas a priori (aquando da formulação do guia) - o caso da questão, já referida, da avaliação dos professores pelos alunos8 tendo estas sido incluídas nos temas pré-estabelecidos, ou seja, nas categorias consideradas. Importa também referir que a nossa opção por categorias temáticas obedeceu às características dos dados a tratar: "Entre as diferentes possibilidades de categorização, a investigação dos temas, ou análise temática, é rápida e eficaz na condição de se aplicar a discursos directos..." (Bardin, 1995, 153). Ainda sobre a relação dos temas com a análise de conteúdo, diz Bardin (1995) que "... a noção de tema (...) é característica da análise de conteúdo. (...) o tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado segundo certos critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura. O texto pode ser recortado em ideias constituintes, em enunciados e em proposições portadores de significações isoláveis." (Bardin, 1995, 105). Os recortes de que se fala traduzem, então, um processo de distribuição e reagrupamento das analogias presentes no texto original segundo aqueles critérios - trata-se da codificação que "... é o processo pelo qual os dados brutos são transformados sistematicamente e agregados em unidades, as quais permitem uma descrição exacta das características pertinentes do conteúdo." (O. R. Holsti, cit. in Bardin, 1995, 104). De acordo com o apresentado, e relativamente ao trabalho que estamos a desenvolver, procurámos nos textos das entrevistas as diferentes unidades semânticas correspondentes às categorias consideradas. Com o objectivo de mais correctamente as identificar, convencionámos uma determinada cor para cada uma das três grandes categorias (A - rosa/lilás; B - verde; e C - azul) e, dentro de cada uma destas, uma tonalidade diferente dessa mesma cor para as oito categorias, como a seguir se apresenta: 8 No sistema de categorização, incluímo-la em 5 - Feed-backs dos alunos nas aulas / fora das aulas. 94 1, M -2. Modo/Métodos Pedagógicos 4. Homogeneidade/Heterogeneidade dos Alunos 5. Feed-back dos Alunos nas Aulas/Fora das Aulas 6. Características Positivas/Negativas dos Alunos 7. Piores Defeitos do Professor 8. Maiores Qualidades de Professor e Ideal de Ensino Depois desta operação - do que resultou, em termos visuais, a existência de várias manchas de cor - reuniram-se todas as manchas da mesma tonalidade tendo-se obtido, por cada entrevista, oito grupos de excertos correspondentes às oito categorias consideradas. Para além disto, utilizámos também um tipo de letra diferente para cada entrevistado1, o que nos permitiu identificar rápida e eficazmente o autor de cada discurso. A categorização das entrevistas traduziu-se na construção dos quadros de categorias por sujeito, a partir dos quais se obtiveram outros quadros de sínteses de categorias por sujeito que, por sua vez, resultaram em sínteses de categorias por sujeito sob a forma de texto2: "A partir do momento em que a análise de conteúdo decide codificar o seu material, deve produzir um sistema de categorias. A categorização tem como primeiro objectivo (...) fornecer, por condensação, uma representação simplificada dos dados brutos" (Bardin, 1995, 119). 1 Ver Anexo IV: Quadros de Categorias por Sujeito. Os diferentes tipos de letra utilizados (no computador) para Manuel Rebelo, Jaime Almada e Francisco Couto são, respectivamente: Abadi; Lúcida Sans; e Georgia (com o aspecto gráfico que aqui se apresenta, e cuja primeira letra corresponde à primeira letra do verdadeiro nome de cada um dos entrevistados - com o objectivo de prevenir eventuais enganos da nossa parte, já que nesta fase do trabalho estávamos mais familiarizada com esses nomes verdadeiros). 2 Ver Anexos IV, V e V I . 95 Todo este processo, em passos sequenciados, permitiu-nos a realização da análise das entrevistas, que consiste em: - síntese de cada categoria por sujeito - o discurso de cada entrevistado relativamente a cada uma das categorias consideradas; - síntese de todas as categorias por sujeito - o discurso de cada entrevistado sobre todas as categorias (as suas práticas pedagógicas e as de outros professores de ensino superior); - síntese global de todas as categorias dos três sujeitos - os discursos dos três entrevistados sobre todas as categorias (as suas práticas pedagógicas e as de outros professores de ensino superior); e - análise da relação entre os dados e o modelo teórico considerado, e respectiva interpretação dos resultados - que constitui outro subcapítulo. Em seguida apresenta-se este processo - com o desenvolvimento de todos aqueles passos - sempre com o cuidado de deixar os dados, o mais possível, falarem por si... 96 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS SÍNTESE DE CADA CATEGORIA POR SUJEITO Manuel Rebelo A - Como o Professor Dá Aulas 1. Material Didáctico e Número de Alunos por Turma Pré-graduações: 20 alunos (aulas práticas); e 100 (aulas teóricas). Pósgraduações: até 12 alunos por turma. Usa todo o tipo de material didáctico: desde o quadro até às actuais possibilidades electrónicas (power points, simulações em computador, e-mail; discussões virtuais...) 97 2. Modo/Métodos Pedagógicos Pré-graduações e pós-graduações: dá aulas diferentes - o objectivo de cada grau é diferente: o pré-graduado tem uma formação básica para vir a resolver questões científicas; o pós-graduado tem que resolver essas questões, e os cursos centram-se à volta delas. Dá indicações simples e claras ao aluno. Pré-graduações: há aulas tutorials onde se discutem dúvidas; e aulas teóricas (dá-se matéria nova, são passivas, com conteúdos de absorção). As aulas práticas são obrigatórias. Dar boas aulas expositivas não chega, por isso conjuga sedução com transmissão de conhecimento tecnológico. Ninguém segue uma aula expositiva de hora e meia: faz uma exposição de meia hora, e depois coloca perguntas à turma; recomeça, com base nas respostas - tenta mudar a atitude dos alunos. Se não fez bem o enunciado de exame (a escolha das questões não é objectiva, é ele próprio que os faz, e pode errar), revê a cotação dos exames. Aprendeu a dar aulas vendo os professores (como aluno); depois com os colegas; e com os feed-backs dos alunos. 3. Investigação/Trabalho Lectivo Pré-graduações: não há investigação (os alunos não têm liberdade de pensar por si-próprios; e são sobrecarregados de conteúdos lectivos formais - não têm condições para a investigação. Tem pudor em utilizar o próprio trabalho de investigação nas aulas, (pode ser visto como "querendo mostrar-se como muito grande"); mas fá-lo às vezes (estuda coisas humanas e portuguesas, e isso é mais apelativo para os alunos). Pós-graduação: há investigação (todos os seus alunos publicam resultados internacionalmente aceites). A pós-graduação é a única coisa que a universidade ainda continua a ter a funcionar: A investigação é um conjunto de ferramentas mentais postas em uso e interiorizadas pelos actores. Não se adquire de uma só vez, e nunca mais se 98 esquece. A actividade de investigação pode ser recapitular um problema que já foi resolvido antes, mas há sempre uma actividade criadora do envolvido. Há três condições necessárias à actividade de investigação, por ordem decrescente de importância: a clareza formal (precisão extrema das ideias que se formulam, e como se articulam umas com as outras); a persistência ou teimosia; uma elegância ou preguiça (não procurar coisas mais complicadas quando uma simples resolve o assunto). Neste momento, estas capacidades especialmente a primeira - estão ausentes do discurso dominante, na educação. B - Como o Professor Vê os Alunos 4. Homogeneidade/ Heterogeneidade dos Alunos Há diferenças em termos de estrato social entre os actuais alunos e os de há 30 anos: antes, apenas 0,1% vinham da classe média baixa; hoje são 1% (dez vezes mais). Actualmente não se vêem diferenças entre os alunos (há mecanismos sociais coercivos que os uniformizam). Nas aulas há de tudo: desde um grande número que estão lá contrariados, até àqueles que são muito inquisitivos. Individualmente, não conhece os seus alunos - não mistura os aspectos sociais com as aulas. 5. Feed-back dos Alunos nas Aulas/ Fora das Aulas Há feed-backs nas aulas: nas tutoriais discutem-se dúvidas; nas teóricas, após meia hora de exposição, questiona os alunos e continua a aula com base nas suas respostas. Os alunos não podem avaliar os professores porque não têm competências pedagógicas e científicas; esta avaliação é uma estratégia para calar os 99 estudantes (e conseguir subir as propinas, p.e.) - não vai resultar em nada, mas se resultar em algo ainda vai ser pior. 6. Características Positivas/ Negativas dos Alunos Pré-graduações: os alunos têm dificuldade de pensar pelas suas próprias cabeças" (no 1 o ano vêm esgotados do acesso; durante o curso, os conteúdos lectivos pesadíssimos - quase trinta horas lectivas por semana - impedem-nos de estudar as matérias, e depois estudam tudo à pressa para os exames; muitos alunos assistem contrariados às aulas - vêm educados para isso; e vêm com aptidões que não são adequadas ao ensino superior - a atitude que as coisas estão feitas e que não é necessário descobrir nada, é só preencher a "resposta certa"; atitude que conduz à "esperteza" - o aluno apercebe-se do que o professor quer e responde de acordo com isso, mesmo sem perceber; em situações onde a solicitação não é tão elementar, têm dificuldades (os estagiários de Matemática não têm espírito matemático). Nas disciplinas que lecciona, o tipo de conteúdos e de solicitações são aqueles a que os alunos não estão habituados (têm dificuldade - só 10%, autonomamente, adquirem essa atitude). Os alunos não compreendem a avaliação: classifica as respostas erradas com zero, e às correctas dá 100% (não há meio termo quando as perguntas são muito objectivas e os critérios operativos claros). Os alunos não querem zero, mas zero vírgula qualquer coisinha o que é muito deseducativo, pois as actividades profissionais que irão ter não são compatíveis com essa atitude de "mais ou menos" (não se pode construir uma ponte mais ou menos porque ela irá cair, mais cedo ou mais tarde). Mas ficariam contentes se desse dezasseis a todos, porque a maioria não se apercebe que isso lhes seria prejudicial a médio ou a longo prazo no que se refere a uma posterior seriação onde caberiam os critérios mais subjectivos e arbitrários. Os alunos são tidos como clientes neste sistema de ensino pensado enquanto mercado, os quais têm que ser satisfeitos como tal. 100 A característica positiva fundamental dos alunos - e da qual decorrem outras é a autonomia, uma "autonomia enorme", até porque irão ter uma actividade mais ou menos autónoma. As aulas obrigatórias não fazem sentido, porque os alunos devem escolher se vão ou não, assumindo eventuais consequências. Em cada disciplina, pretende habilitar o aluno a lidar autonomamente com um determinado tipo de questões naquela área de saber; bem como possibilitar-lhe patamares de desenvolvimento mais rapidamente do que outros anteriores conseguiram - isto sempre segundo princípios que tem como individuais. C - Como o Professor se Vê e a Outros Professores 7. Piores Defeitos do Professor e do Sistema Ser democraticamente obrigado a leccionar disciplinas com as quais não se tem afinidade (decide-se por maioria, nos conselhos científicos, a distribuição das diferentes disciplinas - em termos de qualidade e de quantidade); instabilidade do tipo de serviço docente (os conteúdos das disciplinas sofrem constantes alterações - a experiência acumulada perde-se); a duração das aulas teóricas (numa aula expositiva de hora e meia, um professor não consegue que o aluno a siga); não se pode educar para uma atitude subserviente (seria suicida preparar pessoas incapazes de se confrontar com os problemas que encontrarão na sua vida); o professor não deve controlar as presenças nas aulas, porque isso é deseducativo para ambas as partes (os professores marcam faltas para garantir alunos na aula; e os alunos vão contrariados). A nomeação definitiva para os quadros - muitos professores que estão nomeados definitivamente em determinada instituição não vêem motivos para trabalhar mais e melhor - e acabam por bloquear novas entradas. Há muitos destes maus professores que nem sequer dão as suas aulas, mas dão aulas fora, e não publicam nada. 101 O pior defeito é não querer que os alunos saibam mais, ou sejam mais capazes do que ele, e usam a avaliação para castigar esses alunos - é o lado negro da avaliação: a maior parte não faz exames de zero a vinte, mas de zero a dezasseis; avaliam as respostas mais ou menos (os alunos nunca têm zero, mas também nunca têm mais de dezasseis - dão muitos dezasseis para pacificar os alunos, e não corrigem os exames). Não há condições para a inovação (até para inserir questões novas nos programas - se dá algo que não está lá textualmente, tem que justificar no Conselho Pedagógico). 8. Maiores Qualidades do Professor/ Ideal de Ensino As aulas devem ser dadas de maneira a serem agradáveis para ambas as partes: para o professor e para os alunos. Se o professor der umas aulas expositivas muito boas isso ajuda, mas não chega. Ele tem que ter um mínimo de ordem: respeitar um horário de trabalho; orientar os alunos dando-lhes indicações bibliográficas e outras indicações necessárias. Não se deve motivar deliberadamente os alunos no ensino superior no sentido de os moldar; devese, antes, respeitar a individualidade de cada um. Entre professor e alunos existe um contrato informal em que há um indivíduo que sabe mais e outros que não sabem tanto. Em cada disciplina, o professor deve disponibilizar aos alunos o seu saber e a sua experiência para que eles, depois e autonomamente, possam lidar com as questões dessa área de saber. Os alunos têm que ter uma autonomia enorme, e devem chegar a patamares de desenvolvimento mais rapidamente do que antes acontecia. Com a informação em constante evolução, disseminada e disponível que hoje existe, os professores já não são donos exclusivos destes saberes. Devem considerar que fizeram um bom trabalho se um ou outro aluno os ultrapassar. Neste sistema de ensino, as notas vão de zero a vinte, e é em toda essa escala que se devem avaliar os alunos. 102 A classificação que os professores fazem dos alunos é da sua competência e responsabilidade: se não houver nenhum critério objectivo, as pessoas irão ser mais tarde seriadas com base em critérios arbitrários e subjectivos. Um melhor ensino exige duas grandes mudanças: a redução para metade das horas lectivas; e a flexibilização do emprego na universidade - se as nomeações fossem definitivas mas não neste sentido de ficar para sempre em determinado sítio, os professores (se tivessem que concorrer a vários sítios) esforçavam-se mais para ter qualidade. Não se deve dar disciplinas com as quais não se sente qualquer afinidade, e deve haver estabilidade em termos de conteúdos para se conseguir afinar estratégias e não desperdiçar a experiência acumulada. Não crê que vá haver mudança nos próximos cinco ou dez anos porque, para isso, era necessário que o sistema se tornasse mais instável (e os actores não gostam dessa instabilidade). Jaime Almada A - Como o Professor Dá Aulas 1. Material Didáctico/ Número de Alunos por Turma Pré-graduações: aulas teóricas (1 o ano - 150 alunos; 5o ano: 20 alunos) Pósgraduações: 20 alunos. A própria voz é o material didáctico que mais utiliza, e às vezes recorre a acetatos (pré e pós graduações). 103 2. Modo/Métodos Pedagógicos As aulas são sobretudo expositivas, e também faz trabalhos de grupo - as propostas é o professor que as conduz. Defende o ensino com alguma directividade: o professor tem que saber o que quer, e o que quer ensinar aos alunos, não pode pôr tudo à negociação. Nunca dá dois anos exactamente iguais: tem um programa base onde, em cada ano, inclui assuntos novos, nova bibliografia... Prepara geralmente aula a aula. Quando excepcionalmente não prepara uma aula, essa não corre tão bem. Aprendeu a dar aulas reflectindo sobre os modelos que tinha tido quando era aluno: pensou nas aulas que gostava, e como é que os professores faziam. 3. Investigação/Trabalho Lectivo Pré-graduações: no 1 o ano, dá só a matéria curricular servindo-se de livros. Pós-graduações: organiza as sessões com base no próprio material de investigação, expondo o seu trabalho com enquadramentos teóricos de outros autores; e serve-se da sua investigação para ilustrar perspectivas teóricas. A progressão na carreira académica tem que incluir o desempenho pedagógico - com base nas avaliações feitas pelos alunos. B - Como o Professor Vê os Alunos 4. Homogeneidade/ Heterogeneidade dos Alunos Os alunos de há anos atrás eram mais motivados (vinham para este curso porque o escolhiam); hoje entram muitos alunos cuja primeira escolha não foi esta. 104 Não conhece os alunos do 1 o ano; conhece os do 5o ano e dos mestrados, e tem com eles uma relação individualizada - conhece-os pelo nome, são muito diferentes uns dos outros, e têm projectos de vida diferentes. Há diferenças também no desempenho académico dos alunos: os bons alunos - que se interessam, que questionam, que querem fazer trabalhos (têm bom aproveitamento); e os alunos que não se envolvem (que só querem passar no exame - isso é da responsabilidade deles). Há muito poucos maus alunos, como há muito poucos muito bons alunos - são os extremos da curva normal. Os bons alunos são semelhantes no desempenho das suas disciplinas - o professor atribui à sua própria atitude (por ser ele que conduz as propostas) a causa desta semelhança. 5. Feed-back dos Alunos nas Aulas/ Fora das Aulas Nas aulas, os feed-backs traduzem-se numa ou outra questão que os alunos colocam (o que revela ao professor o seu interesse pela matéria). Os alunos interessam-se pelas suas aulas, porque vêm voluntariamente. O interesse dos alunos está directamente relacionado com o investimento que o professor coloca nas aulas: se não prepara uma aula e começa "com aquele paleio de professor universitário, eles começam a desandar". Os resultados dos inquéritos de avaliação que os alunos respondem nunca devem ser ignorados, mas rentabilizados: estes resultados constituem um instrumento de avaliação dos professores; e cada professor deve ter acesso aos de todos os seus colegas. Fora das aulas tem relações individualizadas com os alunos, e conversa com eles sobre assuntos não apenas restritos à vida académica, mas de âmbito mais alargado - sobre os seus projectos de vida. Isso acontece dentro da faculdade (no gabinete; no bar...); e fora dela (um café, por exemplo). 105 6. Características Positivas/ Negativas dos Alunos Características negativas: ser mau aluno (é muito raro) - ter desadequações ao que devem ser as aprendizagens de um futuro psicólogo (pouca capacidade de descentração, p.e.), bem como capacidades de aprendizagem baixas; ser desimplicado (às vezes tem) - que não investem em termos de trabalho (alunos que entraram com média alta e que não estão muito motivados para o curso porque este não foi a sua primeira escolha - a haver qualquer relação entre a média de acesso e o desempenho académico, será uma relação inversamente proporcional); e assumir-se como um mero receptor (atitude dos alunos que se remetem a um papel de meros receptores do sistema - do que o professor quer dar, ou do que o sistema quer ensinar). Característica positiva: os alunos têm voz activa, que deve ser também um instrumento correctivo das más práticas de maus professores (os alunos devem poder falar do clima pedagógico, do que está mal, devem poder recorrer, para o conselho pedagógico, de más pedagogias). C - Como o Professor se Vê e a Outros Professores 7. Piores Defeitos do Professor e do Sistema O pior defeito é ter-se como um académico a 100%, o que se caracteriza pelo convencimento e pelo distanciamento. Ou seja, para este professor a universidade é a cúpula do mundo, e ele próprio é o centro do mundo; não olha para os alunos, e está convencido que é um génio ou que tem um grande currículo que um aluno nunca atingirá. Este é um mau professor, tem más práticas, e prejudica os alunos, porque faz deles meros receptáculos que estão nas aulas a tirar apontamentos: não lhes dá atenção; faz avaliações ao final do ano "para despachar" (sem conhecer os alunos, avalia o seu trabalho de um ano em duas horas); não tem horários de atendimento, ou não os recebe fora 106 desses horários... Há professores que discriminam alunos por preferências afectivas sem se incomodarem com isso. Um professor que tem uma relação pedagógica má é um mau professor (mesmo que cientificamente seja muito bom) porque não consegue transmitir aos alunos o mais importante - a atitude do gosto pelo conhecimento; aquele que não trabalha diarimente é um mau professor; tal como o é o que utiliza mecanismos coercivos para controlar o absentismo. Há más condições que dificultam - e muitas vezes impedem - as boas práticas pedagógicas: o entrevistado aponta o elevado número de alunos nas aulas práticas, e o elevadíssimo número de alunos na sua aula teórica do 1 o ano. A solução implica orçamentos que as universidades não têm, porque o estado está a desinvestir em favor do ensino privado. 8. Maiores Qualidades do Professor/ Ideal de Ensino Um bom professor de ensino superior conjuga duas competências: a pedagógica e a científica - a pedagógica é imprescindível, e traduz-se em "gostar dos alunos - gostar de ser professor e gostar de ter alunos" - há assim condições para existir uma boa relação pedagógica que permite transmitir a atitude do gosto pelo conhecimento; a competência científica do professor refere-se a um bom domínio das matérias que lecciona, o qual é adquirido não só nos manuais ou nas últimas revistas da área, mas no trabalho de investigação próprio e dos pares. Esta competência é importante, mas não é imprescindível: um grande especialista que tem uma relação pedagógica má, não pode ser um bom professor. O investimento que o professor coloca nas suas aulas reflecte-se no interesse dos alunos (revelado pelo número de presenças) - e é este o controle que faz ao absentismo (tenta que as aulas sejam estimulantes - se os alunos começam a faltar, interroga-se a si-próprio). Um bom professor tem consciência da relação humana que existe entre ele e os alunos, e previne a interferência de eventuais critérios afectivos (na avaliação, p.e.). 107 Para haver um ensino superior de qualidade, é preciso reunir estas condições: bons professores; uma avaliação que evolua para uma cultura da avaliação a qual se deve reflectir na progressão académica; os alunos têm que entrar no curso que escolhem e são responsáveis pelas suas decisões; as estruturas governamentais e direcções gerais devem criar as condições logísticas adequadas - boas instalações e bons equipamentos, possibilidade de contratar pessoal (docente e não docente), e de haver boas gestões universitárias. Estas devem criar um bom clima no contexto educativo - que se caracteriza pela "vontade de aí estar" (com espaços para o encontro e lazer, tal como para o trabalho diário). Francisco Couto A - Como o Professor Dá Aulas 1. Material Didáctico/ Número de Alunos por Turma Pré-graduações: aulas teóricas - 120 alunos no início (este número vai reduzindo); aulas práticas - 20 alunos; e aulas laboratoriais - 24 alunos distribuídos em 12 grupos (de 2 alunos por laboratório). Pós-graduações: até 20 alunos. Material didáctico: utiliza power points (para apresentar as ideias base); e software adequado à disciplina (para alguns exemplos) principalmente nas aulas de laboratório (a relevância dos problemas práticos exige ferramentas adequadas à sua resolução). Tenta fazer avaliação distribuída ao longo da disciplina (nem sempre consegue, por imposições do plano de estudos). 108 2. Modo/Métodos Pedagógicos lncentiva-se os trabalhos de grupo desde o 1 o ano. Na maioria das disciplinas, os grupos são pequenos (dois ou três elementos); em disciplinas de carácter laboratorial, os grupos são maiores (oito a dez elementos; às vezes, uma turma inteira a funcionar como uma espécie de pequena empresa). As aulas de laboratório são muito importantes (é preciso confrontar os alunos com problemas práticos e com as ferramentas para os resolver - é um curso de engenharia). Há programas cujos exercícios parecem jogos - é mais atractivo e interactivo: há feed-back na resolução dos exercícios, e a maioria tem diferentes resoluções. Aulas expositivas (às vezes os alunos apresentam os seus trabalhos). A avaliação é distribuída (e tenta-se fazer avaliações interdisciplinares com trabalhos que incluem várias disciplinas); em alternativa, há exame final. Os planos de estudo são muito detalhados. 3. Investigação/Trabalho Lectivo Tanto nas pré-graduações como nas pós-graduações, a investigação enriquece as aulas da área da investigação que se fez ou se está a fazer. Na fase de dissertação (pós-graduações) é que há uma relação próxima dos alunos com a investigação. Um professor é mais premiado pela investigação do que pela pedagogia (a legislação não inclui muito a pedagogia para os concursos) - mas os júris consideram-na (não é preciso fazer grandes alterações à legislação - flexibilizá-la, em cada instituição) A investigação, o ensino e a extensão universitária são as missões da universidade que constam nos estatutos - são as três igualmente importantes. 109 B - Como o Professor Vê os Alunos 4. Homogeneidade/ Heterogeneidade dos Alunos Pós-graduações - conhece os alunos (poucas pessoas, têm experiências diversificadas). Pré-graduações - não conhece os alunos (dá mais aulas teóricas do que práticas, logo tem dificuldade em conhecer os alunos). A maioria é do distrito do Porto (muito poucos vêm das ilhas e de outros lugares). Entre os alunos há diferenças nos seus conhecimentos: há alguns que sabem muito (a selecção para a universidade fez com que se transformassem em "máquinas de estudar"; e a quantidade e qualidade da informação hoje disponível conduziu à especialização). À excepção destes muito estudiosos, a maturidade dos alunos de hoje é mais tardia - o que se revela no seu comportamento "infantil e irreflectido" (principalmente no 1 o ano). 5. Feed-back dos Alunos nas Aulas/ Fora das Aulas Pré-graduação - há feed-backs dos alunos nas aulas (sobre os conteúdos apresentados e discutidos); fora das aulas, não há praticamente interacção com os alunos (não vêm muito tirar dúvidas). Pós-graduação - há muita interacção: os alunos têm experiências diversificadas de trabalho que trazem para as aulas e que aí se rentabilizam. É interessante existirem as avaliações dos professores (feitas pelos alunos) mas devem ser sempre lidas em contexto, e só como indicações (a maioria não responde de modo cuidado e atento a todos os itens do inquérito). Mas podem ser úteis para: detectar grandes desvios (um docente que falte muito), o que permite ao director do curso actuar; prevenir maus desempenhos dos docentes 110 (como sabem que vão ser avaliados, já fazem mais um esforço) - vale a pena existirem por isto, mesmo que até depois ninguém vá ligar muito aos resultados. 6. Características Positivas/ Negativas dos alunos A característica mais negativa (partilhada pela grande maioria dos alunos, e que tem vindo a aumentar) é uma motivação - adjectivada como egoísta, constante, individualista, interesseira e desagradável - na relação com a universidade, a qual consiste na atitude de "o que interessa é passar, e não tanto aprender" (o que interessa é ter o diploma para conseguir um lugar bem remunerado, e rejeitam matérias que não consideram úteis). Têm estratégias nos grupos relacionadas com esta atitude: os alunos mantêmse no mesmo grupo, tanto numa disciplina (em diferentes trabalhos - cada elemento tem sempre a mesma tarefa dentro do grupo, e fica só a conhecer essa), como em várias (cada elemento faz o trabalho de cada disciplina, e depois a nota é para todos). Por causa disto, alguns alunos acabam o curso com deficiências básicas - o que se irá reflectir na sua vida profissional (nos vários papéis que terão de assumir depois numa tarefa de colaboração). Existe a crença generalizada de que não se vai às aulas teóricas, e que só se estuda pouco antes dos exames - o que se reflecte em fracos resultados académicos (deve-se muito à má influência dos líderes das praxes - têm maus resultados). Alguns alunos só estudam ("máquinas de estudar" - 18, 19 e 20 a todas as disciplinas), mas a vida não é só estudar - estes alunos têm bom comportamento, ao contrário da maioria (mais no 1 o ano) - a maturidade dos alunos de hoje é mais tardia. A utilização que os alunos fazem da informação disponível (particularmente na internet) tem dois aspectos a considerar: um negativo - vão buscar trabalhos já feitos e entregam-nos como se fossem seus; e outro positivo - pesquisam para aprofundar conhecimentos - o que é bom, porque depois no trabalho terão que ter autonomia para responder aos desafios novos. 111 C - Como o Professor se Vê e a Outros Professores 7. Piores Defeitos do Professor e do Sistema O pior defeito é o distanciamento relativamente aos alunos - atitude do professor que entende que não tem que se preocupar com o modo de comunicar a ciência, porque a ciência vale por si; mas também é devido à forma como o ensino está organizado - nas aulas teóricas há dezenas ou centenas de alunos na mesma sala (é impossível ter contacto próximo com eles). Outro defeito relaciona-se com o facto da carreira universitária valorizar muito a investigação em detrimento do desempenho pedagógico, o que se traduz (por parte de alguns professores) num maior investimento na investigação: estes professores estão mais preocupados com a escrita de artigos e comunicações em conferência do que disponíveis para preparar e dar as aulas, e atender os alunos - que saem prejudicados desse confronto. Outro grande defeito refere-se a uma especialização excessiva do professor: há casos de docentes que têm uma disciplina à qual se dedicam muito durante bastante tempo, de uma forma isolada dos colegas e do contexto do curso, e que acabam por hipervalorizar essa disciplina relativamente a tudo o resto da sua vida - trata-se de uma imagem distorcida da realidade, e prejudica uma formação equilibrada dos alunos. Esta figura do carreirista encontra-se em qualquer categoria e em qualquer idade. Tenta-se reduzir esta especialização excessiva: há duas ou três reuniões de ano para determinado curso onde os professores do mesmo ano discutem a possibilidade de fazer, por exemplo, avaliações interdisciplinares (todos têm que comparecer, até porque são reuniões com cinco a dez pessoas, e nota-se que faltou determinado docente depois, tem que justificar a falta). 112 8. Maiores Qualidades do Professor/ Ideal de Ensino Aqui existem perfis de docentes bastante diferenciados: matemáticos (modelo do cientista); gestores (gestores de l&D, p.e., ou até quase gestores de empresa); engenheiros (de projecto, de produção);... e professores (no sentido em que se dedicam essencialmente à parte pedagógica). Não é possível eleger um dos perfis como o do melhor professor, porque isso não existe: é desta diversidade que resulta um bom corpo docente para os alunos. Um bom professor tem que ter estas capacidades: fazer investigação própria de preferência, liderando grupos (gestão da investigação); e traduzir isso em actividades pedagógicas consequentes (desde a estruturação dos cursos e disciplinas até à forma de leccionar a disciplina e de comunicar com os alunos). Na universidade, não se pode escolher entre a investigação e a pedagogia, porque são as duas importantes já que estão, com a extensão universitária, nos estatutos. Os professores mais equilibrados conseguem, no seu conjunto, equilibrar as três. Para atingir o seu ideal de ensino, planeia: melhorar os exemplos que apresenta nas aulas - aproximá-los mais da realidade que os alunos irão encontrar na sua vida profissional; conhecer melhor os alunos interagindo mais com eles - para lhes detectar eventuais falhas na matéria que apenas se têm revelado nas avaliações finais e, deste modo, poder actuar a tempo, prevenindo isso; tentar ter sempre aulas práticas nas disciplinas onde também tem teóricas - para ter as duas visões, porque ter só teóricas e não ter práticas agrava o problema do distanciamento. Acrescenta que o papel fundamental do professor de ensino superior é ensinar os alunos a aprender por eles e a ter autonomia. 113 SÍNTESE DE TODAS AS CATEGORIAS POR SUJEITO Manuel Rebelo As aulas são diferentes conforme se trate de pré-graduações e de pósgraduações, porque o objectivo de cada grau é diferente: o primeiro pressupõe uma formação básica para, mais tarde, o aluno vir a resolver questões científicas - não há investigação; no segundo grau pretende-se resolver essas questões - há investigação, e os cursos são construídos à volta delas. Nas prégraduações, há três tipos de aulas: as tutoriais - onde se discutem dúvidas; as teóricas - dá-se matéria nova com conteúdos de absorção e são passivas, pelo que numa aula de hora e meia faz uma exposição de meia hora, depois coloca perguntas à turma e finalmente recomeça com base nessas respostas, tentando mudar a atitude dos alunos; e as práticas - que são obrigatórias, o que é negativo tanto para os professores como para os alunos (os primeiros usam a possibilidade de marcar faltas para garantir a assistência nas aulas, e os segundos vão para lá muitas vezes contrariados). Tem feed-backs dos alunos nas suas aulas. Não concorda com a avaliação dos professores, porque os alunos não têm competências pedagógicas e científicas para a fazer (esta avaliação é uma estratégia para calar os estudantes e não vai resultar em nada). À excepção de uma disciplina, utiliza o seu trabalho de investigação nas aulas (tem algum pudor nisso, portanto tenta "não abusar"), já que estuda coisas humanas e portuguesas, e isso torna-se mais apelativo para os alunos. Se verifica que não fez bem o enunciado de um exame (a escolha das questões não é objectiva, é ele próprio que as faz e pode errar), revê a cotação dos exames. 114 Não conhece individualmente os alunos, e não vê diferenças entre eles (há mecanismos sociais coercivos que os uniformizam) mas há diferenças em termos de estrato social - entram actualmente na universidade 1% de alunos provenientes da classe média baixa (dez vezes mais do que há 30 anos). A característica mais negativa dos alunos traduz-se numa atitude não adequada ao ensino superior que consiste na crença de que não é necessário descobrir nada porque já está tudo feito - é só preencher a resposta certa, mesmo sem compreender (dificuldade de pensar pelas suas próprias cabeças). A característica positiva fundamental dos alunos é uma "autonomia enorme": devem saber lidar autonomamente com questões das diferentes áreas de saber, e chegar a patamares mais rapidamente do que outros anteriores conseguiram. O pior defeito de um professor é não querer que haja alunos mais capazes do que ele, utilizando o lado negro da avaliação para castigar esses alunos - estes são os maus professores que fazem exames de zero a dezasseis, dão muitos dezasseis para evitar tensões e não corrigem os exames; não dão as suas aulas na própria instituição mas dão aulas fora, e não publicam nada. A maioria tem nomeação definitiva nos quadros da instituição, por isso não vê motivos para trabalhar mais e melhor - esta condição permite as más práticas dos maus professores. Outras condições que não favorecem as boas práticas pedagógicas são: leccionar disciplinas com as quais não se tem afinidade, bem como disciplinas cujos conteúdos são constantemente alterados, e aulas teóricas expositivas demasiado longas (os alunos não as seguem); e a existência de obstáculos à inovação nas aulas (o professor tem que justificar no Conselho Pedagógico algo que dê e que não está textualmente no programa). Um bom professor tem "um mínimo de ordem": respeita um horário de trabalho, e orienta os alunos dando-lhes indicações bibliográficas e outras necessárias. As aulas devem ser dadas de maneira a serem agradáveis para professor e alunos, pelo que não basta dar aulas expositivas muito boas - é preciso conjugar alguma sedução com a transmissão de conhecimento tecnológico. Não motiva os alunos no sentido de os moldar, antes respeita a individualidade de cada um, e disponibiliza-lhes o seu saber e a sua experiência para que eles, depois e autonomamente, possam lidar com as questões daquela área de saber e atinjam patamares de conhecimento mais rapidamente - assim, 115 quando um ou outro aluno o ultrapassa, este professor considera que fez um bom trabalho. A avaliação que faz dos alunos abarca toda a escala (zero a vinte) e é da competência e responsabilidade do professor (fazê-la criteriosamente é prevenir posteriores seriações com base em diversas arbitrariedades). Para um melhor ensino, seriam necessárias duas grandes mudanças: a redução para metade das horas lectivas; e a não permanência na mesma instituição dos professores com nomeações definitivas (se tivessem que concorrer a vários sítios, esforçavam-se mais). Mas estas mudanças só poderão ocorrer num sistema mais instável, e os actores não gostam dessa instabilidade - assim, nos próximos cinco ou dez anos, não haverá mudança. Jaime Almada Tanto nas pré como nas pós graduações, as aulas são sobretudo expositivas, sendo a própria voz o material didáctico que mais utiliza - às vezes, recorre a acetatos. Na aula teórica do 1 o ano (150 alunos) não utiliza o seu trabalho de investigação - dá a matéria curricular servindo-se de livros; na aula teórica do 5o ano e nas pós-graduações (20 alunos cada) utiliza o seu trabalho de investigação, organizando as aulas com base no respectivo material. Também faz trabalhos de grupo. Nunca dá dois anos exactamente iguais (tem um programa base a partir do qual, em cada ano, vai fazendo alterações), e prepara geralmente aula a aula - o interesse dos alunos está directamente relacionado com o investimento que o professor coloca nas aulas, e é revelado pelo número de presenças (se faz algum controle ao absentismo, este traduzse na tentativa que as aulas sejam estimulantes); quando os alunos começam a faltar, interroga-se a si próprio sobre isso. Defende o ensino com alguma directividade - o professor tem que saber o que quer, não pode pôr tudo à negociação. Para além do trabalho de investigação, a progressão na carreira académica tem que incluir o desempenho pedagógico - baseado nos resultados dos 116 inquéritos de avaliação (respondidos pelos alunos) que devem ser acessíveis a todos os professores. Não conhece os alunos do 1 o ano; com os do 5o ano e dos mestrados tem uma relação individualizada (conversa com eles na faculdade fora das aulas e, às vezes, fora da faculdade) sobre assuntos não apenas restritos à vida académica - estes alunos são diferentes uns dos outros e têm projectos de vida diferentes. Nas aulas, os feed-backs traduzem-se em questões que os alunos colocam, o que revela ao professor o seu interesse. Há diferenças entre os alunos relativas ao desempenho académico: os alunos que se envolvem geralmente têm bom aproveitamento que é bastante uniforme (atribui a causa dessa uniformidade a si próprio enquanto professor que conduz as propostas); outros que não se envolvem, e que só querem passar no exame (o que é da responsabilidade deles); e há muito raramente maus alunos (cujo perfil se revela desadequado a um futuro psicólogo, ou cujas capacidades de aprendizagem são baixas). De modo geral, os alunos de há anos atrás eram mais motivados do que os actuais (hoje entram muitos alunos cuja primeira escolha não foi esta). A característica mais negativa que os alunos podem ter é remeterem-se a meros receptores do sistema (do que o professor quer dar, ou do que o sistema quer ensinar); a mais positiva é a capacidade de terem voz activa. Esta capacidade dos alunos deve ser usada também como instrumento correctivo das más práticas de maus professores que os prejudicam, ou seja, que fazem dos alunos meros receptáculos que estão nas aulas a tirar apontamentos - não lhes dão atenção; não trabalham diariamente; utilizam mecanismos coercivos para controlar o absentismo; avaliam todo o trabalho de um ano em duas horas; não têm horários de atendimento, ou não os recebem fora desses horários... O pior defeito de um professor é ter-se como um académico a 100%, o que se caracteriza pelo convencimento e pelo distanciamento - não olha para os alunos, crê que é um génio ou que tem um grande currículo que um aluno nunca atingirá. Um bom professor de ensino superior conjuga duas competências: a pedagógica e a científica. A primeira traduz-se em "gostar dos alunos" e é imprescindível - permite transmitir o mais importante que é o gosto pelo conhecimento; a segunda refere-se a um bom domínio das matérias adquirido 117 sobretudo no trabalho de investigação próprio e dos pares - sendo importante, esta competência não é imprescindível (um bom investigador que tem uma relação pedagógica má não pode ser um bom professor). Jaime Almada refere que há más condições que dificultam - e muitas vezes impedem - as boas práticas pedagógicas: o elevado número de alunos nas aulas práticas, e o elevadíssimo número de alunos na sua aula teórica do 1 o ano (a solução implica orçamentos que as universidades não têm - o estado está a desinvestir em favor do ensino privado). Para haver um ensino superior de qualidade, é preciso reunir estas condições: bons professores; uma avaliação que evolua para uma cultura da avaliação a qual se deve reflectir na progressão académica; os alunos devem entrar no curso que escolhem e são responsáveis pelas suas decisões; as estruturas governamentais e direcções gerais têm que criar as condições logísticas adequadas, e as gestões universitárias um bom clima no contexto educativo com espaços para o encontro e lazer, tal como para o trabalho diário. Francisco Couto Nas pré-graduações há aulas: teóricas - que são expositivas (120 alunos no início e, depois, vai reduzindo) com recurso a power points para apresentar as ideias fundamentais; aulas práticas (20 alunos distribuídos em grupos de 2 ou 3 alunos); e aulas laboratoriais (24 alunos distribuídos em 2 grupos de 12 alunos por laboratório - às vezes, uma turma inteira a funcionar como uma pequena empresa). Nestes dois últimos tipos de aulas o professor apresenta exemplos com software adequado à disciplina, principalmente nas aulas de laboratório (muito importantes - é preciso confrontar os alunos com problemas práticos e ferramentas para os resolver; e é mais atractivo e interactivo - há feed-back na resolução dos exercícios, tendo a maioria diferentes resoluções). Tenta fazer avaliação distribuída e interdisciplinar, mas nem sempre consegue - por imposições dos planos de estudos (muito detalhados). Privilegia-se e incentiva-se os trabalhos de grupo desde o 1 o ano. 118 Nas pré e pós-graduações, o professor utiliza o seu trabalho de investigação nas aulas (da mesma área). Nas pós-graduações - na fase de dissertação - é que há uma relação próxima dos alunos com a investigação. Se um professor é mais premiado pela investigação do que pela pedagogia, os júris (nos concursos) consideram esse factor (não há necessidade de alterar a legislação - flexibilizá-la talvez, mas dentro de cada instituição). Conhece os alunos das pós-graduações (são poucos, e têm experiências diversificadas) e não conhece os das pré-graduações (dá mais teóricas do que práticas). Relativamente aos de anos atrás, actualmente há alguns alunos que sabem muito: a selecção para a universidade criou "máquinas de estudar"; e a grande quantidade e qualidade da informação hoje disponível conduziu à especialização. À excepção destes muito estudiosos, a maturidade dos alunos de hoje é mais tardia (revela-se no comportamento "infantil e irreflectido", principalmente no 1 o ano). Na pré-graduação, há feed-backs dos alunos nas aulas (conteúdos apresentados e discutidos), e quase não os há fora das aulas (não vêm muito tirar dúvidas); na pós-graduação há muita interacção - os alunos têm experiências diversificadas de trabalho que trazem para as aulas. As avaliações dos professores feitas pelos alunos devem ser lidas apenas como indicações (a maioria não responde cuidadosamente ao inquérito), mas são úteis para detectar grandes desvios e prevenir maus desempenhos dos docentes - por isto é bom existirem. A característica mais negativa (partilhada pela maioria dos alunos) consiste na atitude de "o que interessa é passar, e não tanto aprender" - que conduz a outros comportamentos negativos por parte dos alunos: rejeitam matérias e disciplinas que não consideram úteis; mantêm-se estrategicamente no mesmo grupo em todas as disciplinas - o mesmo elemento tem sempre a mesma tarefa (só conhece essa), e também acontece cada elemento fazer o trabalho de cada disciplina (a nota é para todos); não vão às aulas teóricas, e só estudam pouco antes dos exames; vão buscar trabalhos já feitos à internet, e entregam-nos como seus. Também utilizam de modo positivo essa informação - para aprofundar conhecimentos (no trabalho necessitarão desta autonomia para responder aos desafios novos). Nem sempre é positiva a atitude dos alunos muito estudiosos, porque a vida não é só estudar. 119 No que diz respeito ao professor, o seu pior defeito é o distanciamento relativamente aos alunos: este professor crê que a ciência vale por si, e não o preocupa o modo de a comunicar; mas também pode ocorrer devido ao elevado número de alunos nas aulas teóricas (é impossível o contacto próximo). Existem outros dois grandes defeitos do professor prejudiciais aos alunos: a carreira universitária valoriza mais a investigação do que o desempenho pedagógico (maior investimento na investigação); e a especialização excessiva do professor (hipervalorização de uma disciplina). A grande diversidade de perfis de docentes (matemáticos - modelo do cientista; gestores - de l&D; engenheiros - de projecto; e professores - que se dedicam sobretudo à pedagogia) é uma característica positiva da faculdade de engenharia, não sendo possível considerar um dos perfis como o de melhor professor porque é desta diversidade que resulta um bom corpo docente para os alunos. A investigação, o ensino e a extensão universitária são as missões da universidade que constam nos estatutos - como tal, são as três igualmente importantes, e um professor deve conseguir, no seu conjunto, equilibrar as três. Para Francisco Couto, um bom professor é capaz de fazer investigação própria (de preferência, liderando grupos), e de traduzir isso em actividades pedagógicas consequentes. Para atingir o seu ideal de ensino, planeia: melhorar os exemplos que apresenta nas aulas - aproximando-os da realidade que os alunos irão encontrar na sua vida profissional; conhecer melhor os alunos interagindo mais com eles - para lhes detectar eventuais falhas na matéria e poder actuar a tempo (tem-se apercebido dessas falhas só nas avaliações finais); tentar ter aulas práticas nas disciplinas onde também tem teóricas - para prevenir o distanciamento. Acrescenta que o papel fundamental do professor de ensino superior é ensinar os alunos a aprender por eles e a ter autonomia. 120 SÍNTESE GLOBAL DE TODAS AS CATEGORIAS DOS TRÊS SUJEITOS A. Como o Professor Dá Aulas Nas pré-graduações, as aulas teóricas dos três professores contam com mais de 100 alunos, e são expositivas com apoio em diverso material didáctico desde acetatos a power point. Os respectivos trabalhos de investigação não são utilizados habitualmente nestas aulas, no entanto Manuel Rebelo e Francisco Couto recorrem por vezes a esse material; Jaime Almada não utiliza a sua investigação no 1 o ano, mas as aulas do 5o ano e das pós-graduações (20 alunos) são organizadas com base nesse seu trabalho. Manuel Rebelo considera que não há investigação nas pré-graduações porque se verificam aí condições adversas de naturezas várias que o impedem, e só nas pósgraduações é que se faz investigação; para Francisco Couto é na fase da dissertação (pós-graduações) que há uma relação mais próxima dos alunos com a investigação. Além destas aulas, estes dois professores leccionam também aulas práticas, onde têm cerca de 20 alunos, e Francisco Couto lecciona ainda aulas laboratoriais onde os alunos são confrontados com problemas práticos e ferramentas para os resolver - através de programas informáticos interactivos, cujos exercícios são resolvidos em grupos de dois ou três alunos - privilegia-se e incentiva-se os trabalhos de grupo desde o 1 o ano. B. Como o Professor Vê os Alunos Nenhum dos três professores conhece individualmente os alunos das suas turmas numerosas de pré graduações. Manuel Rebelo não vê diferenças entre os alunos, mas considera que entram actualmente na universidade dez vezes mais alunos provenientes da classe média baixa do que há 30 anos. Jaime Almada vê os seus alunos do 5o ano e dos mestrados como diferentes uns dos outros e com projectos de vida diferentes; refere também diferenças a nível de 121 desempenho académico, e compara os actuais alunos com os de há anos atrás em termos de motivação (os anteriores eram mais motivados porque escolhiam este curso; hoje entram muitos alunos cuja primeira escolha não foi esta). Francisco Couto também conhece os seus alunos das pós-graduações, porque são poucos e têm experiências diversificadas de trabalho que trazem para as aulas; considera que existem diferenças entre os actuais alunos e os mais antigos - por um lado, hoje há alguns alunos que sabem muito; por outro lado, a maior parte revela uma maturidade mais tardia. Para os três professores, os feed-backs dos alunos nas aulas de prégraduação traduzem-se numa ou noutra questão relacionada com os conteúdos apresentados; nas aulas de pós-graduação há mais interacção. Fora das aulas, apenas Jaime Almada interage habitualmente com os alunos (do 5o ano e dos mestrados), conversando com eles sobre assuntos não apenas restritos à vida académica. Acerca da avaliação dos professores feita pelos alunos, Jaime Almada e Francisco Couto pronunciam-se a favor: o primeiro apresenta-a como um instrumento necessário e fundamental para avaliar o desempenho pedagógico os resultados nunca podem ficar na gaveta; o segundo defende que é útil para detectar grandes desvios e prevenir maus desempenhos dos docentes mesmo que depois ninguém ligue muito aos resultados. Manuel Rebelo não concorda com esta avaliação porque os alunos não têm competências pedagógicas e científicas para a fazer; e considera que se trata de uma estratégia para calar os estudantes - e não vai resultar em nada. Relativamente ao modo como cada um dos entrevistados se pronuncia sobre os alunos considerando características negativas e positivas, há várias perspectivas. Para Manuel Rebelo e Francisco Couto, o interesse que muitos alunos revelam em apenas passar às disciplinas (mesmo sem compreender os respectivos conteúdos) constitui a sua característica mais negativa - o primeiro relaciona-a com uma atitude muito generalizada nos alunos que consiste na crença de que não é necessário descobrir nada porque já está tudo feito; o segundo considera que dela decorrem estratégias negativas (falsear trabalhos e consequentes avaliações). Para Jaime Almada, a característica mais negativa que os alunos podem ter é remeterem-se a meros receptores do sistema e do professor; e a sua característica mais positiva é a capacidade de 122 terem voz activa que deve ser usada também como instrumento correctivo de más práticas pedagógicas. Os outros dois professores referem a autonomia que os alunos devem ter como característica mais positiva: Manuel Rebelo chama-lhe "autonomia enorme", e consiste na capacidade de lidar autonomamente com questões das diferentes áreas de saber; Francisco Couto declara que a autonomia é necessária para responder aos desafios novos que os alunos irão encontrar no mundo do trabalho. C. Como o Professor se Vê e a Outros Professores O pior defeito de um professor, para Manuel Rebelo, é não querer que haja alunos mais capazes do que ele - há maus professores que se servem estrategicamente da avaliação para prejudicar os alunos. Para os outros dois entrevistados, o convencimento e o distanciamento caracterizam o mau professor que ambos consideram ser aquele que se tem como um génio e que restringe o mundo à universidade e à sua área disciplinar: Jaime Almada afirma que um professor prejudica os alunos se faz deles meros receptáculos que estão nas aulas a tirar apontamentos; Francisco Couto apresenta duas razões para isto - a carreira universitária valoriza sobretudo a investigação, o que leva alguns professores a não investirem tanto na pedagogia; e o elevado número de alunos nas aulas teóricas inviabiliza o contacto próximo entre professor e alunos. Relativamente ao que os entrevistados consideram ser um bom professor, Manuel Rebelo defende "um mínimo de ordem" - o professor respeita um horário de trabalho e orienta os seus alunos dando-lhes as indicações necessárias às questões com que estão a trabalhar- não os tenta moldar, mas respeita a sua individualidade e disponibiliza-lhes o seu saber para que, autonomamente, possam chegar mais rapidamente a outros patamares de conhecimento (quando um aluno o ultrapassa, este professor considera que fez um bom trabalho). Acrescenta que as aulas transmissivas devem ser agradáveis para professor e alunos, pelo que o professor precisa usar de alguma sedução - não pode apresentar apenas conteúdos de absorção. Um melhor ensino exigiria duas grandes mudanças: a redução para metade das 123 horas lectivas; e a não permanência na instituição dos professores com nomeações definitivas (alguns professores não vêem motivos para trabalhar mais e melhor - isso alterar-se-ia se tivessem que concorrer a vários sítios). Para Jaime Almada, um bom professor deve conjugar duas competências: uma pedagógica e outra científica - a primeira é imprescindível (permite transmitir o mais importante que é o gosto pelo conhecimento); a segunda é importante, mas não é imprescindível (um bom investigador que tem uma relação pedagógica má não pode ser um bom professor). Um ensino superior de qualidade reúne estas condições: bons professores; uma avaliação que evolui para uma cultura da avaliação - e que se reflecte na progressão académica; os alunos entram no curso que escolhem e são responsáveis pelas suas decisões; as estruturas governamentais e direcções gerais criam as condições logísticas adequadas, e as gestões universitárias um bom clima no contexto educativo com espaços para o encontro e lazer, tal como para o trabalho diário. Francisco Couto caracteriza um bom professor como aquele que consegue responder equilibradamente às três missões da universidade (investigação, ensino e extensão universitária) porque são as três igualmente importantes, acrescentando que este professor deve ser capaz de fazer investigação própria (de preferência, liderando grupos), e de traduzi-la em actividades pedagógicas consequentes. Para atingir o seu ideal de ensino, planeia: aproximar os exemplos que utiliza nas aulas da realidade que os alunos irão encontrar na sua vida profissional; interagir mais com os alunos para lhes detectar eventuais falhas na matéria e poder actuar a tempo; ter aulas práticas nas disciplinas onde tem teóricas para diminuir o distanciamento entre ele e os seus alunos. 124 ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE OS DADOS E O MODELO TEÓRICO CONSIDERADO "... nas pós-graduações nós centramos os cursos à volta de questões. Ou seja, o pós-graduado é formado à custa da resolução de um problema; enquanto que o pré-graduado é formado no sentido de ter a bagagem mínima para, um dia, vir a resolver alguns problemas - a aprendizagem não é direccionada da mesma maneira." (Manuel Rebelo, 12/06/03) "... o pior defeito de um professor de ensino superior é convencer-se que é um académico a 100%. (...) É o distanciamento e o convencimento (...) o homem que pensa que a universidade é a cúpula do mundo; que o resto da sociedade vem um bocado por acréscimo - o "homo academicus" é isto!..." (Jaime Almada, 09/07/03) "Na pós-graduação (...) são números mais pequenos, portanto é mais fácil de conhecer as pessoas directamente, e são pessoas normalmente com experiência mais diversificada, porque a maioria está a trabalhar e, portanto, tentamos que essa experiência, de alguma maneira, seja reflectida nas próprias aulas (...), e isso faz com que a pessoa traga mais de si para as aulas...!" (Francisco Couto, 18/07/03) 126 A N Á L I S E DA R E L A Ç Ã O ENTRE OS D A D O S E O MODELO TEÓRICO CONSIDERADO: INTRODUÇÃO Procedemos agora à análise dos dados obtidos confrontando-os com o modelo teórico sobre práticas educativas representado no quadro "Quê, Como, Onde" de Stephen Stoer e de Luiza Cortesão11. Numa primeira etapa, consideramos o Eixo de Aquisição de Saberes (o quê de Bernstein), nas suas três divisões - conteúdo do manual (S1); utilização da produção científica de outrem (S2); e produção de conhecimento disciplinar pelo próprio (investigação) (S3) - as quais evoluem, respectivamente, de um maior grau de reprodução de conhecimento para um maior grau de produção de conhecimento; a segunda etapa diz respeito ao Eixo Metodológico (o como de Bernstein), nas suas também três divisões - educação bancária ou transmissiva (M1); educação activa e/ou investigativa (M2); e educação contextualizada (dispositivos de diferenciação pedagógica) (M3) - as quais evoluem, neste caso e respectivamente, de um maior grau de domesticação para um maior grau de emancipação dos indivíduos. Numa terceira etapa, tentaremos localizar as práticas dos três professores entrevistados no quadro referido, a partir dos cruzamentos resultantes entre aqueles dois eixos referidos (o que traduz o onde de Bernstein). Finalmente - e sempre confrontando os dados obtidos com o modelo teórico considerado - procuraremos conhecer aquilo que no mesmo modelo estará ou não de acordo com esses dados. 11 Ver Quadro na página 76: a abcissa representa o eixo de aquisição de saberes (reprodução/produção); a ordenada representa o eixo metodológico (domesticação/emancipação). Recorde-se que considerámos: S - S1, S2 e S3 - (saberes - na abcissa); e M - M1, M2 e M3 - (métodos - na ordenada). 127 EIXO DE AQUISIÇÃO DE SABERES: QUÊ Nas aulas teóricas das pré-graduações nenhum dos três professores entrevistados também deles recorre a manuais; mas nenhum usa habitualmente o próprio trabalho de investigação nestas aulas. Jaime Almada nunca o usa: "No 1 o ano (...) não falo da minha investigação, dou só a matéria curricular servindo-me de livros.". Os outros dois professores recorrem por vezes a esse material - quando acontece que a matéria leccionada se relaciona com as respectivas áreas de investigação: "... do trabalho de investigação que fiz já há alguns anos, retiro depois exemplos, retiro ideias até mais profundas (...) para justificar o interesse de certas coisas. (...) isso aconteceu porque eu, por acaso, fiz investigação desse lado, e utilizo-a; neste momento, já não estou a fazer- neste momento, a investigação é mais nos sistemas de informação - e são essas as aulas que beneficiam disso..." (Francisco Couto); Manuel Rebelo também utiliza a sua investigação naquelas condições, embora com algumas reservas "Eu tenho um certo pudor em fazer isso (...) isso vem, até porque estudo coisas humanas e muitas vezes portuguesas, acho que é mais apelativo (...) - espero não abusar!...". Assim, consideramos que a utilização da investigação própria por estes professores nas suas aulas teóricas das pré-graduações pode acontecer, mas apenas com um carácter ocasional ou não sistemático.12 Ressalva-se o caso de Jaime Almada no que se refere ao 5o ano de licenciatura (prégraduação) onde utiliza sistematicamente o seu trabalho de investigação - importa referir que este é o último ano do curso - muito próximo da pós graduação - sendo esta turma constituída por alunos que optaram pela área científica na qual este professor realiza as suas investigações; além disso, a turma tem cerca de 20 alunos (um número bastante baixo quando comparado com os 150 alunos da sua turma do 1 o ano). 128 Nas pós-graduações - e também no último ano do curso de licenciatura no caso de Jaime Almada - é outro o cenário revelado, já que são os três professores a referir a investigação como uma constante naquele nível: "...nas pós-graduações nós centramos os cursos à volta de questões. (...) o pósgraduado é formado à custa da resolução de um problema (...) ao fim de uma pós-graduação tem que ter publicado resultados que são internacionalmente aceites. Portanto, obrigatoriamente faz investigação." - são palavras de Manuel Rebelo; Jaime Almada recorre sempre ao seu trabalho para dar as aulas "... nos mestrados, organizo as sessões com base no meu material de investigação, portanto, exponho as investigações: os passos, resultados, para que é que serviu, o que é que se aprendeu..."; e Francisco Couto, embora não utilize sistematicamente a sua investigação nestas aulas, afirma que "...onde há mais proximidade, mais contacto, é na fase de dissertação (...) porque as aulas acabam por funcionar um bocado como aulas do 5o ano, não é propriamente nas aulas que se pega muito nos tópicos da investigação. Na parte de dissertação sim...". Pelo apresentado, podemos afirmar que as práticas dos três professores se incluem em S2 e S3: predominantemente em S2 - quando se trata de prégraduações; e predominantemente em S3 - quando se trata de pósgraduações. Estas práticas relacionam-se directamente com a produção de conhecimento (ao invés de S1, que se relaciona com a reprodução de conhecimento). Assim, é nas pós-graduações que tem lugar um maior grau de produção de conhecimento - o que está de acordo com o modelo teórico estudado. 129 EIXO METODOLÓGICO: COMO Se o processo de localização dos três professores no eixo de aquisição de saberes não levanta quaisquer dúvidas da nossa parte13, isso já não acontece quando pretendemos situar as respectivas metodologias de ensino neste eixo metodológico - aqui, deparamo-nos com um alargado conjunto de informação nos discursos de cada um deles os quais contêm, muitas vezes, dados aparentemente contraditórios: é disso exemplo o caso das aulas teóricas das pré-graduações. Relativamente a estas aulas, todos os professores se lhes referem como sendo expositivas: "... a minha obrigação é simplesmente transmitir..." e "... este acto de transmissão..." (Manuel Rebelo); "Eu sou um professor directivo! (...) Obrigo-os a adequarem-se a determinados critérios (...) o professor tem que saber o que quer, e o que quer ensinar aos alunos..."; e "as minhas aulas são bastante expositivas..." (Jaime Almada); "... temos aula de exposição ou de demonstração..." (Francisco Couto) - o que poderia levar-nos a situá-los, relativamente a este nível de ensino, em M1. Mas o discurso global que cada um destes professores apresenta relativamente às três grandes categorias consideradas14 não está de acordo com as características fundamentais daquele modelo pedagógico, pelo que podemos afinal considerar que nenhum deles recorre predominantemente à educação bancária ou transmissiva15. Também, grande parte do discurso de cada professor ultrapassa a sua inclusão em cada um dos dois níveis de ensino superior- mas considera ambos no seu conjunto - acabando por se referir fundamentalmente ao perfil do professor (do próprio, e de outros). Neste caso trata-se de identificar apenas o tipo de material utilizado nas aulas pelos professores, que foi por eles apresentado de modo objectivo. 14 Ver Anexo III. 15 Como poderemos constatar no decurso do trabalho. 130 Assim, no sentido de o mais correctamente possível identificarmos os três tipos de pedagogias - constantes neste eixo metodológico - nos discursos dos três professores, considerámos cada um deles em: Níveis de Ensino - Pré-graduação - Pós-graduação Tipos de Professor - Professor monocultural - Professor intermulticultural As características de ambos estes tipos de professor foram identificadas com base em Cortesão, L. (2000: 38, 48), como a seguir se apresentam. - O professor monocultural é descrito como... 1. cientificamente competente 2. com sólida preparação profissional, bom "tradutor" da complexidade da ciência 3. seguro e estável, que valoriza a cultura nacional tradicional 4. claro e interessante 5. paciente e trabalhador, distribuidor de saberes a todos os alunos 6. fonte/emissor de saber, equitativo 7. eficiente, justo e exigente 8. preocupado com dificuldades dos seus alunos, disponível 9. contribui para a construção do aluno-tipo ideal ... cujo enquadramento teórico corresponde, respectivamente, a 131 1. Escola como campo neutral de aquisição de saberes 2. valorização das metodologias e dos materiais estandardizados 3. valorização da estabilidade, valorização da importância de manter a cultura erudita e nacional 4. transmissão de saberes considerados importantes como prioridade 5. preocupação com a garantia de oferta de igualdade de oportunidades de acesso 6. massificação do ensino como forma de enfrentar a escola de massas, representação dos alunos como conjuntos homogéneos 7. aumento da competência, eficácia e normalização como objectivos; diferenças penalizáveis 8. explicações psicológicas e biológicas de handicaps existentes nos alunos 9. implicações na compreensão de handicaps existentes nos alunos. O professor intermulticultural é descrito como... 1. vulnerável à dúvida, e que portanto se interroga 2. não "daltónico cultural" 3. capaz de investigar (na área da sociologia) 4. capaz de investigar (na área da etno-sociologia) 5. capaz de identificar e analisar problemas de aprendizagem (investigador/educador) 6. capaz de elaborar respostas adequadas às diferentes situações educativas (investigador/educador) 7. flexível, agente e investigador (educador) que proporciona formas de aquisição de saber, de poder e de exercício de cidadania aos seus formandos . cujo enquadramento teórico corresponde, respectivamente, a 132 1. valorização do papel que pode ter a Escola no sucesso e no insucesso dos alunos 2. consciência do "arco-íris" de culturas existente na escola e na sala de aula 3. compreensão da escola como local de práticas conflituais, de cruzamento de diferentes poderes, interesses e valores; identificação de factores explícitos e ocultos que estejam a interferir em processos educativos; descoberta e alargamento de espaços de autonomia relativa dos professores e da escola 4. aceitação e rentabilização da diferença 5. aceitação da diferenciação de ensino como forma de contribuir para a semelhança de nível de sucesso 6. valorização da investigação-acção como quadro de trabalho; valorização da importância do desenvolvimento de dispositivos de diferenciação pedagógica; concepção de propostas de trabalho/ planificações alteráveis 7. concepção do bilinguismo cultural crítico e da consciência do direito à cidadania como meta. Considerámos então, para cada professor, o respectivo discurso distribuído em: Pré-graduação e em Pós-graduação (Níveis de Ensino) sendo-nos possível, deste modo, identificar as metodologias pedagógicas utilizadas - quer num, quer noutro nível de ensino; o restante discurso não atribuído, pelos professores entrevistados, especificamente a qualquer um destes níveis pôde ser por nós incluído, ora em Professor monocultural, ora em Professor intermulticultural (Tipos de Professor) - o que fornecerá informação capaz de melhor nos esclarecer aquando da identificação das metodologias pedagógicas que cada um utiliza16. 16 A este propósito, referimos de novo o caso da possibilidade da inclusão dos três professores em "educação bancária" no nível de pré-graduação - se considerássemos apenas o que foi dito pelo professor quando este se referiu especificamente ao modo como dá aulas naquele determinado grau de ensino. Mas isso não estaria correcto: por exemplo, no caso de Jaime Almada - que diz ser um professor expositivo e directivo - em outras partes do seu discurso declara que os alunos não 133 Para maior eficácia no trabalho, utilizámos aqueles algarismos - correspondentes a cada característica de descrição e de enquadramento teórico de cada um dos dois tipos de professor (monocultural e intermulticultural) - no texto relativo a cada professor entrevistado, sempre que aí identificámos as respectivas características17. Refira-se ainda que: - para cada um dos dois níveis de ensino, apresentamos uma sistematização no final de cada respectivo texto - que mostra a(s) possibilidade(s) de localização do professor no eixo metodológico, em cada nível de ensino; - para os dois tipos de professor, apresentamos uma única sistematização no final dos dois textos, já que pretendemos compreender se há maior ou menor proximidade e/ou afastamento em relação a um tipo ou a outro, e não tanto separar rigidamente os professores entrevistados por tipo - aliás, tratando-se de tipos ideais, não esperamos que cada professor entrevistado apresente exclusivamente as características de um dos tipos considerados. O processo para chegar à localização dos três professores no eixo metodológico apresenta-se a seguir. são meros receptáculos do que professor quer ensinar. Ora, um professor que faz esta última afirmação é claramente contrário ao tipo de educação bancária! 17 Aconteceu algumas vezes determinadas características serem identificadas pela negativa, isto é, observarmos uma característica contrária, por exemplo, ao tipo de professor monocultural - nestes casos, incluímo-la em professor intermulticultural, e acrescentámos a palavra não seguida do algarismo correspondente. 134 Manuel Rebelo NÍVEIS DE ENSINO - Pré-graduação; Pós-Graduação Pré-Graduação Os termos em que Manuel Rebelo se refere às aulas de pré-graduação revelam, da sua parte, uma postura crítica que se traduz em atitudes de rejeição/oposição relativamente a características fundamentais do modelo pedagógico transmissivo: "...são aulas, digamos, passivas!... - podiam-se chamar aulas, mas não serem esses conteúdos de absorção..."; "... podiam ser aulas tutorials, ou o diabo... São aulas, mesmo! - pretensamente, como se diz, dá-se matéria nova!!...18". E, relativamente a determinado tipo de professor cujas práticas se identificam com aquele modelo pedagógico diz, em tom jocoso19: "Se ele simplesmente der umas aulas tipo conferência espantosas isso ajuda, mas não chega.". Na leitura/apreciação que faz daquelas aulas coloca-se, por vezes, na perspectiva dos alunos eventualmente ali presentes "... uma aula expositiva de hora e meia não há ninguém que a consiga seguir (...) o aluno, ao fim de 40 ou 50 minutos (...) está completamente anestesiado!..." - esta atitude relaciona-se directamente com a capacidade de descentração da figura do professor (que 18 A expressão matéria nova - pronunciada ironicamente por Manuel Rebelo - referir-se-á a determinados assuntos que não constituirão propriamente novidade científica na respectiva disciplina. 19 Adjectivámos como "jocoso" o modo como foram ditas estas duas frases principalmente pelo tom que o entrevistado lhes imprimiu ao falar, e que é perceptível na respectiva gravação. De qualquer modo, cremos que as próprias palavras - aqui escritas - deixam transparecer essa atitude deste professor a qual, por si só, pode ser reveladora de uma não identificação, da sua parte, com o tipo de aulas transmissivas - ou educação bancária. 135 se consegue converter na de aluno) sendo por isso de natureza oposta à atitude de magistercentrismo que a educação bancária pressupõe. Nas suas aulas, considera o feed-back dos alunos no sentido de as melhorar: "... vamos aprendendo coisas (...) também, com a relação com os alunos, conforme o feed-back. (...)"; "tenho (...) 20 ou 30 minutos de exposição pura e dura; depois faço (...) uma verificação com duas ou três perguntas: mudo, tento mudar a atitude da aula...! E depois recomeço, conforme... dependendo das respostas..." - ou seja, as estratégias deste professor orientam-se no sentido de os alunos assumirem uma atitude mais activa em vez de uma outra atitude mais passiva. Também, e ainda em relação às suas aulas, considera que "... o melhor é dá-las de maneira a que seja agradável para ambas as partes!..." fazendo apelo a um clima positivo no qual inclui - em paridade no que se refere à satisfação naquele contexto - as figuras do professor e dos alunos. Assim, ambas as situações apresentadas traduzem a não identificação daquele professor com o modelo pedagógico de educação bancária. Rejeita as cargas lectivas existentes nas pré-graduações - que entende serem demasiado pesadas e, por isso, impeditivas da realização de trabalho de investigação por parte dos alunos: "... eles estão submersos em conteúdos lectivos pesadíssimos!!... (...) vinte e tal horas, vinte e seis, trinta horas por semana de conteúdos lectivos formais (...) como é que ele vai ter tempo e disponibilidade mental para fazer alguma investigação? Não tem!". Para além do factor tempo, identifica um outro relacionado com a preparação prévia dos alunos que contraria o desenvolvimento das competências necessárias à investigação - trata-se da atitude de imitação/repetição que o ensino secundário promove: "Na Pré-graduação é típico o aluno vir preparado para aprender uma receita que se aplica ao problema, e ele é capaz de identificar o problema 21 com a receita 21; se formos para situações onde esse tipo de solicitação não é tão elementar, ou seja, não se consegue identificar tão facilmente a receita com o nome do bolo, eles têm dificuldades...!...". Deste modo, vêm "... educados com um tipo de aptidões (...) que não são as que o ensino superior devia privilegiar.". 136 Assim, quando este professor considera que "... a pré-graduação não supõe que haja uma atitude criadora!..." e, como tal, apenas "...se pretende dar uma formação básica (...) não se habilita as pessoas para resolver problemas práticos20", paralelamente estabelece semelhanças de natureza negativa, na sua perspectiva, entre este nível de ensino superior e o ensino secundário "Cada vez estão mais parecidos!... Cada vez estão mais parecidos!..." - com o pressuposto que neste último nível referido as competências que se exigem aos alunos para o seu sucesso se traduzem na repetição do que o professor debita nas aulas. Tal como ali, também aqui no nível de pré-graduação do ensino superior "Os alunos não têm nenhuma liberdade de pensar pela sua cabeça!... De facto, quando muito, a liberdade que têm é para reconstituir por eles os ensinamentos do Mestre...". Neste contexto, será mais especificamente a esta atitude de repetição - que crê partilhada por ambos os sistemas de ensino e crescentemente assumida pela universidade - que Manuel Rebelo se opõe: "... essa atitude que as coisas estão feitas, que esta sociedade dá a conhecer as coisas às pessoas, e que as pessoas não têm que fazer mais do que preencher as respostas certas, e a vida não tem respostas certas - muitas das respostas são subvertidas por novas perguntas..."; "... uma das coisas que me choca é que eles não têm espírito matemático21!!... Os alunos finalistas de Matemática não têm!!... Ou seja, já é possível fazer o curso de Matemática todo - o que eu chamo a chapa 21 (...) - sabendo resolver um exercício e interpretá-lo..., um exercício e interpretá-lo...". Nesta sequência, afirma que "A graduação abastardou-se completamente.", o que reforça claramente a sua oposição a este tipo de atitude - a qual exclui a componente criadora ou investigativa. Expressões como "resolver problemas práticos", "resolver problemas", "resolver questões" são, no contexto do discurso deste professor, sinónimas de "realizar trabalho de investigação". 21 Para Manuel Rebelo, ter "espírito matemático" "...é pegar num problema, torná-lo abstracto, reduzi-lo às coisas mais simples e formalizá-lo de maneira a que ele te possa entender, também!" - o que se relaciona directamente com a atitude criadora (ou investigativa), e inversamente com a repetição (ou reprodução). 137 Pelo que acabámos de expor sobre o discurso de Manuel Rebelo relativamente ao ensino superior no nível de pré-graduação, parece-nos pertinente afirmar que este professor não se identifica nem age de acordo com as características fundamentais do modelo pedagógico transmissivo ou educação bancária. Portanto, não estará situado em M1. Deverá, então, situar-se em M2 ou em M3?22 - M2 (se considera os alunos como grupos homogéneos); - M3 (se considera a heterogeneidade dos alunos). Pós-Graduação Neste nível de ensino, o professor assume que o tipo de aulas é diferente "Porque os objectivos são muito diferentes!", e acrescenta que "A única coisa que a universidade ainda continua a ter alguma coisa a funcionar, usando o palavrão da "qualidade" (...) é a pós-graduação.". Isto porque o que mais distingue o nível de pós-graduação do outro nível de pré-graduação é a actividade de investigação que "... é um conjunto de ferramentas mentais que têm que ser postas em uso e interiorizadas pelos actores...". A presença da investigação caracteriza o primeiro (e está muito ausente no segundo): "... no pós-graduado por definição: tipicamente qualquer aluno que tenha o azar de se meter comigo, ao fim de uma pós-graduação tem que ter publicado resultados que são internacionalmente aceites. Portanto, obrigatoriamente faz investigação." 22 Para conseguirmos responder a esta pergunta, teremos que situar este professor relativamente aos tipos monocultural e intermulticultural - o que faremos em próximas páginas. 138 Assim, "... a aprendizagem não é direccionada da mesma maneira" nos dois diferentes níveis de ensino porque, ao contrário das pré-graduações, "... nas pós-graduações nós centramos os cursos à volta de questões", isto é, "... o pós-graduado é formado à custa da resolução de um problema" - mesmo que esse problema não constitua propriamente novidade científica na área "... pode ser recapitular um problema que até já foi resolvido por muita gente...". De qualquer modo, existe sempre "...uma actividade criadora do envolvido". Se, por um lado, Manuel Rebelo defende uma "autonomia enorme" por parte dos alunos em geral, no caso particular dos alunos de pós-graduação - em que é assumida a actividade criadora como necessária - essa autonomia torna-se imprescindível. Assim, o professor apenas deverá fornecer determinadas indicações no sentido de evitar aos alunos eventuais perdas de tempo: "Olhe, não vale a pena perder tempo com isso, isso já está resolvido!"; ou "Este ainda está por estudar, veja lá se isso lhe pode vir a interessar!..." - procurando não interferir/intervir desse modo no processo educativo. Pelo que acabámos de expor sobre o discurso de Manuel Rebelo relativamente ao ensino superior no nível de pós-graduação - em que criação e autonomia são condições necessárias - excluímos, também neste caso, a sua localização em M l Depois de considerarmos a respectiva aproximação aos tipos de professor monocultural e de professor intermulticultural - principalmente no que se refere ao modo como vê os alunos em termos de homogeneidade/heterogeneidade poderemos situar este professor, no nível de pós-graduação, relativamente a M2ou a M3. 139 TIPOS DE PROFESSOR - Professor Monocultural; Professor Intermulticultural Professor Monocultural Quando perguntamos a este professor se conhece os seus alunos individualmente, revela expressão de espanto: "Ai! Valha-me Deus!... Eu não! Nunca misturei a profissão com... os aspectos sociais...". E, entre os alunos actuais e os de há cerca de trinta anos atrás (com excepção para as respectivas origens em termos de estratos sociais) diz: "Eu não acho que haja diferença...!" (6). Sobre a existência, ou não, de feed-backs dos alunos fora das aulas, responde pela afirmativa, mas imprime a esses feed-backs uma carga negativa - o que será equivalente a dizer que, na sua perspectiva, seria preferível não acontecerem: "Sim! Ainda por cima porque eles têm feito isto (IPATIMUP) famoso e badalado, nós estamos assediados (...) para virem cá fazer estágios, e tal..."23 (6). Assume claramente uma atitude de rejeição perante a atribuição, aos alunos, do papel de avaliadores dos professores porque aqueles não estão equipados para isso e, portanto, não devem "Nem ser avaliadores nem pedagógicos, nem científicos..." (não 7 intermultic), já que "...os professores universitários (...) socialmente e historicamente estão detentores de uma série de competências que não podem ser avaliadas a jusante, senão é a destruição total..." (3). E, no que se refere à avaliação que os professores fazem aos desempenhos dos alunos, esta é indispensável e deve ser objectiva - o que acontece "... se nós temos uma pergunta muito objectiva e que, no fundo, os critérios operativos de satisfação estão claros, depois a resposta ou satisfaz, ou não ;!3 Manuel Rebelo não terá sido professor de grande número dos alunos que refere, porque estes que procuram o IPATIMUP para aí fazerem estágios são oriundos também de outras faculdades, e não apenas da de Ciências. 140 satisfaz - não há muito meio termo...!"; "... se não houver nenhum critério objectivo, se nós que fomos investidos dessa função (...) não oferecemos resultados objectivos numa classificação, então depois a seriação das pessoas vai ser feita pelos mais subjectivos critérios que imaginar se possa..." (7). Nas aulas, o professor deve dar as matérias curriculares de modo a interessar os alunos: "...o professor tem que conjugar a sedução - um mínimo de sedução, sem dúvida! - mas tem também que dar esse lado mais tecnológico, mais operativo." (4). Professor Intermulticultural No discurso de Manuel Rebelo podemos ainda identificar, por um lado, algumas características monocultural que são contrárias (susceptíveis de serem às do tipo lidas, deste modo, de professor mais como características do tipo de professor intermulticultural) e, por outro lado, várias atribuídas ao tipo de professor intermulticultural. Relativamente às características que se opõem às de professor monocultural, consideremos: - apesar de afirmar não conhecer os seus alunos, revela a existência de relações interpessoais professor-alunos: "... envolvi-me imenso com muitos alunos, ao longo destes anos todos!..." (não 6); - não atribui o insucesso a características psicológicas e biológicas (handicaps) dos alunos (como é o caso daquele tipo de professor): "De vez em quando há um aluno que andou ali a fazer a cadeira, a tentar fazer a cadeira durante tempos (...) e, de repente, percebe finalmente o que é que está em jogo, percebe que andou a perder tempo com as estratégias que seguiu, e é quase uma iluminação religiosa: a partir daí, ele que chumbou 141 sempre, por exemplo, tira 15, ou 17, dum momento para o outro!... Portanto, não é aquilo que se chamaria uma deficiência, é um problema mais de entender quais são os objectivos, e as dúvidas dele." (não 8); - apesar de apresentar a prática de uma avaliação objectiva dos alunos como importante, considera eventuais factores imprevistos revelando, deste modo, atitudes opostas àquelas outras de segurança e de estabilidade que caracterizam o professor monocultural: "...temos muita dificuldade (alguns de nós, pelo menos!) em avaliar aquilo que extravasou, aquilo que nós próprios fomos capazes de prever como (...) "resposta correcta" a uma situação." (não 7). Relativamente às características que, pela afirmativa, caracterizam o tipo de professor intermulticultural, consideremos: A propósito da realização dos enunciados de exames de avaliação, podemos observar que este professor se questiona e se considera susceptível de erro, mostrando-se vulnerável à dúvida: "... aquilo que não se pode prever de objectivo quando se faz um ponto (...) uma pergunta que eu julgava que devia ser respondida por toda a gente, afinal não o é; e pode acontecer o contrário..."; "... os pontos não podem ser aferidos antes (...) portanto têm que ser ensaiados perante mim mesmo, o que dá com que às vezes os pontos têm erros...". Para além disso, reflecte sobre a atitude da "resposta certa" - que crê, e lamenta, estar muito difundida nos alunos relacionando-a directamente com o elevado grau de insucesso nas suas disciplinas: é "... essa atitude que as coisas estão feitas, que esta sociedade dá a conhecer as coisas às pessoas, e que as pessoas não têm que fazer mais do que preencher as respostas certas, e a vida não tem as respostas certas - muitas das respostas são subvertidas por novas perguntas..." (1). Quando afirma que actualmente há dez vezes mais alunos no ensino superior provenientes de estratos sócio-económicos médio baixos do que há trinta anos atrás, identifica/assume claramente essa heterogeneidade: 142 "Hoje (...) a cobertura universitária é muito maior! (...) No meu tempo (...) vamos supor que era 0,1%; agora é 1% - é só dez vezes mais! 24 (...) tiveram que os ir buscar a algum sítio...!" (2). E, embora constate homogeneidade nos alunos, o modo como a justifica leva-nos também a pensar que este professor considera a heterogeneidade, apresentando aquela homogeneidade como resultado/consequência de outros factores: "Há aí uma série de mecanismos sociais mais ou menos coercivos que os põem bastante uniformes - desde as praxes àquelas coisas todas...!" - com base nesta justificação, consideramos que este professor se identifica com 2e3. Aliás, no seu discurso estão constantemente presentes ideias que revelam, da sua parte, a compreensão da escola como local de práticas conflituais, de cruzamento de diferentes poderes, interesses e valores, bem como a identificação de factores explícitos e ocultos que interferem em processos educativos (3), quando refere: - o modo como a cada docente é distribuído o respectivo trabalho: "... instalou-se um simulacro de democracia (...): os doutores reúnem-se, fazem o levantamento das aulas que têm que dar - face aos imperativos económicos que agora são fundamentais...! - e então distribuem o serviço docente por cabeça (...) eu sou um entre trinta e tal, ou vinte e tal - depende dos conselhos científicos - e cada homem é um voto! Portanto, eu posso ser posto, democraticamente, a dar uma disciplina com a qual não tenho nenhuma afinidade!..."; - as implicações da existência de quadro docente fixo e respectiva ocupação fixa : "E não saem mais dali...!! E isto é muito mau para uma instituição como a nossa (...). É evidente que as pessoas, inevitavelmente, acomodam-se!"; "... esses dez professores que foram contratados há dez anos atrás estão nomeados definitivamente (...) tanto a nível de ensino da investigação e no ensino superior investigação e ensino (...) dá o resultado que temos: ninguém está estimulado para fazer nada!..." - situação susceptível de criar condições para "... casos que não publicam nada e são 24 Manuel Rebelo refere-se à percentagem de alunos de estrato sócio-económico médio-baixo, relativamente aos outros alunos "economicamente mais saudáveis" - como se lhes refere. 143 maus professores!!... E dão aulas fora! (...) Nem sequer dão as aulas, quanto mais... - há casos desses!!... E não se lhes pode fazer nada..."; - a dificuldade de intervenção da reitoria: "Os reitores têm uma margem de manobra muito reduzida, particularmente os das universidades clássicas, porque as faculdades têm autonomia financeira e administrativa, portanto fazem o que querem e lhes apetece...! A reitoria não tem qualquer hipótese de intervir seriamente na orientação da universidade!..."; - os mecanismos de avaliação dos docentes: "... quer ao nível da investigação, quer ao nível do ensino mais clássico, se essa avaliação agora entrou em crise do ano passado para este, com a desculpa dos planos orçamentais fizeram-se barbaridades, mudaram-se todas as regras do jogo..." consistindo outra das mudanças na avaliação feita pelos alunos "... agora inventou-se, para calar os estudantes e conseguir subir as propinas e outras trepolias do género, deu-se-lhes o bombom ou o rebuçado da avaliação dos professores..." o que estará em consonância com a ideia de que "... estamos num sistema de ensino que está a ficar pervertido na medida em que se está a pensar nele como um mercado, em que os alunos são clientes..."; - o carácter de obrigatoriedade nas aulas práticas: "... desde um grande número (de alunos) que quer que a aula acabe, e que ainda por cima vem educado para ter que assistir àquilo mesmo que não esteja a fazer nada (...) e que é mantida activamente pelas instituições universitárias esta história da obrigatoriedade de ir às aulas práticas (...) é deseducativo para ambas as partes!: os professores assim garantem que têm lá uns gajos a olhar para eles (...); e os alunos também sentem (...) que têm a desculpa que estiveram ali a perder tempo com aquilo!". Nesta sequência, Manuel Rebelo avança com uma proposta: "É das tais situações típicas que é só mudar o regulamentozinho: é só um parágrafo!... e mudava drasticamente a atitude...!". Outras propostas, relativamente a outras situações por ele identificadas como negativas, são: "... flexibilizar o emprego na universidade (...) ter estabilidade de emprego, mas não necessariamente no mesmo sítio e a fazer as mesmas coisas..."; "... reduzir quase a metade o tempo escolar clássico (as horas lectivas)" - o que se 144 identifica fundamentalmente, e para além das características antes referidas, com as correspondentes a 6. Quando Manuel Rebelo declara que muitas daquelas situações poderiam ter solução, mas "... por interesses às vezes um bocado mesquinhos, ou às vezes falta de compreensão, que levam a que não sejam tomadas essas medidas e essas mudanças."; e que, para que as necessárias mudanças ocorram, "... é preciso que o sistema se torne mais instável...! Sem cair na anarquia total, mas que de facto se torne mais instável!..." - enquadra-se também no tipo de professor intermulticultural, mais especificamente no ponto 3. Uma preocupação deste professor relaciona-se com a autonomia que os alunos devem ter, a qual não pode ser contrariada pelo professor - e que ressalta de frases como estas: "Se nós continuarmos a "educar" (...) para uma atitude subserviente perante a vida em geral e os conteúdos que estamos a discutir - é suicida!... Quer dizer, estamos a preparar gerações de pessoas que depois não são capazes de resolver os problemas que têm pela frente!..."; "... o que se pretende com um núcleo destes (...) devia ser habilitar o aluno para lidar autonomamente com um certo tipo de problemas (...) dessa área de saber."; "... um saber a este nível é um saber muito aberto, que está sujeito a novidades muito frescas (...) os professores então com estes novos métodos de comunicação! - não são donos intensivos de todas as peças deste puzzle. Partem para este diálogo com os alunos com uma estação obviamente de grande avanço - teoricamente já lidaram com isso antes deles - mas não se podem aterrorizar se um aluno (um ou outro) até os ultrapassar!..."; "O maior defeito é não querer que os alunos saibam mais (...) ou sejam capazes de mais coisas do que aquilo que nós próprios sabemos..."; "... não sou um tutor convencido de que vou fazer, moldar um aluno à minha maneira (...) mas... segundo os princípios que eu acho que são individuais..." (1, 3, 7). 145 Professor Monocultural e/ou Professor Intermulticultural? Identificamos, no discurso de Manuel Rebelo, um maior número de características do tipo de professor intermulticultural (oito - entre as quais três definidas como contrárias ao tipo monocultural) relativamente às características de professor monocultural (cinco - entre as quais uma definida como contrária ao tipo intermulticultural)25. Algumas características são, pelo menos aparentemente, contraditórias?? Trata-se, então, de um professor: a) intermulticultural - vulnerável à dúvida e que se interroga, valorizando o papel que pode ter a Escola no sucesso e no insucesso dos alunos; b) intermulticultural - não "daltónico cultural", com consciência do "arco-íris de culturas" existente na sala de aula; c) intermulticultural - capaz de investigar (na área da sociologia), já que compreende a escola como local de práticas conflituais, de cruzamento de diferentes poderes, interesses e valores, e também identifica factores explícitos e ocultos que interferem em processos educativos, e descoberta de espaços de autonomia relativa dos professores e da escola; d) intermulticultural - capaz de elaborar respostas adequadas às diferentes situações educativas, com a concepção de propostas de trabalho/planificações alteráveis...; e) intermulticultural -flexível, agente e investigador (educador) que proporciona formas de aquisição de saber, de poder e de exercício de cidadania aos seus Incluem outras de professor monocultural mas, como foi já referido, trata-se de tipos ideais, pelo que não é de esperar encontrar, num professor real, características de apenas um dos tipos. 146 formandos, e enquadra-se na concepção do bilinguismo cultural crítico e da consciência do direito à cidadania como meta; f) intermulticultural (não monocultural) - não fonte/emissor de saber, não equitativo, e não vê a massificação como forma de enfrentar a escola de massas, nem representa os alunos como conjuntos homogéneos; g) intermulticultural (não monocultural) - não eficiente, não justo e exigente, não se enquadra no aumento de competência, eficácia e normalização como objectivos, nem considera as diferenças penalizáveis; h) intermulticultural (não monocultural) - não se preocupa com dificuldades dos seus alunos nem é disponível para as colmatar, no sentido em que não atribui a essas dificuldades explicações psicológicas e biológicas; i) monocultural - seguro e estável, que valoriza a cultura nacional tradicional, a estabilidade, e a importância de manter a cultura erudita e nacional; j) monocultural - claro e interessante, e que se enquadra teoricamente na transmissão de saberes considerados importantes como prioridade; k) monocultural - fonte/emissor de saber, equitativo, e que se enquadra teoricamente na massificação do ensino como forma de enfrentar a escola de massas, a representação dos alunos como conjuntos homogéneos; I) monocultural - eficiente, justo e exigente, e que se enquadra teoricamente no aumento da competência, eficácia e normalização como objectivos, e diferenças penalizáveis; m) monocultural (não intermulticultural) - não flexível, nem agente e investigador, que não proporciona formas de aquisição de saber, de poder e de exercício de cidadania aos seus alunos, e não se enquadra teoricamente na concepção do bilinguismo cultural crítico e da consciência do direito à cidadania como meta. 147 As características que encontramos em Manuel Rebelo correspondem, na sua maioria, às de um professor intermulticultural, sendo aquela b) relativa à homogeneidade/heterogeneidade a que agora mais nos importa considerar, para conseguirmos chegar à localização das metodologias pedagógicas deste professor no eixo metodológico respectivo. Como já referimos, apesar da homogeneidade que este professor atribui aos alunos, consideramos - pelo que foi apresentado - que vê a heterogeneidade que comportam, nos dois níveis de ensino. Chegámos, deste modo, à localização das metodologias pedagógicas de Manuel Rebelo no eixo metodológico em M3 - para os níveis de ensino de pré-graduação e de pós-graduação. 148 Jaime Almada NÍVEIS DE ENSINO - Pré-graduação - Pós-Graduação Pré-Graduações Apesar de se declarar um professor directivo e expositivo (como foi já referido), e de afirmar não conhecer os seus 150 alunos do 1 o ano "Eu, no 1 o ano, não os conheço...!", revela valores e atitudes que se opõem aos do tipo de educação bancária: Há interacção com os alunos também fora das aulas "... porque eles vêm... no meu horário de atendimento, às vezes encontram-me no bar (...) se me encontrarem fora da faculdade, num café, também vêm falar comigo!... Eu tenho relações com os meus alunos fora das aulas...! Mal fora que... Nem vejo a coisa de outra maneira...!!", e considera que "A relação entre professor e aluno é uma relação humana.". Insurge-se muito claramente contra a concepção dos alunos como figuras passivas: "Os alunos, nas universidades, não podem ser remetidos a papéis de meros receptores do sistema...!... De meros receptores do que o professor quer dar, ou do que o sistema quer ensinar... Os alunos têm que ter voz activa!", reforçando ainda esta ideia quando diz "Prejudicar o aluno (...) é fazer dele um mero receptáculo que está durante as aulas a tirar apontamentos."; e insurgese também contra atitudes daqueles que qualifica como maus professores: "... um professor que não investiu durante o ano, que não conhece os alunos, e que depois ao final do ano dá um exame de duas horas em que avalia um ano 149 inteiro - ao fim do ano, em duas horas, arroga-se decidir o destino de um aluno na sua disciplina sem saber quem é o aluno...". Nesta sequência, defende que a "voz activa" dos alunos passa também pelo uso de instrumentos - como a avaliação dos professores - para obviar a situações como aquela, que os prejudicam: "Como é que se pode fazer a avaliação dos professores?!... - Dando mais ouvidos aos alunos!" Contrariamente ao que o tipo de educação bancária pressupõe - no que se refere à competência científica do professor como a fundamental - Jaime Almada coloca-a em segundo lugar relativamente à competência pedagógica, porque crê que "... um indivíduo que nem sequer seja grande especialista, mas que tenha uma boa relação pedagógica pode ser um bom professor; ou um grande especialista que tenha uma relação pedagógica má, não serve para professor, por muito bom especialista que seja...!". Justifica esta sua posição usando o termo transmite, mas dá-lhe um sentido diferente daquele da educação bancária: "Porque não transmite (...) não é só os conteúdos: não transmite o desejo de aprender (...) o entusiasmo (...) a atitude do gosto pelo conhecimento (...) isso é o mais importante...!". Pelo que acabámos de expor sobre o discurso de Jaime Almada relativamente ao ensino superior no nível de pré-graduação, parece-nos pertinente afirmar que este professor não se identifica nem age de acordo com as características fundamentais do modelo pedagógico transmissivo ou educação bancária. Portanto, não estará situado em M1. Deverá, então, situar-se: em M2 (se considera os alunos como grupos homogéneos) ou em M3 (se considera a heterogeneidade dos alunos) localização que procuraremos fazer depois de o considerarmos mais especificamente em relação aos tipos de professor monocultural e de professor intermulticultural. 150 Pós-Graduações Há mais interacção entre professor e alunos já que "... tenho relações individualizadas quando os grupos são pequenos...", e "... o aluno acaba por falar dele, e por expor os seus projectos de vida...". Reconhece a heterogeneidade nestes alunos "... eu conheço-os a todos pelo nome, e são muito diferentes uns dos outros, e têm projectos de vida diferentes...!..." Pelo que acabámos de expor sobre o discurso de Jaime Almada relativamente ao ensino superior no nível de pós-graduação excluímos, também neste caso, a sua localização em M1. Como já pudemos considerar que este professor reconhece a heterogeneidade nos alunos passaremos a situá-lo, no nível de pós-graduação, relativamente a M3. TIPOS DE PROFESSOR - Professor Monocultural - Professor Intermulticultural Professor Monocultural Apresenta explicações psicológicas e biológicas para o que define como um "mau aluno": "... os alunos com mau aproveitamento, ou que revelam francas desadequações ao que devem ser as aprendizagens de um psicólogo (...) pessoas com incapacidade de se descentrar do seu umbigo, de escutar os 151 outros (...) pessoas que têm de facto capacidades de aprendizagem muito baixas (...) que muito dificilmente conseguem cumprir as exigências curriculares. Isso é um mau aluno...!"; "... pessoas (...) com algumas falhas de competências intelectuais para a nossa área... " (8). Professor Intermulticultural Quando diz que "... houve uma massificação do ensino..." acrescenta de imediato "...hoje entra muito mais gente! E ao entrar mais gente..." entra gente mais diferente - e continua, afirmando explicitamente que os alunos "... são muito diferentes uns dos outros, obviamente!". Aqui, podemos observar que este não será um professor "daltónico cultural" (2). No entanto, também observa que os seus alunos "... no desempenho da minha disciplina, acabam por ser muito semelhantes (...) em termos de rendimentos mais ou menos parecidos...!" - mas interroga-se sobre isso, e atribui a causa dessas semelhanças a si próprio enquanto professor directivo: "Portanto, eu se calhar até os obrigo a serem um bocado iguais...!" - o que revela um professor vulnerável à dúvida (1). Podemos identificar esta característica em outras situações: quando refere o elevado grau de absentismo dos alunos em todas as aulas, diz "... se fosse só nas minhas, o problema era meu!" e "Se eles começarem a faltar, eu interrogome a mim, não os interrogo a eles..."; sobre a questão de gostar mais de uns alunos do que de outros, apresenta deste modo a atitude que o professor poderia tomar: "Consciencializando, percebendo que é um ser afectivo, e que tem movimentos afectivos para com os alunos..."; e, quando confrontado com a possibilidade de melhorar algo em si enquanto professor, responde "Isso é muito mais difícil eu saber, porque isso exigia que eu fizesse uma grande autoanálise..." (1). 152 As aulas deste professor não se repetem de ano para ano, mas "... todos os anos meto coisas novas no programa base. E todos os anos meto livros novos... Portanto, nunca dou dois anos exactamente iguais..." (6). Refere casos em que o sistema de ensino prejudica os alunos: "... era importante que os projectos vocacionais dos nossos adolescentes pudessem ser levados adiante em vez de serem dramaticamente torcidos - ou retorcidos por um sistema de ensino..." (3). Defende que "Um ensino de qualidade é também um ensino onde as estruturas governamentais (...) criam as condições para esse ensino (...) o bom ensino não é independente da gestão: da gestão universitária; do clima que se cria dentro de uma faculdade a partir da forma como se exerce a gestão; e do clima que se pode criar a partir (...) dos ministérios, ou dos orçamentos, da logística..." e "Há coisas que eu posso melhorar se a instituição onde eu trabalho tiver condições para o fazer...! (...) era importante desdobrar aulas práticas (...) a minha aula teórica do 1 o ano melhorava se eu não tivesse 150 alunos (...) Mas isso são condições que dificilmente podemos alterar, porque (...) Tudo isto implica orçamentos que (...) as universidades não têm, porque o estado está a desinvestir em favor do ensino privado..." (3). Sobre a voz activa que defende que os alunos devem ter, "... essa voz passa também por eles poderem falar do clima pedagógico, do que está mal, poderem recorrer de más pedagogias..." (7). Crê que ir ou não ir às aulas é uma escolha dos alunos "... vêm voluntariamente!... - não há nenhum mecanismo coercivo! (...) Quero lá saber!..." (7). Considera que o pior defeito de um professor de ensino superior é "... convencer-se que é um académico a 100%" cujas características se relacionam com a competência científica e com a segurança do professor "... do seu pensamento emana a razão, ou a certeza, ou a verdade! (...) está convencido que é um génio, ou que tem um grande currículo que um aluno nunca atingirá..." (1 vs não 1, não 3). 153 Professor Monocultural e/ou Professor Intermulticultural? Identificamos no discurso de Jaime Almada apenas uma característica do tipo de professor monocultural, cabendo todas as outras ao tipo de professor intermulticultural (entre as quais duas delas definidas como contrárias ao tipo monocultural). Trata-se, então, de um professor: a) monocultural - preocupado com dificuldades dos seus alunos e disponível, que atribui explicações psicológicas e biológicas às dificuldades deles; b) intermulticultural (não monocultural) - não considera que ser-se cientificamente competente seja prioritário (relativamente à competência pedagógica), não entendendo a Escola como campo neutral de aquisição de saberes; c) intermulticultural (não monocultural) - não seguro nem estável e que não valoriza a cultura nacional tradicional, no sentido em que não se dá a valorização nem da estabilidade, nem da cultura erudita e nacional; d) intermulticultural - vulnerável à dúvida e que portanto se interroga, compreende a valorização do papel que pode ter a Escola no sucesso e no insucesso dos alunos; e) intermulticultural - não "daltónico cultural", tem consciência do "arco-íris" de culturas existente na escola e na sala de aula; f) intermulticultural - capaz de investigar (na área da sociologia), já que há compreensão da escola como local de práticas conflituais, de cruzamento de diferentes poderes, interesses e valores; e identificação de factores explícitos e ocultos que estejam a interferir em processos educativos; bem como 154 descoberta e alargamento de espaços de autonomia relativa dos professores e da escola; g) intermulticultural - capaz de elaborar respostas adequadas às diferentes situações educativas (investigador/educador); há valorização da investigaçãoacção como quadro de trabalho, e da importância do desenvolvimento de dispositivos de diferenciação pedagógica, bem como concepção de propostas de trabalho/ planificações alteráveis; h) intermulticultural - flexível, agente e investigador (educador) que proporciona formas de aquisição de saber, de poder e de exercício de cidadania aos seus formandos; existe concepção do bilinguismo cultural crítico e da consciência do direito à cidadania como meta. As características que encontramos em Jaime Almada correspondem às de um professor intermulticultural - à excepção de uma delas a) - sendo que aquela e) refere a heterogeneidade que este professor identifica nos alunos - o que nos permite localizar, no eixo metodológico respectivo, as suas metodologias pedagógicas relativamente ao nível de pré-graduação em M3. Chegámos, deste modo, à localização das metodologias pedagógicas de Manuel Rebelo no eixo metodológico em M3 - para os níveis de ensino de pré-graduação e de pós-graduação. 155 Francisco Couto NÍVEIS DE ENSINO - Pré-graduação - Pós-Graduação Pré-Graduações Francisco Couto não parece considerar os alunos como agentes passivos no processo educativo "... utilizamos um software muito interessante (...) há programas específicos que permitem aos alunos fazer os exercícios um bocado como se fossem jogos (...) que dá um bocado mais de animação e de interactividade..."; "... os alunos reagem bem!". Lamenta não conhecer estes alunos pessoalmente, e apresenta razões para isso: "... como acabo por dar mais teóricas do que práticas, tenho alguma dificuldade, de facto, em os conhecer...", já que nas aulas teóricas há "... dezenas ou centenas de alunos na mesma sala - é evidente que é impossível ter contactos com os alunos nesse tipo de aulas (contacto próximo)". Apesar destas condições não favoráveis à interacção, procura "... manter algum diálogo... a partir de exercícios, por exemplo: incentivá-los a tentar resolver, a pôr as dúvidas... ou a ir interrompendo as aulas, no sentido de esclarecer alguma coisa." - e considera "... um certo distanciamento relativamente aos alunos..." como um dos piores defeitos do professor de ensino superior. Finalmente, crê que "O nosso grande papel é ensiná-los a aprender por eles e ter autonomia!...". Pelo que acabámos de expor sobre o discurso de Francisco Couto relativamente ao ensino superior no nível de pré-graduação, parece-nos pertinente afirmar que este professor não se identifica nem age de acordo com 156 as características fundamentais do modelo pedagógico transmissivo ou educação bancária. Portanto, não estará situado em M1. Deverá, então, situar-se: em M2 - se considera os alunos como grupos homogéneos; ou em M3 - se considera a heterogeneidade dos alunos. Podemos enquadrar este professor na educação activa ou investigativa "... nós incentivamos muito os trabalhos em grupo desde o 1 o ano...". Pós-Graduações Neste nível de ensino, o professor conhece pessoalmente os alunos, havendo interacção já que "... são números mais pequenos, portanto é mais fácil de conhecer as pessoas directamente...". Considera a heterogeneidade na sala de aula, e procura rentabilizá-la: "... são pessoas normalmente com experiência mais diversificada (...) tentamos que essa experiência (...) seja reflectida nas próprias aulas, (...) que a pessoa traga mais de si para as aulas. Pelo que acabámos de expor sobre o discurso de Francisco Couto relativamente ao ensino superior no nível de pós-graduação excluímos, também neste caso, a sua localização em M1. E, depois de considerarmos que este professor reconhece a heterogeneidade nos alunos, passamos a situar as suas metodologias pedagógicas, no nível de pós-graduação, em M3. 157 TIPOS DE PROFESSOR - Professor Monocultural - Professor Intermulticultural Professor Monocultural Quando Francisco Couto refere que pretende melhorar os conteúdos das aulas, apela à importância da escolha de uma metodologia interessante para os alunos "... exercícios (...) mais motivantes, mais realistas, de dimensão mais próxima depois da que os alunos vão encontrar na sua vida profissional, para os tornar mais credíveis... " (2). Paralelamente, a interacção que crê dever existir na aula - e que pretende fomentar - é entendida como meio de prevenção de falhas nos exames finais, na medida em que tem como objectivo fundamental melhorar a aquisição de saberes curriculares por parte dos alunos: "... vou tentar interagir mais com eles, conhecê-los mais, porque acho que é a maneira também de perceber onde é que eles têm mais problemas e, portanto, conseguir actuar a tempo antes das avaliações finais (...) onde finalmente se descobre que eles não perceberam este aspecto, porque ninguém respondeu correctamente a isto." o que revela, também, preocupação do professor com as dificuldades dos seus alunos, e respectiva disponibilidade no sentido de as colmatar (1, 3, 4, 5, 8, 9). É neste sentido que pretende passar a "... ter sempre aulas práticas nas disciplinas onde também tenho teóricas, para... ter as duas visões, porque... ter-se só teóricas sem ter práticas nenhumas agrava claramente este problema do distanciamento...". Quando é confrontado com a questão sobre homogeneidade/heterogeneidade dos alunos, observamos expressão de surpresa e hesitações da sua parte: 'Mais parecidos, como?! Uns com os outros, ou... mais parecidos como?!..." - o que pensamos traduzir a representação que este professor tem dos alunos como conjuntos homogéneos, e que reforça pelo que diz imediatamente a seguir "Vou fazer uma apreciação geral!" (versus particular) (6). 158 No entanto, refere a existência de um pequeno número de alunos diferente da maioria e que identifica pelos seus altos desempenhos académicos "... fulanos que só estudam, quer dizer, são indivíduos que tiram dezoito ou dezanove a todas as disciplinas, ou vinte...", chamando-lhes pejorativamente "máquinas de estudar" - o que parece denotar, da sua parte, pelo menos uma atitude de rejeição. Neste sentido, acrescenta "Agora, a vida não é só estudar, não é?, e eu não sei se isso é muito positivo...! Mas pronto!" (6). Considera que os alunos actuais são diferentes dos de há nos atrás (os quais constituíam um grupo mais homogéneo), e são também diferentes entre si. Esta diferença reside na quantidade e na qualidade de informação hoje disponível - que conduz à especialização: "... é possível encontrar fulanos até agora com uma informação sobre muita coisa mais diversificada do que aqui há uns anos (...) Agora há muitos outros canais de informação, e as pessoas - na impossibilidade de lerem tudo!! - especializam-se! (...) há pessoas com uma informação muito aprofundada numa certa área, outro noutra área e, portanto, desse ponto de vista, eu diria que são mais diferentes!" (1, 4, não 2 intermultic. - embora considere esta diferença, não revela consciência do "arco-íris de culturas" na sala de aula). Estabelece uma outra diferença entre os actuais alunos e os de há anos atrás, a qual consiste numa "...maturidade (...) mais tardia: chegam ao 1 o ano (...) com necessidade de condução do ponto de vista até do estudo... e de comportamento (...) é atirar papeizinhos, aviõezinhos, brincadeiras...!!..." e isto "... porque todo o desenvolvimento está um pouco mais lento..." - factores de natureza biológica e psicológica que têm implicações negativas em termos de desempenho académico (8). Outros factores responsáveis pelo que considera importantes falhas de aprendizagem nos alunos correspondem a estratégias que estes usam nos trabalhos de grupo: "... fulanos que acabam por chegar ao fim do curso com deficiências básicas - que não são admissíveis!! - porque sempre viveram num mesmo grupo...!! Porque os outros eram mais rápidos a programar, e não sei quê, e não têm tanta pachorra para escrever relatórios, e ele se calhar tinha jeito para escrever, passavam-lhe sempre essa parte...!! (...) isto para além de 159 a permanência do mesmo grupo em várias disciplinas também conduzir a um esquema de repartição do trabalho (...) "Tu fazes o desta disciplina, eu faço o daquela, e depois a nota é para os dois!" (1, 4, 7) Ora, isto acarreta falhas na avaliação "... fazer com que se esteja a avaliar incorrectamente, digamos, as pessoas: para dar a nota ao grupo igual, de facto se calhar houve um que era bastante melhor do que os outros e, portanto, puxou todo o grupo um bocado mais para cima..." (7). Houve várias tentativas infrutíferas para resolver esta situação identificada como problema, mas "... eles não reagem... bem (...) há ali muitas razões para querer manter o grupo!"; e acrescenta que este modo de dar aulas, na faculdade de engenharia, é "... uma característica que nós temos bastante... desenvolvida - digamos - nos nossos alunos que é o de fomentar o trabalho em grupo, e de eles normalmente reagirem bem!" - a atitude que daqui ressalta pode ser tida como reveladora de alguma rigidez no que se refere à possibilidade de mudança de metodologias (2). Um mau desempenho académico deve-se, muitas vezes, à interacção alunosalunos, mais particularmente à má influência dos líderes das praxes: "... eu creio que, em média, os líderes desse tipo de coisas são fulanos que têm fracos resultados académicos (...) E creio que passa, também, um bocado a imagem de que as aulas teóricas não são para ir, que só se começa a estudar não sei quando...! - que é aquilo que fez com que os fulanos que transmitem essas ideias, de facto, sejam repetentes crónicos..." (1, 8). Sobre a interacção com os alunos fora das aulas, é reduzida e entendida apenas no âmbito da transmissão de saberes curriculares: "Não tenho muita interacção com os alunos fora das aulas...! Não vêm assim muito tirar dúvidas!..." (4). A questão da avaliação dos professores feita pelos alunos, apesar de produzir a resposta verbalizada "Acho que é importante que existam..." (frase pronunciada num tom de voz muito baixo) é acrescentada por "...e acho que devem ser lidas em contexto! Porque não se pode ler essas avaliações (...) como medidas finas, mas como indicações." (num tom de voz nitidamente mais 160 alto). E completa assim a sua exposição sobre esta matéria: "... vale a pena (...) Mesmo que até depois ninguém fosse ligar muito aos resultados (...) Portanto, acho que vale a pena... Que é interessante que existam!... Acho que sim!" - expressões e frases estas que denotam desvalorização deste assunto por parte do professor, o que nos leva a crer que este não concordará com a realização dessa avaliação com aquele objectivo (3, 9, não 7 intermulticultural). Aliás, quando retoma este assunto atribui-lhe outro objectivo fundamental, e inicia-o com a palavra mas: "Mas são importantes para detectar grandes desvios: essencialmente é isso! Quer dizer, um docente que falta muito, concerteza que irá notar-se depois, no resultado final, porque haverá mais alunos a chamar a atenção para esse aspecto. Um docente que tem, enfim, uma grande capacidade de comunicação, e de motivação, etc., naturalmente será bem classificado pela maioria dos alunos!...". Aqui, para além de podermos identificar os pontos 3 e 4, consideramos que está muito presente o enquadramento competência, teórico eficácia deste e professor normalização relativamente como ao aumento objectivos, e da diferenças penalizáveis (7); o seu discurso prossegue nesta linha "... uma disciplina onde há problemas, isso se calhar aparece no inquérito; permite ao director do curso depois tentar actuar! - mas funciona como prevenção, não é?: os docentes, pelo facto de saberem que existem os inquéritos, se calhar já... enfim, fazem mais algum esforço, e tal..." (7). E, a propósito da especialização excessiva de determinados professores, a postura da penalização ao desvio mantém-se: o termo utilizado é combater, e fazem-se reuniões de ano com esse objectivo às quais aqueles professores são pressionados a comparecer "... combater esse tal isolamento, a especialização. (...) Enfim, não digo que sejam obrigados, porque não marcam falta, mas... enfim...! Têm que justificar porque é que não vão, digamos...!... Enfim, em princípio, se não forem, nota-se que não foram!..., não é? - são reuniões com cinco, dez pessoas, não é? E, portanto, nota-se: "Faltou o docente da disciplina tal!"" (2, 7). Quando confrontado com a escolha entre o ensino ou a investigação como atributo principal de um professor de ensino superior, inicialmente declarou peso igual para cada uma das componentes, recorrendo aos estatutos para o justificar: "Na universidade, não se pode escolher! São as duas importantes: 161 estão no estatuto, e não é por acaso que estão no estatuto... Quer dizer, é porque faz parte da própria natureza da instituição!" (3). No entanto, no decurso da entrevista, o modo como se refere à componente pedagógica leva-nos a pensar que este professor não lhe considera esse mesmo peso que à outra componente científica, mas atribui um peso maior a esta última: - acerca dos diferentes perfis dos docentes da sua instituição, discorre sobre vários começando pelo do cientista, passa pelo de gestor e termina no de engenheiro - nunca atribuindo explicitamente a estes perfis o de professor. E, só depois, é que o acrescenta: "Numa faculdade como a de Engenharia (...) cabem desde matemáticos mais ou menos daquele modelo do cientista (...) indivíduos que são praticamente gestores (...) até engenheiros (...). Portanto, temos de facto... - e professores, não é? (professores no sentido em que são indivíduos que se dedicam essencialmente à parte pedagógica)." (1, 2); - a sua definição de um bom professor de ensino superior apresenta claramente essa hierarquia, já que considera a competência científica como primeira condição, enquanto que a competência pedagógica existe em função daquela: "É um indivíduo que tem capacidade de fazer investigação própria (...) e de traduzir isso em actividades pedagógicas consequentes, desde a estruturação dos cursos e das disciplinas, à própria forma de leccionar a disciplina, e de comunicar com os alunos." (1, 2). Nos concursos de progressão académica, assume que "... ainda há um peso muitas vezes excessivo da investigação, do ponto de vista de instituições onde a componente pedagógica também é considerada importante...", mas declarase contrário a mudanças de legislação nesta matéria, já que "... se deve confiar nos júris (...) não me parece (...) que haja que alterar muito a legislação (...) desde que se indique quais os parâmetros genéricos (...) através de uns regulamentos... - mas dentro da instituição! - Não em termos de uma política geral para todo o país..." (1, 3, não 3 intermultic). 162 Professor Intermulticultural Caracteriza alguns alunos como diferentes relativamente à maioria: têm resultados académicos muito altos "Esses estão ali mesmo para estudar - na primeira carteira, e tal...!!", e relaciona esse sucesso com factores económicos e sociais "... tiveram meios desde pequeninos (...) e incentivos familiares e sociais..." (2, 3) Considera o distanciamento relativamente aos alunos como um dos piores defeitos de um professor de ensino superior, o qual é "... provocado também pela forma como o ensino está organizado...", ou seja, "Quando se quis, por um lado, reforçar a hierarquia académica das várias categorias dos docentes e, por outro lado, reduzir ao pessoal aumentando a sua "rentabilidade", instituiu-se a separação entre aulas teóricas e práticas, dando mais crédito às teóricas (...) e juntando dezenas ou centenas de alunos na mesma sala..." (3). Mas também acontece porque "A carreira universitária valoriza muito a investigação (...) mas valoriza pouco (...) o esforço pedagógico e o desempenho pedagógico" o que pode dar origem a que "... os docentes (...) concentrem os seus esforços nos projectos de investigação (...) as aulas saem necessariamente um bocado prejudicadas..." (não 1 monoc?., não 2 monoc?) descreve, mas não assume uma posição. Professor Monocultural e/ou Professor Intermulticultural? Identificamos no discurso de Francisco Couto todas as características consideradas do tipo de professor monocultural (entre as quais três delas definidas como contrárias ao tipo de professor intermulticultural); e duas do tipo de professor intermulticultural (com outras duas definidas como contrárias ao tipo de professor intermulticultural contraditórias.). 163 e, pelo menos aparentemente, Trata-se, então, de um professor: a) monocultural - cientificamente competente Escola como campo neutral de aquisição de saberes b) monocultural - com sólida preparação profissional, bom "tradutor" da complexidade da ciência valorização das metodologias e dos materiais estandardizados c) monocultural - seguro e estável, que valoriza a cultura nacional tradicional valorização da estabilidade, valorização da importância de manter a cultura erudita e nacional d) monocultural - claro e interessante transmissão de saberes considerados importantes como prioridade e) monocultural - paciente e trabalhador, distribuidor de saberes a todos os alunos; preocupação com a garantia de oferta de igualdade de oportunidades de acesso f) monocultural - fonte/emissor de saber, equitativo massificação do ensino como forma de enfrentar a escola de massas, representação dos alunos como conjuntos homogéneos g) monocultural - eficiente, justo e exigente aumento da competência, eficácia e normalização como objectivos; diferenças penalizáveis h) monocultural - preocupado com dificuldades dos seus alunos, disponível explicações psicológicas e biológicas das dificuldades escolares i) monocultural - contribui para a construção do aluno-tipo ideal implicação na compreensão de handicaps existentes nos alunos 164 j) monocultural (não intermulticultural) - "daltónico cultural" não consciência do "arco-íris" de culturas existente na escola e na sala de aula k) monocultural (não intermulticultural) - não capaz de investigar (na área da sociologia) não compreensão da escola como local de práticas conflituais, de cruzamento de diferentes poderes, interesses e valores; identificação de factores explícitos e ocultos que estejam a interferir em processos educativos; descoberta e alargamento de espaços de autonomia relativa dos professores e da escola I) monocultural (não intermulticultural) - não flexível, agente e investigador (educador) que proporciona formas de aquisição de saber, de poder e de exercício de cidadania aos seus formandos não concepção do bilinguismo cultural crítico e da consciência do direito à cidadania como meta m) intermulticultural - não "daltónico cultural" consciência do "arco-íris" de culturas existente na escola e na sala de aula n) intermulticultural - capaz de investigar (na área da sociologia) compreensão da escola como local de práticas conflituais, de cruzamento de diferentes poderes, interesses e valores; identificação de factores explícitos e ocultos que estejam a interferir em processos educativos; descoberta e alargamento de espaços de autonomia relativa dos professores e da escola o) intermulticultural (não monocultural) - não cientificamente competente não Escola como campo neutral de aquisição de saberes p) intermulticultural (não monocultural) - não com sólida profissional, bom "tradutor" da complexidade da ciência valorização das metodologias e dos materiais estandardizados 165 preparação Considerando fundamentalmente i) e j) 26 , observamos que Francisco Couto representa os alunos de pré-graduação como conjuntos homogéneos, pelo que o consideramos em M2 neste nível de ensino. Chegámos, deste modo, à localização das metodologias pedagógicas de Francisco Couto no eixo metodológico em M2 - para o nível de ensino de pré-graduação; M3 - para o nível de ensino de pós-graduação. 26 O referido na alínea m) parece contrariar isto, mas essa alínea refere-se à heterogeneidade que este professor identifica no nível de pós-graduação, pelo que neste caso considerámos apenas a pré-graduação - que é o caso que falta situar (o nível de pós-graduação foi já localizado em M3). 166 LOCALIZAÇÃO DOS TRÊS PROFESSORES NO EIXO MET ODOLÓGICO Este percurso permite-nos, agora, apresentar a localização das metodologias pedagógicas relativas aos três professores no eixo metodológico, nos níveis de ensino superior de Pré-Graduação e de Pós-Graduação. Pré-Graduação - Educação Activa ou Investigativa (M2) - Francisco Couto - Educação Contextualizada (M3) - Manuel Rebelo e Jaime Almada Pós-Graduação - Educação Contextualizada (M3) - Manuel Rebelo, Jaime Almada e Francisco Couto 4, 5 e 6; 7, 8 e 9. Desenvolve-se agora cada uma das situações: ■ 4, 5 e 6 - recorre-se a métodos activos - através de pedagogias invisíveis que tornam as aprendizagens mais estimulantes e são responsáveis pelo desenvolvimento de determinadas capacidades dos alunos, os quais ainda constituem, para os professores, um grupo homogéneo. T al como na situação anterior, trata-se de professores monoculturais que se movem e actuam no domínio de uma escola reprodutora. 167 7, 8 e 9 - recorre-se a pedagogias invisíveis, tendo os professores a preocupação de adequar as propostas de ensino/aprendizagem aos seus alunos já que existe, da sua parte, a consciência da heterogeneidade na sala de aula. A atitude destes professores revela preocupações mais emancipatórias.27 Estas metodologias pedagógicas relacionam-se directamente com a emancipação dos indivíduos (ao invés de M1, que se relaciona com a domesticação). Assim, é nas pós-graduações que tem lugar um maior grau de emancipação - o que está de acordo com o modelo teórico estudado. 27 Segundo Cortesão (2000), estas situações correspondentes às casas 7, 8 e 9 ocorrem com uma frequência muito menor relativamente às dos dois grupos anteriores, e, como tal, têm sido menos estudadas - pelo que "... suscitam a importância de uma análise mais aprofundada, pois que, à partida, a caracterização que delas se faz se reveste de alguma ambiguidade: a simples referência a que nesta categoria estão reunidas situações de trabalho em que não se está "indiferente à diferença" é, em si, uma caracterização muito pouco esclarecedora, pois que poderão estar em questão diferenças de variadas naturezas." (Cortesão, 2000: 61). 168 CRUZAMENTO DOS EIXOS QUÊ E COMO: ONDE Estamos, agora, em condições de cruzar o eixo de Aquisição de Saberes - o QUÊ - com o Eixo Metodológico - o COMO - para obtermos o ONDE de Bernstein, relativamente aos três professores, em cada um dos dois níveis de ensino (Pré-Graduação e Pós-Graduação): Manuel Rebelo Pré-Graduação: S2; M3 - casa 8 Pós-Graduação: S3; M3 - casa 9 Jaime Almada Pré-Graduação: S2; M3 - casa 8 Pós-Graduação: S3; M3 - casa 9 Francisco Couto Pré-Graduação: S2; M2 - casa 5 Pós-Graduação: S3; M3 - casa 9 169 Quadro 2 Quê, Como,Onde B Eixo Metodológico Domesticação/ /Emancipação Educação Contextualizada (Disp. de Dif. Pedagógica) Manuel Rebelo Pré-graduação Manuel Rebelo,. Pós-Graduação' Jaime Almada Pré-Graduação Jaime Almada Pós-G/áduação Francisco Couto /Pós-Graduação Educação Activa e/ou Investigativa Franciscp Úouto Pré-Qráduação Educação Bancária Eixo de Aquisição de saberes: Reprodução/ /Produção Conteúdo do manual Utilização da produção científica de outrem 170 Produção de conhecimento disciplinar pelo próprio (investigação) V CONCLUSÕES 171 "... os docentes do Ensino Superior praticam muitas vezes pedagogia sem o saberem. A novidade consiste em nos interrogarmos sobre a validade desta ou daquela técnica, deste ou daquele modelo pedagógico, e em introduzirmos novas práticas de ensino, a partir desta interrogação. (...) Se, portanto, aderirem ideologicamente (...) às alterações em curso, adoptarão práticas pedagógicas susceptíveis, do seu ponto de vista, de as acelerar, ou pelo menos de as acompanhar..." (Bireaud, Annie, 1995:19) 172 O DISCURSO EDUCATIVO COMO DISPOSITIVO DE DIFERENCIAÇÃO PEDAGÓGICA Uma primeira análise do quadro obtido1 - e, mais particularmente, do eixo metodológico - revela-nos algo que pode parecer surpreendente: as práticas pedagógicas dos três professores entrevistados relativas a ambos os níveis de ensino superior localizam-se, essencialmente, no modelo pedagógico de educação contextualizada - o qual pressupõe, por parte desses professores, a criação e a utilização de dispositivos de diferenciação pedagógica. No entanto, devemos considerar a possibilidade (muito plausível!) de nenhum daqueles três professores conhecer a existência deste conceito2 o que, à partida, não parece ser coerente com o modelo - mas isto só será de considerar se pensarmos que é imprescindível o domínio prévio, por parte daqueles professores, da terminologia relativa ao mesmo conceito. Por outro lado, se atendermos antes, e fundamentalmente, às suas práticas pedagógicas - cujas características são passíveis de as identificar no domínio da educação contextualizada - e, paralelamente, porque se trata de professores mais próximos do tipo de professor intermulticultural - que consideram a heterogeneidade dos alunos na sala de aula - então poderemos defender que esses professores criam e utilizam dispositivos de diferenciação pedagógica. Afinal, em que consistirão essencialmente esses dispositivos de diferenciação pedagógica? Pelo modo como estes professores predominantemente leccionam, pensamos que será através da palavra - que intencionalmente adequam aos alunos (conhecimento educativo) com base no conhecimento que deles construíram (conhecimento socioantropológico). 1 Ver quadro 2 na página 170. 2 Por um lado, o conceito de dispositivos de diferenciação pedagógica é ainda recente, pelo que nem todos os profissionais da área científica de Ciências da Educação o conhecerão; por outro lado, os três professores entrevistados pertencem a outras áreas científicas - o que reduzirá, em princípio, a possibilidade de estes professores o conhecerem. 173 A este propósito, um dos professores entrevistados (Jaime Almada) afirma: "Eu, se não preparar uma aula, e começar lá no meio a... dizer coisas um bocado abstractas, que não se ligam a nada... - aquele paleio, como se costuma dizer, de professor universitário (...) eles começam a desandar!!... Portanto, o interesse do aluno, a meu ver, está directamente relacionado com a preparação que o professor faz das aulas, com o investimento que o professor coloca nas aulas!" Este discurso revela, da parte do professor, um conhecimento sobre os seus alunos que lhe permite encontrar os instrumentos mais adequados para os equipar com os respectivos conhecimentos curriculares, instrumentos esses que constituem o seu discurso pedagógico. Ora, segundo Cortesão (2000): "... esta selecção do discurso pedagógico (...) se é original, se se faz, não por tentativa/erro, mas porque se constrói como hipótese lógica de proposta educativa àquele grupo, àquele contexto, poderá constituir uma situação específica de produção de conhecimento no decurso da acção pedagógica." (Cortesão, 2000: 71). Assim, estamos agora em condições de concluir que a educação contextualizada - com a criação e a utilização de dispositivos de diferenciação pedagógica - será susceptível de ocorrer enquanto práticas pedagógicas de professores nos dois níveis de ensino superior, desde que esses professores se aproximem mais do tipo de professor intermulticultural do que do outro tipo monocultural e que, portanto, identifiquem e rentabilizem a heterogeneidade na sala de aula. 1 174 EMANCIPAÇÃO E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO EM PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NO ENSINO SUPERIOR Depois desta reflexão que nos possibilitou a compreensão dos dispositivos de diferenciação pedagógica que os professores entrevistados utilizarão nos dois níveis de ensino superior considerados conjuntamente, procedemos em seguida à análise do mesmo quadro 2 sobre as práticas pedagógicas desses professores no que se refere, agora, aos dois níveis de ensino superior - prégraduação e pós-graduação. 1. A aquisição de saberes não se faz através de conteúdo do manual, nem o método pedagógico utilizado é a educação bancária - nos três casos, e em ambos os níveis de ensino superior. Assim, podemos afirmar que, tanto na pré-graduação como na pós-graduação, não se observam as práticas pedagógicas de naturezas mais domesticadora e mais reprodutora. 2. O nível de pré-graduação observa-se em duas casas: casa 5 (Francisco Couto); e casa 8 (Manuel Rebelo e Jaime Almada). Isto significa que os três professores recorrem a produções científicas de outrem na aquisição de saberes - não se verifica produção de conhecimento de tipo disciplinar em qualquer dos três casos neste nível de ensino - e utilizam estes modelos pedagógicos: a) Francisco Couto (casa 5) recorre à educação activa e/ou investigativa, suscitando situações activas de aprendizagem nas aulas com os seus alunos - os quais considera como grupos homogéneos, não tendo sobre eles um conhecimento socioantropológico nem produzindo um consequente conhecimento educativo - não se verifica aqui produção também destes dois tipos de conhecimento; 175 b) Manuel Rebelo e Jaime Almada (casa 8) recorrem à educação contextualizada, produzindo ambos dois tipos de conhecimento: um conhecimento socioantropológico sobre os seus alunos - nos quais identificam e consideram a heterogeneidade - e um outro conhecimento educativo (conhecimento este que, partindo do anterior, possibilita a criação de dispositivos de diferenciação pedagógica) para esses alunos específicos. 3. As práticas pedagógicas relativas ao nível de pós-graduação estão localizadas na casa 9 - nos três casos - o que significa que, neste nível de ensino, cada um dos três professores produzirá os três tipos de conhecimento: disciplinar; socioantropológico (sobre os seus alunos); e educativo (para os seus alunos), com a respectiva criação de dispositivos de diferenciação pedagógica, e sua utilização. 4. Considerando o vector A no que diz respeito às duas situações extremas de reprodução (casa 1) e de produção (casa 9) observamos, por um lado, a ausência da primeira e, por outro lado, a presença da segunda esta presença verifica-se apenas no nível de pós-graduação. 5. Considerando o vector B no que diz respeito às duas zonas que este separa no quadro - uma onde predomina a reprodução, e outra onde predomina a produção - verificamos que as práticas pedagógicas dos três professores se localizam essencialmente na segunda zona referida (onde predomina a produção). A partir destes resultados, e considerando os dois níveis de ensino superior (pré-graduação e pós-graduação), podemos concluir que as práticas pedagógicas dos três professores se relacionam mais com processos de produção de conhecimento do que com a sua reprodução, e também se relacionam mais com processos de emancipação do que com processos de domesticação. 176 MAIOR EMANCIPAÇÃO E MAIOR PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO EM PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NO NÍVEL DE PÓS-GRADUAÇÃO Estabelecendo agora uma comparação entre os dois níveis de ensino superior no que diz respeito à produção de conhecimento, podemos considerar que é exclusivamente no nível de pós-graduação que tem lugar a produção dos três tipos de conhecimento (casa 9) - disciplinar, socioantropológico, e educativo (dispositivos de diferenciação pedagógica) - enquanto que no nível de prégraduação, ou não se observa qualquer produção (casa 5), ou existe a de dois tipos de conhecimento (casa 8) - socioantropológico e educativo (dispositivos de diferenciação pedagógica). Portanto, no nível de pré-graduação e no que diz respeito à aquisição de saberes, as práticas pedagógicas não são as mais reprodutoras, mas também não são as mais produtoras (casa 8); e, no que diz respeito aos métodos, temos duas situações - os de natureza mais emancipadora (casa 8), e outros de natureza não tão emancipadora (casa 5)3. Assim, já que é no nível de pós-graduação que as práticas pedagógicas daqueles professores se revelam as de natureza mais emancipadora e as de natureza mais produtora - relativamente ao nível de pré-graduação - podemos concluir que é no nível de pós-graduação que a produção e a emancipação mais intensamente se manifestam. 3 Recorde-se que as práticas pedagógicas consideradas meramente reprodutoras e domesticadoras não constam no quadro - pelo que aqui utilizamos a designação não tão emancipadora tendo como referência apenas as práticas pedagógicas mais emancipadoras. 177 OS RESULTADOS E O MODELO TEÓRICO CONSIDERADO: CORRESPONDÊNCIAS Considerando as casas obtidas 5, 8 e 9, no que se refere à distribuição dos dois níveis de ensino superior por essas casas, os resultados coincidem com o modelo teórico de Stoer e Cortesão (1999): o nível de pré-graduação localizarse-á nas casas 5 e 8; mas a casa 9 - onde ocorrem as práticas pedagógicas de natureza mais produtora e de natureza mais emancipadora - apenas poderá incluir o nível de pós-graduação. Considerando as casas obtidas 8 e 9, as práticas pedagógicas que lhes estão associadas pressupõem necessariamente, pela sua natureza - educação contextualizada - a criação e utilização de dispositivos de diferenciação pedagógica por parte dos professores. E, assim, verifica-se produção de conhecimento: de dois tipos - um socioantropológico (sobre os seus alunos) e outro educativo (para os seus alunos) - nos casos de Manuel Rebelo e de Jaime Almada, relativamente ao nível de pré-graduação; e de três tipos - para além dos dois tipos de conhecimento socioantropológico e educativo, verifica-se também a produção de conhecimento disciplinar nos casos de Manuel Rebelo, de Jaime Almada e de Francisco Couto, relativamente ao nível de pós-graduação. A partir destes resultados, poderemos estabelecer relações entre: as práticas pedagógicas destes professores de ensino superior - predominantemente de natureza emancipadora e de natureza produtora; e o mercado de trabalho no actual contexto pós-fordista - onde o conhecimento assume um papel central no processo produtivo. 178 Neste contexto, apelos a características como criatividade, flexibilidade, capacidade de decisão e autonomia, constituem o discurso preponderante nesta relação. Como tal, não parecerão surpreendentes estas afirmações dos professores entrevistados: "... se eles estão metidos num curso superior, é para terem uma actividade mais ou menos autónoma (...). Se nós continuarmos a "educar" para uma atitude subserviente perante a vida em geral e os conteúdos que estamos a discutir - é suicida!... Quer dizer, estamos a preparar gerações de pessoas que depois não são capazes de resolver os problemas que têm pela frente!..." (Manuel Rebelo); "Os alunos têm que ter voz activa! Os alunos são adultos!... E a universidade é um sítio que treina para a vida adulta, e é daqui que saem os quadros, os indivíduos que na sociedade desempenham, por vezes, funções de muita responsabilidade! Portanto, treinar uma relação de adulto é dar voz aos alunos logo desde a sua entrada para aqui!..." (Jaime Almada); "... há, de facto, uma maior escolha, digamos - os alunos têm essa possibilidade - que é bom! (...) Porque quando estiverem a trabalhar, é nesse ambiente que vão conviver (...) E vão ter que ter autonomia para acompanhar as evoluções, e para responder aos desafios novos que vão aparecer." (Francisco Couto). Observamos, assim, a existência de uma relação directa entre aquelas práticas pedagógicas e o contexto pós-fordista de produção. Associados a estes, recordemos que se encontram os conceitos de professor intermulticultural e de ensino superior de massas, sendo que este último se relaciona com a perspectiva de que há condições a menos para o sucesso de todos os alunos deste nível de ensino. Isto, contrariamente à perspectiva de que há demasiados alunos no ensino superior, a qual se relaciona com o conceito de massificação neste grau de ensino e respectivas práticas pedagógicas de naturezas essencialmente domesticadora e reprodutora, cujos modelo pedagógico e tipo de professor mais representativos são, respectivamente, a educação bancária e o professor monocultural - num contexto fordista de produção. Neste contexto, nos fins dos anos 60 em Portugal, ter-se-á geralmente atribuído ao grande número de alunos no ensino superior a crise que aquele grau de ensino atravessava (massificação). 179 No entanto, Sedas Nunes assumiu uma perspectiva relacionada com o conceito de ensino superior de massas, tendo afirmado que essa crise se deveria mais à falta de condições para o sucesso de todos os alunos - os quais caracterizou como crescentes em número e também em diversidade - e não ao seu elevado número. Seria, por isso, necessário operar mudanças capazes de criar as condições necessárias para todos os alunos poderem frequentar a Universidade com êxito, independentemente do seu número e atendendo à sua diversidade. Especificamente em relação às práticas pedagógicas no ensino superior como condição/objecto de mudança, o autor identificou como negativa a utilização das pedagogias transmissivas, já que estas não se relacionariam directamente com o sucesso de todos os estudantes, mas apenas com o dos tradicionais. As pedagogias transmissivas traduzir-se-iam, deste modo, na negação da existência das diversidades dos alunos que efectivamente existiam na universidade. No que diz respeito tanto à massificação como ao ensino superior de massas, parece existir, desde aqueles anos, uma tensão também revelada pelas práticas pedagógicas dos professores deste nível de ensino: se, por um lado, no actual contexto pós-fordista e na relação com o mercado de trabalho, as práticas pedagógicas mais domesticadoras e mais reprodutoras não são adequadas, por outro lado não ignoramos que estas continuam a existir provavelmente em grande parte dos professores de ensino superior que se identificam com o tipo de professor monocultural relacionando-se, portanto, com um contexto fordista de produção. Poder-se-á realizar mudança nestas condições, se partirmos da igualdade de oportunidades de acesso ao ensino superior (num contexto meritocrático), mas recorrendo a práticas pedagógicas emancipadoras e produtoras para trabalhar com todos os alunos no sentido da igualdade de oportunidades de sucesso; por outro lado, e num contexto pós-fordista de produção em que o conhecimento é valorizado, estas práticas - porque se caracterizam também pela produção de conhecimento - serão as mais adequadas. 180 O modelo proposto por Stoer e Cortesão (1999) poderá realizar-se deste modo, através da relação entre o mundo do trabalho e o mundo da educação: particularmente na situação educativa que corresponde à casa 9, onde há produção de três tipos de conhecimento - disciplinar, socioantropológico, e educativo. Assim, as práticas pedagógicas dos três professores de ensino superior que entrevistámos correspondem àquelas capazes de realizar mudança, sobretudo as do nível de pós-graduação (casa 9). ESTES TRÊS PROFESSORES SÃO ESPECIAIS?: PISTAS PARA OUTROS DESENVOLVIMENTOS Retomando a situação correspondente a esta casa 9: o resultado obtido está de acordo com o modelo teórico considerado - no sentido em que se prevê que apenas no nível de pós-graduação poderão ocorrer aquelas práticas pedagógicas mais emancipadoras e mais produtoras; mas, no contexto actual do ensino superior em Portugal, salienta-se que se trata de uma situação mais ideal do que real. No entanto, as práticas pedagógicas dos três professores entrevistados relativamente ao nível de pós-graduação incluem-se na casa 9. Sobre esta questão, poder-se-á pensar que esses três professores reunirão um conjunto de características que os torna não normais, no sentido em que são especiais relativamente à norma - que será constituída pelos que não possuem essas características. Mas, de que características se trata? O que podemos dizer é que, certamente para além da existência de outras que os diferenciam e/ou assemelham, os três professores partilham determinadas características que revelam particularmente no nível de pós-graduação - correspondentes aos algarismos 181 1, 2 e 34 - e que os identificam como se tratando de professores predominantemente de tipo intermulticultural. Assim, e respectivamente, cada um destes professores mostra-se: vulnerável à dúvida, e que portanto se interroga; não daltónico cultural; e capaz de investigar (na área da sociologia). Assim sendo, estes professores intermulticulturais recorrerão às práticas pedagógicas mais emancipadoras - as quais se situam, no eixo metodológico, no modelo de educação contextualizada ou dispositivos de diferenciação pedagógica. Por outro lado, acrescentamos a esta situação outras duas: os professores universitários que fazem investigação produzem conhecimento disciplinar; estes professores podem partilhar esse conhecimento, por eles produzido, com os alunos, principalmente no nível de pós-graduação já que, em princípio, estes estarão a desenvolver trabalho científico nessa mesma área disciplinar. Reunidas estas duas possibilidades reais, as práticas desses professores constituirão as de natureza mais produtora, situando-se na terceira coluna do eixo de aquisição de saberes, correspondente à produção de conhecimento disciplinar pelo próprio (investigação). Finalmente, a conjugação destas duas situações com aquela anterior resultará na casa 9 e traduzirá, deste modo, aquela situação ideal que, efectivando-se, passará a ser real. Então, neste contexto, serão estes três professores especiais? Ou representarão a norma - no que diz respeito ao conjunto dos professores universitários que leccionam o nível de pós-graduação em Portugal? Esta poderá constituir uma questão a desenvolver futuramente. 4 Ver, no capítulo IV, o sub-capítulo "Análise da Relação entre os Dados e o Modelo Teórico Considerado" e, neste, o "Eixo Metodológico: Como" sobre a caracterização dos professores relativamente aos dois tipos de professor - monocultural e intermulticultural. Mantém-se aqui a correspondência das características aos respectivos algarismos, tal como no capítulo referido. 182 BIBLIOGRAFIA AFONSO, A. (1997) "Integração Europeia e (Re)Formulação das Políticas de Ensino Superior em Portugal: Alguns Vectores de uma Evolução Recente", in Valdemar Sguissardi; João dos Reis Silva Júnior (org.) Políticas Públicas para a Educação Superior. Piracicaba: UNIMEP, 63-79. 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