CONTABILIDADE CRIATIVA VERSUS CIÊNCIA CONTÁBIL: um estudo dos impactos do fenômeno sobre a ciência1 RESUMO A presente pesquisa, de caráter qualitativo, teve por objetivo discutir o malefício que o fenômeno da contabilidade criativa causa à essência da Ciência Contábil. Para tanto, foram abordados os conceitos e características do fenômeno, bem como os aspectos da contabilidade como ciência social. Como a contabilidade é feita para controlar o patrimônio das entidades e gerar informações claras, confiáveis e fieis para os usuários da informação contábil, o uso da contabilidade criativa não é plausível ao objeto, como também aos objetivos da contabilidade. Diante disso, o estudo foi realizado com base no método dedutivo e desenvolvido por meio de uma pesquisa exploratória, através de procedimentos bibliográficos. Como resposta a problemática proposta foi possível apontar insights das consequencias que a prática da contabilidade criativa pode causar na Ciência Contábil. Diante dos resultados da pesquisa, pode-se concluir que o fenômeno contabilidade criativa é um mal indesejado - porém existente - para a ciência contábil e sua prática, pois fere princípios e convenções contábeis, descaracteriza as Demonstrações Contábeis das entidades, induzindo seus usuários a erros de avaliação da real situação e performance patrimonial da empresa, além eticamente inapropriada para os profissionais contábeis. PALAVRAS-CHAVE: Contabilidade Criativa, Ciência Contábil, International Financial Reporting Standards (IFRS). 1 Wellington Dantas de Sousa (Especialista em Docência do Ensino Superior, Professor Substituto na Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (FACAPE), e-mail: [email protected]); João Carlos Hipólito Bernardes do Nascimento (Doutorando em Contabilidade, Professor Substituto na Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (FACAPE), e-mail: [email protected]); Juliana Reis Bernardes (Graduada em Letras Língua Portuguesa pela Universidade de Pernambuco (UPE), Especialista em Língua Portuguesa pela Faculdade do Paraná (FAP) e graduanda em Ciências Contábeis na Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (FACAPE), e-mail: [email protected]). 1 – INTRODUÇÃO A contabilidade no Brasil tem evoluído significativamente nos últimos tempos. O país, com os adventos das leis 11.638/07 e 11.941/09 iniciou o processo de harmonização contábil que, entre outros, objetiva propiciar maior transparência e credibilidade às demonstrações contábeis, sobretudo fomentando maior comparabilidade das informações contábeis locais com outros países (MOURAD e PARASKEVOPOULOS, 2010). Contudo, o processo de adoção pode fomentar a ocorrência de um fenônemo existente em países como Espanha, Canadá, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte) e principalmente Estado Unidos: a Contabilidade Criativa. A prática, que é de origem Anglo-Saxônica, tanto na sua forma quanto na sua estratégia, tem sido muito discutida nos últimos anos em ambientes acadêmico e empresarial nos países supracitados (JONES, 2011; KRAEMER, 2004). A majoração da subjetividade do processo contábil, a flexibilidade na escolha dos critérios contábeis, as lacunas jurídicas, enfim, as ambiguidades existentes nas leis e normas da contabilidade fazem com que a prática da contabilidade criativa seja um elemento pujante na busca da performance patrimonial desejada (JONES, 2011). Outrossim, os organismos da classe, através de mecanismos legais de coibição e a própria contabilidade como ciência, podem não permitir a proliferação da contabilidade criativa, já que o objeto e objetivos da contabilidade, seus princípios e convenções, além das características qualitativas da informação contábil são bases fortes de sustentação desta ciência. Partindo-se deste contexto, torna-se pertinente discutir os impactos do fenômeno à ciência Contábil. Desta forma, propõe-se a seguinte problemática: até que ponto a contabilidade criativa é maléfica à essência da ciência contábil? Como objetivo da pesquisa, busca-se evidenciar como a Ciência Contábil é afetada pela prática da contabilidade criativa. Diante do presente cenário, no aspecto metodológico a pesquisa tem como característica o estudo exploratório, devido ao enfoque da temática ainda ser pouco abordado (BEUREN, 2008) e, quanto aos procedimentos, será bibliográfica, que segundo Gil (2009) é instrumentalizada por meio de consulta a livros, revistas, periódicos, artigos, entre outras fontes de dados. No presente estudo, foi utilizada para abordagem qualitativa do problema, tendo em vista a necessidade de um estudo mais detalhado do objetivo que se pretende alcançar (SEVERINO, 2002). A pesquisa está organizada em mais quatro seções, na primeira são apresentadas as definições e características da contabilidade criativa, são explanados o objeto e os objetivos da ciência contábil. Na segunda, é apresentada a caracterização do estudo. Na terceira seção são apresentadas as discussões da pesquisa, na última são apresentadas as conclusões do presente estudo. 2 – DESENVOLVIMENTO DO TEMA 2.1 – DEFINIÇÕES E CARACTERÍSTICAS DA CONTABILIDADE CRIATIVA A contabilidade criativa é um fenômeno contábil que consiste em produzir informações diferenciadas a partir das ambiguidades existentes nas normativas contábeis, evidenciando um resultado desejado de acordo com os interesses e os objetivos de quem se utiliza dos resultados da prática. Para tanto, são utilizados mecanismos baseados na legislação, já que as leis não são suficientemente claras para que se abortem todas as possibilidades da criatividade (SOUSA, 2011). O fenômeno da contabilidade criativa tem se inserido na contabilidade nas duas últimas décadas, sendo um dos responsáveis por escândalos financeiros no mundo (MINE e UGUR, 2007). A contabilidade criativa é uma prática de origem AngloSaxônica e seus estudos iniciaram no Reino Unido na década de 80 disseminando-se por outros países na década de 90 (KRAEMER, 2004). Segundo Smith (1992) a prática é inadequada porque dá a impressão de que grande parte do aparente desenvolvimento empresarial, ocorrido nos anos 80, foi mais um resultado da manipulação das informações contábeis do que de um verdadeiro crescimento econômico, já que muitas empresas se utilizaram a contabilidade criativa para apresentar indicadores de crescimento econômico e financeiro fictícios que, em um segundo momento, poderiam dar origens a verdadeiras crises empresariais. Corroborando Smith (1992), Naser (1993) acrescenta que a contabilidade criativa é o resultado da transformação dos números da entidade para um cenário desejado, aproveitando-se das facilidades que as leis que regem a matéria proporcionam. Pode-se notar que a contabilidade criativa é uma prática que objetiva distorcer as informações evidenciadas nas demonstrações contábeis, apresentando resultados distintos daqueles que naturalmente seriam apresentados se fosse utilizado o modelo contábil na sua essência. Para tanto, a prática utiliza os mecanismos legais no que tange a legislação e normas. Para Shah (1998) a contabilidade criativa embora seja uma prática legal, causa questionamentos por partes dos profissionais, sendo considerada uma influência negativa para a ciência contábil. Oliveira (2010) concorda com Shah (1998) ao proferir que a contabilidade criativa, apesar de seu uso ser legal, é eticamente condenável. Para Niyama (2008), a contabilidade criativa é muito comum em países que tem como sistema vigente o regime common law2. No caso do Brasil (emergindo do sistema code law² para o common law), a utilização da contabilidade criativa, atualmente, é mais difícil, já que o contador usa a contabilidade, principalmente, para satisfazer as demandas do fisco (MARION, 2007). A presença da contabilidade criativa nas entidades tem representado preocupação por parte dos estudiosos da ciência contábil (SÁ e HOOG, 2010). As demonstrações contábeis evidenciadas com o uso da contabilidade criativa induzem os usuários da informação contábil a erros de avaliação sobre o verdadeiro desempenho patrimonial da empresa. Conforme pesquisado por Jones (2011) a prática da contabilidade criativa tem sido corriqueira em países como Reino Unido, Espanha, Canadá, Nova Zelândia e sobretudo nos Estados Unidos onde vários escândalos contábeis ocorreram nas duas últimas décadas. Diante dos escândalos das entidades norte americanas e do descrédito das firmas de auditoria foi criada em 2002 a Lei Sarbanes-Oxley (SOX) (LEMES e CARVALHO, 2010). A SOX foi a legislação mais importante desde a quebra da bolsa de New York em 1929 contribuindo para o resgate da credibilidade da auditoria e a confiança por parte dos investidores no mercado de capitais (SILVA e ROBLES, 2008). O uso da contabilidade criativa pode ensejar fraudes contábeis gigantescas devido à delicada linha tênue que entre as práticas supracitadas (COSENZA e GRATÉRON, 2004). Empresas norte americanas como a Enron, WordCom, Xerox, Tyco Internacional podem ter iniciado com a contabilidade criativa e porventura causaram descrédito nas informações contábeis (JONES, 2011). Para Duarte e Ribeiro (2007, p. 29), a contabilidade criativa teve grande “desenvolvimento nos últimos tempos, essencialmente devido à necessidade de, através 2 Common law é o sistema legal em que não se faz necessário detalhar as regras a serem aplicadas. ² Code law é o sistema conhecido como Lei Romana, tudo tem que estar previsto na lei. da contabilidade, registrar novas e complexas transações, sem prejuízo da transparência e rigor exigidos pelos diferentes, e cada vez mais informados, stakeholders³”. Para os gestores pode-se deduzir que a contabilidade criativa majora a utilidade própria para o contador, a contabilidade criativa gera informações imprecisas para a ciência contábil e para os acionistas a prática tende a maximizar os retornos, tendo em vista que os resultados gerados pela criatividade podem ser mais “previsíveis” para o mercado acionário. Os retornos podem ser majorados para os acionistas no primeiro momento, entretanto, pode existir um aumento do risco tendo em vista que o mercado é capaz de duvidar do verdadeiro desempenho da entidade. Diante disso, torna-se importante identificar os fatores inerentes à prática da contabilidade criativa, conforme explicitados por Lainez e Callao (1999) apud Sousa (2011, p. 28-29). a) Assimetria de informação entre quem executa as ações e quem está analisando o desempenho financeiro da entidade. b) Circunstâncias que determinam o comportamento do próprio indivíduo, tais como: b.1) Diferenças de personalidade e cultura; b.2) Proficiência no ambiente onde atua; b.3) Visão pessoal sobre a competitividade, ética, direito, entre outros. c) Características das normas de contabilidade: c.1) Necessidade de fazer estimativas e subjetividade inerentes à aplicação dos princípios contábeis; c.2) Flexibilidade nas regras para considerar várias opções para refletir o mesmo evento econômico; c.3) Lacunas existentes na regulamentação. Diante do exposto, nota-se por meio das afirmativas acima que a contabilidade criativa tem efeitos negativos na ciência contábil, por consequência, no profissional contábil e na ética profissional, espargindo-se aos usuários das informações contábeis. Entendidas a contabilidade criativa e suas características, faz-se necessário discorrer sobre a contabilidade como uma ciência social, seu objeto e objetivos. 2.2 – A CONTABILIDADE COMO CIÊNCIA SOCIAL, SEU OBJETO E OBJETIVOS A contabilidade é uma ciência social que estuda e controla o patrimônio das entidades. Nesse contexto, Franco (1997) informa que a contabilidade é uma ciência social que estuda os fenômenos acontecidos no patrimônio das entidades, mediante registro, classificação, demonstração, análise e interpretação dos fatos contábeis, objetivando oferecer informações e orientação para o auxílio na tomada de decisões. O autor conclui informando que isso ocorre com o estudo acerca da composição do patrimônio, suas variações e os resultados econômico e financeiro decorrente da gestão da riqueza patrimonial. Compartilhando com a visão de Franco (1997), Sá (1998, p. 42) complementa relatando que a “contabilidade é a ciência que estuda os fenômenos patrimoniais, preocupando-se com realidades, evidências e comportamentos dos mesmos, em relação à eficácia das células sociais”. Nota-se que a contabilidade é uma ciência social com fundamentação na teoria do conhecimento. Dessa forma, Marion (2007) versa que a contabilidade é uma ciência social que estuda o comportamento das riquezas que se unificam ao patrimônio das entidades, em face das ações humanas. Muito embora a contabilidade se utilize de métodos quantitativos, não se pode interpretar a prática com sendo uma ciência exata, que objetiva as quantidades abstratas que independem de ações humanísticas. Corroborando com esta ideia, Cavalcante (2009) afirma que a ciência contábil apenas faz uso da Matemática como também de outras disciplinas, essa utilização serve como ferramenta de apoio para gerar informações para os usuários da informação contábil. O Conselho Federal de Contabilidade (CFC) através da Resolução 774/94 (apêndice da Resolução 750/93 revogada pela Resolução 1282/10) informa que a contabilidade possui um objeto próprio, ou seja, o patrimônio das entidades, que consiste em conhecimentos alcançados por metodologia racional, com as categorias de generalidade e fidúcia, buscando causas em nível qualitativo. A conotação do CFC reforça e materializa que a ciência contábil se configura como uma ciência social. No que se refere ao objeto da contabilidade, Sá (1998, p. 56) contribui: O patrimônio, essencialmente, é um conjunto impessoal de meios e recursos materiais e imateriais, existente em determinado momento, visando à satisfação das necessidades das células sociais […] Nessas definições distinguem-se dois aspectos: 1) o dos “elementos do patrimônio” (qualitativo) e 2) o das “expressões numéricas dos elementos com a atribuição de valores, como medidas” (quantitativo). Dessa forma, pode-se afirmar que e as demonstrações contábeis objetivam apresentar fidedignamente o patrimônio de uma entidade, entendido como um conjunto de bens, direitos e obrigações. No tocante ao objetivo da ciência contábil, o CFC (1994) contribui informando que: O objetivo científico da contabilidade manifesta-se na correta apresentação do Patrimônio e na apreensão e análise das causas das suas mutações. Já sob ótica pragmática, a aplicação da contabilidade a uma entidade particularizada, busca prover os usuários com informações sobre aspectos de natureza econômica, financeira e física do Patrimônio da Entidade e suas mutações, o que compreende registros, demonstrações, análises, diagnósticos e prognósticos, expressos sob a forma de relatos, pareceres, tabelas, planilhas, e outros meios (CFC, Res. 774/94, p. 8) Enfatizando a Resolução do CFC 774 (1994), Iudícibus (1995, p.21) relata que “o objetivo básico da contabilidade, portanto, pode ser resumido no fornecimento de informações econômicas para os vários usuários, de forma que propiciem decisões racionais”. Essencialmente, a contabilidade é feita para controlar o patrimônio das entidades e gerar informações cristalinas e fieis para os usuários da informação contábil, auxiliando-os no processo decisório. Nesse sentido, Marion (2007, p. 25) ressalta que “a contabilidade pode ser considerada como sistema de informação destinado a prover usuários de dados para ajudá-los a tomar decisão”. Concordando com Marion (2007), Iudícibus, Martins e Gelbcke (2008) defendem além da contabilidade ser um instrumento importante no auxílio à tomada de decisão, a ciência contábil é útil para qualquer atividade no mundo econômico e financeiro. Como complemento conceitual, Marion (2007, p. 35) acrescenta: O objetivo principal da contabilidade, portanto, conforme a Estrutura Conceitual Básica da Contabilidade, é o de permitir a cada grupo principal de usuários a avaliação da situação econômica e financeira da entidade, num sentido estático, bem como fazer inferências sobre tendências futuras. Logo, a contabilidade tem como objeto o estudo, o controle e a evolução do patrimônio das organizações econômico-financeiras, sendo o seu objetivo fornecer informações fidedignas e tempestivas acerca do seu patrimônio para os usuários da informação contábil. Notadamente, a contabilidade visa fornecer informações suficientes para que a administração da entidade tenha capacidade para tomar decisões conscientes para preservação, continuidade e o progresso do patrimônio das entidades. 3 - CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA A presente pesquisa classifica-se, quanto a sua tipologia, como exploratória, por se tratar de uma temática pouco abordada no arcabouço conceitual brasileiro, já que trata do estudo do malefício da contabilidade criativa à ciência contábil. Como característica do estudo exploratório, Beuren (2008, p. 80) contribui informando que a pesquisa exploratória via de regra “ocorre quando há pouco conhecimento sobre a temática a ser abordada. Por meio de um estudo exploratório, busca-se conhecer com maior profundidade o assunto, de modo a torná-lo mais claro ou construir questões importantes para a conclusão da pesquisa”. O estudo foi desenvolvido com base no método dedutivo, utilizando-se para os procedimentos a pesquisa bibliográfica que para Gil (1999) é a pesquisa desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros, artigos e periódicos. Segundo Beuren (2008, p. 87) “o material consultado na pesquisa bibliográfica abrange todo referencial já tornado público em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, revistas, livros, pesquisas, monografias, dissertações, teses, entre outros”. Em relação à abordagem da problemática, foi procedida uma pesquisa qualitativa, que se configura no estudo detalhado do objetivo a ser alcançado. No que tange a abordagem do problema, Severino (2002, p. 35) informa que a pesquisa necessita ser “qualitativa e inteligentemente seletiva, dada a complexidade e a enorme diversidade das várias áreas do saber atual”. 4 – DISCUSSÃO DOS RESULTADOS A contabilidade é uma ciência social que tem como objeto o patrimônio das entidades e objetiva gerar informações para os usuários das informações contábeis, auxiliando, principalmente, no processo de tomada de decisão (IUDÍCIBUS, MARTINS e GELBCKE, 2008). A contabilidade criativa é um fenômeno que consiste em maquiar, omitir e/ou distorcer as informações contidas nas demonstrações financeiras para mostrar uma imagem fictícia em detrimento da real, sempre utilizando as ambiguidades dos atos regulatórios (JONES, 2011). Diante dos conceitos e realidades expostas, a ciência e o fenômeno não se relacionam, por conta dos seus objetivos caminharem por lados opostos, provocando um embate no que tange a informação contábil sob a ótica da ciência. A informação contábil é destinada a “prover seus usuários de dados para ajudálos a tomar decisão” (MARION, 2007, p. 25). Os usuários da informação contábil precisam de informações fidedignas e cristalinas para que possam tomar ciência da situação patrimonial, econômica e financeira da entidade. Nesse argumento pode-se observar a conotação do objetivo da contabilidade ratificado por Marion (2007). Desse modo, pode-se deduzir que a prática da contabilidade criativa tende a ferir os princípios e convenções contábeis, já que a informação contábil não atenderá o objetivo da contabilidade, e por consequência, comprometerá o seu objeto: o patrimônio das entidades. Para Iudícibus (2004), para atender os objetivos da contabilidade segue-se naturalmente os princípios e convenções contábeis. Para o autor, os princípios balizam a ciência contábil e “as chamadas convenções contábeis delimitam ou qualificam melhor o tipo de comportamento do contador” […] são “restrições do usuário e de mensuração da própria contabilidade” (IUDÍCIBUS, 2004, p. 75). Buscando-se entender um conceito mais delineado sobre os princípios de contabilidade, o artigo 2º da obra que trata dos princípios de contabilidade do CFC versa que “representam a essência das doutrinas e teorias relativas à Ciência da Contabilidade, consoante o entendimento predominante nos universos científico e profissional de nosso País. Concernem, pois, à Contabilidade no seu sentido mais amplo de ciência social” (CFC, 2008, p. 13). Nota-se que os princípios contábeis são as bases de sustentação da ciência contábil. Segundo Mayoral (1997) a contabilidade criativa fere os princípios e as convenções contábeis. Para o autor o princípio da prudência é afetado pelo excesso e/ou falta de contabilização de provisões para riscos e gastos com depreciações, reavaliação voluntária de ativos e excesso de capitalização de gastos com pesquisas e desenvolvimento. Mayoral (1997) relata ainda que a convenção da materialidade é afetada severamente por mudanças contábeis voluntárias e injustificadas, alteração artificial do alcance da comparabilidade e consolidação das informações geradas e alteração arbitrária da política de amortização de imobilizados. Como o objetivo da convenção da materialidade é evitar desperdício de tempo e otimizar a utilização dos recursos financeiros, a contabilidade criativa vai de encontro a política da convenção supracitada. A materialidade também se caracteriza pela informação que se deve evidenciar (MAYORAL, 1997). Notadamente, o uso da contabilidade criativa como objetivo de maquiar, omitir e/ou distorcer os números da entidade tende a induzir o usuário da informação contábil a erros de avaliação da empresa, em seus estados do passado, presente e tendências futuras, afetando sobremaneira a convenção retrocitada. Segundo Hsieh e Tsai (2005), as convenções da consistência e do conservadorismo são atingidas com o uso da prática. No caso da convenção da consistência que objetiva que as demonstrações contábeis permitam que seus usuários utilizem as informações de forma a possibilitar o delineamento da tendência da empresa com o menor grau de dificuldade possível. Assim, o uso da criativa dificulta a avaliação do desempenho da entidade. A convenção da consistência objetiva que as demonstrações contábeis permitam aos seus usuários utilizarem as informações de forma a possibilitar o delineamento da tendência da empresa com o menor grau de dificuldade possível. Assim, o uso da contabilidade criativa restringe esse processo, pois não respeita a imagem fiel na avaliação dos itens patrimoniais. Com o uso da criatividade as informações são maquiadas para a empresa apresentar uma performance patrimonial desejada (lucro, estabilidade ou prejuízo), portanto prejudica a comparabilidade das demonstrações contábeis. A contabilidade criativa reflete a realidade desejada infringindo as regras de conservação e definhando as características qualitativas das demonstrações contábeis. Nesse entendimento Mourad e Paraskevopoulos (2010, p.1) demonstram que um dos objetivos da harmonização contábil é “implementar maior transparência nas demonstrações contábeis e proporcionando maior comparabilidade para diversas entidades em diferentes países e indústrias, fornecendo mais informações para a tomada de decisões pelos usuários” da informação contábil. O Brasil, que tem características do sistema legal code law, após a convergência às normas internacionais tende a convergir para o regime common law (mais propício ao uso da contabilidade criativa (NIYAMA, 2008)). O uso da contabilidade criativa, aproveitando os vazios legais, tende a comprometer consideravelmente as características qualitativas das demonstrações contábeis, já que, segundo Mourad e Paraskevopoulos (2010), estas devem ser compreensíveis, relevantes, importantes para os usuários, confiáveis e neutras, além de permitir a comparabilidade. O uso da contabilidade criativa fere as características qualitativas da informação contábil citadas por Mourad e Paraskevopoulos (2010). Segundo Jones (2011) a prática consiste em utilizar as vacâncias e as subjetividades dos atos regulatórios, sem cometer atos de irregularidade jurídica, entretanto a contabilidade como Ciência Social fica aquém de ter seu objeto de estudo atendido quando se usa das maleabilidades oriundas da contabilidade criativa. No que tange às demonstrações contábeis, principal alvo da contabilidade criativa para apresentar uma performance desejada da situação patrimonial da entidade, Mourad e Paraskevopoulos (2010, p.10) informam que demonstrações tem por objetivo principal o fornecimento de informações “sobre a posição financeira, patrimonial, desempenho e alterações na posição financeira e patrimonial de determinada entidade”. Ainda segundo os autores, as demonstrações contábeis mostram os resultados e a eficácia da gestão na maioria dos casos, sendo fundamentais para a tomada de decisão por parte dos usuários. Notadamente, a ciência contábil com seus instrumentos fundamentais para gerar informação fiel, preditiva e útil está sempre caminhando para atender seus objetivos e objeto. Contudo, a prática da contabilidade criativa buscade maneira legal (aspecto jurídico) manipular as informações contábeis, atingindo a ciência contábil em sua plenitude (princípios, convenções, objetivo e objeto). Para Oliveira (2010) apesar de legal juridicamente, a prática é imoral e fere os princípios éticos do profissional contábil. Conclui-se, então, que a contabilidade criativa é um mal existente que vem sendo inserido na ciência contábil através de números maquiados que refletem nas demonstrações contábeis das entidades, fazendo com que os resultados sejam evidenciados da maneira que os gestores desejarem, para tanto são utilizados vazios, brechas, omissões e subjetividades nas leis e normas que regem a contabilidade. Entretanto, conforme demonstrado, a prática, além de ser condenada eticamente, fere princípios e convenções contábeis como visto no estudo, podendo ainda comprometer outros princípios contábeis como o da continuidade, além da convenção contábil da objetividade, comprometendo sobremaneira o objeto e os objetivos da contabilidade enquanto ciência. 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS A contabilidade criativa tem se manifestado consideravelmente nos ambientes acadêmico e empresarial em muitos países e tem sido uma prática corriqueira, sobretudo nos Estados Unidos. Estudiosos da matéria têm focado em marginalizar a prática por seu objetivo ir de encontro à ética profissional, além das demonstrações contábeis apresentarem um resultado manipulado para satisfazer os donos do capital. O profissional contábil, nesse contexto, para fazer contabilidade criativa necessita ter um conhecimento profundo sobre as leis e normas contábeis, além de se posicionar de forma reflexiva em seus valores éticos. Conhecer a contabilidade criativa, não necessariamente é fazer contabilidade criativa. O contador pode conhecer esse fenômeno para ser consciente do malefício que essa prática provoca à ciência contábil. O patrimônio das entidades é o objeto de estudo da ciência contábil e o seu objetivo é gerar informações precisas acerca da situação patrimonial, assim o uso da contabilidade criativa para a ciência contábil é um mal indesejado. Mesmo sendo indesejada para a ciência contábil, a prática pode impulsionar os resultados dos donos do capital, mesmo que incrementando o risco das operações. Os gestores quando demandam aos Contadores o uso da contabilidade criativa, esses profissionais contábeis colocam a empresa numa situação que pode ser mais rentável para os acionistas no mercado de capitais, podendo atrair investidores para entidade. Em outra perspectiva, a contabilidade criativa pode deixar a entidade estabilizada no tempo e fazer com que ela seja vista como uma empresa previsível, sem volatilidade no mercado acionário, ou seja, uma empresa sem riscos. Muito embora não seja o principal objetivo da contabilidade criativa, seus gestores podem demandar que os números sejam maquiados para debilitar (prejuízo) a imagem da empresa, para não distribuir resultados, diminuir a arrecadação de impostos e encargos sociais ou até tentar incentivos provenientes da possibilidade de falência. Nota-se que para a gestão da empresa ou para o mercado acionário a contabilidade criativa pode ser um instrumento desejado, porém a prática tende a ensejar consequências graves, além de infringir, como visto, desde a conduta ética e moral dos profissionais de contabilidade até a ciência contábil em seu objeto e objetivos, e por natureza reflete no patrimônio das entidades. Diante do que concerne a todos os pontos identificados, é importante traçar um plano estratégico bem delineado para combater esse fenômeno indesejado para ciência contábil, seja através da ampliação dos objetivos da auditoria, seja através de normas e leis mais trabalhadas no sentido de proteção à ciência contábil ou através de um trabalho de conscientização ética e profissional. Nesse sentido, o principal objeto de estudo da contabilidade será atendido pela ciência, e por consequência, os objetivos e a função da contabilidade serão, de fato, úteis para a ciência social e para os usuários da informação contábil. REFERÊNCIAS BEUREN, I. M. (Org.). Como elaborar trabalhos monográficos em contabilidade – Teoria e Prática. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. BRASIL. CONSELHO FEDERAL DE CONTABILIDADE. Resolução 1282. Brasília: CFC, 2010. Disponível em: < http://www.cfc.org.br>. Acesso em 10 ago 2011. ___. CONSELHO FEDERAL DE CONTABILIDADE. Resolução 774. Brasília: CFC, 1994. 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