Apresentação de Caso SíNDROME COMPARTIMENTAL SECUNDÁRIA A REVASCULARIZAÇÃO TARDIA TRATADA POR FASCIOTOMIA. APRESENTAÇÃO DE CASO. GENERALIDADES A síndrome compartimental é uma condição especial decorrente do aumento de tensões em um espaço músculo-aponeurótico inextensível e não modificável, com comprometimento neuromusculovascular, levando a comprometimento circulatório secundário, o que altera profundamente a função nos tecidos contidos neste compartimento. As principais causas do aumento da pressão intracompartimental são: 1. Lesão muscular grave. 2. Fraturas levando a grandes hematomas. 3. Osteossíntese com fechamento hermético. 4. Isquemia aguda prolongada . 5. Revascularização arterial tardia. O caso a ser relatado diz respeito a uma síndrome compartimental secundária a embolectomia tardia do membro inferior direito. Karakhanian, Walter K.' Amary , Jorge N.** Caffaro, Roberto A.' Tarcha, Walter G* Castelli, Valter*'* Os autores apresentam um caso de síndrome compartimental secundária à revascularização do membro inferior O. pós embolectomia, que evoluiu bem com a fasciotomia ampla, restando como seqüela uma paralisia do pé ("pé caído"), porém com boa perfusão e sem lesões tróficas isquêmicas. Unitermos: Revascularização Síndrome Compartimental. Relato do caso: R .M.B., 45 a., masculino, branco, casado, internado entre 01 a 12 de fevereiro de 1986 com queixa de formigamento e paralisia do MID há cerca de 24 hs. Paciente hipertenso e obeso, sem antecedentes semelhantes, sem arritmias cardíacas e sem passado sugestivo de infarto do miocárdio pregresso e recente. Todos os pulsos presentes em MIE, sendo que no MID, apresentava apenas pulso femoral e os demais ausentes distalmente. Cianose do pé direito, com impotência funcional motora e sensitiva. O Doppler ultra-som mostrava ausência de ruídos em artéria poplítea, tibial posterior e pediosa direita . Com o diagnóstico de insuficiência arterial aguda, por provável embolia de artéria femoral superficial direita, foi submetida a cirurgia. Realizado embolectomia, por inguinotomia direita, arteriotomia transversal na femoral comum e passagem do cateter de Fogarty SF no sentido distai, tanto na artéria femoral profunda, como na femoral superficial, com saída de grande quantidade de material trombótico (secundário) e de embolo. Feito arteriorrafia e drenagem. Heparinização sistêmica continua. *Obs.: Paciente antes de procurar nosso serviço , procurou outro hospital, onde ficou tomando soro por 12 hs., sem melhora do quadro. EVOLUÇÃO Prof. Assistente do Depe de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. ** Prof. Pleno do Dept~ de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e Prof. da Disciplina de Cirurgia Vascular. *** Ex-Presidente e médico voluntário do Casa de São Paulo. Dept~ CIR. VASC oANG. 4(1) : 27,30, 1988 de Cirurgia da Santa No pós-operatório imediato, houve melhora acentuada da perfusão com reaparecimento de pulso poplíteo D, porém persistindo a impotência funcional e com evidentes sinais de miosite isquêmica de panturrilha, traduzindo a síndrome comparti mental secundária a revascularização do membro, o que nos obrigou à realização de fasciotomia mediai e lateral (Fig. 1). No dia seguinte a perfusão era boa, porém permanecia a impotência funcional, e a tensão da panturrilha, o que levou a uma ampliação das fasciotomias mediai (fig. 2) e lateral e a realização de uma terceira incisão na face posterior da perna. 27 Karakhanian Walter K. e cals. Síndrome Compartimental Foi submetido a tratamento fisioterápico desde a alta hospitalar e, atualmente, consegue levar vida praticamente normal, deambulando sem auxílio e fazendo todas suas atividades. Fig. 1 - Necrose da face lateral da perna, já submetida à fasciotomia. Fig. 3 - Aspecto da evolução da fasciotomia mediaI. COMENTÁRIOS - DISCUSSÃO Fig. 2 - Fasciotomia mediaI No segundo dia de pós-operatório, â perfusão era boa, mantinha a impotência funcional (anestesia de pé e face lateral da perna com queda do pé), quando começou a apresentar diminuição da diurese, a qual foi estimulada com furosemide e manitol , respondendo bem a esta medicação . Nos dias seguintes, melhorou progessivamente a diurese e o estado geral, com melhora clínica e laboratorial (tabela I). . Nas incisões da fasciotomia houve infecção e necrose. O paciente recebeu alta no 12~ dia P.O. e foi seguido a nível de ambulatório com debridamento, açúcar local, pomadas debridantes e cicatrizantes . Após um mês de curativos diários, o aspecto era sensivelmente melhor, sendo agora protegido por uma meia elástica de alta compressão. Em torno de 60 dias, houve cicatrização completa, permanecendo a incapacidade de dorsiflexão do pé bem como de extensão dos artelhos. 28 Qualquer cirurgião vascular já teve a oportunidade de se defrontar com as complicações provenientes de uma revascularização em um membro afetado por isquemia grave. Essas complicações podem ser divididas em sistêmicas e locais, e foram bem caracterizadas por Bywaters(2), Haimovici(6), e Cormier e Legrain(3), sendo conhecida classicamente com o nome de Síndrome de Legrain e Cormier, Síndrome de Haimovici ou ainda Síndrome do Torniquete. Haimovici relata incidência dessa síndrome em torno 7,5% em 200 casos de oclusão aterial aguda(8) . Francisco Jr. obtém 7,9% de incidência desta síndrome em embolectomias tardias(5), Elliot e. col(4) indica 3,5% em 225 casos. DIA EXAME 01102/86 (OP) 03/02/86 Uréia Na 44mg% 86mg% 131 mEq 140mEq/1 4.5 mEq 4,6mEq/L 1l6mg% 177 mg % 108,1 mg % 3,4 1,2 K Glicemia Creatinina Hemograma 04/02/86 06/02/86 10/02/86 74,5 132 4.4 51 104, 2,1 Ht-48 Hb-1.6 Leucócitos - 15.200 sem particularidades no diferencial. Urina I - Normal Colesterol - 170 mg% Dosagem de Uréia na urina - 421 mg% e de sódio 9 mEf/1. Tabela 1 - Evolução da função renal e perfil laboratorial. CIR. VASCo ANG. 4(1) : 27 . 30. 1988 Karakhanian Walter K. e cols. As complicações sistêmicas se caracterizam por alterações significativas· dos eletrólitos e do equilíbrio ácido-básico(J3). A revascularização de um membro isquêmico leva a aumento súbito de sangue acidótico e hipercalêmico ao coração, podendo provocar alteração eletrocardiográfica importante e hipotensão . Ocorre também mioglobinuria, principalmente quando há necrose muscular, podendo levar a uma insuficiência renaI (7 ). Stallone(l3) relata complicações pulmonares decorrentes de microembolização produzidos por agregados fibrinoplaquetários que em muitos casos talvez seja responsável pela morte súbita. No caso relatado acima , a insuficiência renal foi transitória, respondendo às medidas clássicas de diurético, não necessitando de hemodiálise, ou de métodos como a alcalinizas;ão da urina como preconizam muitos autores(9) . Das complicações locais, o que mais freqüentemente ocorre após uma revascularização satisfatória é edema considerável, que pode levar a comprometimento do fluxo arterial e reoclusão. O processo primário responsável por esse edema é a lesão do leito capilar que leva a extravasamento de líquido. Pode contribuir para esse edema, uma dificuldade do retorno decorrente de trombose venosa. Este quadro constitui uma síndrome compartimental que deve ser diagnosticada e tratada o mais precocemente possível. O índice de complicação aumenta com a gravidade da isquemia que está na dependência do tempo de oclusão vascular e do volume do tecido comprometido. A mortalidade e morbilidade que ocorre nestas circunstâncias pode reduzir-se sensivelmente com medidas apropriadas. Nesta síndrome os sinais clínicos são de grande valia. A dor espontânea, dor à flexão ou extensão passiva do pé, edema tenso, hipoperfusão, anestesia, paresia ou paralisia de pé ou artelhos, fazem o diagnóstico. A nosso ver a presença de pulsos distais não constitui um sinal que afasta a possibilidade de um edema crítico já que o desaparecimento dos pulsos indica um retardo excessivo na terapêutica . Alguns autores acreditam que o.diagnóstico definitivo não deva ser feito com base em critérios clínicos, e preconizam a fasciotomia quando a pressão tecidual excede 30 mmHg(1Ü) . De qualquer modo, quando após a revascularização se instala a assim chamada síndrome compartimental, a descompressão inicial deve ser feita através de uma fasciotomia descrita e preconizada por Rosato(12). Quando através desta técnica não se consegue melhora imediata, devemos ampliar a fasciotomia, abrindo amplamente os compartimentos fasciais profundos. Alguns autores preconizam a descompressão com a retirada da cabeça de fibula(11). No caso apresentado a fasciotomia econômica não conseguiu uma descompressão satisfatória, o que foi conseguido através de ampliação das incisões e da realização de uma terceira incisão na face posterior da perna. (vide foto). Em muitas oportunidades, a fasciotomia, após desempenhar o seu papel, pode ser suturada, entretanto em CIR. VASCo ANG. 4(1) : 27,30, 1988 Síndrome Compartimental outras ocasiões, como a do caso apresentado, além de não se conseguir o fechamento por aproximação primária, ocorreu infecção localizada, que foi curada com curativos intensivos. Muitas vezes pode ser necessário o auxÍlio de um cirurgião plástico para a realização de enxerto de pele. Debelada a infecção, e com a ferida apresentando-se com tecido de granulação, passamos a usar meia elástica na tentativa de se conseguir a eliminação de espaços mortos, deixado pela retirada de parte de musculatura necrosada. Com esta medida, o edema melhorou consideravelmente obtendo-se a cicatrização das feridas produzidas pela fasciotomia , conseguindo a manutenção do membro . CONCLUSÕES Nos relatos de literatura, em torno de 5% das embolias, necessitam de fasciotomiaCl) . Sem dúvida , quando a embolectomia é realizada tardiamente , a necessidade desta técnica é maior. O caso aqui relatado, tem como finalidade lembrar a fasciotomia, técnica extremamente simples, porém de grande valia , levando muitas vezes à salvação de membros. O cirurgião vascular deve permanecer atento para a revascularização tardia, quanto às complicações locais e sistêmicas e não deve medir esforços para a salvação de um membro, desde que esta tentativa não coloque em risco a vida do paciente , devendo por isso mesmo reconhecer e tratar precocemente os distúrbios metabólicos que aqui ocorrem . O caso vivido por nós trouxe grandes ensinamentos às custas de momentos de angústia , onde por diversas vezes pensamos que talvez a amputação primária fosse a melhor resolução, entretanto com o acompanhamento intensivo mantivemos a situação sob controle , conseguindo através da colaboração do paciente a salvação do membro. SUMMARY Compartmental syndrome due to delayed revascularization treated by fasciotomy Case reporto Embolectomy of the femoral artery was followed by a secondary compartmental syndrome of the lower leg after 24 hours, due to reestablishment of the arterial flow and insufficient venous returno Three extensive incisions of the Grural fascia led to reduction of edema and restoration of blood flow, saving the patient's leg. Uniterms: Revascularization Compartmental Syndrome. 29 Karakhanian Walter K. e cals. Síndrome Compartimental REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA l. BEEBE HUGH G -Complicaciones em cirurgia vascular. Editorial JIMS, 1976. 2. HAIMOVICI H - Arterial embolectomy : A 20 year experience with 163 cases. Surgery, 67:212, 1970. 3. STALLONE RJ, BLAISDELL FW, LAFFERATA HT - AnaIysis of morbidity and mortality from arterial aembolectomy. Surgery, 65:207,1969. 4. HAIMOVICI H - Vascular Emergencies - Appleton-CenturyCroftsN. York, 1982. 5. ~OSATO FE , BARKER CF, ROBERTS B & DANIELSON GK - Subcutaneous fasciotomy description of a new tecnique and instrument. Surgery, 59:383 , 1966. 6. PATMAN RD , THOMPSON WW - Fasciotomy in peripheral vascular surgery. Arch. Surg., 101:663, 1970. 7. BYWATERS EGL - Ischemic muscle necrosis. JAMA, 124: 1103, 1944. 8. HAIMOVICI H - Arterial embolism with massive ischemic myopathy and mioglobinuria. Sugery , 47: 739 , 1960. 9. CORMIER JM & LEGRAIN M - L' lperkaliemie complication tres graves des sybdrome d'ischemie aigüe des mem bres . J . Chir., 83:473 , 1962. 10. HAIMOVICI H - Myopathic - Nephrotic - Metabolic syndrome associated with massive acute arterial occlusions. J. Cardiovasc. Surg. , 14:589, 1973. 1l. FRANCISCO Jr J - Embolectomia arterial tardia. Tese de Mestrado E.P.M., 1983. 12. ELLIOT JP , HAGEMAN JH , SZILAGYI DE , RAMAKRISHNAN V , BRAVO JJ & SMITH RF - Arterial embolization : Problems of source multiplicity, recurrence, and delayed treatment. Sugery , 88:833 , 1980. 13. MUBARAK SJ , OWEN CA, HRAGENS AR -Acute compartimental syndromes: Diagnosis and treatment with the aid of the wick catheter. J. Bone Joint, Surg., 60:1091 , 1978. 14. RAMACCIOTTI OSIRES e col. - Sind. do Torniquete: H.C. F.M. U .S.P, 1971. Trabalho experimental. 30 CIR . VASC oANG . 4(1) 27,30, 1988