JOGO E CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO: RELAÇÕES POSSÍVEIS Sara Dagiós Bortoluzzi UPF O jogo é uma prova de intimidade e por isso de conhecimento. É o que nos ensinam as crianças, as populações primitivas, os artistas, os cientistas e nós mesmos em muitos momentos. Quem joga pode chegar ao conhecimento por meio de exercício, símbolos e regras ou das próprias características do jogo. Lino de Macedo RESUMO A presente pesquisa busca desvendar qual a relação entre o jogo e a construção do conhecimento, foi desenvolvida em uma escola pública de Frederico Westphalen/RS, envolvendo professores que atuam nas séries iniciais (1ª a 4ª séries). Valeu-se de uma abordagem qualitativa, a partir do qual se buscou resposta para o problema proposto. As conclusões provisórias que a pesquisa nos trouxe foram de que, em nossas escolas, a maior parte dos professores tem a crença empirista a cerca de como o aluno aprende. Em relação ao desenvolvimento do jogo percebemos que há certos preconceitos e uma visão limitada a respeito do mesmo sendo atividade reservada para o horário do recreio e da educação física. PALAVRAS CHAVES: Metodologia; Epistemologia; Jogo; Construção do Conhecimento. Refletir em torno do tema lúdico, mais especificamente do jogo, no atual momento histórico significa nos engajarmos na luta por uma formação mais criativa, consciente e autônoma, capaz de tornar as crianças mais confiantes e seguras de si. Em linhas gerais este trabalho procura analisar a importância do jogo no processo de construção do conhecimento nas séries iniciais. Especificamente, pretende apresentar algumas conclusões de uma investigação realizada com quatro professores de 1ª a 4ª séries de uma escola pública no município de Frederico Westphalen/RS, onde buscou-se compreender de que maneira a postura epistemológica e metodológica do professor pode influenciar este processo construtivo. Optou-se em realizar este trabalho com os professores uma vez que as estruturas conscientes e ou inconscientes nesse adulto que ensina se refletem fundamentalmente na sua prática. Assim um professor que não sabe e ou não gosta 2 de jogar, dificilmente desenvolverá um olhar sensível para a prática lúdica do seu aluno, tão pouco reconhecerá o valor do jogo na vida da criança. Dessa forma, o trabalho de investigação pautou-se em três questões básicas: a epistemologia, a metodologia e o jogo. Por epistemologia entendemos, aqui, a maneira como o professor concebe o conhecimento de seus alunos, ou seja, seus educandos aprendem através de seus ensinamentos, pelas heranças genéticas ou porque o conhecimento faz parte de um processo de construção que precisa de outros fatores além dos mencionados, como a ação e a interação da criança. Quanto a metodologia, nosso olhar debruçou-se sobre a forma como o professor organiza sua ação, isto é, sua maneira de proceder no espaço da sala de aula. No que diz respeito ao jogo, nosso entendimento é de que ele proporciona não só um meio real de aprendizagem como permite também que o professor aprenda sobre a criança e suas necessidades. A investigação serviu-se de uma abordagem qualitativa, tendo sido conduzida através de entrevistas semi-estruturadas, o que permitiu que os professores pesquisados falassem livremente, oportunizando-nos compreender melhor as tendências dos nossos interlocutores. Possibilitou-nos também compreender as representações ou explicações adotadas para o entendimento do processo de construção do conhecimento por meio do jogo. Nosso suporte teórico teve base em Jean Piaget, nas questões referentes ao jogo e em aspectos mais gerais de sua teoria, especialmente no que diz respeito aos estudos que ele desenvolveu acerca das formas empirista e apriorista de conceber o conhecimento, confrontando-as com suas idéias relativas à teoria de assimilação que explica o conhecimento enquanto processo em permanente construção. Enfoques Epistemológicos Empirismo - Em primeiro lugar, realçamos a Pedagogia Diretiva e seu pressuposto epistemológico. Nela, vamos encontrar as idéias de Thorndike que explica que a aprendizagem se da através de estímulo-resposta (S-R). Podemos encontrar, também a crença behaviorista ou comportamentalista apresentada por Watson e Skinner, que concebem a aprendizagem resultante do condicionamento operante. Desta maneira, aprendizagem passa a ser definida como uma modificação do comportamento, aquele que ensina gera (ou impõe) naquele que aprende. 3 Essas teorizações provêm e conduzem a uma visão empirista sobre a gênese do conhecimento. Segundo elas, o sujeito é “tabula rasa”, não somente no momento em que nasce, mas durante toda sua vida, pois cada novo conteúdo deve ser assimilado sem qualquer relação com os anteriores. Assim, o conhecimento vem do meio físico e social. Sob este prisma, Piaget (1987) ao fazer uma análise crítica do empirismo, assim o caracteriza: “Por uma parte tende a considerar a experiência como algo que impõe por si mesmo, sem que o sujeito tenha que organizá-la, isto é, como se ela fosse impressa diretamente no organismo sem que uma atividade do sujeito seja necessária à sua constituição.”(p.339) Entendemos, a partir disso que a prática pedagógica constitui-se basicamente na transmissão de conteúdos do professor para o aluno. Sendo o professor o sujeito que planeja o ato de ensinar. O aluno “mero objeto” resultado do trabalho do educador. Apriorismo - Em segundo lugar, deparamos com a Pedagogia Não-Diretiva, que fundamenta a sua crença de que o ser humano ao nascer traz o conhecimento programado em sua bagagem genética. Portanto vem de dentro para fora. Piaget (1987), ao referir-se ao Apriorismo, aborda a Gestaltheorie, que consiste em explicar “cada invenção da inteligência por uma estruturação renovada e endógena no campo da percepção ou do sistema de conceitos e relações”(p.532). Isto significa que as estruturas que assim aparecem são constituídas sempre por totalidades, não podendo ser meramente reduzidas a associações ou combinações de ordem empírica. Neste caso, o professor é, até certo ponto, dispensável, pois praticamente não age sobre o processo de conhecimento do seu aluno, negando a característica fundamental de sua ação que é, justamente, trabalhar no sentido de permitir a construção do conhecimento. Construtivismo - Numa terceira concepção, trataremos da Pedagogia Relacional e seu pressuposto epistemológico. Vimos confirmada nesta concepção de educação que uma nova relação passa a estabelecer-se entre professor e aluno. Não há mais lugar para a idéia de que o professor sabe e o aluno não sabe (empirismo), nem tão pouco a crença reducionista de que o conhecimento é inato programado na bagagem genética (apriorismo). 4 O que acontece aqui é uma troca permanente entre professor e aluno, na qual ambos ensinam a aprender ao mesmo tempo: “(...) o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa.”(Freire, 1994, p.68) Esta perspectiva deixa claro que aprender é um processo permanente de construção, que inicia quando nascemos e de prolonga por toda a nossa existência. A construção dá-se na relação do sujeito com o meio físico e social através de suas experiências e vivências. Desta forma, diz Piaget (1987): “a experiência não é recepção, mas ação e construção progressivas. Eis o fato fundamental”(p.342). Projeta-se aí uma nova visão de educador, de educando e de educação. O professor acredita na capacidade de aprender do aluno e compreende, por conseqüência, a lógica da construção: aprender, segundo Piaget, é sempre construir e reconstruir. As questões do jogo em Piaget Tudo o que a gente ensina a uma criança, a criança não pode mais, ela mesma, descobrir ou inventar. Jean Piaget Em A Formação do Símbolo na Criança: jogo, sonho e imitação (1975), Piaget tece uma explicação psicológica e biológica do jogo. O jogo aparece como comportamento reconhecível facilmente elucidado a partir da mímica, do riso da ação da criança. Em termos piagetianos, o jogo nada mais é do que a denominação usual de traço psicológico profundo predominando a assimilação sobre a acomodação. Não há como construir um conceito de jogo, mas trata-se de evidenciar o que se chama de jogo, o fenômeno psíquico essencial ao desenvolvimento da criança que permitirá classificar e distinguir diferentes tipos de jogos. Para Piaget (1975), três grandes estruturas caracterizam os jogos infantis: o jogo de exercício, o jogo simbólico e o jogo de regras. Jogo de exercício sensório-motor A atividade lúdica surge, primeiramente, sob a forma de simples exercícios motores, dependendo para sua realização apenas da maturação do aparelho motor. 5 Sua finalidade é tão-somente o próprio prazer do funcionamento. Daí dizer-se que o que caracteriza este tipo de jogo é o prazer funcional. Piaget (1975) diz que “quase todos os esquemas sensóro-motores dão lugar a um exercício lúdico”(p.145). Esses exercícios motores consistem na representação de gestos e movimentos simples, com um valor exploratório: nos primeiros meses de vida, o bebê estica e recolhe os braços e as pernas, agita as mãos e os dedos, toca os objetos e os sacode, produzindo ruídos ou sons. Esses exercícios têm valor exploratório porque a criança os realiza para explorar e exercitar os movimentos do próprio corpo, seu ritmo, cadência e desembaraço, ou então para ver o efeito que sua ação vai produzir. É o caso das atividades em que a criança manipula objetos, tocando, deslocando, superpondo, montando e desmontando. Movimentando-se, a criança descobre os próprios gestos e os repete em busca de efeitos. Embora os exercícios sensório-motores constituam a forma inicial do jogo na criança, eles não são específicos dos dois primeiros anos ou da fase de condutas pré-verbais. Eles reaparecem durante toda a infância e mesmo na vida adulta, “sempre que um novo poder ou uma nova capacidade são adquiridos”(Piaget, 1975, p.149), por exemplo, aos cinco ou seis anos, a criança realiza este tipo de jogo ao pular com um pé só ou tentando saltar dois ou mais degraus da escada; aos dez ou doze anos tenta andar de bicicleta sem segurar no guidão. Para exemplificar este tipo de conduta lúdica no adulto, podemos citar o caso do indivíduo que acaba de adquirir, pela primeira vez, um aparelho de som ou um automóvel, e se diverte fazendo funcionar o aparelho ou passeando no carro, sem outra finalidade senão o próprio prazer de “exercer os seus novos poderes”(Piaget, 1975, p.149) Assim sendo, essa forma de atividade lúdica, embora caracterize o nascimento do jogo na criança na fase pré-verbal (de zero a dois anos), ultrapassa largamente os primeiros anos da infância. Jogo Simbólico No período compreendido entre os dois e os seis anos, a tendência lúdica se manifesta, predominantemente, sob a forma de jogo simbólico, isto é, jogo de ficção, ou imaginação, e de imitação. Nesta categoria estão incluídas a metamorfose de objetos (por exemplo, um cabo de vassoura se transforma num cavalo, uma caixa de 6 fósforo num carro e um caixote passa a ser um trem), e o desempenho de papéis (brincar de mãe e filho, de professor e aluno, de médico, etc.). O jogo simbólico se desenvolve a partir dos esquemas sensório-motores que, à medida que são interiorizados, dão origem à imitação e, posteriormente, à representação. A função desse tipo de atividade lúdica, de acordo com Piaget (1969) “consiste em satisfazer o eu por meio de uma transformação do real em função dos desejos: a criança que brinca de boneca refaz sua própria vida, corrigindo-a à sua maneira, e revive todos os prazeres ou conflitos, resolvendo-os, compensando-os, ou seja, completando a realidade através da ficção”(p.29). Portanto, o jogo simbólico, de imaginação ou imitação, tem como função assimilar a realidade, seja através da liquidação de conflitos, da compensação de necessidades não-satisfeitas, ou da simples inversão da papéis (principalmente no que se refere aos papéis de obediência e autoridade). É o transporte a um mundo de faz-de-conta, que possibilita à criança a realização de sonhos e fantasias, revela conflitos interiores, medos e angústias, aliviando a tensão e as frustrações. O jogo simbólico é, simultaneamente, uma forma de assimilação do real e um meio de auto-expressão, pois à medida que a criança brinca de casinha, representando os papéis de mãe, pai e filho, ou brinca de escola, reproduzindo os papéis de professor e aluno, ela está, ao mesmo tempo criando novas cenas e também imitando situações reais por ela vivenciadas. Assim sendo, é através do jogo simbólico que a criança expressa e integra as experiências já vividas. Jogo de Regras A terceira forma de atividade lúdica a surgir é o jogo de regras, que começa a se manifestar por volta dos cinco anos, mas se desenvolve principalmente na fase que vai dos sete aos doze anos, predominando durante toda a vida do indivíduo (nos esportes, no xadrez, nos jogos de cartas, etc.). “Os jogos de regras são jogos de combinações sensório-motoras (corridas, jogos de bola de gude ou com bolas etc.) ou intelectuais (cartas, xadrez etc) em que há competição dos indivíduos (sem o que a regra seria inútil) e regulamentados quer por um código transmitido de geração em geração, quer por acordos momentâneos”.(Piaget, 1975, p.185) O que caracteriza o jogo de regras, como o próprio nome diz, é o fato de ser regulamentado por meio de um conjunto sistemático de leis (as regras) que 7 asseguram a reciprocidade dos meios empregados. É uma conduta lúdica que supõe relações sociais ou interindividuais, pois a regra é uma ordenação, uma regularidade imposta pelo grupo, sendo que sua violação é considerada uma falta. Portanto, esta forma de jogo pressupõe a existência de parceiros, bem como de certas obrigações comuns (as regras), o que lhe confere um caráter eminentemente social. Piaget (1975) diz que o jogo de regras é a atividade lúdica do ser socializado e começa a ser praticado por volta dos sete anos, quando a criança “abandona o jogo egocêntrico das crianças pequenas, em proveito de uma aplicação efetiva de regras e do espírito de cooperação entre os jogadores.”(p.180) As situações de jogo possibilitam, também as crianças, o encontro com seus pares, fazendo com que interagem socialmente quer seja no espaço escolar ou não. No grupo descobrem que não são os únicos sujeitos da ação, e que para alcançar seus objetivos precisam levar em conta o fato de que os outros também tem objetivos próprios que querem satisfazer. Os jogos infantis, no dizer de Piaget (1975), constituem-se “admiráveis instituições sociais” e através deles as crianças vão desenvolvendo a noção de autonomia e de reciprocidade, de ordem e de ritmo. Desta forma, Piaget (1975) nos diz que o jogo não pode ser visto apenas como divertimento ou brincadeira. Ele favorece o desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo, social e moral. As crianças ficam mais motivadas para superar obstáculos, tanto cognitivos quanto emocionais. O jogo está estritamente relacionado com o processo evolutivo do pensamento “jogar é pensar”(1975). No grande universo de significações que o jogo contempla, podemos dizer que o jogo desempenha um papel ímpar no desenvolvimento da criança, pois, através dele, desenvolve o conhecimento de si mesma e do mundo ao seu redor. Alícia Fernades (1991) manifesta da seguinte maneira seu entendimento entre o jogar e o aprender: “o saber se constrói fazendo do próprio o conhecimento do outro, e a operação de fazer próprio o conhecimento do outro só se pode fazer jogando”(p.165). Assim, enquanto espaço social de aprendizagem a sala de aula deve ser organizada em forma de situações nas quais alunos e professores vivam relações de trocas, envolvidos com atividades que coloquem em conflito os diferentes pontos de vista, problematizando, construindo e reconstruindo conhecimentos. 8 PRINCIPAIS RESULTADOS A relação entre o jogo e a construção do conhecimento A leitura que fazemos sobre as colocações dos docentes a respeito do jogo, permitem-nos dizer que a maioria dos educadores têm consciência de que o jogo auxilia a construção e socialização do saber. Assim se pronunciam: “É a forma mais prazerosa de aprender, socializa, estimula o raciocínio e ensina a criança a respeitar e obedecer as regras existentes, além de construir os mais variados conhecimentos”, ou “O jogo é eficiente”, ou ainda, “Prazer unido à tarefa nem se questiona, dá bom resultado”, ou “É muito válido, desenvolve o raciocínio”. Observase porém que esta prática não é muito vivenciada na escola como forma de lazer e trabalho, como aparece em suas falas “Deixo de lado este instrumento, fico preocupada em tomar a leitura e escrita... uso somente quando não dá para fazer educação física... se o professor ganhasse melhor se interessaria mais...” percebemos que há, assim, uma dicotomia entre a fala e a prática vivenciada na escola. Embora grande parte dos docentes admite que o jogo propicia construção do conhecimento, não consideram suficiente no desenvolvimento de seu trabalho. Percebemos que há certos preconceitos e uma visão limitada a respeito do jogo, sendo a atividade reservada para o horário do recreio e da educação física. Em sala de aula é preciso ter seriedade, permanecer em silêncio, porque nesses horários são ensinadas as matérias importantes: matemática, português... Constata-se, assim, que grande parte das atividades desenvolvidas em sala de aula não desperta na criança o prazer de descobrir, não possibilitando a satisfação da descoberta do desvelar das coisas novas e, consequentemente, do construir. A respeito do significado de jogo e seu sinônimo, constatamos que este é concebido pelos docentes como recursos pedagógicos, objetos que utilizam como: dominó, quebra-cabeça, pega varetas, memórias... Desta forma o jogo assume a função de objeto para ensinar ou revisar determinados conteúdos. Porém, o mais importante não é aquilo que as crianças podem realizar no sentido estrito do termo jogar (dominó, quebra-cabeça...), mas, sim, a trajetória, mental que utilizam ao jogar, tudo o que podem experimentar, vivenciar, construir em função destes objetos e com quem compartilham suas 9 atividades. O aspecto fundamental deste processo é o modo como se dá o processo de construção do material no interior do aluno. Neste sentido, podemos dizer que os brinquedos, os materiais pedagógicos enquanto estruturadores do conhecimento e do saber não são objetos, que trazem em seu bojo um saber pronto e acabado. Ao contrário, eles são objetos que trazem um saber em potencial dinâmico, que se alteram em função da cadeia simbólica e imaginária do aluno, desenvolvendo, assim, suas estruturas mentais. “Jogar é pensar”(Piaget, 1975). Pensar supõe o livre pensamento, o jogo livre das funções intelectuais e não o trabalho sobre a pressão e repetição verbal. No processo alfabetizador o jogo é ferramenta de análise, ação e avaliação ao mesmo tempo, na medida em que os professores estejam fundamentados para compreendê-lo. Como diria Piaget: “A gente não vê o que enxerga, vê o que sabe”(Piaget, apud Freire, 1989). Sobre a maneira como o professor conduz seu trabalho (metodologia) e concebe o conhecimento (epistemologia) Buscando conhecer o que os docentes pensam ser o conhecimento quando ensinam, encontramos em seus depoimentos posições nitidamente empiristas “...conhecimento se constrói partindo das experiências”, “...conhecimento é a bagagem dos conteúdos adquiridos”, “...a criança tem mais facilidade de gravar a escrita e a leitura dessas sílabas” ou “...ela fixa com maior facilidade se visualizar o que é ensinado”. A maioria dos professores pesquisados acredita que o conhecimento pode ser doado, impedindo que criança e professor construam. Segundo esta concepção epistemológica, é o objeto (meio físico e social) que imprime o conhecimento no sujeito através do esquema estímulo-resposta ou mesmo resposta-reforço tornando o sujeito passivo a este meio. Assim, o professor que considera que seu aluno nada sabe sobre o que ele tem a ensinar, quando se depara com situações em que os alunos já possuem conhecimento sobre o que vai ser trabalhado e, muitas vezes, maior que o de professor, sofre uma espécie de encabulamento e insegurança. Disse uma professora: “...numa aula de ciência fiquei com vergonha, os alunos comentando o que assistiram no Globo Rural, sabendo mais do que eu imaginasse que eles soubessem”. Vê-se claramente a visão do professor sobre o conhecimento. O aluno não deveria saber antes que ele ensinasse. 10 De acordo com essa concepção o verdadeiro sujeito da aprendizagem é o professor que planeja o ato de ensinar e o aluno mero objeto, resultado do trabalho do professor. A fala do professor sobre o conhecimento do aluno contradiz essa crença: as crianças aprendem apesar da escola e do professor. Observa-se, assim, uma concepção bancária da educação como escreve Freire (1994, p.67): “...na visão bancária da educação, o saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber.” Ao professar essa epistemologia, o professor demostra sua convicção no poder ilimitado do seu ensino para produzir aprendizagem: “No seu imaginário, ele e somente, ele, pode produzir algum novo conhecimento no aluno, da mesma forma o aluno aprende, se, e somente se o professor ensina.”(Becker, 1994, p.90) Entre colocações mais marcantes dos professores, quando questionados sobre como desenvolvem seu trabalho em sala de aula e sobre outras formas que gostariam de utilizar, nos deparamos com sua resistência ao construtivismo. “Vocês acham que com o construtivismo as crianças carentes poderiam aprender?” ou “...sou contra esse construtivismo, para que saber o nome das letras?” nestas falas fica claro que é totalmente frágil a fundamentação teórica sobre o processo de construção de conhecimento da maioria dos professores pesquisados. Quanto à questão da metodologia assim se pronunciam: “utilizo o método tradicional, o mais antigo. Tenho confiança e estou mais segura”, ou, “Método fônico, mas acompanhado de silabação, eu leva a criança pela som. Para mim as criança não precisam saber o nome de letras como das letras como ensinam no construtivismo”, ou então, “Parte-se sempre do concreto. A criança não possui ainda capacidade de abstração”. Possivelmente, os professores agem desta maneira porque acreditam que o conhecimento pode ser transmitido para o aluno, acreditando ser sua metodologia a mais eficiente e correta. Segundo Becker (1994), o professor acredita numa certa epistemologia, ou seja, ele tem uma explicação para seu modo de pensar e agir e, muito embora ele não tenha tomado consciência dessa explicação, nem por isso ela se torna menos eficaz. Encontramos também, concepções calcadas em estudos experimentais na procura de encontrar atividades, exercícios e técnicas diferentes para passar o conteúdo para os alunos: “...eu gostaria de trabalhar mais técnicas e através delas introduzir os conteúdos”, “...gostaria de dar umas aulas mais dinâmicas...” 11 Possivelmente as concepções de que o conhecimento possa ser transmitido para o aluno traz em seu bojo a crença que move a prática pedagógica de muitos professores, reflexo da influência do tecnicismo presente na história da formação de nossos professores. Do professor sempre foi exigido mostrar-se como um bom receptor de conteúdos pretensamente transmitido por seus mestres e, agora, ele simplesmente reproduz esse modelo para seus alunos. Com essa prática reprodutora, fica afastado o trabalho de investigação e problematização, defendido por Paulo Freire, como também, da ação do aluno sobre seu objeto de conhecimento, no sentido proposto por Piaget. CONSIDERAÇÕES FINAIS A beleza, como a verdade, só vale quando recriada pelo sujeito que a conquista. Jean Piaget A investigação que realizamos nos permitiu conhecer com mais profundidade e clareza a relação entre o jogo e a construção do conhecimento nas séries iniciais, bem como analisar se a maneira como o professor conduz seu trabalho (metodologia) e concebe o conhecimento (epistemologia) pode facilitar ou dificultar essa construção. Podemos constatar, que a postura epistemológica e metodológica pode dificultar a construção do conhecimento, na medida em que utiliza o espaço da sala de aula para transmitir conhecimentos já elaborados. Nesta perspectiva o jogo deixará de ser um instrumento de construção do conhecimento, uma vez que a educação fundamentada na assimilação de conceitos e valores não possibilitará que as crianças investiguem, formulem hipótese, obedeçam regras e construam outras, para assim irem desenvolvendo seu aspecto moral, cognitivo, social e afetivo. É fundamental que o professor entenda jogo como a forma de desenvolver o raciocínio lógico necessário para o desenvolvimento cognitivo (defendido por Piaget) e o resgate da afetividade (enfatizado pelos psicanalistas e psicopedagogos). É imprescindível, neste processo, possibilitar a emergência do conflito, problematizando situações vivenciadas no mundo social, trazendo as contradições, evitando a imposição, como nos alerta Paulo Freire. 12 O jogo inscreve-se como criador das condições lúdicas para que o fazer educativo ocorra num espaço de ação, reflexão, debates sobre os principais acontecimentos cotidianos. Na situação de jogo, muitas vezes o critério de certo ou errado é decidido pelo grupo. Assim, a prática do debate permite o exercício da argumentação e a organização do pensamento, contribuindo para a formação de atitudes. Valorizar o jogo, é valorizar a iniciativa da ação. Então, oferecer um espaço de jogo é também oferecer um espaço para a descoberta, invenção, criatividade e auto-expressão. Jogar é uma função indispensável à criança. Jogar com ela, deixá-la jogar com seus parceiros e em grupo, é um compromisso que todo o educador deveria ter com a criança uma vez que é para ela suporte de sociabilidade. É o que lhe permite se dar e se comunicar com os outros. Para tal instrumentalização não basta que o professor colecione dinâmicas, técnicas, recursos, métodos... embora sejam aspectos imprescindíveis. É preciso ter clareza da própria concepção de educação, ter coragem para rever os próprios paradigmas (prática, teoria-prática) e, cada dia, redimensionar sua postura diante da complexidade do ato educativo. Neste sentido, não nos parece possível visualizarmos o aluno como ator, ou mais precisamente como o construtor de seu saber, fora do contexto da formação do professor. Pensamos que as agências formadoras precisam ter clareza do profissional que pretendem formar, sua função social e política. Enquanto não houver alteração no processo formativo do professor, será difícil vislumbrarmos mudanças na concepção de conhecimento que perpassa a metodologia e epistemologia subtendidas no trabalho do professor em sala de aula. Acreditamos que muito caminho ainda nos resta a percorrer, pois esse tema propicia uma reflexão vasta e difícil de ser concluída, mas numa primeira tentativa de valorizar o jogo como fator cognitivo, como instrumento de construção do conhecimento, achamos ter cumprido nosso objetivo. Sugerimos, por isso, que o jogo seja uma prática permanente no trabalho do professor, pois entendemos que jogar é questionar, buscar respostas, construir regras, trocar pontos de vista, definir posições... E isso é muito mais do que jogas dama ou dominó. Não é o brinquedo em si que importa, mas o processo de 13 utilização do brinquedo, os resultados da brincadeira, produzido tanto individual como coletivamente. Eis aqui o grande desafio a todos nós educadores: “Resgatar o jogo, o brinquedo, admitindo que ensinar não é transmitir, mas dar continuidade e condições para que a aprendizagem efetivamente aconteça”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECKER, Fernando. A Epistemologia do Professor. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994. FREIRE, Madalena. A Paixão de Conhecer o Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. FERNANDES, Alícia. A Inteligência Aprisionada: abordagem psicopedagógica clínica da criança e sua família. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. PIAGET, Jean. A Formação do Símbolo na Criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. 2.ed. Rio de janeiro: Zahar, 1975. ____________. O Nascimento da Inteligência na Criança. Rio de janeiro: Guanabara, 1987.