Educação de surdos: uma perspectiva cultural
Ana Paula de Azevedo Pedron1 & Getúlio Peixoto2
Dra. Joyce M. Pernigotti3 & Dra. Liliane F. Giordani4
Facos/CNEC-Osório
Resumo: No decorrer desse artigo, apresentamos a história social-cultural do povo surdo e a
Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), 2ª língua oficial do Brasil. Falar em inclusão é afirmar
alguém excluído, contudo, este trabalho torna presente os artefatos da cultura surda, incluindoa na diversidade cultural de nosso país, para que esta seja respeitada em sua identidade e
deixe de ser vista preconceituosamente como anormalidade ou deficiência.
Palavras-chave: Surdo, LIBRAS, inclusão, cultura-surda, identidade, surdez.
Abstract: Throughout this article, we present the history socio-cultural aspects of deaf people
and Language Signs Brasilian (LIBRAS), second official language of Brazil. Speaking to
inclusion is excluded someone say, however this work makes the artifacts of the deaf culture,
including the cultural diversity of our country, for that this is respected in its identity and cease to
be seen as biased or abnormality disabilities.
Keywords: Deaf, LIBRAS, inclusion, culture-deaf, identity, deafness.
Introdução
Muitos ouvintes desconhecem a carga semântica que é evocada através dos
termos mudo, surdo-mudo e deficiente auditivo. Para a maioria dos ouvintes
alheios à discussão sobre a surdez, o uso da palavra surdo parece imprimir
preconceito, enquanto o termo deficiente auditivo aparenta ser politicamente
correto. Em seu livro, ―LIBRAS – Que língua é essa?‖, Audrei Gesser (2009)
nos esclarece sobre essa questão com a seguinte citação:
Essa história de dizer que surdo não fala, que é mudo, está errada.
Eu sou contra o termo surdo-mudo e deficiente auditivo porque tem
preconceito... Vocês sabem quem inventou termo deficiente auditivo?
Os médicos!Eu não estou aqui só para vocês aprenderem LIBRAS,
1
E-mail:[email protected]. Acadêmica do curso de Pedagogia, CNEC/Osório.
E-mail:[email protected]. Co-autor, acadêmico do curso de Pedagogia
3
[email protected] da Faculdade Cenecista de Osório, orientadora deste artigo.
4
[email protected]. Professora da Faculdade Cenecista de Osório, orientadora deste artigo.
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5
estou aqui também para explicar como é a vida do surdo, da cultura,
da nossa identidade... (professora surda, 2002).
O que teria o surdo de deficiência, se a única coisa que nos difere deles é a
língua? São cidadãos como todos os ouvintes, pensam, debatem, se deslocam,
têm sua identidade e cultura, aliás, uma cultura que vem de uma história bem
triste, onde não eram vistos como pessoas, excluídos da sociedade e as
decisões para/com eles tomadas, partiam de ouvintes, na maioria das vezes,
preconceituosos, por desconhecer a perspectiva do surdo.
O surdo não precisa ser oralizado para se integrar na sociedade ouvinte, é
disso que fala Gesser (2009) quando diz que ―oralizar é sinônimo de negação
da língua dos surdos. É sinônimo de correção, de imposição de treinos
exaustivos, repetitivos e mecânicos da fala‖.
Estar em uma sala de aula com um aluno/colega surdo e um tradutor é uma
experiência que de alguma forma afeta a todos os participantes. Esse artigo é
produto dessa afetação. Resultado de um trabalho apresentado inicialmente
nas disciplinas Educação Inclusiva e Psicologia do Desenvolvimento Humano,
foi reorganizado de modo a ser compartilhado. Aborda aspectos relativos à
Língua Brasileira de Sinais, à educação e ao desenvolvimento cognitivo de
surdos, e à cultura surda e às reverberações dessa experiência na penetração
do mundo surdo.
Nas considerações finais damos visibilidade à nossa crítica à sociedade, que
deixa muito a desejar quando o assunto é inclusão e onde estão os pontos
fracos das escola/instituição que incluí, mas ao mesmo tempo exclui.
O surdo e a surdez
Os surdos têm uma identidade e uma cultura próprias, assim como todos nós
temos características culturais que marcam o jeito de ver, sentir e se relacionar
com o mundo. O surdo não tem nada de excepcional, é a sociedade ouvinte
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que o torna excepcional. Deve uma pessoa ser tratada como excepcional ou
deficiente por dominar uma língua que faz parte do nosso país?
Respeitar o direito do surdo a ser educado em língua de sinais, reconhecer
essa língua são evidências de uma sociedade efetivamente inclusiva. A
vontade de oralizar deve ser respeitada, quando parte do surdo, mas não deve
ser imposta como de fato, acontecia no século passado e continua
acontecendo em certos locais.
A LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) deveria estar nas escolas, nos
mercados, bares, restaurantes, espaços públicos e privados e na casa de todos
os brasileiros, assim como acontece na ilha de Martha’s Vineyard, nos Estados
Unidos, onde é muito comum ver as pessoas que oralizam, sinalizarem sem
nenhuma cerimônia, o que permite o surdo viver como parte integrante da
sociedade.
Nesta ilha, durante mais ou menos dois séculos, a população apresentava um
elevado número de cidadãos surdos. A cada 155 nascimentos um era de um
surdo. O lugar foi analisado por três séculos, várias especulações e
reconstruções de árvores genealógicas foram feitas para tentar descobrir a
primeira vez em que o gene de mutação ocorreu e como essa situação
genética se espalhou pela população, mas não se chegou a nenhuma
conclusão definitiva.
Em 1985, um repórter britânico, deixou registrada essa atitude social de
aceitação da surdez que fez da ilha um local bilíngüe, onde o inglês e a língua
de sinais eram usados por seus moradores em todos os seus contextos:
Você faz uma chamada nas mediações – eles não têm coisas como o
chá das tardes. A língua falada e a língua de sinais estarão tão
misturadas na conversa, que você passa de uma para outra, ou usa
as duas de uma vez só, quase inconscientemente. Metade da família
fala, muito provavelmente, metade da família não, mas os surdos não
estão desconfortáveis em sua privação, porque a comunidade, tem se
ajustado à situação perfeitamente (GROCE, 1985, apud STROBEL,
2008).
7
Alexander Graham Bell, inventor do telefone, professor de surdos e defensor
enérgico do oralismo, julgava a língua de sinais imprecisa e inferior à fala oral,
usou o caso da ilha de Martha’s Vineyard como base da sua investigação na
questão da hereditariedade da surdez, mas não conseguiu explicar o fato de
alguns pais surdos não terem filhos surdos. O maior agravante das
especulações de Bell não estava apenas na falta de comprovação do que dizia,
mas na injustiça e irresponsabilidade científicas em liderar campanhas
proibindo o agrupamento de surdos, já que definia a surdez como
―anormalidade da raça humana‖.
Atualmente, a minoria da sociedade é consciente dessa desumanidade
cometida contra os surdos no passado e que resultou no crime da privação
linguística e no estigma psicológico que os surdos carregam até hoje em nossa
sociedade.
A experiência que referimos como geradora desse trabalho se deu com a
participação de Getulio, aluno co-autor desse artigo, numa classe regular em
uma instituição de Ensino Superior. Getulio tem em sua trajetória escolar
experiência de, até a quarta série, estudar em escolas de ouvintes, sem
intérprete nem professor que sinalizasse. Apropriou-se da LIBRAS quando
passou a freqüentar escola bilíngue em classe específica de surdos. No ensino
médio, em escola regular, das três professoras que ministravam todas as
disciplinas, apenas uma era fluente em LIBRAS, as outras duas sinalizavam de
modo precário. Ao ingressar no Ensino Superior, na Faculdade Cenecista de
Osório, a frequência às aulas é acompanhada por um tradutor. A falta de
fluência nos sinais dos professores e as decisões tomadas para ele, sem ele, a
falta de conhecimento da cultura surda pelos ouvintes são fatores que
acompanharam sua trajetória escolar.
Partilhar da sala de aula com um aluno surdo que traz com ele um tradutor foi
motivo de curiosidade para todos os participantes da experiência. Houve um
movimento de acomodação a essas novas características da aula, deixando,
num primeiro momento, todos muito mobilizados pela participação do tradutor.
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O olhar dos alunos se deslocava da professora para o tradutor, gestos
começaram a ser feitos por vários alunos. A necessidade de cada um falar a
seu tempo, de não haver burburinho, de, algumas vezes, repetir o que estava
sendo dito, de falar pausadamente foram sendo condutas adotadas pela turma
que, de fato, se envolveu para abrigar um novo modo de existir em seu
funcionamento. A presença de um aluno surdo em aula fez com que a surdez
fosse tematizada em um trabalho, que gera essa publicação, e que foi
compartilhado em sala de aula oportunizando a todos os participantes uma
melhor compreensão da cultura surda e interesse em conhecer a LIBRAS.
A educação de pessoas surdas
Um breve passeio pelas raízes da história de educação de surdos revela que
as discussões educacionais das distintas metodologias adotadas na educação
desses sujeitos e que refletem até hoje em muitos espaços sociais, foram
guiadas por sujeitos ouvintes, assim como a maioria das decisões da política
de inclusão sobre o sujeito incluído: ele é o único a não opinar (é incluído longe
da decisão tomada para/com ele). Antes do surgimento das discussões mais
recentes sobre a educação, os sujeitos surdos eram marginalizados, excluídos
pela sociedade e posteriormente isolados em asilos para serem protegidos. Em
função da sua ―anormalidade‖, não se acreditava que eles pudessem ter uma
educação.
O fato que mais marcou a história dos surdos foi a decisão adotada pelos
educadores ouvintistas, em 1880, na cidade de Milão/Itália. Neste ano foi
realizado o ―Congresso Internacional de Professores de Surdos‖, para discutir e
avaliar três métodos rivais: língua de sinais, oralista e mista (LS e oral). Houve
então, uma votação no dia 11 de setembro de 1880 ―a favor dos métodos orais
na educação de surdos‖. Dos 164 votos, apenas quatro eram contra; a partir
desse dia a língua de sinais foi proibida oficialmente, pois a mesma destruía a
habilidade da oralização dos sujeitos surdos.
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Esse congresso foi conduzido e elaborado por professores ouvintistas,
defensores do oralismo puro, com grande influência do professor e inventor do
telefone, Alexander G. Bell. Após ele, a maioria dos países adotou rapidamente
o método oral nas escolas para surdos e proibiu oficialmente a língua de sinais,
principiando essa longa e sofrida batalha do povo surdo na defesa do seu
direito linguístico – cultural, como vimos anteriormente.
Em síntese, a história dos Surdos, contada pelos não-Surdos, é mais
ou menos assim: primeiramente os surdos foram ―descobertos‖ pelos
ouvintes, depois eles foram isolados da sociedade para serem
―educados‖ e afinal conseguirem ser como os ouvintes; quando não
mais se pôde isolá-los, porque eles começaram a formar grupos que
se fortaleciam tentou-se dispersá-los, para que não criassem guetos.
(SÁ, 2004:3).
A educação bilíngue é uma proposta de ensino usada por escolas e considera
a língua de sinais como a primeira língua, para depois, ensinar uma segunda
língua: o português, que pode ser na modalidade escrita ou oral e tem como
ideologia a necessidade das crianças surdas terem como primeiro contato,
pessoas fluentes na língua de sinais.
Acreditamos que todas as escolas deveriam ser bilíngues, não só para o surdo
como para os ouvintes, desse modo, após algumas gerações, a inclusão
estaria presente na sociedade, se espalhando por todos os setores da mesma,
assim como na ilha de Martha’s Vineyard – um grande exemplo de inclusão.
Acontecimentos começaram a surgir quando da produção de atividades
relacionadas à Psicologia, ciência que possui linguagem técnica específica,
que exigiram a adoção de sinais específicos para designar conceitos até então
desconhecidos por parte desse aluno. Surgiu, então, a tematização da
condição de desenvolvimento cognitivo das pessoas surdas.
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A surdez compromete o desenvolvimento cognitivo linguístico do
indivíduo?
Não é a surdez que compromete o desenvolvimento do surdo, e sim a
falta de acesso a uma língua (GESSER, 2009, p. 76).
O surdo é capaz de desenvolver suas habilidades cognitivas se não tiver
impedimentos de outra natureza. Para isso, o uso da língua de sinais é
imprescindível, pois é através da língua que nos constituímos plenamente
como seres humanos, que nos comunicamos com nossos semelhantes,
construímos nossas identidades, subjetividades e adquirimos e partilhamos
informações que nos possibilitam compreender e questionar o mundo que nos
cerca.
Se um surdo for bem instruído na língua de sinais e tiver um bom professor que
ensine as variações da LIBRAS, na escrita e no universo de palavras que
temos para um sinal, o que o impedirá de escrever bons textos? E se tiver
professor de educação física que sinalize as técnicas e estratégias para
determinado jogo, o que impedirá o surdo de desenvolver suas habilidades
esportivas? O empecilho para o desenvolvimento cognitivo-motor está no surdo
ou na falta de capacitação e entendimento dos profissionais que atuam na
educação inclusiva?
É hora de revermos nossas teorias tradicionais, e quebrar os tabus que a
sociedade de modo preconceituoso estabeleceu a respeito do surdo e sua
cultura, estamos numa nova era: a sociedade está revisitando seus valores e a
inclusão não deve passar despercebida por mais um século.
Vale lembrar que ―a surdez é histórica e socialmente, um problema para o
ouvinte. Ela em nada afeta a vida dos surdos – o problema começa a existir
quando queremos torná-los ouvintes e falantes da língua oral (GESSER, 2009,
p. 82).‖ Quem vê a surdez como deficiência, está se inscrevendo no modelo da
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normalidade ouvinte, que ignora outras culturas e identidades construídas pelo
indivíduo para se relacionar com o mundo.
A cultura surda por si e as imagens do outro sobre ela
Muitos leigos se questionam a respeito da existência de uma cultura Surda.
Teriam os surdos uma cultura5? Como? Estes questionamentos decorrem do
desconhecimento das pessoas acerca do mundo dos surdos.
O que seria a luta do povo surdo pelos seus direitos se não fosse o marco
principal da história da sua cultura? Afirmar que não existe uma cultura surda é
o mesmo que negar a existência de qualquer outra cultura, por exemplo:
alemã, africana, italiana, hippies, cigana, cega, gaúcha, carioca, baiana e por aí
vai... É normalizar.
A cultura surda carrega normas e valores do povo surdo, os principais artefatos
que ilustram esta cultura são as atitudes do ser surdo, de ver, de perceber e de
modificar o mundo. O primeiro artefato da cultura surda é a experiência visual
em que os sujeitos surdos percebem o mundo de maneira diferente. Os
5
Cultura – termo genérico empregado em duas acepções básicas: costumes, civilização e
realizações de uma época ou povo determinado; ou artes e outras manifestações do intelecto e
da sensibilidade humana, consideradas coletivamente. No estudo das sociedades, poucos
conceitos são ao mesmo tempo tão centrais e imprecisos: há muitas obras inteiramente
dedicadas à discussão e definição do que é cultura. Pode-se agrupar os principais significados
dados à palavra em dois grandes grupos, de limites não muito precisos:o antropológico e o
artístico. No primeiro, a cultura equivale ao modo de vida da sociedade em todos os seus
aspectos: idéias, crenças, instituições, costumes, leis, técnicas, conhecimentos etc. No
segundo grupo, é definida de modo mais restrito (e, segundo alguns, com mais profundidade)
como os elementos mais civilizados de sociedade, especialmente aos que encontram
expressões nas artes e atividades intelectuais. Adotando-se o primeiro significado, deve-se
considerar todos os seres humanos como dotados de cultura, pois todos fazem parte de
algum sistema cultural, ainda que diferente dos demais. Em decorrência disto, cada pessoa
tende a ver e julgar outras culturas a partir do ponto de vista da sua própria cultura; daí ocorre
uma noção central na antropologia e em outras ciências sociais: o relativismo, isto é, a idéia de
que as crenças e os comportamentos só podem ser entendidos em relação ao seu contexto
cultural... {ênfase nossa} Nova enciclopédia Ilustrada da Folha (1996, p. 247)
12
sujeitos surdos percebem o mundo através de seus olhos como podemos ver
na experiência relatada por Strobel (2008, p.39):
Eu estava sentada em sala de aula, em uma classe com outros
alunos ouvintes, ―olhando‖ distraidamente para os movimentos dos
lábios da professora que estava falando; de repente, a professora
parou subitamente de movimentar os lábios e virou o rosto assustado
para a janela. Percebi que toda turma fazia o mesmo e todos
correram para olhar a janela. Eu, meio desnorteada e curiosa, fiz o
mesmo para ver o que provocou toda a algazarra da turma e percebi
tardiamente que tinha acontecido uma batida de carro lá fora.
A participação dos sujeitos surdos na sociedade é dificultada pela própria,
quando esta carece de recursos visuais que, por sua vez, promovem a
acessibilidade em variados espaços para estes sujeitos.
Como segundo artefato cultural do povo surdo, encontramos a língua de sinais,
que é fundamental para o sujeito criar uma ligação com o povo surdo, ter
acesso as informações e conhecimentos e para construir sua identidade.
Conforme afirma Strobel (2008):
A língua de sinais é uma das principais marcas da identidade de um
povo surdo, pois é uma das peculiaridades da cultura surda, é uma
forma de comunicação que capta as experiências visuais dos sujeitos
surdos, sendo que é esta a língua que vai levar o surdo a transmitir e
proporcionar-lhe a aquisição de conhecimento universal. (STROBEL,
2008, p. 44)
Pesquisas científicas realizadas nos EUA, Europa e Brasil, comprovaram que
as crianças surdas de pais surdos se saem melhor no desenvolvimento da
linguagem do que as outras crianças de pais ouvintes. As crianças surdas,
filhas de pais surdos, não apresentam problemas da defasagem de linguagem
porque os pais surdos, ao se comunicarem com os filhos desde cedo,
esclarecem todas as suas dúvidas e curiosidades naturais.
A LIBRAS, por muito tempo, sofreu a repressão exercida pelo oralismo, mas
mesmo assim, ―não foi extinta e continuou a ser transmitida, de geração em
geração, pelo povo surdo com muita força e garra‖ (STROBEL,2008, p. 26). A
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língua de sinais no Brasil não pode ter como base a língua portuguesa, pois ela
tem gramática diferenciada, independente da língua oral.
O sistema de escrita Signwriting – SW, usado para escrever a língua de sinais,
é outro artefato cultural linguístico interessante. Este sistema foi um fato
histórico importante para o povo surdo, pois, antigamente, diziam que a língua
desse povo era ágrafa.
Encontramos como artefato cultural familiar o nascimento de uma criança surda
em uma família surda, que ao contrário de o nascimento de um surdo numa
família ouvinte, é um fato naturalmente benquisto. A criança não é vista como
um problema social. O contato de uma criança surda com adultos surdos é de
suma importância para que, através da língua de sinais, ela obtenha acesso à
linguagem e se assegure na identidade e cultura surda que lhe é transmitida
através deste contato com a comunidade surda.
Como quarto artefato cultural, encontramos a literatura surda, que traduz a
memória das vivências surdas através das várias gerações destes povos. Esta
literatura está dividida em diferentes gêneros: poesia, história de surdos,
piadas, literatura infantil, clássicos, fábulas, contos, romances, lendas e outras
manifestações culturais.
O quinto artefato cultural é a vida social e esportiva do povo surdo. São
acontecimentos culturais, tal como lazeres e atividades nas associações de
surdos, casamentos, festas, eventos esportivos e outros.
Strobel (2008) aponta, também, como artefatos culturais as artes visuais pelas
quais o povo surdo realiza muitas criações artísticas que sintetizam suas
emoções, histórias, subjetividades e sua cultura; a política que consiste em
diversos movimentos e lutas do povo surdo pelos seus direitos, como a
legalização da língua de sinais e a inclusão na sociedade e materiais que
auxiliam o sujeito surdo nas acessibilidades e na vida cotidiana, como por
exemplo, o telefone para surdos (TDD), instrumentos luminosos como a
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campainha em casas e escolas de surdos, despertadores com vibradores,
legendas close-caption, babá com sinalizadores, etc.
Existem tecnologias para uso da sociedade em geral, mas que facilitam ao
povo surdo, como o meio digital de comunicação em tempo real e à distância,
torpedos via celular, chats, internet, etc. Além da acessibilidade para os
sujeitos surdos em variados espaços, como palestras, congressos, aulas,
cursos, julgamentos, possibilitada por intérpretes da língua de sinais, telão,
cartazes, etc.
O fato da maioria das pessoas basearem-se no ―universalismo‖, onde só o que
os ouvintes fazem está correto, é o que dificulta o entendimento da sociedade
em relação à cultura surda. Pode ocorrer de sujeitos surdos, que estão sempre
em contato com ouvintes, se acomodarem às regras dessa hegemonia e se
adaptarem a tais situações por pensarem que assim será mais fácil de ter
sucesso social. Essa negação à cultura surda poderá trazer a ele conflitos ou
dificuldade de aceitação de sua identidade.
A história cultural dos surdos nos faz enxergar a cultura surda como um
conjunto de significados e costumes partilhados e construídos por esse povo:
os movimentos de lutas políticas por consideração a história surda, as
identidades surdas, a língua de sinais e a pedagogia surda, afastando a visão
de anormalidade e aproximando o povo surdo.
A história cultural dos surdos é longa e complexa, por isso, Karin Strobel (2008)
desafia o povo surdo a construir uma nova história cultural, com o
reconhecimento e o respeito das diferenças, valorização da língua, a
emancipação dos sujeitos surdos de todas as formas de opressão ouvintistas e
seu livre desenvolvimento espontâneo de identidade cultural. E nós,
desafiamos nossos colegas a se incluírem como educadores e cidadãos, na
sociedade inclusiva e a aprender, no mínimo, o básico da língua brasileira de
sinais.
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A língua de sinais (LS)
Se você pensa que a Língua de Sinais é universal, artificial, que a sinalizada no
Brasil apresenta uma unidade, que ela não tem gramática, que é mímica, é
ágrafa, exclusivamente icônica, é um código secreto dos surdos, é o alfabeto
manual, que é uma versão sinalizada da língua oral ou de origem na língua
oral, você pode estar sendo levado por crenças.
Quando se fala em língua de sinais, um dos pensamentos mais comuns é de
que os surdos falam a mesma língua em qualquer parte do mundo. A LS não é
universal, tampouco é um código que foi transmitido aos surdos do mundo
inteiro e que passou de geração em geração. Sabemos que cada país tem seu
idioma, em nosso mundo globalizado, encontramos diversos idiomas: alemão,
russo, grego, japonês, tailandês, chinês, inglês, alguns que derivam do latim,
como o português (Brasil e de Portugal), francês (França, Guiana Francesa,
Quebec), Espanhol (América do Sul e Latino, Espanha e povos),etc. Com a
língua de sinais não é diferente, na França, os surdos ―falam‖ (sinalizam) a
língua francesa de sinais, nos EUA, a americana, no Japão a japonesa, no
Brasil a língua brasileira de sinais e por aí vai.
Podemos ver a diferença do sinal ―mãe‖ em quatro línguas de sinais na figura
1.
Figura 1: Diferença do sinal "mãe" em quatro línguas distintas. Fonte: GESSER, Audrei,
LIBRAS: Que língua é essa?
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Conforme Gesser (2009): ―Em qualquer lugar que haja surdos interagindo,
haverá língua de sinais. Podemos dizer que o que é universal é o impulso dos
indivíduos para a comunicação e, no caso dos surdos, esse impulso é
sinalizado.” Portanto, a língua de sinais não é universal e muito menos artificial,
mas a língua natural dos surdos. Existe uma língua internacional de sinais, o
gestuno, que da mesma forma que o esperanto (língua oral, construída e
planejada.), tem como objetivo estabelecer uma comunicação internacional.
As línguas de sinais foram contempladas cientificamente nos últimos quarenta
anos, antes não eram vistas como uma língua verdadeira e com gramática
própria, nem mesmo pelos sinalizadores.
O linguista americano Willian Stokoe, em 1960 deixou marcado nos seus
estudos o reconhecimento lingüístico da LS. Quando descreve os níveis
fonológicos e morfológicos da língua americana de sinais (ASL), ―ele apontou
três parâmetros que constituem os sinais e nomeou-os: configuração de mão
(CM); ponto de articulação (PA) ou locação (L), delimitado por um círculo e
movimento (M) cuja direção é indicada por uma seta (Gesser, 2009, p. 14)‖.
O exemplo ilustrado na figura 2 nos mostra esses três parâmetros no sinal
―certeza”, em LIBRAS.
Figura 2: Os três parâmetros no sinal "certeza" em LIBRAS. Fonte: GESSER, Audrei, LIBRAS:
Que língua é essa?
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Durante a década de 1970, os linguistas Robbin Battison, Edward S. Klima e
Ursulla Bellugi descreveram um quarto parâmetro: a orientação da palma da
mão (O). Ficou demonstrado que dois sinais com os mesmos outros três
parâmetros iguais (CM, L, M) podem mudar de significado de acordo com a
orientação da mão. Essa diferença de dois itens lexicais por um único
componente, em lingüística, recebe o nome de ―par mínimo‖. Como
encontramos nas línguas orais, por exemplo: ―mata e lata‖ se distinguem
significativamente pela alteração de um único fonema. Em LIBRAS, também
encontramos pares mínimos nos sinais (vide figura 3), por exemplo, em ―grátis‖
e ―amarelo‖; ―ter e Alemanha‖; ―churrascaria‖ e ―provocar‖ e ―ajudar e ―ser
ajudado‖. Os sinais podem ser realizados com uma ou duas mãos.
Figura 3: Pares mínimos em LIBRAS. Fonte: GESSER, Audrei, LIBRAS: Que língua é essa?
O exemplo do sinal para a palavra ―conhecimento‖ (apenas uma mão), a partir
da segmentação dos quatro parâmetros em LIBRAS. A configuração da mão é
forma da mesma, na palavra ―conhecimento‖ é sinalizada com uma mão em
numeral ―4‖. A orientação da palma da mão indica que os sinais têm direção e
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sua inversão, em alguns sinais, pode alterar o significado dos sinais, no caso
de ―conhecimento‖, para o lado direito (contralateral). A locação se refere ao
lugar, pode ser realizado em alguma parte do corpo, como podemos ver no
exemplo da palavra ―conhecimento‖, a locação ocorre em frente ao queixo e,
por último, poderemos observar o movimento, que pode ou não estar presente
nos sinais e no caso de ―conhecimento‖, se dá com a lateral do dedo indicador,
que bate próximo ao lado direito do queixo (figura 4).
Figura 4: Segmentação dos quatro parâmetros em LIBRAS – ―conhecimento‖ (apenas uma
mão). Fonte: GESSER, Audrei, LIBRAS: Que língua é essa?
Para produzir informação linguística, encontramos nas línguas de sinais um
único veículo: as mãos. As expressões faciais também são elementos
gramaticais que compõem a estrutura da língua e são chamadas de
expressões não manuais.
Após analisar esses parâmetros, percebemos que as línguas orais e as línguas
de sinais são similares em nível estrutural, formadas a partir de unidade
simples e que combinadas formam unidade mais complexas, mas se diferem
quanto à forma e como as combinações são construídas.
A língua de sinais não é mímica, pantomima, um código secreto dos surdos e
muito menos se resume ao alfabeto manual, que é utilizado para soletrar
manualmente as palavras. Acreditar que a LS é o alfabeto manual é o mesmo
que ter a idéia de que esta língua é limitada, já pensou quanto tempo levaria
um surdo para ter uma conversa filosófica, ou mesmo para p-e-d-i-r-u-m—c-op-o-d-e-g-u-a-r-a-n-á? Seria absolutamente cansativo e monótono.
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Mas é importante ressaltar que o alfabeto manual tem uma função na interação
entre os usuários da língua de sinais, como soletrar nomes próprios de lugares
ou pessoas, siglas e alguns vocábulos não existentes na LS.
No Brasil, o alfabeto manual é composto de 27 formatos (com o grafema ç que
é a configuração da letra c com uma tremida). Na figura 5, podemos observar o
formato da mão correspondente a cada letra do alfabeto manual português
(brasileiro),e na figura 6, o americano, o sueco e o britânico que, por sua vez, é
realizado através das duas mãos.
Figura 5: Alfabeto manual da Língua Brasileira de Sinais.
Figura 6: Alfabeto manual britânico, americano e sueco. Fonte: GESSER, Audrei, LIBRAS: Que
língua é essa?
20
A LIBRAS tem suas origens na língua francesa de sinais e não da língua oral
como muitos pensam e ela apresenta variedades e diversidades como todas as
línguas humanas.
Contudo, esperamos ter esclarecido o que é a língua de sinais e ter quebrado
alguns tabus impostos pela sociedade ouvintista, bem como, o reconhecimento
da mesma como uma língua de gramática própria, independente de qualquer
outra língua oralizada.
Considerações finais
Apresentamos no decorrer do texto aspectos relativos à história social–cultural
do povo surdo e a importância da LIBRAS, não só como primeira língua dos
surdos, como também segunda língua dos ouvintes que realmente estão na
luta pelos direitos inclusivos. Praticar a inclusão não se resume em colocar um
aluno surdo na sala de aula, só porque foi aprovada a lei e deixá-lo lá num
cantinho, interagindo com o intérprete. Acreditamos que para colocar em
prática a inclusão, devemos (re) considerar os fatores que envolvem o respeito
e atitudes nos espaços sociais.
Em nossa experiência aprendemos que existem alguns fatores de respeito
para/com o sujeito surdo que todos devemos saber, (mas isso não vai pra
mídia e não se vê ensinar/aprender na escola!), como por exemplo: jamais falar
com um surdo de costas, estar de frente para ele e olhando para o outro lado,
conversar de perfil, etc. Devemos levar em consideração que nem todos surdos
conseguem ler os lábios, e isso pode até causar estranhamento e tristeza em
alguns. Muitas vezes, os surdos fingem entender o que foi oralizado para evitar
uma situação constrangedora, mas quando o surdo encontra pessoas que
sinalizam (surdas/ouvintes) se sente muito feliz e incluído.
Nos fatores que envolvem a instituição que inclui, encontramos a postura da
turma, que por sua vez, deve entender que o surdo escuta com os olhos (tudo
21
é visual), todavia o entra e sai desconcentra-o, além das conversas muito altas
e em conjunto que transmitem vibrações, atrapalhando a concentração do
surdo; os professores que carecem de capacitação, fazendo aulas orais ao
invés de visuais, como uma volta no tempo, lá em 1880 e, sequer olham para o
aluno, mesmo no momento da chamada, o intérprete traduz, o ―cara‖ vai todo
feliz dizer que está e nem é olhado... Essa desconsideração para com o sujeito
surdo é uma forma de exclusão em instituições que praticam a inclusão.
A instituição que recebe o surdo tem que oferecer cursos de capacitação para
seus docentes, palestras para seus acadêmicos, professores e funcionários
acerca da cultura surda, estar preparada e sinalizada de acordo com as regras
da acessibilidade: ter campainhas visuais, placa de trânsito, sinalizando a
presença de alunos surdos para os motoristas redobrarem os cuidados, dentre
diversos recursos visuais.
Acreditamos que uma regra fundamental que deve ser respeitada é a do direito
do surdo de ter como primeira língua a LIBRAS e contato com outros surdos,
assim como a vontade de oralizar ou não, deve partir do sujeito surdo. Também
defendemos a hipótese de que após se apropriarem da LIBRAS como língua
mãe, as crianças devem aprender a escrita, que é língua oficial do país delas o
que lhes permitirá comunicação e expressão através de outros meios (cartas,
mensagens de celular, chats,etc.) e também, abrirá caminhos para a entrada
no mercado de trabalho.
Esperamos que as teorias e histórias aqui trazidas sensibilizem as pessoas,
não só nossos colegas, - futuros educadores - e professores, que até então,
não viveram a inclusão, como também, aquelas que desejam que esta história,
a do povo surdo, caminhe para um lugar feliz, onde todo mundo se respeite nas
suas diferenças.
Enfim, assim nos tornaremos uma sociedade que inclui, e não essa que hoje
está engatinhando na inclusão e que inclui excluindo, muitas vezes, não por
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maldade, mas por falta de vivências e conhecimentos acerca da cultura surda
em todos os seus aspectos.
Referências:
GESSER, Audrei, LIBRAS: Que língua é essa?: Crenças e preconceitos em
torno da língua de sinais e da realidade surda. São Paulo: Parábola
Editorial.
STROBEL, Karin, As imagens do outro sobre a cultura surda. Florianópolis:
Editora da UFSC, 2008.
SÁ, Nídia Regina Limeira de, Cultura, Poder e Educação de Surdos.
Manaus: INEP, 2002.
Figuras: digitalizadas do livro de Audrei Gesser, LIBRAS: Que língua é essa?
Materiais trabalhados na disciplina de Educação Inclusiva, cedidos pela
professora Liliane Giordani.
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Educação de surdos: uma perspectiva cultural