MUITAS MULHERES, UM MESMO MOVIMENTO
Hélida Santos Conceição
[email protected]
Mestrado em História/UFBa
HISTÓRIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES DO MST NA
BAHIA
Esta comunicação pretende levantar alguns apontamentos sobre a participação política das
mulheres no MST, enfatizando como vem se conformando as questões de gênero e práticas
sócio-políticas no interior deste movimento e em contra partida quais são as respostas que o
MST traz face essa discussão.
Esta análise estrutura-se a partir de entrevistas realizadas com algumas lideranças do
Movimento Sem Terra na Bahia, na qual procurei ouvir as histórias de vida, vivências e
trajetórias dessas militantes, mães de família que têm suas vidas marcadas pelas mobilizações
políticas, acampamentos e marchas promovidos pelo MST.
Também busquei para um
entendimento mais amplo, analisar um documento intitulado “A questão das Mulheres no MST linhas políticas” que reúne 26 objetivos a serem atingidos no que concerne a discussão e
implementação de práticas que buscam reorientar as desigualdades de gênero e ajudar na
construção do “novo homem” e da “nova mulher”.
Enquanto categoria analítica, procurei entender o MST, a partir do paradigma dos Novos
Movimentos Sociais, destacando a contribuição que Alberto Melucci traz para a delimitação dos
Movimentos Sociais contemporâneos:
Os “movimentos” contemporâneos se apresentam como redes de solidariedade com
fortes conotações culturais e, precisamente estas características, os diferenciam sempre
mais claramente dos atores políticos ou das organizações formais. (...) São sistemas de
ações, redes complexas de relações entre níveis e significados diversos da ação
social.(Melucci, 2001:23)
Sua definição dos NMS inclui também a categoria importante da identidade coletiva, que
ainda segundo Melucci, não é um dado ou essência, “mas um produto de trocas, negociações,
decisões, conflitos entre os atores (2001: 23)”. Estes atores sociais não são sujeitos a-históricos,
eles estão imersos no campo social onde se desenrolam os conflitos, através dos quais eles se
tornam visíveis. É exatamente a partir acepção que vamos buscar entender os campos de
conflitos e embates que as mulheres encontram no MST. As lutas femininas no movimentos
aparecem sobretudo a partir destas disputas materiais e simbólicas que estão presentes no seu
cotidiano, onde elas tem que articular demandas de suas vidas privadas com as exigências do
trabalho de militância.
Dada a ampla presença de mulheres na militância do movimento, importa-nos pensar a
história da participação política dessas mulheres, como sujeitos que estão inscritas em
experiências históricas distintas, compondo grupos com suas próprias especificidades, com
saberes e práticas políticas que as distinguem radicalmente da práxis masculina, tal abordagem
implica incorporar o gênero como categoria analítica das relações de poder vividas entre os
sexos, enfatizando a diversidade identitária de ambos.
O uso da categoria gênero, como instrumental metodológico foi definido de forma mais
completa por Scott. Ela portanto anuncia que o gênero é formado pela interrelação de duas
proposições: "O Gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseados nas diferenças
1
percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder ."
O estudo dos sistemas culturais e das representações cotidianas, através das relações de
gênero, incorpora um leque maior de possibilidades de análises, mostrando-se em perfeita
sintonia com as novas problemáticas que emergiram na historiografia brasileira contemporânea,
ao desnaturalizar as identidades sexuais e postular os aspectos relacionais da experiência social
2
entre homens e mulheres .Nesta perspectiva, podemos pensar os movimentos sociais como
espaços de resistência às desigualdades contidas nas relações de gênero.
O MST é hoje o principal movimento de trabalhadores rurais do Brasil. Ele nasce no
espaço social, político e cultural das manifestações populares, da década de 1970, ao lado do
"novo sindicalismo" da CUT e da construção do Partido dos Trabalhadores. Por outro lado,
pontuamos que o MST opera com um discurso ideológico que combina a superação das
desigualdades sociais engendradas pelo capitalismo a uma construção de novas relações de
gênero - a participação igualitária de homens e mulheres - como fator preponderante para
alcançar a transformação real da sociedade. Não obstante, as desigualdades de gênero não devem
ser priorizadas em detrimento da luta de classes, pois essas assimetrias serão superadas na
medida em que se alcance a emancipação da classe trabalhadora. Vale dizer pois, que ao forjar
esse discurso, o MST tem como resultado a produção e reprodução de identidades que
conformam práticas de luta e resistência, em alguma medida marcada por essas representações.
Muitos estudos que vinham sendo feitos sobre o MST não contemplava a participação feminina,
por invizibilizar a importância das relações de gênero no cotidiano da militância, ou até por,
1
SCOTT, Joan W. Gênero: Uma categoria útil para análise histórica. SOS Corpo. Recife, PE: 1992, p. 14.
MATOS, Maria Izilda Santos de. Estudos de Gênero: Percursos e possibilidades na historiografia contemporânea.
Cadernos Pagu, “Trajetórias do gênero, masculinidades...”, São Paulo: 1998.
2
inadvertidamente olhar para homens e mulheres da mesma maneira.
Desde as primeiras ações do MST na Bahia, temos notícias da intensa participação de
mulheres nos acampamentos, participando na linha de frente de invasões, ocupações de prédios
públicos, passeatas, marchas, etc. Elas se deslocam com suas famílias inteiras para contribuir na
luta pela terra, enfrentando com coragem a vida dura dos acampamentos, os violentos despejos o
3
que as tornavam fundamentais na organização e manutenção das ocupações. Portanto, passou-se
a existir um entendimento no MST de que as mulheres e crianças são peças fundamentais na
resistência da ocupação contra as investidas da polícia. Lucinha, liderança nacional é quem ainda
nos fala sobre isso:
[...] E o papel da mulher [...] e das crianças, um papel importantíssimo que é
interessante destacar, no momento da repressão, do despejo, que tipo a polícia vem, aí tem o
despejo, então a mulher e as crianças, a juventude é determinante no processo de
resistência do acampamento. Que é o que a gente sempre diz, que se matava muito mais no
período da luta dos posseiros, porque tinha só homem , então homem já é um negócio que já
[...], a polícia chega na área e vê só homem então o negócio não é pra conversar, pra
negociar, é pra tirar mesmo pra bater, vem homem com ferramenta, esse negócio todo. E se
a polícia chega vê mulheres, crianças, então é uma outra imagem, um outro clima, que
permite negociação, que permite uma outra relação, que não se tem, não se tinha na luta
4
dos posseiros. Então o papel da mulher é determinante no período do acampamento.
Não obstante, nota-se uma diferença que marca a participação feminina no momento da
ocupação e o papel desempenhado por essas mulheres depois de garantido o acesso à terra, pois
no calor da ocupação é recorrente uma distribuição 'igualitária' das tarefas no acampamento,
indistintamente para homens e mulheres, ou seja as mulheres assumem tarefas públicas, postos
de coordenação, participam de reuniões, zelam pela segurança e até podem pegar em armas caso
seja necessário. Entretanto quando se dá o processo de assentamento das famílias na terra
conquistada, vemos tornar-se restrito a atuação e inserção da mulher nos espaços coletivos de
decisão, sua participação nos espaços públicos do assentamento sofre um retrocesso. O índice de
participação política das assentadas nas reuniões, assembléias, cursos, cooperativas, etc, ainda é
baixo. Normalmente às mulheres voltam a se refugiar no espaço doméstico, sendo absorvidas
pelo cuidado com os filhos, a casa, e acabam delegando ao companheiro a participação nos
espaços coletivos de decisão. Mesmo quando elas participam na organização dos assentamentos,
geralmente estão ligadas às áreas de educação e saúde, dada a proximidade destas atividades com
a vida doméstica. Esta é mais ou menos a trajetória da grande maioria de mulheres que
participam de ocupações e que compõe no dizer das lideranças a “frente de massa” do
movimento.
3
É muito comum as mulheres levarem todo tipo de utensílios domésticos para os acampamentos, como fogão,
panelas, colchão, produtos de beleza, etc. Muitas vezes elas ficam lá durante meses ou anos até que se conclua
definitivamente o processo de desapropriação da terra em questão.
4
Lúcia Barbosa, entrevista concedida em 19/06/2002, na cidade de Itaberaba/Ba.
Não obstante, existe um outro perfil de mulher que é a que vira uma liderança ou dirigente
no MST. O que nos interessa por ora analisar é que apesar de muitas dessas líderes terem saído
das bases, terem participado de ocupações de terra e por ter alcançado um destaque no seu
engajamento acabaram sendo incorporadas na estrutura do movimento. A trajetória destas
mulheres porém, tem uma lógica diferenciada, pelo fato de que elas muitas vezes não se mantém
todo o tempo no seu assentamento de origem, ao contrário, estão viajando por várias regiões do
estado e do Brasil desenvolvendo atividades de militância, participando de cursos de formação
ou fazendo outras articulações e é dessa maneira que elas conseguem imprimir seu jeito de fazer
política.
No MST é indispensável para se tornar uma liderança a participação nos cursos de
formação política, através dos quais se oferece uma base de sustentação ideológica e educativa.
Destes cursos participam homens e mulheres, entretanto as mulheres normalmente ocupam os
setores mais ligados ao universo cultural feminino, como educação, saúde, gênero, infância.
Raramente as lideranças femininas atuam nos setores de produção, infra-estrutura, frente de
massa, ou formação, nos quais estão mais presentes os homens. Essas lideranças portanto
coexistem em uma realidade marcada pela desigualdades de gênero no que se refere ao universo
de seu exercício político ou representativo. Possivelmente, isto afeta as mulheres quanto à sua
visibilidade e participação política dentro das instâncias de decisão e representação do MST. É
interessante notar que parece haver de fato uma preocupação em relação a isto, já que no
documento “A questão das Mulheres no MST” no item 9 está colocado como uma das linhas
políticas: "Elevar, através do desenvolvimento e da participação das mulheres, a formação dos
militantes e dirigentes, para serem sujeitos que buscam o ser humano integral, em todos os seus
5
aspectos. E para isso não podemos cair nas briguinhas por cargos ."
Isto nos indica sobre o entendimento que o MST vem tendo para massiva incorporação ou
atração de mulheres não somente para suas fileiras, mas também denota um investimento
político na formação destas para serem lideranças fortes. Como o universo de inserção nos
cargos de liderança estão fortemente marcados por representações de gênero, as ‘briguinhas’ por
cargos, são consideradas como desvio de conduta que um bom líder deve evitar. Isto nos indica
que os diferentes modos de inserção de homens e mulheres no processo de luta, estão
conformados a partir das relações de gênero estabelecidas dentro da organização, através das
formas como se articulam o fazer político e os níveis de visibilidade encontrado por homens e
mulheres no conjunto do movimento. Estou advertida no entanto, de que as relações de gênero
que se dão de forma mais ampla na sociedade são fundantes de práticas que se mantém dentro do
5
MST. A Questão das Mulheres no MST – Linhas Políticas, Resolução do 2o Encontro Nacional das Mulheres do
MST. Brasilia, DF: 29 a 31 de agosto de 1997.
MST.
À medida que as mulheres adentram nos espaços políticos de decisão – postos de direção e
liderança - elas não só se constituem como sujeitos políticos, como também contribuem para a
construção coletiva da categoria política de mulheres trabalhadoras rurais. Cada uma das
lideranças entrevistada, possui uma trajetória própria dentro do movimento, isto nos indica que
sua história de vida contribuiu em muito no seu fazer político. Lucinha por exemplo teve contato
pela primeira vez com o MST através de uma ocupação na qual seu pai foi convidado a
participar. Djacira Araújo, outra liderança entrevistada, já integrava o movimento desde o início
de sua formação no Brasil e juntamente com seu marido, veio do Piauí em 1985, para ajudar no
desenvolvimento do setor de educação e formação do MST aqui na Bahia. Rosa Oliveira já
atuava junto a Pastoral da Juventude e ao conhecer o trabalho do MST, logo teve interesse em
ingressar no movimento como professora e daí passou a incorporar-se em várias atividades de
militância. Estes são somente alguns exemplos de mulheres que constitui o núcleo de lideranças
no MST.
A articulação de mulheres com objetivo de discutir as questões femininas, no interior
destes movimentos, é uma situação vivenciada pelo MST, que se expressa nas tentativas das
6
militantes de se organizarem em coletivos de mulheres para demarcar as suas representações ,
seja em relação a elas próprias, no que concerne à construção de sua identidade, seja em espaços
de liderança na estrutura da organização, no que se refere as suas formas de fazer política. Somase a isto a necessidade de compreender os mecanismos de controle decorrentes das práticas
masculinas e femininas no exercício diferenciado do poder, uma vez que tais práticas restringem
a emergência ampla das falas e reivindicações das mulheres no interior do movimento social.
Não obstante, o MST é um movimento social que utiliza um discurso diferenciado sobre a
atuação feminina. Para o movimento está claro que o engajamento político e econômico da
mulher é sustentáculo fundamental no processo de transformação social. Para tanto, estimula a
participação das mulheres em vários níveis e nas diversas instâncias de decisão e representação.
Estes objetivos estão transpostos sob a forma de linhas políticas nos seguintes itens:
03. Temos que garantir em todos os espaços de formação do Movimento, a participação
6
Utilizamos aqui o conceito de R. Chartier, para quem a noção de representação é construída a partir da articulação
de três modalidades da relação com o mundo social:
I - "O trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das
quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos." II - "As práticas que visam fazer
reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um
estatuto e uma posição. "III - "As formas institucionalizadas e objetivadas graças as quais uns representantes
(instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível a existência do grupo, da classe ou da
comunidade. Portanto para este trabalho importa dizer que as representações são construídas de acordo com os
interesses do grupo que as forjam. Daí a necessidade de relacionar o discursos proferido com a posição de quem os
utiliza. As percepções do social produzem estratégias e práticas que buscam legitimar um projeto reformador ou a
justificar, para os indivíduos as suas escolhas e condutas. Portanto as representações estão postas em campos de
confrontos e competições enunciadas em termos de dominação e poder. (CHARTIER, 1988:23
das mulheres, para que possam ir se apropriando do saber e trocando experiências, 07.
Para que a mulher possa se desenvolver enquanto militante e dirigente é necessário que a
organização crie e viabilize formas de sua participação, sobretudo na implementação das
cirandas infantis, 08. Desenvolver as formas de olhar o mundo feminino na nossa
organização.
7
Devido a contradição e complexidade decorrente dos discursos produzidos para e pelas
mulheres sobre sua participação no MST e as reais possibilidades e limites desta participação, é
que propugnamos a necessidade de análise da inter-relação entre práticas e discursos, cujo
entendimento encontra-se circunscrito no conhecimento da história destas mulheres no
movimento.
Para analisarmos a participação destas mulheres, necessário é, reconhecer que todas tem
em comum um intenso grau de envolvimento com suas atividades de liderança e o cumprimento
das tarefas designadas pelo movimento tem a dimensão não só do político mas também do
pessoal. Esse envolvimento é percebido através da construção de uma identidade composta por
símbolos, representações e construções ideológicas próprias do MST, mas que são tomadas,
reelaboradas e vividas como valores pessoais. Em geral esses valores estruturados na atividade
de militância estão marcados pelas clivagens de gênero. Estas muitas vezes aparecem explicitada
nas relações que demarcam os espaços e o exercício de poder entre homens e mulheres nas
atividades de liderança. Muitas lideranças relatam sobre a masculinização e os estereótipos a que
se viam presas, sobretudo no início das suas atividades de militância, devido às atividades que
exerciam ao lado de outros companheiros do Movimento e a necessidade de adquirir
credibilidade perante eles.
A militante Rosa Oliveira, observa muito bem como as mulheres tinham que seguir perfis
estéticos masculinizantes e de enquadrar seu comportamento dentro destes estereótipos, para
serem respeitadas e ter visibilidade dentro da organização.
A gente pra ter maior visibilidade da organização, agente acabava assumindo
performance masculina, então as companheiras que trabalhavam na frente de massa
inicialmente tinha perfil masculino, eram mulheres, , tinha todo o corpo estruturado como
tal, mas que tinha todo esse modelo de decisão. (...) Mas a diferença que a gente queria
discutir era da relação de divisão de poderes, da relação de divisão de igualdade,
desigualdade dos privilégios, , e quando a gente ia pra frente de massa na verdade no nosso
inconsciente era pra dá um grito, dizer olha, a gente tá aqui! A gente também pensa essa
8
organização, mas a gente precisa que vocês entendam que a gente usa saia, por exemplo!
Não obstante, quando abordadas sobre as possibilidades de inserção nos postos de
liderança do movimento, tem-se como consenso de que as oportunidades e o tratamento
7
MST. A Questão das Mulheres no MST – Linhas Políticas, Resolução do 2º Encontro Nacional das Mulheres do
MST, Brasilia, DF, 29 a 31 de agosto de 1997.
8
Rosa Oliveira, Integrante do Coletivo Nacional de Gênero, 21, regional Sul, entrevista concedida em 18/08/2002,
na cidade de Arataca/Ba.
dispensado são iguais para ambos os sexos. Apesar de que, os setores do MST como os de educação, saúde, gênero – que normalmente possuem atividades mais ligadas ao mundo
feminino, têm em sua maioria a coordenação de mulheres. Por outro lado, algumas lideranças
reconhecem que havia desconfiança por parte dos líderes homens em relação à capacidade
organizativa e política das mulheres. Rosa nos atesta que:
No início foi problemático, tinha sempre aquela história, olha será que ela vai conseguir
fazer aquela atividade? Havia assim, parecia que a todo momento a gente tava em cheque,
será que a gente tem capacidade, como a companheira Lucinha de assumir a direção
nacional de todo o estado? Mas ao mesmo tempo tinha companheiros que dizia: Não ela
tem capacidade e a gente vai ajudar. Então não é todo o conjunto do movimento que ainda
9
consegue assimilar toda essa importância.
Entretanto as entrevistadas observam um mudança atitudinal dos companheiros homens,
em relação à elas a partir da inserção das discussões sobre a necessidade de criação de novas
relações de gênero. Essa discussão coincide com a criação do setor de gênero e da realização do
Acampamento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do MST.
Até a constituição do setor de gênero e do Coletivo Nacional de Mulheres, as atenções do
movimento estavam voltadas para a definição das políticas e estratégias imediatas para a
10
resolução do problema da reforma agrária . Até então, os movimentos de mulheres eram
definidos como espaços próprios para a discussão das questões especificas femininas. Não
havendo, portanto, a necessidade destas discussões no interior do MST. Entretanto, já no início
da década de 1990, pressionado internamente pelo coletivo de mulheres e por outros movimentos
parceiros, iniciou-se a discussão de gênero em diversas instâncias do MST, juntamente com uma
série de documentos publicados que objetivavam esboçar as características do “novo homem” e
da “nova mulher” que ajudariam na realização do projeto de transformação da sociedade. Estes
valores passam a ser discutidos e incorporados nos cursos de formação direcionados para
11
dirigentes e lideranças .
Assim o outro marco importante para o avanço da participação das mulheres é a realização
do Acampamento de Mulheres Trabalhadoras Rurais, que desde 2001 vem sendo realizado nos
estados e mobiliza mais de 1500 mulheres. Este evento tem tido muita repercussão para o
trabalho das lideranças junto às companheiras da base. A primeira observação é a capacidade de
mobilização de vários movimentos de mulheres rurais e urbanas que se articulam em torno da
construção do Acampamento, acarretando maiores possibilidades de trocas e vivências. Da
9
Rosa Oliveira, op. cit. 18/08/2002.
MELLO, Denise M. “Subjetividade e Gênero no MST: observações sobre documentos publicados entre 1979 e
2000”. In: Movimentos sociais no início do século XXI. GONH, M. da G. (org.) Petropólis, RJ: Vozes, 2003, p. 114.
11
PAVAN, D. A Participação Feminina no MST. - Um estudo comparativo sobre o cotidiano de mulheres
assentadas em Promissão - SP e Cratéus - CE. São Paulo, Janeiro, 1999, p.3.
10
experiência dos dois Acampamentos ocorridos em Salvador, resultou a articulação entre o
MMTR, o Movimento de Mulheres Negras, Empregadas Domésticas, as feministas, associações
de bairros, núcleos de estudos das Universidades, mulheres dos partidos de esquerda, etc, que
fortalece os mecanismos de participação e diálogo entre os movimentos de mulheres e os outros
setores sociais. De acordo com as palavras da própria Lucinha, "Você (sic) amplia o leque de
alianças, você conhece outras realidade e o movimento como um todo, não só o movimento das
mulheres interno do Movimento (MST), fica mais forte, pela ampliação do debate, pela
12
ampliação da discussão do problema. "
Um outro aspecto a ser observado nesta experiência seria a criação de mecanismos e a
utilização de estratégias no MST, que possibilitem às mulheres, ampliar a discussão sobre suas
formas de participação, alçando-as como portadoras de direitos sociais e políticos que garantam
o seu redimensionamento nos espaços coletivos de decisão. Nesse sentido o trabalho das
mulheres, sejam elas lideranças ou da base, para a realização do Acampamento, colabora para: o
reconhecimento da importância de se discutir as relações que permeiam os papéis de homens e
mulheres na organização e na sociedade; corrobora na introdução da discussão sobre as questões
de gênero; além de fortalecer a participação da mulher nas assembléias dos assentamentos,
encontros, cursos de capacitação e instâncias de coordenação do Movimento.
Portanto podemos observar que o papel assumido pelas lideranças femininas reposiciona o
lugar da mulher nas instâncias do MST, pois o cultivo dos valores necessários à atividade de
liderança, estimula outras mulheres a participarem e se engajar. O fazer político está atrelado à
construção de um espaço identificado como feminino, no qual se criam vias de debates e
discussão acerca da condição da mulher rural possibilitando um reconhecimento político, social e
de gênero.
Sobre a experiência do acampamento observe-se o comentário de Lucinha:
Esse trabalho que nós estamos fazendo com o acampamento das mulheres, todo ano, que
já é o segundo agora, isso, às vezes a gente não se dá conta dá dimensão que é. Eu tava
analisando com as companheiras nossas, companheiras velhas já de luta do movimento,
quando veio pro primeiro acampamento nosso de mulheres aqui em Salvador, parecia que
era o primeiro espaço que a gente tinha, onde as mulheres se soltou, conversou, se entendia,
via que o problema dela outras mulheres também tinha, então são espaços, esses espaços é
importantíssimo eu acho, pro crescimento, pro avanço das mulheres lá no assentamento, de
cavar espaços, de criar alternativas, de participação realmente, nesse processo de
assentamento nosso.
As líderes entrevistadas nos relatam sobre a importância da visibilidade da reivindicações
das mulheres. Podemos ordenar em três tipos as reivindicações femininas mais citadas pelas
entrevistadas: a primeira delas diz respeito à melhorias ao acesso a uma estrutura básica nos
12
Lucinha, op. cit. 19/06/2002
assentamentos- creche, escolas, postos de saúde, serviço médico, lavanderia coletiva – que
possam dar condições à mulher se engajar nas lutas políticas, ir para os cursos de formação e
poder participar das decisões nas assembléias e cooperativas. Essa reivindicação inclusive está
contemplada no item 13 das linhas Políticas: "Incentivar para que os assentamentos criem ou
desenvolvam mecanismos que liberem as mulheres dos afazeres domésticos, para atuarem nas
atividades ‘produtivas’(grifo nosso), por exemplo: lavanderias, refeitórios, cirandas infantis nos
assentamentos."
Somente gostaria de chamar a atenção para esta palavra grifada “produtiva”, pois a idéia
que perpassa por essa liberação das mulheres é que ainda é obrigação delas cuidar dessas tarefas
e não questiona a validade disso. Uma outra coisa é que as mulheres devem está disponíveis para
as atividades produtivas, que incluem ajuda na agricultura familiar, na horta ou criação de
animais e no limite, nas discussões das cooperativas, ou seja tudo aquilo que já de alguma forma
é realizado pela mulher, mas é visto como uma ajuda às tarefas principais realizadas pelo
homem. Mas as mulheres não deve está disponível para as atividades políticas, que aí exigiria
uma outra noção de disponibilidade sócio cultural.
Rosa declara sobre a importância da criação do coletivo de gênero dentro do movimento
para que se criassem espaços nos quais pudessem se discutir pautas específicas das mulheres que
resolvessem essa questão. Sobre isto ela nos informa:
Então esse coletivo, ele começou a se constituir na perspectiva de dizer, olha como é que
a gente mulheres sem terra vai começar a se organizar, como é que a gente vai começar a
decidir as nossas pautas especificas. Porque os nossos companheiros, ainda têm deficiências
e só discute a pauta maior. Mas é a gente que vai precisar de posto médico, é a gente que
vai precisar da creche, é a gente que vai precisar de uma lavanderia coletiva, pra gente
poder viajar, pra gente poder participar dos cursos.
A constituição de grupos distintos que tragam discussões específicas da participação da
mulher é um elemento importante para a análise das formas em como as mulheres marcam sua
participação política. Pois estas iniciativas acarretam visibilidade das ações e demandas
femininas. Ainda sobre este aspecto Rosa observa que:
E a gente começou a constituir formas de luta específica das mulheres, agente começou a
ter claro de que a luta conjunta por exemplo, como só a mobilização de massa, só uma
caminhada não resolvia os nossos problemas, porque na hora de discutir as pautas acabava
sobressaindo o crédito, a vistoria da área, claro que isso é importante, mas a escola, a
creche, o posto de saúde, o atendimento médico ficava pra depois e a gente tem uma
necessidade real dentro dos assentamentos, então a gente começou a organizar formas de
luta, nós começou a organizar acampamento defronte as prefeituras dos municípios, nós
começou ocupar os postos de saúde pra fazer os atendimentos nossos e aí achando pouco,
agente começou a organizar uma articulação, que é a Articulação Nacional de Mulheres
Trabalhadoras Rurais do Brasil.
13
A outra ordem de reivindicações gira em torno do resgate da auto estima e da identidade de
ser mulher. Esta percepção só é possível ser vislumbrada quando as mulheres rompem com os
estigmas que as aprisionam a uma situação de submissão e opressão. Este processo de percepção
autovalorativa pode ocorrer em várias circunstâncias, mas normalmente é no contato com outras
mulheres e na troca de experiências que se desenrola este processo.
Como vimos anteriormente, as lideranças entrevistadas foram categóricas em reconhecer o
papel das mulheres e de sua participação, nos momentos de enfrentamento e conflitos gerados
nas ações de despejos. Particularmente nessa situação onde o uso da violência e da força policial
repressiva se faz muito intenso, a presença das mulheres e crianças é importantíssimo para o
sucesso de uma ação pacífica ou mesmo para a negociação.
Nesse sentido, as situações de conflito são como duas faces de uma mesma moeda. Pois o
conflito pode funcionar como um fator de inibição, ocasionando traumas e medos. Já que na
definição de qualidades sociais de acordo com os papéis sexuais historicamente demarcados, às
mulheres é atribuído valores de fragilidade, medo, insegurança e necessidade de proteção.
Entretanto, podemos considerar, que nos momentos de conflitos há uma redefinição de papéis
sexuais, devido à mudança no cotidiano das famílias. Assim as mulheres se reconhecem e são
reconhecidas como portadoras de habilidades, que até então não era possível perceber na sua
rotina diária. Portanto os momentos de enfrentamento propiciam a emergência de novos campos
de atuação para homens e mulheres, isto os redefine enquanto sujeitos políticos. As lideranças
entrevistadas relataram terem vivido experiências de despejos muito violento. Uma dela
inclusive afirmou ter sido presa e torturada juntamente com outros sete companheiros, pelo
capitão da polícia que comandava a operação de despejo:
Entretanto em 93 houve um grande acampamento, uma grande ocupação em Itamarajú,
essa ocupação ela... nós conseguimos, foi na época a ocupação mais massiva que nós
fizemos no estado, duas mil pessoas e nós ocupamos um grande latifúndio que é a fazenda
Fibrasa em Itamarajú.. (...) Ela foi uma das ocupações que teve assim um dos desfechos
mais violentos, então lá aconteceu um despejo, muito violento, inclusive com a prisão de
pessoas que apoiavam o movimento, os padres, na época nós tínhamos também os padres
capuchinhos, a igreja que tinha uma participação interessante, na construção do movimento
na região e aí a gente terminou sendo preso, mais de oito pessoas e também torturados
14
dentro da própria área durante o despejo.
Aí veio o despejo, aí acabamos, voltando novamente pra cidade, esse despejo da
Bralanda foi muito violento, tinha muitos policiais, pistoleiros da fazenda, foi um dia todo de
15
negociação e chegamos no final da tarde e eles acabaram despejando o pessoal nosso.
13
Rosa Oliveira, op. cit. 18/08/2002.
Djacira Araújo, op. cit. 18/08/2002.
15
Lúcia Barbosa, op. cit, 19/06/2002.
14
Estas questões são percebidas pelas lideranças e sua atuação se dá na perspectiva de fazer
uma correlação de forças entre a estrutura do movimento e estes pontos específicos que
colaboram para a inserção da mulher nos espaços de sociabilidade. No mesmo sentido todo o
esforço está também voltado para deter possíveis mecanismos de exclusão das mulheres das
atividades de decisão. De acordo com uma das entrevistadas, há o entendimento de que é tarefa
do movimento viabilizar a infraestrutura, que dê condição às companheiras para está integrada às
atividades de participação. Visto desta forma isto representa um avanço, pois contribui para a
formação e atuação das mulheres enquanto militantes.
É muito comum as lideranças passarem por várias instâncias organizativas do MST. Isto
possibilita uma melhor apreensão das atividades desenvolvidas nos diversos setores do
movimento. Geralmente as mulheres entrevistadas consideram como um aspecto positivo esta
dinâmica interna. Elas acreditam que o desempenho de certas tarefas contribui para seu
amadurecimento enquanto militante, pois ao permitir uma rotatividade de atividades, tornam-se
assim, aptas a lidar com situações diversas:
E dentro do movimento sempre foi trabalhado a questão que é nossa luta, e a gente tem
que tá disponível, pra organização do ponto de vista que é preciso construir essa
coletividade, que a militância deveria ter essa disponibilidade, por conta disso a gente
terminou vindo deslocado pra Bahia aqui em 1990, eu cheguei na Bahia em princípio com
16
atividades mais específicas na área de educação e formação.
Eu integro o coletivo nacional de gênero, que vem discutindo as novas relações, as
perspectivas de mudanças de relações, a construção da igualdade de fato entre homens e
mulheres da nossa organização, então essa é a tarefa que eu tenho definida, mas dentro do
movimento isso é muito complexo. Você tem uma tarefa definida mais isso não quer dizer
que você não vá integrar o todo do movimento, então eu já fiz trabalho de base, eu já
trabalhei na área de saúde, eu já trabalhei na área de formação especifica, eu já ensinei, eu
já trabalhei na área da nossa burocracia, das secretarias, então você passa por todo esse
leque de conhecimento dentro da organização, até de fato você se envolver em uma
17
atividade mais especifica.
A relação histórica das mulheres com o poder sempre foi marcada pela idéia da exclusão,
dominação e opressão. Entretanto hoje questionando-se a definição da natureza do poder
exercido pelas mulheres, forçoso é pensar esse poder como sendo aquele que não representa o
poder político formal exercido e dominado pelo masculino, mas sim como nos afirma Perrot o
“poder social” atribuído às mulheres, também faz parte do jogo de poder, funciona como
mecanismo de manter um amplo poder social das mulheres às custas da falta de autonomia.
Os Movimentos Sociais podem ser considerados como espaços privilegiados de
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visibilidade da atuação política das mulheres. Celi Pinto nos assegura que esta visibilidade
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Djacira Araújo, entrevista concedida em 18/08/2002 na cidade de Arataca/Ba.
Rosa Oliveira, op. cit. 18/08/2002.
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PINTO, Céli Regina Jardim. Movimentos Sociais: Espaços Privilegiados da Mulher enquanto sujeito político. IN:
COSTA, Albertina de Oliveira e BRUSCHINI, Cristina. Uma Questão de Gênero. Ed. Rosa dos Tempos, Fundação
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advém do fato de a relação entre os movimentos sociais e o estado ocorrerem na esfera pública,
ainda assim, estes ao se constituírem no interior da sociedade, a reorganizam e rearticulam as
relações de poder, podendo transformar-se ou não em elementos fortes de lobby frente ao Estado.
Desta forma a estratégia seria a de buscar questões centrais do envolvimento da mulher na
sociedade civil, onde através dos movimentos sociais, pode-se vislumbrá-la nas mais diversas
instâncias da luta política.
Podemos pensar então os movimentos sociais como espaços de emergência de práticas de
resistência à desigualdades contidas nas relações de gênero. A liderança de mulheres nos
movimentos sociais ocasionaria transformações nas relações de poder no interior da comunidade,
gerando três situações: 1-“A mulher deixando de atuar no privado provoca novas situações no
interior da família e nas relações informais de vizinhança e amizade; 2- a mulher passa a
articular, no interior dos movimentos, lutas diferenciadas em relação a seus companheiros
homens; 3- mulheres organizadas em torno de questões tradicionalmente femininas passam a
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questionar sua própria condição de mulher; ” Scott nos fala sobre a ênfase dada a esfera privada
para analises sobre a condição feminina, nesse sentido temos visto que se formam importantes
redes de apoio e informação mutuo. O que trás implicações políticas para a comunidade, na
medida em que tal apoio em nível político indica formas de identidade coletiva, exercício de
influência ou apoio nas decisões umas das outras.
Lucinha, por exemplo, nos conta como foi difícil ela convencer sua família e romper com
os estereótipos que perseguiam as jovens da sua idade caso quisessem assumir de vez uma nova
identidade como militante do MST estando totalmente à disposição do movimento para fazer
cursos, viagens e desenvolver as atividades que lhes eram confiadas.
Então quando eu fui pra primeira escola nacional foi um parto lá em casa e quando
surgiu logo a ocupação da Bela Vista, tinha muitas meninas, filhas de acampados que de
certa forma iniciaram junto comigo a militância na equipe de animação e tal e que
acabaram ficando grávidas, e isso foi um terror principalmente lá em casa pra papai, por
que aí era um entrave pra militância das outras pessoas, principalmente a minha militância
na época[...] nós tivemos que ficar conversando o tempo todo eu tive que assumir
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compromissos com ele, pra poder ir pra Escola Nacional .
A busca das mulheres por romper os tradicionais espaços e papéis que lhes são destinados
e nesta aventura recriar outros através da ampliação de suas experiências sociais, constituí-se
como fator determinante para o estímulo e participação delas nos movimentos sociais. Ainda
assim entendemos que a introdução de novas dimensões analíticas, sujeitas a constantes revisões,
Carlos Chargas, São Paulo, 1992, p.p. 129-130
PINTO, op.cit. 133
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Lúcia Barbosa, op. cit, 19/06/2002
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colabora na compreensão da complexidade e pluralidade das possibilidades de investigação da
história política da mulher nos movimentos sociais.
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Hélida Santos Conceição