Congelamento das Rendas Urbanas por Artur Soares Soares Alves Março-2006 Saiu recentemente a nova lei do arrendamento, tão esperada por muitos e que por isso tanta desilusão provocou. Todavia, se olharmos para a história pregressa deste assunto pouco nos admiraremos do resultado. No dealbar da República Antes de 1910 o arrendamento era um contrato entre duas partes em que uma fornecia o uso de um local e a outra pagava o preço que ambos acordassem. Um contrato de duração limitada no tempo conforme fosse a vontade comum das partes fixada no seu início. Nada de especial, nada diferente de outros contratos em que o interesse das partes encontra um objectivo comum e o aceita livremente. Porém, após a vitória do 5 de Outubro os chefes da nova situação lidavam com o problema da sua legitimação popular que dificilmente poderia firmar-se sobre bases políticas ou morais. Usando um procedimento que é comum desde que o mundo é mundo, procuraram obter o apoio das populações urbanas oferecendo-lhe bens materiais. Todavia, visto que as revoluções não criam riqueza esta somente pode ser obtida retirando-a a quem já a possua. Nada melhor do que a propriedade imobiliária para estas operações de efeito imediato. Logo a 12 de Novembro de 1910 se determina o primeiro ensaio do congelamento decretando que durante um ano os proprietários não poderiam aumentar as rendas nos novos contratos que viessem a celebrar. Porém, isto não é nada perante o que está para vir. A Grande Guerra A Grande Guerra começa em 28 de Julho de 1914. As guerras não trazem a segurança nem o optimismo necessários ao desenvolvimento económico; embora o conflito se desenvolvesse muito para além dos Pirinéus, é natural que os seus ecos aqui se fizessem sentir. O certo é que em 23 de Novembro de 1914 sai o decreto 1079 o qual, num quadro em que os contratos de arrendamento se faziam por tempo limitado começa por dizer: Art. 1.º -- Na renovação dos contratos de arrendamento de prédios urbanos, cujas rendas mensais não ultrapassem, à data do presente decreto, 18$ em Lisboa, 15$ no Porto, 10$ nas outras cidades e 5$ em todas as restantes terras do continente da República e ilhas adjacentes, fica proibido aos senhorios o elevarem, sem consentimento dos arrendatários, as respectivas rendas, sob pena de desobediência qualificada e de serem considerados litigantes de má-fé, para os efeitos legais, nas acções de despejo que, porventura, proponham em juízo com quaisquer fundamentos que apenas disfarcem os intuitos de violar o preceito proibitivo consignado no presente artigo. Os contratos que chegam ao fim só podem ser renovados mantendo as mesmas rendas. De momento, o proprietário poderia reaver a casa mas, para o efeito, teria que propor uma acção de despejo. Todavia, se existir suspeita de que se pretende reaver a casa apenas para poder celebrar um novo contrato mais elevado, então o proprietário pode ser considerado um "litigante de má-fé". Portanto, ou o senhorio consente na permanência do actual inquilino; ou move-lhe uma acção de despejo e vai substitui-lo por um inquilino com a mesma renda (prova de que não pretendia contrariar o decreto). O único efeito desta disposição é conseguir que os inquilinos possam ficar a habitar as casas em que já vivem, pagando a mesma renda, independentemente de se saber qual vai ser a evolução futura dos salários e preços. Supôs o legislador que ainda poderiam celebrar-se novos contratos, talvez por saída dos inquilinos. Não fossem os proprietários celebrá-los por valores mais altos, logo se esclarece que: Nos contratos de arrendamento dos prédios a que se refere o artigo anterior, que venham a efectuar-se posteriormente à data do presente decreto, fica igualmente proibido aos senhorios o exigir rendas superiores às declaradas nos últimos contratos (artigo 22º). Trata-se de um congelamento absoluto. Uma vez arrendado um local por um certo valor, esse valor terá que permanecer para sempre. O legislador sabe muito bem que está a causar um prejuízo financeiro ao proprietário, com uma muito duvidosa base moral. Sabe que aquele tentará defender-se por todos os meios, incluindo renunciar ao arrendamento, guardar a casa devoluta e pagar o respectivo imposto predial. Assim, resvala rapidamente o decreto para a expropriação: Art. 32.º -- Nenhum proprietário de prédios urbanos devoluto que hajam sido destinados a arrendar-se e cujas rendas anteriores não tenham ultrapassado os limites marcados no artigo 1.º, poderá recusar, sob pena de desobediência qualificada, novos contratos que lhe sejam propostos, pelas rendas dos últimos. Nada mais é necessário dizer, nem inventar. Este decreto inicia o processo de nacionalização progressiva dos prédios, a qual se compõe de três vertentes: Congelamento absoluto das rendas. Inflação. Obrigação de arrendar. Sob estas condições dificilmente se pode falar ainda em propriedade. Quando muito, reserva-se ao proprietário espoliado alguns direitos formais e uma pequena participação no rendimento do prédio. Em todo o caso, tudo quanto sejam as despesas administração, de manutenção e de conservação, mais os impostos e alcavalas, tudo isso cai em cima deste sócio minoritário que passou a ser o proprietário. O decreto 1079 fixou de uma vez por todas a doutrina e a prática do Estado português em matéria de arrendamento urbano. Só por excepção, por necessidade ou por oportunismo o Estado por vezes atenuou as consequências desta orientação. A retórica social Quem tem poder, usa-o! Isso é o que nos mostra a prática corrente das relações com o Estado. O Estado português usou a propriedade acumulada por dezenas de anos de poupanças para se congraçar com as populações urbanas e assim conquistar o seu apoio ou, pelo menos, a sua neutralidade. Desta medida beneficiaram gentes de todos os níveis sociais e económicos, desde as classes pobres até aos altos funcionários, generais, almirantes, ministros, enfim, todos aqueles que tinham uma casa arrendada. Mais notável ainda, foram beneficiários destas leis o comércio de luxo da Baixa pombalina, os bancos através das suas agências arrendadas por todo o País, os grandes nomes da medicina que cobram numa consulta o valor da renda mensal do consultório, idem para grandes advogados, etc. Perante estes factos, quem ousa servir-se da retórica social para justificar o processo sui generis de espoliação da propriedade que é o arrendamento? A resposta é: precisamente aqueles que mais dela beneficiam e que têm poder para fazer com que as suas opiniões sejam transmitidas pela imprensa ou reflectidas pelos governantes. A tenaz do congelamento O congelamento das rendas é uma tenaz com duas hastes: PRORROGAÇÃO FORÇADA DOS CONTRATOS; e INFLAÇÃO. Qualquer uma delas é ineficaz por si-mesma. Se o contrato (que é por natureza a tempo certo) pudesse ser denunciado no fim do prazo, o proprietário não ficaria amarrado à renda baixa. Se a lei previsse a correcção monetária da renda, mesmo com um contrato prorrogado à força, o poder de compra do proprietário não ficaria reduzido a cinzas. É fácil de compreender por onde aparece o problema real. Ao imprimir quantidades de dinheiro para fazer face às suas promessas irrealistas os governos diminuem drasticamente o valor da moeda. O valor anual da renda recebido permite ao proprietário comprar cada vez menos mercadorias, isto é, o proprietário torna-se progressivamente mais pobre. Entre 1970 e 1985, a moeda desvalorizou 15 vezes. O que se vendia por cem escudos em 1970, em 1985 custava 1.500 escudos. Os inventores destas leis esperam que o proprietário faça face às suas despesas multiplicadas por quinze com um rendimento constante. Segundo o Dicionário de Cândido de Figueiredo: “ESPOLIAR – desapossar com violência ou fraude”. Uma política persistente Uma ignorância histórica real ou fingida permite fazer tropelias aos factos, presentes e pregressos. Postos perante as consequências da espoliação praticada, os actores e autores destas políticas procuram, muito portuguesmente falando, sacudir a água do capote. Alguns deles ficaram na história porque deram passos decisivos neste processo. É o caso de Afonso Costa, o grande inspirador da República e um estatista de quatro costados; de António Granjo; de Oliveira Salazar e de Nuno Portas. Merecem um lugar no Panteão. Porém, é preciso ver que, pesem embora as suas rivalidades, o socialismo republicano, o socialismo corporativista, o socialismo militar e esta social-democracia que nos governa estão de acordo com o princípio da grandeza do Estado e da pequenez do cidadão. Contemos quantas vezes o verbo expropriar é conjugado nos Diários do Governo da década 1930-1940 e logo veremos quem mais merece ser considerado socialista. Conta-se que até Salazar terá inventado o aforismo: “roubar a favor do Estado também é roubar!”, enfadado com a desfaçatez com que o ministro Duarte Pacheco ia fazendo mão baixa aos terrenos. O problema não é de natureza semântica. O problema está na liberdade individual e no pouco respeito que o Estado lhe vota. A propriedade é a primeira fonte da liberdade, é a primeira e mais decisiva condição de cidadania. Como ideia comum, os sistemas políticos acima enumerados nada mais detestam do que a liberdade individual.