REPUTAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES DE PESQUISA E ESTATÍSTICA
Gilmar Mendes Lourenço
Os recentes episódios de veiculação de um dado social completamente distorcido, pelo Instituto de Pesquisa
Econômica e Aplicada (IPEA), e da suspensão, até janeiro de 2015, dos números das apurações da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, por parte do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
acenderam o fogo das discussões a respeito da excessiva partidarização do aparelho de estado e da interferência
governamental na concepção, metodologia e resultados finais, quantitativos e qualitativos, das investigações
econômicas e sociais levadas a cabo por entidades públicas no País.
Antes de mais nada, é preciso assinalar que o Brasil é conhecido no cenário internacional como uma das nações
que destina menos recursos para as áreas de pesquisa e desenvolvimento (P&D) ou, mais precisamente, ciência e
tecnologia (C&T). São parcos 1,1% do produto interno bruto (PIB) aplicados na área, contra 3% da média mundial e 4%
dos emergentes. Sem contar a pífia integração entre os centros de pesquisa e as empresas, além das diminutas taxas
de sucesso, representadas pela viabilidade de transposição dos experimentos laboratoriais para a escala industrial.
Ressalvada a natureza distinta dos universos e respectivas peculiaridades, o quadro não é tão diferente no
campo exclusivo da economia. De fato, as evidências demonstram que, especialmente com o fim do ciclo de
substituição de importações, que marcou e evolução brasileira entre os anos 1930 e 1980, ancorado em planejamento
de longo prazo e forte presença e participação do estado, as atenções do setor público e da microeconomia privada
prenderam-se ao curto prazo, o que ocasionou o enfraquecimento das instituições de pesquisa.
Mais que isso, o aprofundamento das limitações de caráter financeiro, provocado notadamente pela
instabilidade fiscal e inflacionária e a estagnação econômica da década de 1980, fragilizaram a capacidade de
cumprimento sincronizado, e com absoluta independência dos ditames políticos e das matrizes ideológicas, de duas
atribuições motrizes dessas entidades.
O primeiro papel, mais amplo, abarca a sistematização e consolidação da interpretação da realidade econômica,
social e ambiental do País e de seus espaços federados, com ênfase prospectiva, sem a superposição de atividades com
as universidades, sendo estas encarregadas da investigação de maior envergadura e maturação temporal mais longa.
A segunda função, essencialmente gerencial, compreende o fornecimento de informações e análises para subsidiar
o exercício de tomada de decisões estratégias dos agentes sociais, o que exige sintonia permanente com o ambiente
externo e enseja a interferência direta na formulação e avaliação das políticas públicas e o apoio às escolhas privadas.
Os institutos de pesquisa foram
transformados em fábricas de
projetos sem diretrizes consistentes.
Por esse prisma, não é difícil constatar que aqueles órgãos, em sua esmagadora maioria, foram transformados de
unidades de investigação e proposição em verdadeiros balcões ou fábricas de projetos, desprovidos de diretrizes
consistentes. Mais precisamente, as entidades sucumbiram aos interesses dos governos de plantão, conduzindo seus
estudos no sentido de respaldar as iniciativas definidas pela aliança hegemônica de poder, algumas legitimadas nas
urnas e outras sem qualquer retaguarda técnica, como a realização da Copa do Mundo de Futebol e os negócios
internacionais da Petrobras, dentre outras anomalias.
O exemplo patético e prático da perda de foco, do aparecimento de uma crise de identidade e de outros fatores
de perturbação subjacentes às instituições, inclusive com a redução de quadros de colaboradores, repousa na recente
e nova arranhada na imagem IPEA, com o anúncio precipitado dos resultados de um inquérito de opinião sobre a
violência contra a mulher, contendo a informação de que 65% dos brasileiros admitem que as “pessoas do sexo
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feminino que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”, devidamente acompanhada de uma
interpretação científica.
Ao verificar uma grosseira substituição de percentagens entre quesitos da pesquisa, o IPEA divulgou nota de correção,
destacando a mudança para 26%. No entanto, chama a atenção outro item da investigação dando conta de que 58,5% da
população concordam com a sentença “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.
Há também outras distorções não suficientemente equacionadas ou menos esclarecidas pelo IPEA. O trabalho
compõe o Sistema de Indicadores de Percepção Social (Sips), realizado pelo instituto, a partir de observações
domiciliares em 212 municípios brasileiros, supostamente com cobertura estatística nacional. Esse último aspecto é
bastante discutível, particularmente quando cotejada a participação de 66,5% de mulheres no painel de entrevistados,
contra a apuração de representatividade de 51,6% do sexo feminino na população total acima de 15 anos, segundo o
Censo Demográfico 2010.
Em outra sondagem, relativa ao segmento de telecomunicações, o Sips igualmente ocasionou certo grau de
espanto ao inferir que 66% dos inquiridos consideram os serviços de telefonia celular positivos, contrastando com o
senso comum.
É fácil apreender que o Sips exibe encaixe pleno na opção ideológica intervencionista impregnada no IPEA desde
2010, ilustrada pela implantação do primeiro escritório internacional da instituição na Venezuela, naquele ano, e pelas
frequentes incursões técnico-científicas, que respaldam as linhas gerais e políticas de ação pontuais do executivo
federal, sem reservar espaços para o conflito de ideias e o confronto de opiniões, fundamentais para a execução da
missão de caixa de ressonância da sociedade e a preservação da notoriedade acadêmica do órgão, construída durante
quase cinco décadas.
Nunca é demais lembrar que, no decênio de 1970, por ter produzido um estudo propositivo sobre a dinâmica
inflacionária brasileira, o IPEA recebeu do então titular da pasta da Fazenda, Mario Henrique Simonsen, a elegante
advertência de que se tratava de um esforço de excelente qualidade e ousadia que, porém, enxergava o sistema
econômico apenas pelo lado da oferta, ignorando a importância da demanda.
Pouco tempo depois, de modo não tão polido, o Ministro Delfim Neto chegou a acenar com a possibilidade de
extinção da entidade, por discordar de relatório, preparado por alguns de seus técnicos, acerca de determinadas
iniciativas das autoridades econômicas. Ao argumentar que a crítica deveria brotar da sociedade e não de uma
instituição oficial, o Ministro, lamentavelmente, confundiu a situação de ente de estado com a de membro exclusivo
de um governo, a ser desempenhada pelo IPEA.
No que tange à Pnad Contínua, do IBGE, prevaleceu, em meados de abril de 2014, a opção de bloquear
prematuramente a sua divulgação e retomá-la em janeiro de 2015, sem a feitura de qualquer debate interno na
instituição, após questionamentos contidos em uma solicitação de informações feita por dois senadores, Armando
Monteiro Neto, do PTB de Pernambuco, e Gleisi Hoffmann, ex-ministra Chefe da Casa Civil, do PT do Paraná, ambos
pertencentes à base aliada da presidente Dilma.
O propósito da interrupção do cronograma de divulgação seria, segundo comunicado do Conselho Diretor da
entidade, efetuar adequações dos métodos, principalmente as atreladas à homogeneização das margens de erro
entre as unidades federativas, para garantir a confiabilidade aos indicadores de renda domiciliar per capita, que serão
empregados para rateio dos recursos do Fundo de Participação dos Estados (FPE), a partir de 2016, de acordo com
designação da Lei Complementar nº 143/2013.
De pronto, as recomendações de alterações de procedimentos de cálculo da variável renda e de revisão do
painel de informantes não foram considerados pertinentes por um grupo de 45 técnicos das coordenações
diretamente ligadas à Pnad Contínua. A equipe avaliou também que, se forem realmente necessárias, essas
adaptações podem acontecer em paralelo à divulgação previamente estabelecida para as informações da pesquisa.
Frise-se que o órgão havia realizado programação para entregar as estimativas em dezembro de 2015, para
utilização na repartição dos haveres em 2017, oriundas da nova pesquisa, de periodicidade trimestral, em consonância
com as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cobrindo 211.344 domicílios em 3.500
municípios, que vem em substituição à Pnad anual, cujo alvo era 1,1 mil municípios, e à Pesquisa Mensal de Emprego
(PME), também do IBGE, restrita a seis Rms (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador).
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A complexidade da passagem da investigação anual para trimestral exigiu inquéritos pilotos, que começaram em
fins de 2011, em vinte regiões metropolitanas (Rms), cinco capitais e Distrito Federal, e que foram estendidos para
visitas e entrevistas domiciliares, englobando o conjunto do País, a partir de janeiro de 2012.
Os questionamentos dos
parlamentares a respeito da Pnad
Contínua coincidiram com a divulgação
de resultados menos favoráveis do
mercado de trabalho e a queda de
popularidade do governo Dilma.
Coincidentemente, o requerimento apresentado pelos referidos parlamentares aconteceu logo depois da
segunda rodada de anúncio dos cálculos da Pnad Contínua, que mostrou taxa de desocupação de 7,1% da População
Economicamente Ativa (PEA) em 2013, contra 5,4% da PEA, segundo a PME, a par de maus sinais na área de inflação,
em sintonia com o gradativo declínio da popularidade do governo, denotado por algumas sondagens opinativas. Como
se sabe, o mercado de trabalho é a “menina dos olhos” da administração petista, notadamente em ano eleitoral.
A diferença de amplitude do desemprego advém, basicamente, das abrangências distintas das duas pesquisas. A
PME capta a dinâmica econômica bastante concentrada dos aglomerados urbanos, formados nas metrópoles,
justamente os beneficiados, em maior proporção, pelos estímulos de natureza tributária – preponderantemente a
redução ou até zeragem do imposto sobre produtos industrializados (IPI) para a comercialização de veículos
automotores, eletrodomésticos, móveis e materiais de construção –, usados fartamente pelo executivo federal para
alavancar o consumo privado.
Enquanto isso, a Pnad Contínua incorpora, ao comportamento dos grandes centros, a pior performance de parte
do interior do País que, à exceção do agronegócio, suportado por elevada escala de produção e densidade
tecnológica, mais articulado à demanda e aos preços globais, é penalizado pela falta de atitudes oficiais para
impulsionar os investimentos em logística e infraestrutura econômica e social e montar e executar uma política
nacional de desenvolvimento regional, reforçada por um arcabouço agrícola de médio e longo prazo.
No fundo, a intervenção política, seguida da manifestação explícita da preferência pela parada na publicação dos
números da Pnad Contínua, expressa, de um lado, o descaso oficial com a reputação de excelência técnica e respeito
internacional do IBGE, construída arduamente pelos seus técnicos, durante décadas, e, de outro, a aplicação de
diretrizes direcionadas ao cerceamento da autonomia das agências de planejamento, pesquisa e estatística da nação,
o que prejudica, sobremaneira, a melhor compreensão da realidade e o exercício de confecção de cenários para o
palco decisório público e privado e, por consequência, a própria democracia.
Não é ocioso recordar que cortes orçamentários de 14%, para o ano de 2014, levaram o IBGE a adiar a realização
da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) para 2015 e da Contagem da População para 2016, o que, sem dúvida,
deve atrasar o fornecimento de referências úteis para a confecção e execução de programas públicos e privados
(empresas e famílias). Mais, em sete anos, o quadro de funcionários efetivos da entidade declinou -19% e o de
servidores temporários amentou 42%.
No dia 05 de maio de 2014, o Conselho Diretor do IBGE, em deliberação unânime, aprovou a retomada da
programação original de divulgação dos indicadores da Pnad Contínua, com a apresentação do próximo bloco prevista
para 03 de junho. Essa atitude serve para abrandar tanto a repercussão negativa, ocasionada pela suspensão, quanto
a leitura de ingerência externa nas atividades da instituição.
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