Segunda Seção CONFLITO DE COMPETÊNCIA N. 120.788-SP (2012/0011161-1) Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira Suscitante: União Suscitado: Juízo de Direito da 6ª Vara Cível de São José dos Campos-SP Suscitado: Tribunal Regional Federal da 3ª Região Suscitado: Juízo Federal da 3ª Vara de São José dos Campos - SJ-SP Interessado: Associação Democrática por Moradia e Direitos Sociais Advogado: Marcelo Menezes e outro(s) Interessado: Selecta Comércio e Indústria S/A EMENTA Conflito de competência. Reintegração de posse. Decisão proferida pela Justiça Estadual. Demanda autônoma ajuizada na Justiça Federal visando a revogar decisão de Juiz de Direito. Impossibilidade. Inexistência de hierarquia entre os ramos do Poder Judiciário. 1. Ação possessória na Justiça Estadual com liminar deferida e confirmada pelo Tribunal, determinando a desocupação de área. Demanda em que a União não é parte. 2. Ajuizamento, pela Associação Democrática por Moradia e Direitos Sociais, às vésperas da reintegração de posse, de medida cautelar visando a impedir o cumprimento da liminar emanada da Justiça Estadual, alegando interesse da União na causa. 3. Decisões conflitantes. Inexistência de hierarquia entre os ramos do Poder Judiciário. Impossibilidade de revogação de decisão da Justiça Estadual pelo Judiciário Federal. 4. A parte inconformada com a decisão liminar deve interpor os recursos adequados no momento oportuno. A União, se possuir interesse jurídico, deve manifestá-lo nos próprios autos da ação que tramita na Justiça Estadual, requerendo sua remessa à Justiça Federal para que esta examine o pedido (Súmula n. 150-STJ). Não cabe ajuizamento de nova demanda na Justiça Federal para obstar o cumprimento da liminar oriunda da Justiça Estadual. REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 5. Conflito admitido com a declaração de competência do Juízo Estadual para análise dos pedidos relacionados à reintegração de posse. ACÓRDÃO A Segunda Seção, por unanimidade, conheceu do conflito e declarou competente o Juízo de Direito da 6ª Vara Cível de São José dos CamposSP para apreciar as questões relacionadas à reintegração de posse (cautelar e ações principais), restando prejudicado o agravo regimental interposto contra a decisão liminar, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, João Otávio de Noronha, Luis Felipe Salomão, Raul Araújo Filho, Paulo de Tarso Sanseverino e Maria Isabel Gallotti votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Nancy Andrighi e Marco Buzzi. Brasília (DF), 22 de maio de 2013 (data do julgamento). Ministro Antonio Carlos Ferreira, Relator DJe 4.6.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Trata-se de conflito positivo de competência em que figura como suscitante a União e como suscitados o Juízo da 6ª Vara Cível de São José dos Campos-SP, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região e, por consequência, o Juízo Federal da 3ª Vara de São José dos Campos - SJSP. A controvérsia envolve a polêmica reintegração de posse da área conhecida como “Pinheirinho”, localizada em São José dos Campos, no Estado de São Paulo, que abrigou, por mais de 8 (oito) anos, aproximadamente 1.700 famílias (cerca de 7.500 pessoas). A área pertence à massa falida da empresa Selecta Comércio e Indústria S.A. O cumprimento da ordem judicial de reintegração teve início na madrugada do dia 22 de janeiro de 2012 (domingo). O presente conflito de competência 304 Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO foi protocolizado no STJ às 15 horas e 10 minutos do mesmo dia, enquanto a reintegração estava em andamento. No momento da desocupação do imóvel, havia duas ordens judicias opostas, uma da Justiça Estadual determinando a reintegração e outra do Tribunal Regional Federal da 3ª Região mandando suspendê-la. A possessória tramita, desde agosto de 2004, na Justiça Estadual. Nessa demanda, após sucessivas concessões e revogações da liminar, foi determinada a efetiva reintegração de posse. No dia 17 de janeiro de 2012, a Associação Democrática por Moradia e Direitos Sociais ajuizou, no Juízo Federal da 3ª Vara de São José dos Campos, uma ação cautelar requerendo fosse concedida liminar para obstar o cumprimento da reintegração de posse (e-STJ fls. 26-54), alegando existir interesse jurídico da União na causa. A Juíza Federal substituta deferiu a liminar na madrugada do dia 17 de janeiro de 2012 (e-STJ fls. 16-18). Contudo, na mesma data, a decisão foi reconsiderada pelo Juiz Federal titular da 3ª Vara Federal de São José dos Campos, ao argumento de ausência de interesse da União, determinando a remessa dos autos à Justiça Estadual, para o Juízo que havia ordenado a reintegração (e-STJ fls. 20-22). Dessa decisão foi interposto agravo de instrumento, ao qual o Desembargador Federal relator concedeu antecipação de tutela para restabelecer a liminar obstativa da reintegração (e-STJ fls. 129-132). Lê-se da decisão: Embora não haja uma exposição adequada da lide e de seus fundamentos, a pretensão cautelar formulada sugere que a associação deseja propor uma ação civil pública para a tutela de interesses relativos à ordem urbanística, definido pelo artigo 1º, VI, da Lei n. 7.2347/1985 como direito difuso. O pedido de condenação da União, do Estado de São Paulo e do Município de São José dos Campos ao cumprimento de obrigação de não fazer – impedimento à desocupação da área por forças de segurança pública – não revela outro propósito, a não ser o de reunir as condições necessárias a que, na ação principal, haja a regularização fundiária e a consolidação da posse das famílias no imóvel ocupado. Portanto, o requerimento de tutela de urgência visa a assegurar a eficácia de sentença que venha a condenar as entidades públicas à implantação de RSTJ, a. 25, (231): 301-311, julho/setembro 2013 305 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA regularização fundiária, com impactos positivos no desenvolvimento urbano e na condução do déficit habitacional. A União tem interesse jurídico no conflito de interesses. Tal determinação do magistrado federal, porém, não foi observada pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, que optou por dar continuidade à operação de reintegração da área conforme determinado pela Justiça Estadual. Com a desocupação em andamento, a União suscitou o presente conflito de competência neste Tribunal, com pedido de liminar. O então Presidente desta Corte, o eminente Ministro Ari Pargendler, no mesmo dia, indeferiu a liminar e designou como competente, em caráter provisório, o Juízo Estadual (e-STJ fls. 137-141). Dessa decisão, a Associação Democrática por Moradia e Direitos Sociais interpôs agravo regimental (e-STJ fls. 161-181). O Juízo da 3ª Vara Federal de São José dos Campos-SP prestou informações relatando o ocorrido (e-STJ fls. 220-221). O Juízo da 6ª Vara Cível de São José dos Campos-SP informou ter consultado o Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo por ocasião dos fatos, que determinou o cumprimento da liminar de reintegração de posse (e-STJ fls. 127-128). Afirmou, ainda, ter a União demonstrado “total desinteresse em desapropriar a área” durante o curso do processo (e-STJ fls. 302-305). Consultada se ainda teria interesse no julgamento do conflito após consumada a reintegração, a União manifestou-se pela continuidade do julgamento, pois “o imbróglio jurídico-processual persiste”, com ações tramitando nas duas esferas da Justiça. Para a União, o Juízo Estadual deveria ter suscitado no STJ (e-STJ fls. 311-317). Parecer do Ministério Público Federal, de lavra do douto SubprocuradorGeral da República Edilson Alves de França, pela declaração da competência do Juízo da 6ª Vara Cível de São José dos Campos-SP (e-STJ fls. 321-324). Consta dos autos cópia de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal formulando pedidos no interesse dos habitantes da referida área, mesmo no caso de efetivação da liminar de reintegração (e-STJ fls. 96-120). É o relatório. 306 Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO VOTO O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira (Relator): Cumpre não desconhecer, de início, que a reintegração de posse de que trata este conflito de competência foi objeto da mais ampla repercussão e de acirrados debates em toda a sociedade, ocasião em que se cogitou da ocorrência de excessos no cumprimento da ordem judicial, do não esgotamento de negociações visando à solução pacífica do conflito, da violação de direitos fundamentais dos moradores, da desconsideração da dignidade da pessoa humana e de omissões dos órgãos governamentais para a solução do crônico problema social da moradia. É evidente que esse debate, em que pese sua relevância e gravidade, transborda dos limites deste processo de conflito de competência, que se resume a declarar o juízo competente para julgar a ação de reintegração de posse. Posta a questão nesses termos, cabe-me reproduzir fragmento da precisa decisão do então Presidente desta Corte, o eminente Ministro Ari Pargendler, que indeferiu a liminar requerida no presente conflito (e-STJ fls. 137-141): A União não é parte na ação de reintegração de posse que tramita na Justiça Estadual. Pretende, no entanto, que a decisão nela proferida ceda à força da medida liminar concedida por Juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. O decisum, neste caso, foi exarado nos autos de agravo de instrumento extraído de ação cautelar proposta pela Associação Democrática por Moradia e Direitos Sociais contra a União, o Estado de São Paulo e o Município de São José dos Campos. Salvo melhor juízo, a ordem judicial, emanada da Justiça Estadual deve ser observada por todos, inclusive pelos demais ramos do Poder Judiciário. Nenhum juiz ou tribunal podem desconsiderar decisões judiciais cuja reforma lhes está fora do alcance (REsp n. 300.086-RJ, de minha relatoria, DJ 9.12.2002). A parte inconformada com a decisão judicial deve interpor os recursos próprios. Não existe “contraação” (sic) no nosso ordenamento jurídico. Indefiro, por isso, a medida liminar, designando o MM. Juiz de Direito da 6ª Vara Cível de São José dos Campos para resolver, em caráter provisório, as medidas urgentes. A decisão não merece nenhum reparo e deve ser confirmada neste momento processual. A jurisdição, enquanto poder e expressão da soberania estatal, é una, mas, como observa HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, “seu exercício, na RSTJ, a. 25, (231): 301-311, julho/setembro 2013 307 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA prática, exige o concurso de vários órgãos do Poder Público. A competência é justamente o critério de distribuição entre os vários órgãos judiciários das atribuições relativas ao desempenho da jurisdição” (Curso de Direito Processual Civil, Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento, vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 2013, p. 186). No sistema processual constitucional brasileiro, apenas o Supremo Tribunal Federal, na sua função de guardião da Constituição, é investido de competência para apreciar causas oriundas de quaisquer ramos do Judiciário. E, salvo nas hipóteses de cabimento de reclamação, isso se dá mediante a utilização dos recursos cabíveis e após o esgotamento das instâncias anteriores. Nesse contexto, a determinação de reintegração de posse em apreço, proferida por Juiz Estadual de primeiro grau, somente seria passível de revisão pelo TJSP e, posteriormente, desde que presentes os requisitos, pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal Federal. Competiria às partes interessadas, portanto, a interposição de recursos nos próprios autos em que proferida a decisão - e não o ajuizamento de uma nova medida judicial, em outro ramo do Judiciário, para revogar a ordem judicial. Nesse sentido, precedente desta Corte: Processo Civil. Ordem judicial. Observância pelos demais ramos de jurisdição. A ordem judicial, irrecorrida, emanada da Justiça do Trabalho, inibindo o ajuizamento de execução na Justiça Comum Estadual, deve ser observada por todos, inclusive pelos demais ramos do Poder Judiciário; nenhum juiz ou tribunal podem desconsiderar decisões judiciais cuja reforma lhes está fora do alcance. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 300.086-RJ, Relator Ministro Ari Pargendler, Terceira Turma, julgado em 26.8.2002, DJ 9.12.2002, p. 339). É nesse mesmo sentido o parecer lançado pelo Ministério Público Federal, da lavra do douto Subprocurador-Geral da República, Dr. Edilson Alves de França (e-STJ fl. 321): Sumário: Conflito positivo de competência. Justiças Estadual e Federal. Ação possessória. Ordem de reintegração. Cautelar ajuizada na Justiça Federal. Decisão suspendendo a reintegração. Inexistência de hierarquia entre as Justiças Federal e Estadual. Ramos que não se subordinam. Ação de reintegração da qual a União não foi parte. Necessidade de observância, por todos, das ordens judiciais devidamente proferidas. Possibilidade de interposição de recursos próprios para a reforma do 308 Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO decreto judicial questionado. Parecer pelo conhecimento do conflito e pela atribuição de competência ao Juízo de Direito da 6ª Vara Cível de São José dos Campos-SP. Ademais, inaplicável ao caso o disposto na Súmula n. 150 desta Corte, para reconhecer a competência da Justiça Federal: Compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas. Com efeito, a União jamais requereu seu ingresso na demanda em trâmite na Justiça Estadual, manifestando as razões de seu interesse jurídico e remessa dos autos para a Justiça Federal. A respeito, os seguintes precedentes, dois que deram origem à súmula e um atual: - Ação de usucapião. Intervenção da União. Competência. - Para intervir na causa, deve a União manifestar o seu interesse jurídico, demonstrando a que titulo se da essa intervenção. Entretanto, so a Justiça Federal cabe dizer da existência desse interesse. - Recurso conhecido e provido em parte. (REsp n. 51.822-SP, Relator Ministro Antonio Torreão Braz, Quarta Turma, julgado em 25.10.1994, DJ 21.11.1994, p. 31.774). Processual Civil. Competência. Ação civil publica. Agravo de instrumento. Companhia Siderúrgica Nacional. I - Encontrando-se o agravo de instrumento no Tribunal de Justiça, a União Federal ingressou no feito na qualidade de assistente facultativo da Companhia Siderúrgica Nacional, tendo aquela Corte determinado a remessa dos autos ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Recebendo os autos, a Corte Regional Federal o interesse da União Federal de intervir no processo e ordenou a devolução dos autos ao Tribunal Estadual, que suscitou o presente conflito, insistindo na existência de interesse da União. Todavia, e da competência da Corte Federal e não da Estadual decidir sobre a ocorrência de interesse do ente federal. II - Conflito de que se conhece, a fim de declarar-se a competência do Tribunal de Justiça para prosseguir no julgamento do feito. (CC n. 7.570-RJ, Relator Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, Primeira Seção, julgado em 19.4.1994, DJ 9.5.1994, p. 10.790). RSTJ, a. 25, (231): 301-311, julho/setembro 2013 309 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Conflito de competência. Empréstimo compulsório sobre o consumo de energia elétrica. Ação proposta apenas contra a Eletrobrás. Intervenção no feito formulado pela União e negada pela Justiça Federal. Impossibilidade de revisão pela Justiça Estadual. Aplicação das Súmulas n. 150 e n. 254-STJ. Competência da Justiça Estadual. 1. Se a demanda envolvendo questões referentes ao empréstimo compulsório sobre energia elétrica foi proposta unicamente contra a Eletrobrás ou outra pessoa que não tenha a prerrogativa do foro federal, a competência é da Justiça Estadual. 2. Somente se houver pedido da União de ingresso no feito, o processo há que ser deslocado para a Justiça Federal a fim de que esta examine o pedido. 3. Acaso reconhecido o interesse da União na lide, a competência é da Justiça Federal, por força do que determina o artigo 109, inciso I, da Constituição Federal. Acaso não reconhecido, a competência é da Justiça Estadual, na linha da Súmula n. 254-STJ: “A decisão do Juízo Federal que exclui da relação processual ente federal não pode ser reexaminada no Juízo Estadual”. 4. Em nenhuma hipótese poderá o Judiciário Estadual reconhecer o interesse da União na lide e determinar a competência da Justiça Federal. Aplicação da Súmula n. 150-STJ: “Compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas”. 5. Tema já julgado em sede de recurso representativo da controvérsia: REsp n. 1.111.159-RJ, Primeira Seção, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 11.11.2009. 6. Conflito de competência conhecido para declarar competente o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, suscitante. (CC n. 115.649-RJ, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 14.9.2011, DJe 22.9.2011). Nas informações prestadas neste conflito de competência, o Juízo da 6ª Vara Cível de São José dos Campos-SP fez questão de registrar ter oficiado a União em 2004, a respeito do interesse em desapropriar a área - ofício que não teria sido respondido (e-STJ fl. 305). Sendo assim, não resta dúvida quanto à competência da Justiça Estadual para apreciar as questões relacionadas à reintegração de posse de que se trata. Nada obstante, outros pedidos em ação civil pública ou demanda que tenham a União como autora ou ré, por certo, serão da competência da Justiça Federal nos termos das Súmulas n. 150 e n. 254 do STJ. 310 Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO Diante do exposto, admito o presente conflito positivo para declarar a competência do Juízo da 6ª Vara Cível de São José dos Campos-SP para apreciar as questões relacionadas à reintegração de posse (cautelar e ações principais). Considerando o julgamento do conflito no mérito, prejudicado o agravo regimental da decisão liminar interposto pela Associação Democrática por Moradia e Direitos Sociais. É como voto. RSTJ, a. 25, (231): 301-311, julho/setembro 2013 311