RELEITURA DO DIREITO PENAL E DO PROCESSO PENAL EM FACE DA CF/88 JOSÉ CARLOS DE OLVEIRA ROBALDO• LORENA MARQUES DE OLIVEIRA ROBALDO• Resumo: O artigo, em relevante síntese, destaca a evolução sócio-política do Estado e sua relevância para o Sistema Jurídico Penal; relaciona o funcionalismo e o Direito Penal, com destaque para a importância pragmática da imputação objetiva em face da concepção funcionalista do Direito Penal e, por fim, apresenta o perfil do Direito Penal Brasileiro em face da Constituição de 1988. Palavras-chave: Direito Penal. Processo Penal. Evolução. Abstract: A relevant summary of this article emphasizes the socio-political evolution of the State and its relevance to the Criminal Law system; reports the functionalism and the Criminal Law, highlighting the pragmatic importance of objective input in presence of the functionalist design of Criminal Law and, at last, presents the Brazilian Criminal Law’s profile due to 1988´s Constitution. Keywords: Criminal Law. Criminal Suit. Evolution. 1. Introdução O arcabouço jurídico de uma Nação é traçado pela sua Lei Maior. A Constituição de um país, também conhecida por “Lei das leis”, é que constrói o seu edifício jurídico, suas linhas mestras. A validade, ou fundamento de validade das demais leis inferiores, está intimamente vinculado à compatibilidade destas àquela, como desenhado por Kelsen, em sua pirâmide jurídica. O modelo de Estado materializado na sua respectiva Constituição é quem dá a formatação ao ordenamento jurídico infraconstitucional, não só quanto à normatização, como também à sua interpretação, aplicação e execução. A escolha dos valores básicos que se pretende tutelar é uma opção do constituinte originário (diga-se: da Assembléia Nacional Constituinte). As linhas mestras axiológicas do sistema jurídico são traçadas pelos constituintes, cabendo • Procurador de Justiça aposentado. Professor Universitário. Mestre em Direito Penal pela Universidade Estadual Paulista – UNESP. Especialista em Direito Constitucional. Diretor do Sistema de Ensino Telepresencial LFG/ESUD-MS. E-mail [email protected] • Advogada. Especialista em Ciências Criminais. ao sistema normativo infraconstitucional completar esse arcabouço do edifício normativo, sem fugir, contudo, do direcionamento valorativo proposto pela Lei Maior, como expressão da vontade geral. É a partir dessa perspectiva que Tércio Sampaio Ferraz Junior chama a atenção para o fato de que o modelo de Estado é quem cria certas expectativas de realização e concreção desses valores e, ao mesmo tempo, exige essa realização (Constituição Brasileira e Modelo de Estado: Hibridismo Ideológico e Condicionantes Históricas)1. Em relação ao Ordenamento Jurídico Penal, com efeito, não é por acaso a preocupação de Fernando Fernandes quando chama a atenção para as “íntimas relações existentes entre o modelo de estado e o respectivo modelo de Direito Penal – sentido amplo -, de modo a ser inequívoca a influência de uma determinada concepção de estado no conjunto das idéias que se tem acerca do Sistema Jurídico Penal”2. Daí a pertinência do ensinamento de Güinther Jakobs de que Direito Penal e sociedade são inseparáveis3. Contudo, para se atingir a concreção valorativa desejada pela ordem constitucional do modelo democrático, impõe-se a utilização de opções metodológica diversa daquela utilizada pelo Estado de Direito clássico, sobretudo a sua metódica lógico-formal. Entretanto, as profundas e promissoras alterações no modo de entender e de realizar o Direito, como observa A. Menezes Cordeiro, na introdução à 3ª edição da obra Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direto, de Claus-Wilhelm Canaris, iniciaram-se a partir do século XIX4. 1 In Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, Edição Especial em comemoração dos 10 anos da Constituição Federal, São Paulo, pp. 125-147. 2 FERNANDES, Fernando. Sobre uma opção jurídico-política e jurídico-metodológica de compreensão das ciências jurídico-penais. In ANDRADE, Manuel da Costa, COSTA, José de Faria, Rodrigues, Anabela Miranda e ANTUNES, Maria João. Líber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 54. 3 JAKOBS, Güinther. Sociedad, norma y persona em uma teoria de um derecho penal funcional, Madrid:Civitas, 1996, p. 22-23, apud FERNANDES, Fernando. Sobre uma opção jurídico-política e jurídico-metodológica de compreensão das ciências jurídico-penais. In ANDRADE, Manuel da Costa, COSTA, José de Faria, Rodrigues, Anabela Miranda e ANTUNES, Maria João. Líber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 54. 4 Cf. Pensamento Sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3ª ed. Trad. A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Gulbenkian, 2002, p. IX 2 2. Digressão histórica sobre a evolução sócio-política do Estado e sua relevância para o Sistema Jurídico Penal Parece-nos ser inegável que tudo que nos cerca tem a sua lógica e, como tal, o Direito tem a sua. Para que se possa compreender e dimensionar melhor a lógica do Direito e, sobretudo, seu objeto, impõe-se, ainda que rapidamente, que se faça uma digressão histórico-contextual, sobretudo em relação à evolução sócio-política do Estado. Historicamente, a partir da concepção de Estado Moderno, grosso modo, chega-se aos seguintes modelos sócio-políticos de Estado: a) Estado Absoluto; b) Estado Liberal; c) Estado Social; d) Estado Democrático de Direito/Estado Social e Democrático de Direito/Estado Constitucional e Democrático de Direito (para alguns, este último se identifica com a pós-modernidade ou pós-industrial). Essa dinâmica sócio-política, como não poderia deixar de ser, traz grandes implicações para o mundo jurídico, pois, como é sabido, o modelo de Estado é que dá o perfil do ordenamento jurídico respectivo. Essa identificação ou cumplicidade, sobretudo em relação ao Direito Penal e Processo Penal, passa pela criação/elaboração da norma, sua interpretação, aplicação até a execução. No Modelo de Estado Absoluto - identificado pelo autoritarismo -, como o direito privilegiava apenas os aristocratas, os demais - especialmente os que ousavam contrariar os interesses do poder central que estava nas mãos do príncipe, sendo, por isso, tachado de “inimigos do rei” - eram severamente castigados, isto é, jogados na prisão (Bastilha). Bastava contrariar os interesses do poder central para ser rotulado de criminoso. O Estado era “propriedade” dos seus governantes. O absolutismo se caracterizou pela ausência do Estado de Direito, pois as leis existentes se destinavam à proteção do poder central, em detrimento dos direitos e garantias individuais, sendo o Direito Penal, o seu principal instrumento de poder. Nessa perspectiva, o homem é que estava em função do Estado e não o contrário. Entre os seus principais teóricos, encontramse: Maquiavel, com a obra O Príncipe, desenvolve a idéia da “arte de conquistar e manter o poder”; Thomas Hobbes, em seu livro Leviantã, defende a premissa de que, para manter a ordem, o Estado, com a autoridade que lhe era concedida pelo povo, teria que ser poderoso e dominante; e Jean Bodin, com obra A República, que apregoava que a soberania não pode ser partilhada. 3 Na perspectiva ideológica do absolutismo, especialmente a partir da concepção de Hobbes de que na sociedade anterior (primitiva) imperava a anarquia (isto é, não havia leis, era cada um por si), surge a necessidade de um Estado forte para proteger os cidadãos da violência e do caos. O Estado de fato se fortaleceu, porém, em detrimento dos direitos e garantias fundamentais, pois a prática da violência contra os cidadãos permaneceu, apenas mudou de mão, oficializou-se, o que os levou à busca de novos caminhos de libertação. A mudança do quadro sócio-político anterior se verificou com a Revolução Francesa (1789), que teve como marco principal a queda da Bastilha. O maior responsável por essas mudanças foi o movimento Iluminista (movimento filosófico e humanitário) caracterizado pela oposição ao poder absoluto do rei (príncipe). Desse movimento de libertação surge o Estado Liberal, que mudou radicalmente o perfil do direito, passando a privilegiar os direitos individuais, como, por exemplo, o direito à vida, à liberdade, enfim, os direitos e garantias individuais (direitos de 1ª geração). Em face, sobretudo, da amarga experiência do passado, a preocupação se voltou para a defesa dos direitos do cidadão sob o enfoque individual, deixando de lado o coletivo, o social. A idéia do Estado de Direito ou Estado puro ou de legalidade5, individualista, surgiu, com efeito, como resposta ao absolutismo, tendo na pessoa de Cesare Beccaria seu principal idealizador e arquiteto, com forte influência no Direito Penal, materializada na sua magistral obra: Dos delitos e das penas. Esse modelo de Estado, apesar das conquistas alcançadas no âmbito dos direitos individuais, também não conseguiu se sustentar, por causa de dois aspectos intrínsecos críticos: de um lado a indiferença ao social ou coletivo e, de outro, pelo fato de que se satisfazia com o simples respeito formal ao direito. Bastava que o texto da lei fosse cumprido formalmente, isto é, gramaticalmente, sem se preocupar com as conseqüências, com o substancial, com a efetiva salvaguarda dos direitos que se propôs a defendê-los, isto é, com a justiça do caso concreto. A verdade absoluta estava na lei: bastava a obediência aos seus textos, característica do silogismo clássico (método lógico-formal). Daí o rótulo: Estado de Direito formal. Na ânsia de se proteger os direitos e garantias fundamentais - ainda que apenas formalmente -, esqueceu-se do social, do 5 GOMES, Luiz Flávio. Estado Constitucional de Direito e a Nova Pirâmide jurídica. São Paulo: Editora Premier, 2008, p. 15. 4 coletivo, o que redundou no enfraquecimento desse modelo de Estado e na sua conseqüente substituição pelo Estado Social. No Estado Social, ao contrário, privilegiou-se o social/coletivo, em detrimento do individual, dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Na perspectiva desse modelo, tudo se justificava, até mesmo a violação dos direitos e garantias individuais, desde que fosse em razão da defesa dos direitos sociais (direitos de 2ª geração). Não obstante, a metodologia, a do silogismo clássico (lógico-formal), era a mesma: bastava a previsão legal da proteção do social ou coletivo e sua obediência formal. Logo se dava por satisfeito com a mera aplicação formal da lei, sem se preocupar com sua efetividade, o que não deixava de ser um modelo de Estado de Direito formal. Esse modelo de Estado, pelas suas próprias deficiências, também não conseguiu sobreviver por muito tempo, sendo substituído pelo modelo de Estado Democrático de Direito. No Modelo de Estado Democrático de Direito/Social e Democrático de Direito/Constitucional e Democrático de Direito/Constitucional de Direito6, procurou-se, a um só tempo, tutelar o interesse social ou coletivo e o individual, não apenas na sua perspectiva formal, mas também no seu enfoque material. No viés deste modelo de Estado, os interesses individuais e sociais não se contrapõem, ao contrário, se completam, se harmonizam, com reflexo direto no Direito Penal. É nessa linha que se deve compreender a dupla função simultânea do Direito Penal a que se refere Roxin: “limitar o poder de intervenção do Estado e combater o crime”. Ao mesmo tempo, protege-se o indivíduo de investidas desmesuradas do Estado, bem como a sociedade e seus membros dos abusos daquele7. A defesa do social é importante, porém não a qualquer custo. Impõe-se um equilíbrio entre a defesa do social e a defesa do individual. Exige-se que a sua obediência não seja apenas formal, mas também sob o enfoque material/substancial. Isso significa, em outras palavras, que o respeito ao comando normativo deve ser horizontal e vertical ao mesmo tempo. A lei penal, desde que se apresente formalmente em ordem e compatível com a perspectiva valorativa constitucional e na medida da necessidade, deve ser aplicada de modo 6 Cf. GOMES, Luiz Flávio, in Estado Constitucional..., op. cit. ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Trad. Ana Paula Luiz Natscheradeetz et al. Lisboa: Veja, 1986, p. 76. 7 5 a atender à sua finalidade, que é, em última análise, a pacificação social e individual (Estado de Direito Material), o que implica que o método lógico-formal ou axiomático-dedutivo, isto é, o silogismo, por si só, se tornou insuficiente para tal. Com isso, o intérprete (sobretudo o juiz), ao contrário da linha defendia por Montesquieu, deixou de ser apenas a boca da lei (la bouche da la loi) para ser a boca do próprio Direito (la bouche du droit). Com efeito, a formatação do Direito Penal de um Estado Democrático de Direito, mais especificamente de um Estado de Direito Material – preocupado com a tutela subsidiária e fragmentária de bens jurídicos essenciais –, só pode ser atingida, a partir de uma releitura da teoria geral do delito, pela via metódica do funcionalismo, sobretudo, em um sistema aberto, com as indispensáveis contribuições político-criminais e criminológicas à dogmática penal. 3. A importância do funcionalismo para a dogmática penal: rápidas reflexões O termo funcionalismo, transportado para o âmbito do Direito Penal, tem suas raízes na filosofia, na sociologia, enfim, em outras ciências, e que, a rigor, é utilizado nas ciências sociais. O tema, além de complexo, é palpitante. O propósito neste espaço, entretanto, não é tratá-lo com profundidade, mas apenas abordar alguns dos seus aspectos que possam contribuir para as reflexões propostas sobre o novo enfoque metodológico que a releitura do Direito Penal exige em face do novo contexto sócio-político. No Direito Penal, o tema funcionalismo se aflorou, principalmente, a partir dos fundamentos crítico-filosóficos de Claus Roxin ao finalismo estruturado por Hans Welzel, especialmente sob o argumento de que “a construção sistemática jurídico-penal não deve orientar-se segundo dados prévios ontológicos (ação, causalidade, estruturas lógico-reais etc), mas ser exclusivamente guiada por finalidades jurídico-penais”8. O papel do Direito Penal, nessa nova perspectiva, deve estar voltado, sobretudo, para as finalidades preventivas das conseqüências penais. 8 ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 205 e ss. 6 Em relação ao mundo jurídico, pode-se afirmar que o funcionalismo é um método, um caminho de se conhecer o objeto da investigação, em especial de se buscar a solução mais justa para o caso concreto, à luz do Direito posto, sobretudo o constitucional. Quanto à sua abrangência, leciona Juarez Tavares que “o funcionalismo pretende não apenas explicar o sistema jurídico, mas compor também uma análise global de todo o sistema social”9. Em síntese, na dimensão funcionalista, o Direito Penal deve ser estruturado, interpretado, aplicado e executado tendo em vista a sua função10 e, em última análise, as finalidades das suas penas ou medidas alternativas. Há basicamente, em relação ao Direito Penal, duas correntes sobre o funcionalismo, ou seja, dois enfoques teleológico-funcionais, que surgiram na Alemanha, a partir da década de 1970. O primeiro é o Funcionalismo moderado, teleológico, valorativo (teleológico-racional), contextualizado pelo penalista alemão Claus Roxin, a partir do funcionalismo estrutural de Parsons e o segundo é o Funcionalismo radical, estratégico normativo, construído pelo também penalista alemão Güinther Jakobs11 a partir do funcionalismo sistêmico do sociólogo Niklas Luhmann. Na perspectiva de Roxin, a função do Direito Penal é a de proteção subsidiária e fragmentária de bens jurídicos essenciais12. Para Jakobs, a finalidade básica do Direito Penal, que o faz por meio das suas penas, é a reafirmação da autoridade da norma, justamente para fortalecer as expectativas dos seus destinatários de que a norma violada está em vigor e, logo, deve ser respeitada13. A proteção do bem jurídico nesse viés fica em segundo plano, como conseqüência. Roxin, na sua visão funcionalista teleológico-racional, trabalha com a idéia de que o Direito Penal, para atender à sua finalidade de proteção subsidiária de bens jurídicos essências (vida, saúde, patrimônio e outros), deve ser estruturado sobre o tripé: criminologia, política criminal e dogmática penal, ou seja, o 9 TAVARES, Juarez. Injusto penal. Belo Horizonte: DelRey, 2002, 2ª ed., p. 52. Sobre as funções do Direito Penal, cf. QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do Direito Penal – Legitimação versus Deslegitimação do Sistema Penal. Belo Horizonte: DelRey, 2001. 11 Cf. JAKOBS, Günther. Derecho penal: Parte General. Trad. Fundamentos y teoria de la imputación, 2ª ed. Trad. Joaquin Cuello Contreras e Jose Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1997. 12 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Trad. André Calegari e Nereu Giacomeli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 20 e ss. 13 CF. JAKOBS, Güither. Derecho Penal, op. cit., p. 9 e ss. 10 7 conhecimento criminológico deve ser transformado em exigências políticocriminais e estas em regras jurídicas. Nessa visão, o que dá vida à norma penal é a introdução das decisões valorativas político-criminais que ela recebe, a partir do quadro axiológico que a Constituição procurou tutelar, pois são essas decisões que irão apontar a necessidade do recurso ao controle penal. Com efeito, na ótica de Roxin, só se deve recorrer ao Direito Penal, como forma de controle social (proteção de bens jurídicos essenciais: coletivos ou individuais), como última opção (ultima ratio), isto é, se não for possível o controle social por outro meio menos estigmatizante e desde que a pena seja necessária e útil para tal. Nesse enfoque, ainda que o fato seja típico, antijurídico e culpável, por si só não é suficiente para se recorrer à sanção do Direito Penal. Daí a importância da utilização concomitantemente dos métodos dedutivo e indutivo (teleológico-racional), especialmente este último, pois sua preocupação é com a justiça do caso concreto. Já na visão funcionalista de Jakobs, o recurso à sanção penal será sempre necessário na medida em que se caracterizar a infração penal, pois a função do Direito Penal (e das suas penas) é o de fortalecimento da autoridade da norma, da sua reafirmação, como punição àquele que quebrar essa expectativa (prevenção geral positiva). Trata-se do método dedutivo (lógico-formal) em que basta infringir a lei, o que lhe tem causado severas críticas14, o que o aproxima da concepção lógico-objetiva da teoria finalista. O Direito, a partir de uma perspectiva normativa, é sempre o mesmo, o que muda são os valores que o modelo de Estado protege e, conseqüentemente, as formas (metodologia) de compreendê-lo e aplicá-lo de forma mais racional em proveito do homem, quer em sua dimensão individual, quer em seu enfoque social. Daí a importância do método utilizado. A partir dessas considerações, é possível afirmar que o funcionalismo apregoado por Roxin e também por Hassemer (funcionalismo social) seja o que melhor se compatibilize com o Direito Penal de um modelo de Estado de Direito Democrático ou do Estado Social e Democrático de Direito, como define Mir Puig, no seu funcionalismo limitado. 14 Cf. MELIÁ, Manuel Cancio. Dogmática y política criminal em uma teoria funcional del delito. Buenos Aires: Ribinzal-Culzoni, p. 140 e ss. 8 Portanto, é nessa perspectiva e a partir dos valores que a Constituição se propôs a tutelar que o Direito Penal deve ser construído, interpretado, aplicado e executado. Daí a relevância da Política Criminal à Dogmática Penal. É exatamente nesse viés que Figueiredo Dias chama a atenção para o fato de que “as categorias e os conceitos básicos da dogmática jurídico-penal devem agora ser não simplesmente ‘penetrados’ ou ‘influenciados’ por considerações políticocriminais: eles devem ser cunhados e determinados a partir de proposições político-criminais e da função que por estas lhes é assinalada no sistema. Quando, para dar um exemplo, a dogmática jurídico-penal estuda os conceitos integrantes da noção de infração penal – a ação, a tipicidade, a ilicitude, a culpabilidade, a punibilidade -, não os deve ela tomar em si e por si mesmos, ou os fazer derivar, como todavia é ainda de uso ou pelo menos freqüente, de considerações lógicas, filosóficas ou mesmo metafísicas. Ela deve sim construílos como unidade funcionalizadas à consecução dos propósitos, das finalidades, do thelos político-criminal que o sistema jurídico-penal lhes assinala”15. Nessa linha, deve-se ter sempre em mente que as finalidades e as proposições político-criminais da política criminal devem “ser procuradas e estabelecidas no interior do quadro de valores e de interesses que integram o consenso comunitário mediado e positivado pela Constituição do Estado”16. O compromisso com os valores constitucionais cabe tanto ao legislador, como ao juiz. Logo, não há porque se preocupar com o subjetivismo do intérprete, pois a sua liberdade interpretativa está e estará sempre vinculada ao formato axiológico da Lei Maior. Daí a relevância do recurso às instâncias superiores e até mesmo do controle de constitucionalidade, sempre que houver descompasso entre a lei ordinária e a Constituição ou entre esta e seu intérprete. 3.1 A importância pragmática da imputação objetiva em face da concepção funcionalista do Direito Penal O Direito, especialmente o Penal, é uma ciência que vive em construção ou, talvez, em ebulição, especialmente a teoria geral do delito. Se alguém imagina que o edifício desse ramo do direito está pronto e acabado, ledo engano. 15 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 41. 16 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões..., op. cit., p. 43. 9 Há muito a fazer e provavelmente não se chegue ao seu acabamento final, pois não se trata de uma ciência exata, mas sim de uma ciência humana/social, do dever ser, que trabalha com o comportamento, emoção das pessoas, isto é, com fatores variáveis de pessoa para pessoa, que na sua individualização foge a qualquer diagnóstico. O ser humano, ao contrário da máquina (computador etc), não pode ser formatado ou configurado. Logo, mesmo sem fugir da linha apregoada pelo ‘contrato social’, não se pode olvidar que aquilo que é válido como controle social para alguém poderá não servir para outro. Ainda bem que é assim, pois, do contrário, já seriamos robôs e conseqüentemente bastaria acionar o botão. Imaginem o tamanho da manipulação! Grosso modo, sabe-se que o papel social do Direito Penal é o de impedir a prática de condutas causadoras de danos ou perigo de dano aos bens jurídico (bens da vida). Contudo, o problema está em saber como isso se projeta/realiza no mundo das coisas, isto é, na realidade do dia-a-dia e de que forma o Direito Penal trabalha com esses quadros, se no plano ontológico (do ser), axiológico (do dever ser) ou em ambos concomitantemente. Em um primeiro momento da história, sobretudo a partir da sistematização do Direito Penal, para que o comportamento humano fosse relevante para esse ramo do direito (teoria causalista-Liszt-Beling, final do séc. XIX), entendia-se que bastaria a causação do resultado (conduta+relação causal+resultado) para tipificar a sua conduta. Num segundo momento (Sistema neoclássico – Frank, 1907), passou-se a exigir, além dos elementos objetivos acima (conduta, relação de causalidade e resultado), que o agente pudesse se comportar conforme o direito (exigibilidade de conduta diversa = elemento normativo). No passo seguinte, passou-se a cobrar, além da conduta, nexo causal, resultado e exigibilidade de conduta diversa, que o agente tivesse agido com dolo ou culpa (teoria finalista – Welzel, década de 1930), sucedida pela teoria do conceito social de ação (Wessels, Jescheck), que exige, além dos requisitos da teoria finalista (objetivos e subjetivos), que a conduta seja socialmente adequada. Entretanto, para qualquer dessas teorias (correntes doutrinárias), respeitada as suas peculiaridades – em face, sobretudo, da teoria da conditio sine qua non (condição sem a qual não) -, na medida em que a conduta do agente concorresse direta ou indiretamente para o resultado, já era suficiente 10 para tipificá-la na lei penal. Esse entendimento perdurou pacificamente até o advento da teoria da imputação objetiva17, sistematizada, conquanto que com enfoques diferentes, por Roxin e Jakobs. A partir da concepção funcionalista do Direito Penal (Roxin e Jakobs), para a adequação (subsunção) do comportamento humano ao tipo penal incriminador, embora necessário, não basta a conexão do resultado à ação do agente, ainda que presente o dolo ou a culpa. Exige-se algo mais, um tempero normativo, consistente na criação de um risco ou no aumento do risco permitido ao bem jurídico ou ao desrespeito às normas, materializados no resultado. A idéia reitora desse novo enfoque consiste no fato de que a função do Direito Penal é a de proteção subsidiária de bens jurídicos essenciais ou da autoridade da norma. Logo, a partir dessa perspectiva, só há falar em conduta típica para o ordenamento penal quando ela ensejar um risco juridicamente proibido ou incrementar (aumentar) o risco tolerado e, assim mesmo, desde que, em face desse contexto, cause um resultado jurídico (lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico protegido, isto é, que se encontre no âmbito de proteção do tipo penal). Com efeito, a ação só será imputada objetivamente ao agente na medida em que seu comportamento for socialmente intolerável. O genro que “adora” a sogra e a presenteia com uma viagem feita por aeronave que não é muito confiável quanto à sua segurança, mesmo que no percurso ocorra acidente com a conseqüente morte da sogra - o que não está fora dos seus planos –, a sua conduta não será típica. Isso porque, não obstante o nexo causal objetivo entre a ação e o resultado morte, o genro não teve nenhum controle causal sobre aquela morte, logo não há como atribuir a ele a causação de um risco proibido ou da incrementação de um risco permitido. A morte se deu por mero acaso, fora do domínio da ação do genro, ainda que desejada. O médico que realiza uma cirurgia de alto risco, porém necessária para tentar salvar a vida do paciente e, apesar dos esforços e cuidados dispensados, não consegue êxito não pratica conduta típica do crime de homicídio, porque atuou na linha do risco permitido. Da mesma forma, o atleta que, sob as regras desportivas, lesa ou mata um outro atleta. A sua conduta não é típica para o 17 Não confundir imputação objetiva com responsabilidade penal objetiva (responsabilidade sem dolo ou culpa), inadmissível no nosso sistema. 11 Direito Penal, pois agiu dentro do risco tolerado ou juridicamente permitido, o que, na doutrina tradicional, era tratado como exclusão da ilicitude. É possível que afirmem que isso é mais “um jeitinho” para não punir o criminoso. A leitura, ao contrário, deve ser outra. Temos que a adoção da imputação objetiva, longe de enfraquecer o Direito Penal, fortalece-o, legitima-o, pois deixa mais clara a razão da sua intervenção. 4. O perfil do Direito Penal Brasileiro em face da Constituição de 1988 No nosso caso, a partir da leitura do preâmbulo e dos princípios fundamentais da Carta Magna de 1988, não há dúvida de que o Constituinte optou pelo modelo de Estado Social e Democrático de Direito/Democrático de Direito, elegendo a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) como um dos seus principais valores ou como princípio axiológico “guarda chuva” do sistema. Com isso, impõe-se a conclusão de que a lei penal, sua interpretação, aplicação e execução devem guardar perfeita sintonia com essa proposta humanitária de respeito à pessoa, tanto na sua dimensão social, como individual. Logo, nesse enfoque, a utilização do Direito Penal - a partir da perspectiva do bem jurídico, como forma de controle social – ocorre somente quando necessária à proteção subsidiária desses bens essenciais da vida, isto é, como ultima ratio. Idêntico raciocínio se aplica às sanções penais. Esse compromisso, portanto, vincula tanto o legislador como o intérprete, pois ambos devem submeter-se aos propósitos valorativos da Lei Maior. A partir dessa premissa, pode-se concluir que a metodologia interpretativa utilizada sob a égide das Constituições anteriores a 1988, que privilegiava o método lógico-formal, herança do positivismo clássico, está superada. Aliás, até mesmo a criação de novas leis e normas deve se adaptar a esse novo modelo. A necessidade da releitura do Direito Penal e do Processo Penal, a partir dessa nova (que não é tão nova) postura valorativo-constitucional implantada pela CF/88, se impõe a todo o momento, daí a importância do controle de constitucionalidade (difuso ou concentrado)18. É exatamente nessa 18 Cf. ROBALDO, José Carlos de Oliveira. Controle difuso de constitucionalidade da norma pena: Reflexões valorativas. São Paulo: Premier, 2008. 12 linha que se deve compreender a afirmação do Min. Marco Aurélio que, ao se referir ao “crime bagatelar”, afirma que “o arcabouço jurídico já permite deixar esses casos de lado”. Esse redimensionamento interpretativo, especialmente da legislação penal e processual penal - a partir da perspectiva político-criminal, extraído da leitura de vários princípios explícitos ou implícitos na Carta Magna, tais como o da finalidade da pena, da sua individualização, da ofensividade, da proporcionalidade, da culpabilidade, da necessidade, entre outros –, tem ficado bem evidente em muitas decisões do STF, como, por exemplo, na declaração da inconstitucionalidade da vedação - de plano - da progressão de regimes de cumprimento de pena nos crimes hediondos e equiparados (Habeas Corpus nº 82959)19; no caso da “duchinha” avaliada em R$19,00, em que a autora foi condenada a quase um ano de prisão e salva por uma ordem de Hábeas Corpus, concedida pelo Min. Gilmar Mendes; no caso do “furto de um real”, de “uma cebola”20, de uma garrafa de vinho21; na hipótese de arma desmuniciada (Habeas Corpus nºs 81.057 e 85240/SP22); na recente (11.02.08) decisão por unanimidade (Habeas Corpus nº 90.279), em que se reconheceu a inconstitucionalidade da obrigação do recolhimento à prisão para recorrer (CPP, 594)23. Não foi essa linha interpretativa, entretanto que prevaleceu no julgamento envolvendo a “Lei Maria da Penha”, quando se declarou sua inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da igualdade24. Na nossa avaliação, referido instrumento legal - ao contrário da exegese interpretativa do ilustre magistrado sentenciante, Dr. Bonifácio Hugo 19 Histórica decisão de 23.02.2007, com placar de 6x5, que se de um lado trouxe sérios problemas práticos, pois, em face da legislação em vigor (Lei nº 7.210/84), colocou-se todos os condenados na vala comum, isto é, tratando-se igualmente os desiguais, de outro, ajustou-se ao ordenamento jurídico constitucional. Cujo ajustamento veio com a Lei nº 11.464, de 28.03.2007. 20 Cf. in ROBALDO, José Carlos de Oliveira. Furto de um real: crime bagatelar. Publicado no site www.lfg.com.br . 21 Cf. in ROBALDO, José Carlos de Oliveira. Algumas reflexões acerca do princípio da ofensividade. Publicado no site www.juspedia.com.br. 22 Convém ressalvar que em relação ao HC. Nº 81.057, o STF entendeu que o porte de arma desmuniciada é fato atípico, entretanto, a pedido do Min. Carlos Brito (HC. 85.240/SP), o tema voltou à discussão, sendo certo que até o início de abril/08, não há notícia do seu julgamento. Com o advento da 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), provavelmente reacendam as discussões sobre o assunto, pois a tipificação é diferente da lei anterior. Mesmo assim, o tema deve ser solucionado à luz da CF/88. 23 Cf. in ROBALDO, José Carlos de Oliveira. A velha polêmica sobre a obrigatoriedade de o réu se recolher à prisão para recorrer. Publicado no Jornal O Progresso de Dourados-MS, de 21.02.2008, p. 2, Opinião. 24 Julgamento ocorrido na comarca de Itaporã-MS., objeto do recurso em sentido estrito n. 2007.023422-4, proposto pelo Ministério Público estadual, figurando como relator o Des. Romero Osme Dias Lopes (set/2007). 13 Rausch, seguida pelos não menos ilustres desembargadores integrantes da Segunda Turma Criminal, do TJ-MS - vem materializar, dar efetividade ao princípio constitucional da igualdade/isonomia, como corolário das ações afirmativas. 5. Conclusão Essa releitura metodológica do Direito Penal e do Direito Processual Penal, incidente na teoria geral do delito, cabe a todos nós. Urge conscientizarmos de que estamos sob uma nova Ordem Jurídico-Constitucional, um novo Modelo de Estado – em que se elegeu, como fundamento primordial, a dignidade da pessoa humana –, o qual, aceitemos ou não, temos que nos submeter enquanto ele vigorar. Essa é a regra do jogo! Sua mudança só com outra Constituinte. As penas e medidas alternativas25, como formas de substituição às penas privativas de liberdades, incorporadas ao nosso sistema a partir da reforma penal de 1984 e posteriormente ampliadas pela Lei dos Juizados (9.099/95) e pelas leis das penas alternativas, espelha com clareza esse novo redimensionamento do Sistema Penal. Não se deve olvidar, entretanto, que o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser dimensionado da forma mais ampla possível, isto é, não só na perspectiva do autor de delitos, mas também na da vítima, obrigando o Estado a se aparelhar adequadamente para dar segurança efetiva e tratar com dignidade todos os seus cidadãos, pois se, de um lado os direitos e garantias fundamentais dos delinqüentes devem ser respeitados, com mais razão ainda não se pode deixar de lado a proteção do indivíduo, dos valores que lhe são inerentes, tanto na sua dimensão individual, como social. A tranqüilidade e um mínimo de segurança em relação ao dia-a-dia das pessoas também são direitos fundamentais do cidadão, de responsabilidade do Estado. Para finalizar, entendemos não ser desnecessário relembrar que o Ordenamento Jurídico-Penal em vigor, conquanto necessite de pequenas 25 Cf. ROBALDO, José Carlos de Oliveira. Penas e medidas alternativas – Reflexões Político-Criminais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2007. 14 alterações/adequações e desde que interpretado, aplicado e executado adequadamente, atende aos anseios sociais por ele proposto. Referência BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. J. Cretella Jr e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed. Trad. A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Gulbenkian, 2002. DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. 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