Universidade Federal do Rio de J a neiro Instituto de Economia Distribuição de renda e crescimento econômico (nível de produto) na teoria de Kalecki. TD. 002/2004 André Abuquerque Série Textos para Discussão Distribuição de renda e crescimento econômico (nível de produto) na teoria de Kalecki* André Albuquerque Sant’Anna I – Formação de preços e distribuição de renda A distribuição da renda é, para Kalecki, um fenômeno essencialmente microeconômico, que deve ser compreendido a partir do processo de formação de preços. Para tanto, Kalecki (1977) parte das premissas ortodoxas e as critica para então compor a sua própria teoria da distribuição da renda. A primeira das críticas recai sobre as hipóteses de livre concorrência entre as empresas e de custos marginais crescentes, que equivale à hipótese de rendimentos marginais decrescentes. Para Kalecki (1977, p.82, 83), ... é perfeitamente justo supor que nas empresas industriais a curva dos custos marginais tem um relativamente longo segmento horizontal e somente começa a subir ao se aproximar da plena utilização dos recursos (...) [Aliado a isso,] As empresas, em geral, não atingem a plena utilização se ocupam no mercado uma posição monopolista (como os cartéis) ou quase monopolista (concorrência imperfeita). Daí porque temos comumente (...) a curva horizontal dos custos marginais, nos quais o preço é consideravelmente superior. Com base nisso, Kalecki descarta a possibilidade de que a função de produção possa ter a forma assumida pela teoria neoclássica1. Assim, a curva de custo marginal é, na sua maior parte, constante e não crescente como assume a teoria ortodoxa. Ademais, baseando-se nas teorias de concorrência imperfeita, o autor assume que as empresas possuem um certo poder de mercado e, portanto, não utilizam toda a capacidade instalada. Nesse sentido, Kalecki (1977, p. 84) afirma que “A razão entre os preços e os custos marginais (...) indica o quanto a situação se afasta da concorrência perfeita, e por isso pode servir como medida do ‘grau de monopólio’”. Desta crítica resulta a teoria kaleckiana da distribuição da renda. Para o autor, a distribuição é determinada a partir do processo de formação de preços, visto que este deve determinar o excedente unitário sobre os custos. Na visão de Kalecki (1954), as mercadorias podem, no curto prazo, ter seus preços formados por dois diferentes mecanismos, de acordo com as respectivas condições de oferta. Em primeiro lugar, as matérias-primas têm uma curva de oferta inelástica. Pode-se dizer, em geral, que tais produtos necessitam de um tempo razoável para terem sua oferta aumentada. Além disso, tais mercadorias possuem um grau de homogeneidade muito maior do que no caso dos produtos acabados. Um aumento na demanda, pois, não podendo ser acompanhado por um aumento na produção, levará a uma queda de estoques e, conseqüentemente, a um aumento de preços.2 Em segundo lugar, Kalecki argumenta que o modelo mais adequado para os demais produtos dista da concorrência perfeita. Afinal, o que se observa na prática se aproxima mais da concorrência imperfeita ou oligopólio. Uma vez que as firmas oligopolistas caracterizam-se pela manutenção de capacidade ociosa, o que significa, oferta elástica, um aumento na demanda por produtos acabados tende, na maior * Este artigo é parte da dissertação de mestrado do autor. Na verdade, para a teoria kaleckiana, mesmo a existência de uma função de produção não é importante, uma vez que é a demanda que determina o nível de produto. 2 Este aumento de preços, como ressalta Kalecki (1954), pode ser intensificado devido a um aumento secundário na demanda, de caráter especulativo. 1 parte das vezes, a ser acompanhado por um aumento de produção e não de preços. Kalecki (1954) assume que os custos com materiais e salários são estáveis para a amplitude relevante da produção. Em outras palavras, trata-se da mesma hipótese de custos marginais horizontais que Kalecki (1977) assume, em detrimento da premissa ortodoxa de custos marginais crescentes. Com relação aos custos indiretos, o autor supõe que sejam relativamente estáveis mesmo com variações de produção. Ademais, devido à presença de incerteza forte, Kalecki (1954) assume que os empresários não conseguem maximizar lucros, e desse modo, procuram manter um nível de mark up desejado sobre seus custos. Nesse caso, cada firma determina o seu preço por meio de uma adição aos seus custos unitários de salários e de matéria-prima, de modo a cobrir as despesas gerais e obter lucros3. Isto é feito mediante a determinação de um mark up, que, entrementes, depende também do grau de concorrência naquela indústria. Ou seja, ao decidir em que nível fixar seu preço, a firma deve levar em consideração o preço que deseja cobrar e o preço cobrado em média na indústria. Quanto maior o seu poder de mercado, mais próximo de preço desejado será o preço efetivo. Possas (1987) expressa essa idéia da seguinte forma: _ p = θp d + (1 − θ ) p (8), _ onde p é o preço efetivo determinado pela firma, pd é o preço desejado, p é o preço médio da indústria e θ é o parâmetro que representa o poder de mercado daquela firma4. Porém, como foi dito anteriormente, o preço é determinado por um mark up – k - em relação aos custos diretos unitários - u. Isto é, a firma decide na verdade qual deve ser o seu mark up para então definir o preço a ser cobrado. Uma vez que p k = , temos então que: u _ p k = θk + (1 − θ ) u (9) d De fato, esta é a natureza da decisão que a empresa toma ao fixar seu preço: qual o mark up sobre seus custos de matéria-prima e salários, com base no seu poder de mercado e no preço médio da concorrência. Tendo em vista que Kalecki identifica mark up com o grau de monopólio, vale examinar quais são as principais causas de modificações no grau de monopólio e se elas se adequam à equação de determinação do mark up proposta. São quatro as principais causas de modificação no grau de monopólio que Kalecki (1954) identifica: em primeiro lugar, o autor destaca a influência do processo de concentração da indústria. Neste cenário, as grandes empresas têm um forte peso sobre a composição do preço médio e, portanto, suas decisões afetam diretamente o nível do grau de monopólio da indústria. Essas firmas comportam-se como líderes de preços e, portanto podem definir um θ elevado, pois sabem que serão seguidas pelas demais. Com isso, o preço médio tende a se elevar e, por conseqüência, também o grau de monopólio da indústria. Logo, quanto maior a concentração em uma determinada indústria, maior tende a ser o seu mark up médio. O aumento da concorrência por vias alternativas ao preço também tende a criar uma tendência de aumento para o grau de monopólio, uma vez que a possibilidade de manutenção (ou até mesmo aumento) de mark up fica preservada nesse caso. Há dois outros fatores que o autor considera ainda na mudança do grau de monopólio. Um deles é a influência das modificações na relação entre custos indiretos e custos diretos. Um aumento nesta relação, mantido o mark up, leva a uma redução necessária na margem de lucro. Nesse caso, Kalecki argumenta que pode haver um acordo tácito entre os diversos produtores para assegurar a manutenção da margem de lucro. Com isso, um aumento na relação custos indiretos/custos diretos, mantida a margem de lucro, leva a uma inescapável ampliação do grau de monopólio. Por fim, o poder de barganha dos sindicatos é um outro e importante fator na definição do grau de monopolização. A idéia é simples, quanto maior for o mark up, mais poder terão os trabalhadores para negociar aumentos de salários. Como salários participam no custo direto, fica claro que um aumento daqueles leva a uma 3 Vale ressaltar que os preços das matérias-primas e insumos em geral, a eficiência técnica na sua utilização, os salários nominais e a produtividade média do trabalho são supostos dados (Possas, 1987, p.96). 4 Cabe lembrar que este é o poder de mercado que a firma imagina ter quando determina o seu preço. Nada, porém, assegura que esse seja o seu poder de mercado efetivo. redução no mark up, ceteris paribus. É claro que esse poder depende dos arranjos institucionais a que estão submetidas as relações entre firmas e sindicatos. Além dos salários, os custos diretos são compostos também pelos custos com matérias-primas. Como os preços destas são ‘formados pela demanda’, suas variações tendem a ser muito maiores do que as variações salariais. Os preços dos produtos finais, portanto, são mais estáveis que os preços das matérias-primas, já que a estabilidade dos salários se contrapõe à volatilidade daqueles. Para que a teoria esteja consistente, falta ainda ligar a razão entre rendimentos e custos diretos em uma indústria e a parcela relativa dos salários no valor agregado daquela indústria (Kalecki, 1954, p.21). Conforme Possas (1987, p.97), a relação entre custos de matérias-primas e de salários -, ao lado do mark up, determinam conjuntamente a participação da massa de salários no valor adicionado, e, portanto, a distribuição da renda, ao nível de cada indústria. Visto que o valor agregado é o valor dos produtos menos os custos com matérias-primas, temos, como em Kalecki (1954, p. 21), que: Custos indiretos + lucros = (k − 1)(W + M ) (10), onde k é o mark up, M o gasto total em matérias-primas e W o total de salários. Daí, depreende-se que a participação relativa dos salários no valor adicionado de uma indústria é w= W 1 = W + (k − 1)(W + M ) 1 + (k − 1)(1 + j ) (11), M é a relação entre custo de matérias-primas e custo salarial. Temos, então, que a distribuição W da renda é determinada pelos valores dos parâmetros k e j. Ambos afetam negativamente a parcela dos salários no valor adicionado. A equação acima pode ser agregada para um setor ou conjunto de indústrias verticalmente integrado, o qual é a unidade de análise de Kalecki (Possas, 1987). onde j = Com relação ao mark up, como já foi visto, as características do processo competitivo de uma indústria, tanto as relacionadas com a concorrência intercapitalista quanto as relativas à barganha salarial, se refletem num certo nível de mark up sobre os custos diretos unitários (salários e matérias-primas) (Possas, 1987, p.96). Logo, ao influenciarem na determinação do mark up, a concorrência intercapitalista e a relação entre trabalhadores e empresários representam pontos cruciais na definição da distribuição da renda. No que concerne à relação entre custo de matérias-primas e custo salarial, Kalecki (1954) argumenta que essa relação tende a variar com o nível de atividade econômica, já que os preços das matérias-primas tendem a ser mais voláteis do que os salários. Assim, numa depressão, j tende a cair, de modo a ampliar a parcela dos salários na renda, ao passo que k tende a reduzir aquela parcela, em virtude da tendência de aumento na concentração industrial durante um período de queda da atividade econômica. Cabe notar, em primeiro lugar, que a teoria da distribuição de Kalecki está vinculada ao processo de formação de preços, conforme ressaltam Atkinson (1975) e Possas (1987). Em segundo lugar, ao utilizar o mark up na formação de preços, sua teoria fica mais abrangente, podendo ser utilizada para as mais diversas indústrias, com diferentes estruturas de mercado. Neste sentido, conclui Possas (1987, p. 98), o mark up “é, por assim dizer, uma ‘variável-síntese’ das implicações da estrutura competitiva sobre o processo de apropriação de renda em cada indústria”. II – Distribuição e determinação do nível de renda O processo de distribuição da renda, para Kalecki, é um fenômeno de ordem microeconômica. Ainda assim, constitui-se num importante parâmetro para a determinação do nível de produto. Para o autor, esse segundo processo tem como elemento essencial o princípio da demanda efetiva, segundo o qual são os gastos que determinam a renda. Conforme aponta Kriesler (1996), Kalecki procurava formular seu modelo de sorte que a distribuição da renda fosse independente do nível de produto e que a determinação dos lucros totais fossem independentes dos preços e da distribuição. Com base nisso, Kalecki (1977) rejeita a suposição ortodoxa de produto dado, visto que esta se baseia nas premissas de determinação do produto por uma função de produção baseada em capital e trabalho e de pleno emprego dos fatores de produção, que, em conjunto, implicam na determinação de um produto de pleno emprego. Em outras palavras, através do princípio da demanda efetiva, Kalecki rejeita a lei de Say, um corolário das premissas assumidas pela teoria ortodoxa. Assim, como havia sido dito antes, a teoria de Kalecki rejeita as hipóteses básicas da abordagem ortodoxa5. Uma vez estabelecido o princípio da demanda efetiva, faz-se necessário explorá-lo de modo a estabelecer uma alternativa à teoria mainstream. Kalecki (1977) propõe então um modelo departamental baseado nas equações marxistas de reprodução para demonstrar que um aumento global de salários não implica em uma redução dos lucros totais, como fazem crer o senso comum e a teoria ortodoxa. Para tanto, Kalecki (1977, p.92) adota um modelo de três setores verticalmente integrados, que produzem respectivamente bens de investimento, DI, bens de consumo para os capitalistas, DII, e bens de consumo para os trabalhadores, DIII. Embora não sejam cruciais ao argumento, adotam-se ainda as hipóteses simplificadoras de abstração da poupança dos trabalhadores, e da ausência de governo e comércio externo6. Conseqüentemente, a produção de cada setor, bem como a soma dos lucros e salários setoriais representam o produto e a renda gerados no país7. Definindo P1, P2 e P3 como os lucros brutos de cada departamento e W1, W2 e W3 como os respectivos salários, temos que P e W são os respectivos lucros totais e salários totais. O consumo dos capitalistas é representado por Ck, o consumo dos trabalhadores por Cw, o investimento bruto por I e a renda nacional bruta por Y: Quadro 1 – Matriz Departamental DI DII DIII Total P1 P2 P3 P W1 W2 W3 W I Ck Cw Y Seguindo Kalecki (1977, pp 2-3), é fácil ver que os lucros do departamento produtor de bens de consumo para os trabalhadores são iguais ao que os trabalhadores dos demais setores recebem de salários, dada a hipótese de que os trabalhadores consomem tudo o que ganham: P3 = W1 + W2 . Somando P1 e P2 em ambos os lados, ocasiona então que: P1 + P2 + P3 = P1 + W1 + P2 + W2 (12), o que significa que P = I + C k . Ademais, dada a distribuição da renda nos três setores, representadas respectivamente por: w1 = W W1 W ; w2 = 2 ; w3 = 3 I Ck Cw (13), o consumo dos trabalhadores pode ser representado por Cw = w1 I + w2 C k (14) 1 − w3 Daí, depreende-se que 5 Vale notar que com base nessa rejeição às premissas ortodoxas, não é apenas a teoria da distribuição da renda de Kalecki que se opõe à sua similar neoclássica, mas sim toda a sua teoria opõe-se ao paradigma neoclássico. 6 No decorrer deste capítulo, o modelo de Kalecki (1954) será apresentado sempre nesta versão simplificada. 7 Note-se que em seu modelo, Kalecki adota uma curva de oferta totalmente elástica, o que garante que toda demanda será atendida e, portanto exclui qualquer possibilidade de dinâmica de curto prazo, tanto de preços quanto de estoques. Simonsen & Cysne (1989), inclusive, sustentam que tal hipótese constitui um “Calcanhar de Aquiles” da teoria kaleckiana. Y = I + Ck + C w = I + Ck + w1I + w2Ck 1 − w3 (15)8 Pode-se dizer, portanto, que: O que foi dito acima esclarece o papel dos ‘fatores de distribuição’, isto é os fatores que determinam a distribuição da renda (...) na teoria dos lucros. (...) Dessa forma, o consumo e o investimento dos capitalistas, em conjunto com os ‘fatores de distribuição’, determinam o consumo dos trabalhadores e, conseqüentemente, a produção e o emprego em escala nacional (Kalecki, 1954, p. 37). Com base no que foi apresentado, é possível demonstrar que um aumento real generalizado de salários não implica em uma redução nos lucros globais. Para tal, vale realizar um pequeno exercício que comprova a proposição acima: seja um aumento real de salários generalizado ∆W9. Supondo que não decorra tempo suficiente para que os capitalistas mudem seus investimentos e consumo, como faz Kalecki (1977)10, haverá uma perda de lucros nos departamentos I e II equivalente ao aumento dos salários (∆W1=-∆P1; ∆W2=-∆P2). No entanto, visto que os salários são totalmente gastos em bens de consumo para trabalhadores, os lucros no departamento III vão aumentar na exata magnitude em que os lucros nos demais setores irão cair (∆P3 = ∆W1+∆W2). Ou seja, um aumento real de salários não implica numa redução de lucros totais e, por conseguinte, gera um acréscimo nas despesas com bens de consumo para trabalhadores, o que leva a um aumento na renda nacional bruta. Em suma, conforme Kalecki (1942, p. 260): However great the margin of profit on a unit of output, the capitalists cannot make more in total profits than they can consume and invest. Este aparente paradoxo apresentado remete à abordagem de Keynes (1936) sobre a relação entre poupança e investimento: maiores esforços por parte dos indivíduos para poupar não aumentam a poupança agregada. Ao contrário, dado o investimento, essa maior vontade de poupança apenas reduz o nível de consumo, levando à queda do produto11. Na verdade, o fato de as análises de Keynes e Kalecki serem próximas não deve ser uma surpresa. Afinal, ambas constituem apenas ângulos diferentes que partem de uma mesma premissa: o princípio da demanda efetiva. Voltando-se à relação entre distribuição de renda e nível do produto, é imprescindível que se faça uma análise dinâmica a fim de determinar os efeitos daquela sobre o crescimento econômico. Pode-se argumentar, por exemplo, que ao se assumir uma função do tipo acelerador para o investimento, haverá um efeito positivo sobre o investimento, uma vez que as produções em DI e DII mantiveram-se inalteradas e a produção em DIII cresceu. Daí, pelo princípio de demanda efetiva, decorrido o prazo suficiente, a variação sobre o lucro será positiva, estimulando ainda o consumo dos capitalistas, levando a economia a um período de crescimento. III – Distribuição e dinâmica macroeconômica Para compreender melhor essa dinâmica, é preciso conhecer o que governa o comportamento dos capitalistas no que concerne aos seus gastos. Em outras palavras, é preciso saber o que determina as decisões de consumir por parte dos capitalistas e, sobretudo de investir. No que se refere ao consumo dos capitalistas em um determinado período, admite-se que este consiste de uma parcela estável – A – e de uma parte proporcional aos lucros de um período anterior, Pt-λ. Então, 8 Este modelo é generalizado para uma economia com governo, comércio externo e poupança dos trabalhadores no apêndice ao final deste capítulo. 9 Para que o aumento tenha sido real, é preciso que tenha havido perda de poder de barganha por parte dos capitalistas, sendo refletida num mark up menor. 10 Vale destacar a essencialidade dessa hipótese para os resultados do modelo de Kalecki. 11 Kalecki (1942, p.260n) já apontava para esta equivalência entre as abordagens. C k t = qPt −λ + A (16), onde q<1 e λ representa uma pequena defasagem temporal. Mas como P = I + +C k , tem-se que Pt = I t + qPt −λ + A (17) É importante ressaltar que essa defasagem λ é importante para garantir o resultado exposto acima, segundo o qual uma melhoria na distribuição de renda, ceteris paribus, aumenta o nível da renda nacional. Isto ocorre porque “o investimento e o consumo dos capitalistas, no curto período considerado, resultam de decisões tomadas no passado e devem, portanto, ser considerados como dados” (Kalecki, 1977, p. 3). No caso do investimento, tal fato decorre do período necessário para a construção do bem de capital. Já para o consumo dos capitalistas, Kalecki (1977) argumenta que aqueles acompanham as variações nos lucros, porém com algum atraso. Apesar da mencionada importância da defasagem entre lucros e consumo capitalista, em um modelo dinâmico, no qual o período de tempo relevante é o período de investimento, tal defasagem pode ser ignorada, visto ser muito menor que a defasagem relativa ao investimento. Desse modo, Kalecki (1954, p.42) propõe que os lucros sejam uma função do investimento, com uma certa defasagem temporal: Pt = I t −ω + A 1− q (18) Com base na equação acima, conclui-se que os lucros são determinados pelas decisões passadas de investir (Kalecki, 1954). Como a renda é composta de lucros mais salários, então, Yt = I t −ω + A w1 I + w2 C k + 1− q 1 − w3 (19) Kalecki (1954, p.30) procura simplificar essa fórmula propondo que a parcela relativa a salários e ordenados na renda bruta seja V B =α + Y Y (20) Desse modo, a equação acima passa a ser representada por: Yt = I t −ω + A + B (1 − q )(1 − α ) (21) Como, no curto prazo, A é a parcela estável do consumo dos capitalistas e B é a parte estável dos salários, as variações na renda bruta são determinadas apenas por variações no investimento, dadas a propensão a consumir dos capitalistas e a distribuição de renda. Baseado no que foi apresentado, a definição dos determinantes do investimento é, portanto, crucial para o estudo da dinâmica capitalista. Kalecki propõe seu modelo de ciclo econômico, cuja organização baseia-se na interação dos mecanismos de multiplicador e acelerador, de forma análoga aos modelos "neo keynesianos" (Possas, 1987). Senão vejamos: Ft +τ = aS t + b ∆Pt ∆K t −c + d (22) ∆t ∆t onde F é o investimento em capital fixo; τ é a defasagem média entre as encomendas e a efetiva operação do investimento; S é a poupança, que procura refletir os lucros retidos das empresas; Pt são os lucros no período t; Kt é o estoque de capital ao final do período t; e d refere-se ao investimento autônomo, que não depende do nível corrente de atividade. Assim, o investimento em capital fixo é função do nível de atividade (expresso por aSt ); das variações desse nível (expresso por b∆Pt /∆t-c∆Kt /∆t) e de componentes autônomos relacionados, sobretudo às inovações e mudanças estruturais. (Kalecki, 1954 e Possas, 1999). Como, por definição, ∆Kt/∆t=Ft-δ, então12, ∆Pt ∆P F + cFt a St + b' t + d ' ⇒ − cFt + cδ + d ⇒ t +τ = ∆t ∆t 1+ c 1+ c (23) a ' ∆Pt ' St + b = +d ∆t 1+ c Ft +τ = aS t + b Ft +θ Em seguida, Kalecki (1954, p.101) introduz ao modelo de investimento acima apresentado, uma relação inversa entre nível de atividade e investimento, do tipo multiplicador:13 ∆Pt 1 ∆I t −ω (24) = ∆t 1 − q ∆t Conforme visto, este multiplicador resulta da hipótese de consumo dos capitalistas já apresentada. O autor acrescenta ainda o investimento em estoques supondo-o proporcional ao nível de produção, que, por sua vez, é função dos lucros (Possas, 1987, p.147 e 148): 1 ∆Pt (25) 1 − α ' ∆t Portanto, somando F e J e subtraindo a depreciação, chegamos à equação dinâmica expressa em J t +θ = e it +θ = termos do investimento líquido:14 ∆i a it + µ t + g (26) 1+ c ∆t onde µ é função direta do multiplicador e g é função direta de d e inversa da depreciação (δ). Conforme Possas (1987, p. 149), fazendo ∆t=θ=1 e ∆it = it-it-1, chega-se à seguinte equação a diferenças finitas: Por resultar numa equação a diferenças finitas de 2ª ordem, o modelo de Kalecki não pode gerar endogenamente crescimento e ciclo de forma simultânea, como toda a família de modelos “neo a )it +1 + µit = g (27) 1+ c keynesianos”, conforme demonstrado por Pasinetti (1974). A ocorrência ou não de flutuações vai depender dos valores dos parâmetros na solução homogênea15, ao passo que a tendência é dada pela solução particular. Logo, visto que "a solução particular (tendência), como dissemos antes [é] uma função crescente do componente autônomo d do investimento, e portanto dos 'fatores de desenvolvimento'." (Possas, 1999, p.37), então fica claro que a tendência de crescimento depende de fatores autônomos. it + 2 − ( µ + Há, contudo, além da separação analítica acima demonstrada entre os componentes de ciclo e de tendência, uma separação teórica. Esta se baseia em princípios de causalidade de naturezas diferentes, um relacionado à demanda efetiva e o outro à mudança estrutural: o componente associado à atuação da 'demanda efetiva', isto é, do comportamento do nível corrente de atividade, [é] capaz de produzir (...) flutuações; e o componente associado à mudança estrutural, derivado da atuação da atuação dos 'fatores de 12 Note-se que b’=b/1+c, d’=(cδ+d)/1+c e que t+θ é uma espécie de média ponderada e, portanto, situa-se entre t e t+τ. A defasagem λ entre lucros e consumo dos capitalistas será abstraída por ser pequena se comparada à defasagem θ entre encomenda e construção dos investimentos (Possas, 1987,p.148n). 14 Vale lembrar que St=It . 15 Não convém aqui deter-se sobre quais valores determinam a forma do componente de "demanda efetiva" (cf. Possas, 1999, p. 39). 13 desenvolvimento' (...) produzem trajetória potencialmente instáveis do ponto de vista estrutural... (Possas, 1999, p.39) Tendo em vista a premissa metodológica central que permeia a teoria da dinâmica econômica de Kalecki de estrutura econômica estável, fica claro que o modelo do autor não pode gerar endogenamente ciclo e crescimento, uma vez que este é resultado de mudanças estruturais, que, por hipótese, não ocorrem no modelo (Possas, 1999). Nesse sentido, o componente dinâmico de tendência deve mesmo ser explicado por fatores autônomos, que não são afetados pelo nível corrente de atividade, e portanto, exógenos ao modelo, posto que esses fatores são responsáveis por mudanças na estrutura econômica. Note-se, porém, que os "fatores de desenvolvimento" são e devem ser exógenos ao modelo, embora sejam inerentes à economia capitalista. IV – Considerações Finais De acordo com o modelo de Kalecki, portanto, uma melhor distribuição da renda acarretaria em um deslocamento da tendência para um patamar mais alto, o que significa um nível maior de produto. Este mecanismo, contudo, só funciona se houver capacidade ociosa. Caso a economia já esteja em pleno emprego, ocorrerá aumento de preços, ao invés de expansão da produção. Nesse caso, a redistribuição perderia seu efeito, visto que a inflação reduziria o salário real dos trabalhadores. Caso o modelo permitisse alterações endógenas na distribuição da renda, o componente de tendência do modelo de Kalecki (1954) sofreria alterações de patamar endógenas. Assim, uma contínua melhoria da distribuição da renda em prol dos trabalhadores levaria a um período de crescimento econômico até que se chegasse ao teto do pleno emprego16. Do modelo de Kalecki, pode-se concluir que uma melhoria na distribuição da renda pode gerar um aumento na renda nacional. Mesmo que os trabalhadores não gastem toda a sua renda, o modelo ainda se aplica, porém com um efeito multiplicador menor, conforme pode ser verificado no apêndice. 16 Note-se que o raciocínio leva em consideração mudanças endógenas apenas na distribuição da renda, sem considerar progresso técnico, que efetivamente é capaz de gerar uma trajetória de crescimento do próprio componente de tendência. V - APÊNDICE: Modelo com poupança dos trabalhadores, governo e comércio externo: Y = I + C k + C w + G + ( X − M ) = P + W ; com C w = αW ; M = mY ; w1 = W W W1 W W ; w2 = 2 ; w3 = 3 ; w4 = 4 ; w5 = 5 ; I Ck Cw G X Y + M = I + C k + αW + G + X ⇒ Y + mY = I + C k + α ( w1 I + w2 C k + w3 C w + w4 G + w5 X ) + G + X ⇒ (1 + m)Y = (1 + αw1 ) I + (1 + αw2 )C k + αw3 (Y + M − I − C k − G − X ) + (1 + αw4 )G + (1 + αw5 ) X ⇒ (1 + m)(1 − αw3 )Y = (1 + αw1 − αw3 ) I + (1 + αw2 − αw3 )C k + (1 + αw4 − αw3 )G + (1 + αw5 − αw3 ) X ⇒ Y= [1 + α ( w1 − w3 )]I + [1 + α ( w2 − w3 )]C k + [1 + α ( w4 − w3 )]G + [1 + α ( w5 − w3 )] X (1 + m)(1 − αw3 ) VI - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ATKINSON, Anthony B..The Economics of Inequality. Oxford: Oxford University Press, 1975. KALECKI, Michal. “A Theory of Profits”. Economic Journal. Londres: 1942. ________________. Theory of Economic Dynamics. Londres: Allen & Unwin, 1954. ________________. Crescimento e Ciclo das Economias Capitalistas. São Paulo: Hucitec, 1975. KEYNES, John M. The General Theory of Employment, Interest and Money. Londres: Macmillan, 1936. KRIESLER, Peter. “Microfoundations: a Kaleckian Perspective” in King, J. (Ed) An Alternative Macroeconomic Theory: the Kaleckian model and Post-Keynesian Economics Boston: Kluwer pp. 55-72, 1996. POSSAS, Mário L. A Dinâmica da Economia Capitalista: uma abordagem teórica. São Paulo: Brasiliense, 1987. _______________. “Demanda Efetiva, Investimento e Dinâmica: a Atualidade de Kalecki para a Teoria Macroeconômica”. Revista de Economia Contemporânea, 3(2), 1999. SIMONSEN, Mário H.; Cysne, R.P. Macroeconomia. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1989.