Patrícia da Guia Pereira 15.10.2009 Teoria Geral do Direito Privado Abuso do Direito “o direito cessa quando começa o abuso” Planiol Manifestação do princípio da boa fé A expressão “abuso do direito” (“abus de droit”) é devida a um Autor belga, que com ela se referia à jurisprudência francesa dos finais do séc. XIX, que veio decidir questões de vizinhança Definição: Actuação que, de uma perspectiva formal, se enquadra nos termos de um direito, mas que é condenada por corresponder a um exercício anómalo ou disfuncional deste Há uma utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita o fim próprio ou do contexto em que ele deve ser exercido Boa fé: duas acepções 1) Sentido subjectivo ou psicológico: convicção acerca de um facto; desconhecimento; ignorância desculpável (art. 243.º, n.º 2, do CC; art. 291.º, n.º 3, do CC) 2) Sentido objectivo: regra de conduta (conceito indeterminado) Algumas manifestações legais da boa fé em sentido objectivo: -Art. 227.º do CC - Art. 762.º, n.º2, do CC Artigo 334.º do CC (Abuso do direito) É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. O abuso do direito constitui um limite à autonomia privada no exercício jurídico Apesar da sua designação, o abuso de direito reporta-se ao exercício de qualquer posição jurídica Tipos de condutas abusivas: a) Exceptio doli b) Venire contra factum proprium c) Inalegabilidades formais d) Suppressio e surrectio e) Tu quoque f) Desequilíbrio no exercício a) Exceptio doli É uma forma de reacção muito antiga, já usada no direito romano, contra as actuações dolosas (que hoje se inscrevem no domínio do abuso de direito) Faculdade de paralisar o exercício do direito de outrem, que assenta genericamente na violação da boa fé e dos bons costumes O seu carácter muito vago veio a esbater a sua relevância, em detrimento de outras tipologias de abuso do direito, tendo exceptio doli sido alvo de muitas críticas, designadamente por constituir uma interpretação dissimulada b) Venire contra factum proprium Constitui uma protecção da confiança e das legítimas expectativas criadas Consubstancia uma reprovação dos comportamentos contraditórios (valorização da estabilidade) 1.º comportamento 2.º comportamento Facto próprio (anterior) Facto que contraria (vem contra) Venire positivo: comportamento que gera a convicção de que não irá praticar um certo facto, e depois pratica-o Ac. Rel. Coimbra de 30.06.1998 Constitui venire vir resolver um contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento das rendas quando, durante três anos, o inquilino depositou, sem problemas, a renda em local diferente do devido Venire negativo: comportamento demonstrativo de que se vai desenvolver certa conduta, depois negada Ac. Rel. Coimbra de 28.06.1994 “Há venire contra factum proprium quando o vendedor, decorrido o prazo de caducidade, aceita perante o comprador reparar a coisa e, depois, na acção proposta por este, invoca a excepção de caducidade da garantia” Importância do venire contra factum proprium como tipo de abuso do direito Doutrina da confiança (orientação mais seguida do venire) Elementos tendenciais: 1.º Situação de confiança: traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no "factum proprium”) 2.º Justificação dessa confiança: existência de elementos susceptíveis de provocar a crença de uma pessoa normal 3.º Investimento da confiança: desenvolvimento de uma actuação baseada na confiança criada (a mera convicção sem actuação não é relevante) 4.º Imputação da confiança: a situação tem de ser devida à acção ou omissão de alguém c) Inalegabilidades formais Invocação da invalidade formal de um negócio pela parte que o provocou intencionalmente Ex: A, jurista da sociedade B, celebra com esta um contrato de mútuo para aquisição de um cartão de férias. Nos termos do regime do crédito ao consumo (art. 12.º do DL 133/2009), o contrato tem de ser celebrado por escrito, sob pena de nulidade. No entanto, A convence B da dispensabilidade legal daquele formalismo, assegurando-lhe que não se aplica aquele diploma aos referido contrato. A não poderá arguir a nulidade do contrato, porque tal constituiria abuso do direito Na jurisprudência portuguesa, estes casos são muitas vezes tratados como venire contra factum proprium d) Suppressio (e surrectio) Suppressio: quando uma posição jurídica, não tendo sido exercida durante um certo tempo, não possa mais sê-lo, por, de outra forma, se atentar contra a boa fé Surrectio: surgimento de uma possibilidade numa esfera jurídica, em virtude da boa fé, que, de outro modo, não lhe assistiria (contraface da suppressio) A figura da suppressio teve um grande desenvolvimento no período entre guerras do séc. XX, na Alemanha, em virtude da depreciação monetária. Veio então a considerar-se um direito à valorização monetária. Todavia, a demora por parte do credor em pedir a correcção poderia levar a cifras muito elevadas. Assim, perante a ausência de prazos legais para requerer essa correcção, veio a considerar-se que a demora injustificada levaria à limitação ou preclusão da revalorização. Papel complementar no sistema de repercussão do tempo nas relações jurídicas (caducidade e da prescrição)? ou Recondução ao venire contra factum proprium (na perspectiva da abstenção)? e) Tu quoque* Ideia subjacente: quem violar uma norma não pode tirar partido da violação Alguns exemplos de consagrações legais do tu quoque: - Art. 438.º do CC: a parte em mora não goza do direito de resolução ou modificação do contrato - Art. 570.º, n.º 1, do CC: Culpa do lesado reduz ou exclui a indemnização Exemplo de aplicação jurisprudencial: Ac. Rel. Lx de 02.03.2004: um condómino que não queira assinar a acta da assembleia não pode prevalecer-se disso para a impugnar: seria abuso de direito *“Também tu!” (frase usada por César quando se apercebeu que Brutus, seu filho adoptivo, estava entre os seus assassino) f) Desequilíbrio no exercício Sub-espécies: 1) Exercício danoso inútil 2) Exigência de algo que deva ser imediatamente restituído (dolo agit qui petit quod statim redditurus est) 3) Desproporcionalidade 1) Exercício danoso inútil É abusivo, por contrário à boa fé, o exercício da posição jurídica sem que este represente qualquer vantagem para o seu titular, quando dele resultem consequências negativas para outrem Caso da chaminé falsa de Colmar (1855): Um proprietário construiu no seu prédio uma chaminé falsa inútil, com o propósito de tapar uma janela do vizinho Há quem distinga, a este propósito, o exercício emulativo, quando este é movido apenas pelo objectivo de prejudicar outrem (PPV) 2) Exigência de algo que deva ser imediatamente restituído (dolo agit qui petit quod statim redditurus est) É contrário à boa fé, e, assim, abusivo, exigir o que de seguida se deva restituir Partilha de fundamento com a figura da compensação (art. 847.º do CC) Assim, outros casos que não comportem compensação poderão estar cobertos pelo dolo agit, por força da boa fé 3) Desproporcionalidade Desproporção (considerável) entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem Exemplos: - Compra de um automóvel novo, sem que o vendedor entregue ao comprador o livrete e o título de propriedade, apesar de instado. Após 60.000 km o automóvel tem um acidente. O comprador vem resolver o contrato por incumprimento do dever acessório de entrega daqueles documentos (Ac. STJ de 25.11.1999) - Condómino que, detendo mais de 667‰ dos votos numa assembleia, vota a assunção de apenas 50% dos encargos (Ac. STJ de 08.07.1997) Notas gerais sobre a tipologia clássica do abuso de direito Os diversos tipos foram sendo criados ao longo do tempo pela doutrina e jurisprudência, e reflectem essa heterogeneidade Fragmentária: não abrange todos os casos de abuso do direito Representa as situações mais comuns, emblemáticas, que apresentam um mínimo de unidade Os tipos apresentados são frequentemente sobreponíveis, com fronteiras imprecisas Consequências do abuso do direito Artigo 334.º do CC (Abuso do direito) É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Ilegitimidade Ilicitude Multiplicidade de consequências: - Supressão do direito (hipótese comum, designadamente na suppressio) - Cessação do exercício abusivo, mantendo-se o direito - Dever de restituir - Dever de indemnizar (quando se verifiquem os restantes pressupostos da responsabilidade civil) Elenco aberto: o aplicador deverá decidir, in casu, qual a consequência mais adequada Nalguns casos, a lei determina a consequência Ex: art. 58.º, n.º1, al. b) do CSC (deliberações abusivas): anulabilidade