FACULDADES SUDAMÉRICA NEMO POTESTI VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM Ana Luiza Cardoso de Azevedo Sousa CATAGUASES 2010 ANA LUIZA CARDOSO DE AZEVEDO SOUSA NEMO POTESTI VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito das Faculdades Sudamérica como exigência parcial para obtenção do título de bacharel em Direito. Orientadora: Michelle Felipe Camarinha de Almeida Cataguases 2010 Aos meus queridos pais, José e Alcéa, ‘in memoriam”, exemplo de vida, luta e dignidade. AGRADECIMENTOS A Deus, pelo dom da vida que se renova a cada amanhecer. Aos meus queridos filhos, Ana Cristina e José Eduardo, que compreenderam a minha ausência em vários momentos de nossas vidas e me deram força nessa caminhada. À minha irmã Ana Maria, in memorian, que tanto me incentivou na realização desse sonho. Aos meus irmãos, Luiz Otávio, Luiz Carlos e Luís Renato, e respectivas esposas, que sempre me deram apoio incondicional. A toda minha família pelo estímulo e torcida. À Nair, grande amiga de longa jornada, que sem a sua presteza e dedicação, esse sonho nunca teria se concretizado. A todos os meus sinceros amigos, pela torcida e confiança depositada. A todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a consecução dessa monografia, em especial à professora Michelle Camarinha, exemplo de mestra e de dedicação, meu muito obrigado! "A perfeição da própria conduta consiste em manter cada um a sua dignidade sem prejudicar a liberdade alheia." (Voltaire) RESUMO O presente estudo teve por escopo estabelecer um panorama sobre o venire contra factum proprium como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, com enfoque no princípio da boa- fé objetiva, mas, no entanto, alicerçado na tutela da confiança. Na primeira parte, foi feita uma digressão sobre os princípios e teorias que fundamentam esse adágio latino, bem como sobre as duas vertentes da boa- fé expondo sua tríplice função. A segunda parte dedicou-se, especificamente, à análise do venire contra factum proprium, que carece de maiores estudos por parte da doutrina, mas que nem por isso, deixa de ser invocado pelos tribunais pátrios. Foram apresentados os seus pressupostos de incidência, bem como suas conseqüências, aproveitando-se para relatar alguns dos recentes acórdãos brasileiros que utilizaram o princípio do nemo potest venire contra factum proprium como fundamento decisório. PALAVRAS-CHAVE: Boa- fé objetiva. Tutela da confiança. Nemo potesti venire contra factum proprium. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................... 8 1 DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIO, NORMA E CLÁUSULA GERAL ............. 10 2 FUNDAMENTOS PRINCIPIOLÓGICOS DO INSTITUTO .............................. 13 2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana .......................................................... 13 2.2. Princípio da Solidariedade Social ......................................................................... 14 3 BOA-FÉ ................................................................................................................ 16 3.1 Vertentes da Boa-fé .............................................................................................. 17 3.2 Funções da Boa-fé Objetiva .................................................................................. 18 3.3 Fundamento Infraconstitucional do Nemo Potesti Venire contra Factum Proprium ............................................................................................................... 20 4 TUTELA DA CONFIANÇA ................................................................................ 22 4.1 Do Conselho Federal de Justiça ............................................................................ 23 4.2 Fundamentação do Venire .................................................................................... 5 TEORIA DO ABUSO DO DIREITO ................................................................... 24 5.1 Modalidades do Abuso do Direito ........................................................................ 26 5.1.1 Suppressio ............................................................................................................. 26 5.1.1.1 Distinção entre a suppressio, a prescrição e a decadência .................................... 27 5.1.2 Surrectio ................................................................................................................ 28 5.1.3 Tu Quoque ............................................................................................................. 29 6 NEMO POTESTI VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM ............................. 31 6.1 Considerações Iniciais .......................................................................................... 31 6.2 Conceito ................................................................................................................ 32 6.3 O Venire contra Factum Proprium e os Exemplos de sua Aplicação .................. 34 6.4 Permissão Legislativa para o Comportamento Contraditório ............................... 35 6.5 Pressupostos ou Requisitos para Aplicação do Nemo Potesti Venire contra 23 Factum Proprium .................................................................................................. 36 6.5.1 Pressupostos .......................................................................................................... 36 6.5.1.1 Factum Proprium .................................................................................................. 36 6.5.1.2. Legítima Confiança ............................................................................................... 38 6.5.1.3 Contradição ao factum proprium .......................................................................... 39 6.5.1.4 Dano ou potencial de dano .................................................................................... 40 6.6 Finalidade .............................................................................................................. 41 6.7 Consequências da Utilização do Venire contra Factum Proprium ...................... 6.8 Figuras Assemelhadas ........................................................................................... 42 6.8.1 Estoppel ................................................................................................................ 42 6.8.2 Renúncia Tácita .................................................................................................... 43 6.8.3 Exceptio doli ......................................................................................................... 43 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 45 42 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 47 INTRODUÇÃO “Não é aos homens que me dirijo, é a ti, Deus de todos os seres, de todos os homens e de todos os tempos (…). Que as pequenas diferenças entre as vestimentas que cobrem nossos fracos corpos, entre nossos costumes ridículos, entre todas as nossas leis imperfeitas, entre todas nossas opiniões insensatas (…) que todas essas pequenas nuances que distinguem os átomos chamados homens não sejam motivos de perseguição.” Voltaire Este trabalho tem por escopo demonstrar que o princípio do venire contra factum proprium vem sendo utilizado pelo Judiciário, através de sua aplicação em jurisprudências, impondo balizamentos ao comportamento dos indivíduos quando estes ultrapassam os limites impostos pela lisura de conduta. O estudo desse princípio encontra relevância, pois é cediço que face à dinâmica da vida moderna, associada à complexidade das relações sociais torna-se impossível que todas as relações que ocorram no mundo jurídico estejam previstas em lei, o que traz viabilidade à aplicação do instituto em análise, o qual poderá ser utilizado, nas relações que tem por base a boa-fé, onde este se fundamenta. O interesse pelo princípio do nemo potesti venire contra factum proprium surgiu por se vislumbrar a sua aplicação, juntamente com suas figuras parcelares, como forma justa e alternativa de aplicação do direito, posto que, situações há em que se torna premente que a justiça seja feita, mas não há lei que as regule. Com o fito de alcançar o objetivo proposto serão abordados alguns temas para fundamentar a aplicação do princípio em comento. Prefacialmente far-se-á, para maior clareza na consecução do trabalho, uma distinção entre princípios, normas e cláusulas gerais, para em seguida, discorrer sobre os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, que são a pedra fundamental sobre a qual se sustenta esse provérbio latino. Em continuidade, serão abordados o princípio da tutela da confiança, a boa-fé e suas vertentes, a teoria do abuso do direito e as figuras que, com a vedação do comportamento contraditório, se correlacionam. Por derradeiro, será feita uma análise desse aforismo latino e suas nuances, para então, poder-se vislumbrar sobre sua aplicabilidade ou não. O que se pretende demonstrar é que este adágio latino, apesar de não vir insculpido no ordenamento jurídico pátrio de forma expressa, vem sendo citado e empregado hodiernamente pela doutrina e jurisprudência nos casos concretos. 9 Para concretizar o estudo do princípio do venire contra factum proprium serão utilizados o método expositivo e a pesquisa bibliográfica. A finalidade precípua do que está sendo tutelado por essa máxima é a confiança nas relações sociais por meio da vedação à incoerência, e também de forma inequívoca a dignidade da pessoa humana, e a solidariedade social que constituem princípios basilares da Constituição democrática de direito. A vedação do comportamento contraditório vem se contrapor diametralmente às noções individualistas e ao abuso do princípio da autonomia da vontade, com o intuito de tornar cada vez mais palpável o princípio da isonomia, para que, assim procedendo, possa se chegar, de fato, à uma sociedade democrática de direito. 10 1 DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIO, NORMA E CLÁUSULA GERAL “È o conhecimento dos princípios, e a habilitação para manejá-los, que distingue o jurista do mero conhecedor de textos legais”. Carlos Ari Sundfeld Para que se tenha uma noção da amplitude com que os princípios, as normas e as cláusulas gerais influenciam nas relações jurídicas, torna-se imperioso que uma breve distinção entre eles seja analisada. O ordenamento jurídico é composto de normas como gênero, cujas espécies são as regras e princípios, bem como de cláusulas gerais e princípios indeterminados, que foram adotados pelo novo Código Civil. De acordo com o artigo 4° da Lei de Introdução ao Código Civil1, princípio é fonte de Direito. É o regramento básico aplicável a instituto jurídico determinado, abstraído das normas, dos costumes, da doutrina, da jurisprudência e de aspectos políticos, econômicos e sociais. Esse artigo versa sobre a obrigatoriedade do pronunciamento do juiz, em casos de omissão da lei, de analisar o caso concreto, fundamentando-o nos princípios gerais do direito. Na concepção de BASTOS2, os princípios constitucionais guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Por não terem como objetivo regular situações específicas, não se primam pela precisão de conteúdo, assumindo uma força valorativa que se sobrepuja à maioria das normas. Sobre a importância dos princípios para o ordenamento jurídico, assevera MELLO:3 Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica em ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo um sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, ao ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e aluise toda a estrutura nela reforçadas. Os ordenamentos jurídicos se classificam em sistemas abertos e fechados, sendo que a maioria dos ordenamentos jurídicos se insere num sistema aberto, como também o é o sistema brasileiro, admitindo a coexistência de normas e princípios jurídicos. 1 VADE Mecum. 9. ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 131. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 143-4. 3 MELLO, Celso Antônio Bandeia de. Curso de Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/27225/1/PRINCIPIOS-JURIDICOS-E-SUAEVOLUCAO/pagina1.html#ixzz0y0l6qIsU >. Acesso em: 11 jul. 2010. 2 11 ÁVILA4 assevera que: “normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos”. No tocante às cláusulas gerais, diferentemente dos princípios, para que existam, devem ser expressas. As cláusulas gerais constituem a técnica legislativa que se baseia na utilização de normas formuladas a partir do uso de conceitos jurídicos indeterminados. Seus enunciados são revestidos de vagueza semântica que possibilitam a incorporação, no momento de aplicação do direito, de valores filosóficos, sociológicos e econômicos, direcionando o juiz em como agir diante do caso concreto e não lhe impondo determinada atitude, como o fazem as normas casuísticas. Existem critérios para diferenciação entre princípios e regras, como se pode constatar: a) O grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida. b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? do juiz?), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação direta. c) Caráter de fundamentalidade no sistema de fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito). d) Proximidade da idéia de direito: os princípios são ´Standards` juridicamente vinculantes radicados nas exigências de ´justiça` (DWORKIN) ou na ´idéia de direito` (LARENZ); as regras podem ser normas vinculantes com um conteúdo meramente formal. e) Natureza normogenética: os princípios são fundamentos de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.5 O ordenamento jurídico é um sistema onde as regras e os princípios devem ser entendidos em conjunto e aplicados hierarquicamente, a começar do topo da pirâmide: a Constituição Federal. A Lei Maior adota sistematicamente princípios e valores, sendo que alguns desses princípios podem ser potencialmente colidentes entre si, o que exigirá dos magistrados uma ponderação diante do caso concreto. O Direito não pode e, tampouco deve ser considerado como um sistema fechado e acabado. A dinâmica das relações acompanha a evolução social, de modo que esta se torna, dia-a-dia, mais complexa e carente de análise concreta. 4 ÁVILA, Humberto Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 22. 5 CANOTILHO, J. J. Gomes apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 65. 12 O ordenamento pátrio não possui uma previsão legal específica e explícita que ampare, de modo imediato, a aplicação do nemo potest venire contra factum proprium, seja em sede constitucional, ou infraconstitucional. Busca-se essa fundamentação, no princípio da dignidade da pessoa humana e na solidariedade social. É nesse diapasão, que a seguir, serão expostos de maneira suscinta, tais princípios e objetivos constitucionais, como busca de fundamentação do aforismo latino em estudo, na certeza de que direitos alcançados e prescritos em lei não podem ser desrespeitados. 13 2 FUNDAMENTOS PRINCIPIOLÓGICOS DO INSTITUTO 2.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA “Nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana”. Paulo Bonavides A lei fundamental de um país tem por característica ser reflexo do momento histórico da sociedade que pretende regulamentar. A Constituição Federal Brasileira de 1988 marca a volta da democracia para o país, ressurgindo-se contra o autoritarismo do regime militar, através da busca da defesa e da realização dos direitos fundamentais do indivíduo e da coletividade nas mais diferentes áreas (econômica, social, política, etc). A dignidade da pessoa humana é um dos princípios basilares do ordenamento jurídico contemporâneo, e como tal, adquire um caráter normativo, colocando o ser humano como figura central e dessa forma, merecedora de toda proteção. A palavra dignidade tem sua origem no latim querendo significar: “dignus é aquele que merece estima e honra aquele que é importante”.6 Da própria etimologia da palavra podese abstrair toda a importância que esse princípio encerra como norteador de todos os demais, assegurando a toda e qualquer pessoa um viver com um mínimo existencial para que possa ter uma vida digna. Face à importância que exerce sobre os demais preceitos, esse princípio vem insculpido na Constituição da República de 1988 em seu artigo 1º, inciso III.7 Também está previsto no artigo XII da Declaração Universal dos Direitos do Homem.8 Segundo MORAES9, “a dignidade da pessoa humana concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual.” 6 ANDRADE, Paulo Henrique Magalhaes de. O Principio da dignidade da pessoa humana. Disponível em: <http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=1467>. Acesso em: 11 jul. 2010. 7 Art. 1º CR/88: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana. (VADE Mecum, 9. ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 7). 8 Artigo XII da Declaração Universal dos Direitos do Homem. - Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. (DECLARAÇÃO dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.22938>. Acesso em: 06 nov. 2010). 9 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 16. 14 Na mesma esteira, continua o ilustre mestre: A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.10 Um conceito que traduz de forma clara o princípio em comento é o de SARLET,11 que assevera que a dignidade é inerente ao ser humano, fazendo com que o mesmo deva ser respeitado pelo Estado e também por seus semelhantes e, tendo dessa forma garantido, o mínimo para que tenha uma vida digna. Esse princípio caracteriza-se pela sua irrenunciabialidade, sendo coibida qualquer violação à dignidade de outrem, não por se estar violando apenas o direito de uma pessoa, mas por se estar quebrando um dos pilares no qual se assenta o ordenamento jurídico do país, sendo que tal violação surtirá efeito em toda a coletividade. SANTOS,12 diz que: “Há uma conscientização crescente e generalizada de que os indivíduos têm o dever de serem solidários, protegendo-se mutuamente.” É nesse contexto, onde a proteção do homem se torna a pedra fundamental sob a ótica constitucional, que o brocardo latino busca sua fundamentação, procurando a melhor forma de tentar proteger a confiança que a pessoa humana deposita nas suas relações sociais. 2.2 PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL “Uma vez que homem nenhum tem autoridade natural sobre seu semelhante, e que a força nenhum direito produz, restam, pois, as convenções como base legítima de toda autoridade legítima entre os homens”. Jean Jacques Rousseau A Constituição da República de 1988 em seu artigo 3º, I, dispõe como um de seus objetivos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, estatuindo dessa forma o princípio da solidariedade social. AVELINO13 assim define solidariedade como a relação entre os homens, que se baseia no sentimento de semelhança, tornando possível a vida em sociedade, respeitando 10 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 16. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 63. 12 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. apud SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 52-53. 11 15 terceiros e familiares com o objetivo de se autorealizar, através da ajuda obtida com o próximo. SCHREIBER14 esclarece a respeito da solidariedade: O conceito contemporâneo de dignidade humana é assim informado pela solidariedade. E, da mesma forma, a concepção atual da solidariedade não pode ser entendida senão como “instrumento e resultado” da dignidade humana. Difere assim de outras concepções, anteriores, de solidariedade que exigiam a renúncia de aspectos da própria personalidade – liberdade, integridade psicofísica, privacidade – em favor do grupo, da comunidade ou do Estado. A solidariedade contemporânea não é coletivista, mas humanitária: dirige-se ao desenvolvimento não do grupo, mas da personalidade de todas as pessoas. O solidarismo atual não se confunde nem com o coletivismo, nem com o individualismo. [...] O solidarismo contemporâneo reage contra a ética liberal-individualista, e exige a tutela da condição humana, de todas as pessoas, e, sobretudo, entre todas as pessoas. Impõe o reconhecimento de que toda atuação individual repercute, de alguma forma, sobre os outros, e nos torna todos responsáveis pela preservação da alheia condição humana. Foi nesse sentido que a solidariedade foi incorporada pelas Constituições contemporâneas. A solidariedade social se cristaliza através da tutela jurídica da confiança, impondo um dever jurídico de não serem adotados comportamentos contrários aos interesses e expectativas despertadas em outrem. Na concepção de Anderson Schreiber, o fato do nemo potest venire contra factum proprium, ser admitido como princípio, facilita a sua aplicação onde não poderia sê-lo feito pela aplicação da cláusula geral da boa-fé, como na esfera extracontratual e em face da Administração Pública.15 Hodiernamente, o que se percebe é que há uma conscientização crescente de que os indivíduos têm o dever de serem solidários, protegendo-se mutuamente. E é dessa forma, que a solidariedade é vista nos dias atuais: como instrumento e resultado da dignidade humana, vindo fundamentar o princípio do nemo potesti venire contra factum proprium, ao se dirigir ao desenvolvimento da personalidade não apenas de um grupo de pessoas, mas à proteção de todas elas de forma indiscriminada. 13 AVELINO, Pedro Buck. Princípios da solidariedade: imbricações históricas e sua inserção na constituição de 1988. Revista de Direito Constitucional e Internacional. n. 3, out/dez. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 250. 14 SCHREIBER, Anderson. Op. cit. p. 53-54. 15 Ibidem. p. 107-108. 16 3 BOA-FÉ “Uma lei imutável não se pode conceber, senão numa sociedade imóvel.” Jean Cruet As relações jurídicas devem pautar-se na boa-fé, que etimologicamente deriva do latim, bona fides, que quer dizer: fidelidade, crença, confiança, sinceridade, convicção interior. Veio como marco diferencial entre o Código Civil de 2002, que em seu bojo valora a boa-fé objetiva, e o Código de 1916, que faz apenas, algumas menções à boa-fé subjetiva como forma de interpretação contratual. Conforme afirma REALE,16 o Código de 1916 pelo seu excessivo rigorismo formal, levou Pontes de Miranda a qualificar a boa-fé e a equidade como "abencerragens jurídicas", já que tudo deveria ser resolvido técnica e cientificamente pelas normas expressas, não sendo permitido recorrer a princípios considerados metajurídicos. O Código Civil atual norteia-se por três princípios - socialidade, eticidade e operabilidade – adotando, como técnica legislativa as cláusulas gerais, entre elas a boa-fé, possibilitando a evolução do pensamento e do comportamento social, sem ofensa à segurança jurídica. Com relação à boa-fé, ela foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, com a Lei nº. 8078 de 1990, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor, funcionando como ponto de equilíbrio nas relações consumeristas, já que o consumidor é a parte vulnerável dessa relação jurídica. Observam-se neste diploma legal, inúmeras manifestações sobre a boa-fé objetiva, v.g., no art. 4º, III17 que prevê a Política Nacional das Relações de Consumo, atendimento ao princípio da harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo, sempre com base na boa-fé e no equilíbrio das relações entre consumidores e fornecedores. 16 REALE, Miguel. Visão geral do projeto de código civil. Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros. ano 5, n. 10, 1. sem. 2001. p. 61-73. 17 Art. 4º CDC - A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (artigo 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; (VADE Mecum. 9. ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 803). 17 Contudo, foi com o Código Civil de 2002, que se inseriu no ordenamento jurídico pátrio, uma cláusula geral de boa-fé que, ao contrário do previsto no Código de Defesa do Consumidor – que esmiuçou esse princípio em vários artigos, essa boa-fé vem prevista em um único dispositivo, e determina a obrigação dos contratantes em guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da boa-fé e da probidade (art. 422, CC/2002). No direito moderno, a boa-fé assumiu o papel de uma fonte de normas objetivas, cuja atuação concreta se dá mediante a aplicação de princípios gerais, significando que a boa-fé pode ser entendida como uma norma geral, que se diversifica e especializa para cada situação concreta, ou seja, cujo conteúdo será formado e determinado em função das circunstâncias da hipótese concreta. 3.1 VERTENTES DA BOA-FÉ A boa-fé apresenta duas vertentes, a objetiva e a subjetiva, que embora provenham de um mesmo tronco, assumem diferentes funções, posto que a boa-fé subjetiva exerce uma função interpretativa dos contratos e a boa-fé objetiva atua mais como fonte integrativa, criando direitos e obrigações não previstas nos contratos. A boa-fé subjetiva refere-se à concepção em que o sujeito ignora o caráter ilícito do seu ato; já a boa-fé objetiva deve ser entendida como regra ética de conduta, delineando o padrão de conduta das partes, ao passo que, a boa-fé subjetiva deve ser compreendida como um estado de consciência, onde o que é relevante é a intenção do agente, devendo-se averiguar se ele não agiu com má-fé. Segundo Miguel Reale,18 a boa-fé subjetiva corresponde a uma atitude psicológica que se traduz por uma vontade da parte em atuar de acordo com o direito, segundo seu convencimento individual. No tocante à boa-fé objetiva, cada pessoa deve ajustar sua conduta, pautando-se na lealdade, na conduta que deveria ter uma pessoa proba, honesta e leal. E, ainda acrescenta que, a boa-fé, deve ser vista sob a ótica de um contexto fático, captando-se a realidade factual por inteiro, a qual deve estar de acordo com as normas vigentes e confrontálas com a vontade dos contratantes. 18 REALE, Miguel. A Boa-fé no Código Civil. <http://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm >. Acesso em: 24 ago. 2010. Disponível em: 18 Do conceito da boa-fé objetiva, se infere que o princípio da boa-fé, também, encontra-se implícito no artigo 104 do Código Civil de 2002, que traz as regras da validade do negócio jurídico.19 Sabendo-se que, os princípios são os pilares, ou seja, eles trazem os fundamentos que servem de base para a elaboração das leis que regem todo um ordenamento jurídico, tem-se que o princípio da boa-fé objetiva se traduz por um conjunto de deveres que são essenciais aos negócios jurídicos, principalmente aos contratos, com a finalidade precípua de pautar a conduta dos contratantes, de acordo com a honradez, honestidade, probidade e boa-fé. Entretanto, somente a boa-fé objetiva, se relaciona ao princípio da boa-fé, eis que serve como fundamento de normas disciplinadoras, devendo o juiz aplicá-la em quaisquer relações jurídicas. De acordo com MARTINS:20 A boa-fé, no sentido objetivo, é um dever das partes, dentro de uma relação jurídica, se comportar tomando por fundamento a confiança que deve existir, de maneira correta e leal; mais especificamente, caracteriza-se como retidão e honradez, dos sujeitos de direito que participam de uma relação jurídica, pressupondo o fiel cumprimento do estabelecido. A boa-fé objetiva diz respeito ao trato entre as pessoas, onde os valores intrínsecos, éticos e morais, inerentes ao ser humano deveriam suplantar as regras legais já existentes, para que, desse modo prevalecesse o respeito à palavra dada e também ao comportamento praticado, resguardando-se assim, a honestidade, a honradez, a probidade, para que não haja abuso da confiança alheia. 3.2 FUNÇÕES DA BOA-FÉ OBJETIVA A boa-fé objetiva possui as seguintes funções: interpretativa, integrativa ou criadora de deveres anexos e, controladora ou restritiva ao exercício de direitos. A função interpretativa da boa-fé, prevista no artigo 113 do CC/200221 é utilizada para interpretar os negócios jurídicos, de modo que as partes atuem entre si pautadas na 19 Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I. agente capaz; II. objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III. forma prescrita ou não defesa em lei. (VADE Mecum. 9. ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 156). Esse artigo refere-se ao objeto lícito e nele está implícito a sua configuração conforme à boa-fé, devendo ser declarado ilícito todo ou parte do objeto que com ela conflite. 20 MARTINS, Flávio Alves. Boa-fé e sua formalização no direito das obrigações brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Júris. p. 73. 19 honestidade, lealdade e cooperação. Ela diz que os contratos devem ser entendidos de acordo com a boa-fé e com os usos do lugar. Sendo ela o mecanismo de interpretação dos contratos, com base na ética, deve prevalecer na interpretação o sentido que o pacto teria no meio social. Um exemplo de norma que prevê essa função é a constante no artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor ao determinar que as cláusulas contratuais sejam interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor. Esta função tem dupla finalidade: a primeira serve para fixar as diretrizes hermenêuticas da eticidade e da socialidade. Se o magistrado tiver dúvidas na interpretação das cláusulas contratuais, ele deverá interpretá-las de acordo com a boa-fé, utilizando-se de um critério objetivo. A segunda serve para orientar o magistrado quando houver lacunas, devendo ele observar a intenção e os propósitos dos contratantes de acordo com a boa-fé. A segunda função é a integrativa, e está prevista no art. 422 do CC/0222, consistindo em fazer com que, nas relações jurídicas existam os deveres anexos, laterais de proteção à prestação principal. Desse modo, impõe às partes outros deveres diversos daqueles previstos no contrato, como o dever de informação, de segurança, de sigilo, de cooperação, para o integral cumprimento dos fins contratuais. Essa função tem força normativa, e é utilizada nos casos particulares, onde não exista norma específica para regulá-los, ou seja, ela se apresenta como fonte de onde se originam normas de conduta. Insta consignar que essa função da boafé gera a violação positiva do contrato que se equipara ao inadimplemento, em razão do não cumprimento dos deveres anexos. A terceira função da boa-fé é uma função de limitação ao exercício de direitos, e está prevista no artigo 187 do CC/02.23 A boa-fé objetiva funciona evitando que as pessoas exerçam seus direitos subjetivos de forma desproporcional, exagerada. É nessa função de limitação ao exercício desproporcional de direitos subjetivos que a boa-fé objetiva encontra-se com o abuso do direito. Dessa forma, pode-se dizer que a boa-fé objetiva, controla o limite que os direitos subjetivos potestativos podem ser exercidos de forma razoável, e ao se exceder esse limite surge o abuso do direito, como ato ilícito dentro do ordenamento jurídico nacional. A vedação do comportamento contraditório é decorrência lógica da terceira função da boa-fé, qual seja do controle ao exercício de direitos. 21 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. (VADE Mecum. Op. cit. p. 156) 22 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. (VADE Mecum. Op. cit. p. 178) 23 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes. (Ibidem. p. 161) 20 Essa terceira função da boa-fé tem por escopo impedir o exercício de direitos em contrariedade à recíproca lealdade e confiança que são à base das relações privadas. Segundo SCHREIBER24 “trata-se de uma aplicação da boa-fé em seu sentido negativo ou proibitivo, vedando comportamentos que, embora legal ou contratualmente assegurados, não se conformem aos Standards impostos pela cláusula geral.” Segundo Cláudia Marques o significado da boa-fé objetiva consiste em uma atuação refletida, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem causar lesão ou vantagens excessivas, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.25 Ruy Rosado de AGUIAR JÚNIOR26 define a boa-fé como: Princípio geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera deveres secundários de conduta, que impõem às partes comportamentos necessários, ainda que não previstos expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim de permitir a realização das justas expectativas surgidas em razão da celebração e da execução da avença. Do conceito de boa-fé objetiva pode-se abstrair que esse princípio se atém à consideração pela posição da contraparte, visando seus interesses, suas esperanças e expectativas, em suma, a tutela da confiança. A boa-fé objetiva é o meio pelo qual princípios como o da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, inseridos direta ou indiretamente na Constituição Federal e no Código Civil, tornam-se instrumentalizados. 3.3 FUNDAMENTO INFRACONSTITUCIONAL DO NEMO POTESTI VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM É a tutela da confiança o fundamento infraconstitucional contemporâneo do princípio do venire contra factum proprium non potesti, entretanto, pelo fato da mesma não se 24 SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p 89. 25 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1.999. p. 181 26 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A boa-fé na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, n. 14, p. 20-27, abr./jun. 1995. 21 encontrar positivada no ordenamento jurídico pátrio, é a cláusula geral da boa-fé, prevista no artigo 422 do Código Civil de 2002, o fundamento para o princípio em comento. Consigne-se então, que de acordo com SCHREIBER,27 no plano normativo infraconstitucional, a proibição do venire contra factum proprium, enquadra-se na chamada terceira função da boa-fé objetiva, restringindo o exercício de direitos subjetivos, por meio da repressão ao abuso do direito. 27 SCHREIBER, Anderson. Op. cit. p. 283. 22 4 TUTELA DA CONFIANÇA A confiança em si mesmo é o primeiro segredo do êxito. Ralph W. Emerson O princípio da confiança tem por objeto proteger as expectativas geradas no indivíduo que confiou na postura e no vínculo criado através das normas prescritas no ordenamento jurídico. Em suma, este princípio promove a previsibilidade do direito a ser cumprido, assegurando que a fé na palavra dada não é infundada. De acordo com SCHREIBER,28 “a confiança tem desempenhado um papel fundamental na compreensão da boa-fé objetiva, a ponto de já ser a boa-fé definida como ‘uma confiança adjetivada ou qualificada como boa, isto é, como justa, correta ou virtuosa’.” E nesse diapasão, continua o autor: Com efeito, ao impor sobre todos, um dever de não se comportar de forma lesiva aos interesses e expectativas legítimas despertadas no outro, a tutela da confiança revela-se, em um plano axiológico-normativo, não apenas como principal integrante do conteúdo da boa-fé objetiva, mas também como forte expressão da solidariedade social, e importante instrumento de reação ao voluntarismo e ao liberalismo ainda amalgamados ao direito privado como um todo.29 . Segundo José de Oliveira ASCENSÃO, para que a confiança violada mereça proteção do ordenamento jurídico, torna-se imperioso a presença de quatro elementos para simultaneamente caracterizá-la: I) a confiança deve fundar-se na conduta de outrem; II) ela deve ser justificada; III) o agente deve ter feito o chamado ‘investimento de confiança’; e IV) há um comportamento que frustra a confiança criada e as providências nela fundadas.30 É o elemento de complementação dos contratos, trazendo deveres implícitos, anexos, que as partes não precisam estabelecer e está previsto no artigo 187 do CC/2002. São os deveres de honestidade, probidade, honradez e informação, dentre outros. Na dicção de Anderson SCHREIBER:31 De fato, a proibição de comportamento contraditório não tem por fim a manutenção da coerência por si só, mas afigura-se razoável apenas quando e na medida em que a 28 SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 91. 29 Ibidem. p. 95. 30 ASCENSÃO, José Oliveira apud MARTINS, Raphael Manhães. O Princípio da Confiança Legítima e o Enunciado n. 362 da IV Jornada de Direito Civil. Disponível em: <www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/.../956/1129 -> Acesso em: 07 nov 2010. 31 SCHREIBER, Anderson. Op. cit. p. 96. 23 incoerência, a contradição aos próprios atos, possa violar expectativas despertadas em outrem e assim causar-lhes prejuízos. Mais que contra a simples coerência, atenta o venire contra factum proprium à confiança despertada na outra parte, ou em terceiros, de que o sentido objetivo daquele comportamento inicial seria mantido, e não contrariado. Ausentes tais expectativas, ausente tal atentado à legítima confiança capaz de gerar prejuízo a outrem, não há razão para que se imponha a quem quer que seja coerência com um comportamento anterior. 4.1 DO CONSELHO FEDERAL DE JUSTIÇA Com a finalidade precípua de elaborar enunciados que se destinam à interpretação do Código Civil, o Conselho Federal de Justiça (CFJ) tem realizado encontros, denominados de “Jornadas de Direito Civil”. No encontro promovido em 2006, foi elaborado o Enunciado n. 362 cuja finalidade foi de interpretar o artigo 422 do CC/02. Assim dispõe: “A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil”. Buscou-se, dessa forma, demonstrar que o princípio em comento, está ligado à proteção da confiança, definido como princípio da confiança legítima, e como uma decorrência do princípio da boa-fé.32 4.2 FUNDAMENTAÇÃO DO VENIRE Fundamenta-se a vedação de comportamento contraditório, incoerente, na tutela jurídica da confiança, impedindo que seja possível violar as legítimas expectativas despertadas em outrem. A confiança, por seu turno, decorre da cláusula geral da boa-fé objetiva, que se encontra bem definida pela doutrina germânica como treu und glauben, isto é, o dever geral de lealdade e confiança recíproca entre as partes. Assim, a tutela da confiança atribui ao venire um conteúdo substancial, no sentido de que deixa de se tratar de uma proibição à incoerência por si só, para se tornar um princípio de proibição à ruptura da confiança, por meio da incoerência. 32 ENUNCIADOS aprovados na Jornada de Direito Civil. Revista da Escola Paulista da Magistratura. São Paulo, ano 4, n. 1, jan./jun. 2003. p. 177-203. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/1156 >. Acesso em: 07 nov. 2010. 24 5 TEORIA DO ABUSO DO DIREITO "As ações dos homens são as melhores intérpretes de seus pensamentos". John Locke A expressão abuso do direito refere-se à um direito subjetivo que foi exercido de modo irregular por seu titular. O exercício abusivo de um direito ocorre quando uma pessoa desvia a destinação social e econômica, para qual esse direito foi criado, causando dano a outrem. Pode também ser definido como o exercício de um direito de modo contrário à boa-fé ou às suas finalidades social e econômica. Embora o legislador se refira a essa teoria como Abuso de Direito, Aldemiro Rezende DANTAS JÚNIOR,33 em sua obra, cita Pontes de Miranda, grande mestre da ciência jurídica, que assim se referiu sobre a locução: a expressão “abuso de direito” é incorreta. Existe “estado de fato” e “estado de direito”; porém, não “abuso de fato” ou “abuso de direito”. Abusa-se de algum direito, do direito que se tem. Leis falam de ”abuso de direito”, expressão que aparece em certos juristas desatentos à terminologia científica e indiferentes à sua exatidão. “Abuso do direito”, ou abuso do exercício do direito é que é. Recebemo-la dos livros franceses e, lá, só se usa abus du droit. Com o escopo de coibir o abuso do direito, surge a teoria com o mesmo nome, em substituição à Teoria dos Atos Emulativos que vigorava na Idade Medieval. De acordo com essa teoria, alguém com o simples intuito de prejudicar outrem, sem obter vantagem pessoal, agia no exercício de um direito, ficando obrigado a reparar o dano causado. Para que houvesse a reparação do dano fazia-se mister a comprovação da culpa. A atual Teoria do Abuso do Direito foi reconhecida pelo Código Civil de 2002, embora este não tenha a ela se referido expressamente, e a tenha incluído no Título referente aos atos ilícitos. Para essa teoria, o dever de indenizar prescinde da comprovação da culpa. O Código Civil de 2002 tutela o abuso do direito em seu art. 187, que reza que comete também ato ilícito “o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”,34 ou seja, essa artigo revela que comete o ato ilícito aquela pessoa que exerce o seu direito de 33 DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá, 2008. p. 255. 34 VADE Mecum. 9. ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 161. 25 forma manifestamente excessiva, violando a boa-fé objetiva, a função social do contrato ou os bons costumes. A esta cláusula geral do art. 187 do CC/2002, passou-se a denominar abuso do direito. O entendimento desse artigo foi confirmado pelo Enunciado 37 da Jornada de Direito Civil, “A responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe da culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.35 O art. 186 do CC/2002 prevê o ato ilícito tradicional, que é um ato culposo, isto é, um ato antijurídico, onde a culpa deve ficar provada. Então, a diferenciação entre o ato ilícito tradicional, previsto no art. 186 e o abuso do direito do art. 187, ambos do CC/02, se faz através de três maneiras: a primeira é que o ato ilícito tradicional é um ato ilícito subjetivo, onde é necessário que se fique comprovado o elemento anímico psicológico da culpa; já o abuso do direito é um ato ilícito objetivo, pois prescinde do elemento culpa, bastando que a conduta do agente seja antijurídica, ou seja, o elemento psíquico-intencional é despiciendo. A segunda distinção é que o ato ilícito tradicional é também ilegal, pois o agente viola formalmente uma norma legal, ao passo que o abuso do direito, não se reveste de ilegalidade e sim, pela ilegitimidade da conduta do agente, pois o agente não viola formalmente uma norma, ele viola materialmente os limites éticos do ordenamento jurídico, pois a conduta não viola determinada norma, mas se dirige contra os objetivos e os valores do ordenamento civil-constitucional. No abuso do direito, o ato praticado pelo agente é antijurídico, mas não é uma antijuridicidade de origem, e sim, de resultado, pois o ato não nasce antijurídico, ele se torna antijurídico porque a finalidade da conduta é excessiva, porque o resultado que o agente busca é desproporcional perante o sistema. A última distinção entre ato ilícito e o abusivo, se refere à qualificação, que no caso do ato ilícito tradicional é feita pelo legislador, bastando uma aferição da norma, ou seja, se a conduta ofende uma norma, ela é ilícita; já, quem qualifica o ato ilícito como abusivo é o magistrado na análise do caso concreto. A qualificação do abuso do direito é construída pelos tribunais pátrios por ser o abuso do direito uma cláusula geral. O art. 187 do CC/2002 é uma das cláusulas gerais mais nobres do Código Civil, pois nele há uma conjunção de vários princípios como a boa-fé objetiva, os bons costumes, e a função social do contrato. 35 ENUNCIADOS aprovados na Jornada de Direito Civil. Revista da Escola Paulista da Magistratura. São Paulo, ano 4, n. 1, jan./jun. 2003. p. 177-203. Disponível em: <www.cjf.jus.br/revista/enunciados/enunciados.htm - >. Acesso em 07 nov. 2010. 26 Em conformidade com SCHREIBER,36 o venire contra factum proprium inclui-se como “um abuso do direito por violação à boa-fé”. E continua: o comportamento contraditório é abusivo, no sentido de que é um comportamento que, embora aparentemente lícito, se torna ilícito, ou inadmissível. E isto justamente porque seu exercício, examinado em conjunto com um comportamento anterior, afigura-se contrário à confiança despertada em outrem, o que revela, no âmbito normativo, contrariedade à boa-fé objetiva.37 Abusa do direito aquele que o exerce de forma aparentemente regular, mas em contradição com os valores que o ordenamento pretende por meio dele realizar. Um direito será considerado abusivo quando contrariar a boa-fé e, será, portanto, vedado. A Teoria do Abuso de Direito destaca-se dentro da concepção de relativização dos direitos, em que se limita o livre arbítrio do indivíduo em relação ao exercício dos seus direitos. Os direitos subjetivos deixam de ter caráter absoluto, devendo ser exercidos de forma a não prejudicar ilegitimamente as outras pessoas, de acordo com a sua finalidade econômica e social, a boa-fé e os bons costumes. A Teoria do Abuso do Direito foi adotada como cláusula geral no direito positivo, o que possibilita a sua aplicação em todos os casos em que o direito for exercido de forma abusiva, desrespeitando a sua finalidade econômica e social, a boa-fé e os bons costumes. 5.1 MODALIDADES DE ABUSO DO DIREITO Apesar de não-unânime, alguns doutrinadores caracterizam o venire contra factum proprium e suas figuras correlatas (suppressio, surrectio, e o tu quoque) como modalidades de abuso do direito. 5.1.1 Suppressio - O termo suppressio ou caducidade38 é usado nos países de origem latina, para se referir à expressão Verwirkung consagrada pela jurisprudência alemã, traduzindo-se pela inexigibilidade de exercício de um direito pelo seu retardamento desleal. A origem da suppressio é jurisprudencial, tendo sido usada nos julgados dos tribunais alemães, logo após a Primeira Guerra Mundial. Face à super desvalorização do marco alemão no período pós-guerra, em virtude de uma inflação muito elevada na 36 SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 119. 37 Ibidem. p. 119- 120. 38 Ibidem. p. 185. 27 Alemanha, o credor retardava o recebimento do pagamento, fazendo com que a quantia devida subisse a níveis muito elevados, impossibilitando o pagamento pelo devedor. Para coibir os abusos que estavam acontecendo, passaram os tribunais a decidir, que o exercício tardio do direito de receber era a causa do desequilíbrio das prestações, o que contrariava a boa-fé, poderia levar à perda desse exercício tardio. Em 5 de julho de 1923, o Reichsgericht decretou a “perda” do direito à correção monetária por parte de um empreiteiro que havia retardado por mais de dois meses a comunicação ao seu cliente acerca da pretensão de correção de preço.39 A suppressio significa a supressão da eficácia do exercício de um direito e ocorre quando o titular desse, se omite no exercício do poder legítimo por um longo lapso temporal, fazendo surgir na outra parte a surrectio, ou seja, a confiança que não mais será exercido o direito, trazendo para ela a aquisição de um direito subjetivo. Para que haja a configuração da suppressio não há necessidade de se perquirir se houve dolo ou má-fé do titular do direito, haja vista que a preocupação desse instituto é proteger a contraparte pela confiança depositada naquela relação, e não punir a inércia do titular do direito. Desse modo, são pressupostos para a ocorrência da suppressio:40 (I) a omissão no exercício do direito, (II) o transcurso de um determinado período, geralmente variável, e (III) indícios objetivos de que esse direito não mais seria exercido. Anderson SCHREIBER41 diz que o vínculo entre a suppressio e a noção de lealdade e confiança recíproca que caracterizam a boa-fé, surge claramente na passagem de José Roberto de Castro Neves: suppressio refere-se à demora desleal e anormal na realização de certo negócio. De acordo com o conceito, comprovada que a tardança não se justifica, a parte prejudicada fica liberada da obrigação. A ideia é, assim, afastar a exigência de uma obrigação cujo titular quedou inerte por período considerado incompatível. 5.1.1.1 Distinção entre a suppressio, a prescrição e decadência - A suppressio, em relação ao lapso temporal para o exercício de um direito, guarda semelhança com a prescrição e decadência, mas não pode ser confundida com tais institutos, posto que para a análise 39 GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: Código Comentado e Jurisprudência. 4. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2008. p. 217. 40 Ibidem. p. 217. 41 NEVES, José Roberto de Castro apud SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 188. 28 destes, faz-se necessário apenas o lapso temporal previsto em lei e a inatividade do titular do direito, sendo despiciendo que outras circunstâncias sejam analisadas. Entretanto, para que haja a configuração da suppressio, além dos requisitos acima mencionados, há a necessidade de que na contraparte, tenha sido despertada a confiança de que aquele direito não mais seria exercido. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal já decidiu pela aplicação dos princípios da Suppressio, Surrectio.42 5.1.2 Surrectio - A surrectio representa uma ampliação do conteúdo obrigacional, onde a atitude de uma das partes gera na outra a expectativa de direito ou faculdade não pactuada. A doutrina tem apontado como necessários para a aplicação da surrectio, a presença de três requisitos: a existência de certo lapso de tempo, por excelência variável, durante o qual se atua uma situação jurídica em tudo semelhante ao direito subjetivo que vai surgir; requer-se uma conjunção objetiva de fatores que concitem, em nome do Direito, a constituição do novo direito e impõe-se a ausência de previsões negativas que impeçam a surrectio.43 A aplicação desse instituto pode ser vista na decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, conforme transcrito: Fenômeno da surrectio a garantir seja mantido a ajuste tacitamente convencionado. A situação criada ao arrepio de cláusula contratual livremente convencionada pela qual a locadora aceita, por certo lapso de tempo, aluguel a preço inferior àquele expressamente ajustado, cria, à luz do Direito Civil moderno, novo direito subjetivo, a estabilizar a situação de fato já consolidada, em prestígio ao Princípio da Boa-Fé contratual.44 Através da surrectio a prática reiterada de certos atos pode gerar no beneficiário a expectativa de continuidade.45 42 DISTRITO FEDERAL (Estado). Tribunal de Justiça Quarta Turma Cível. Civil e Processo Civil. Ação de Cobrança. Parcelas de Contrato de Transporte de caráter continuado. Cobrança que dista cerca de 17 (dezessete) anos desde o alegado inadimplemento. Suppressio. Surrectio. Princípios da Boa-fé Objativa, da Confiança, do Abuso de Direito e do Venire contra factum proprium (Teoria dos “Fatos Próprios”). Apelação Cível nº 20070150117324. Relator Des. Cruz Macedo. Acórdão de 10 de dezembro de 2008. Portal JusBrasil. Disponível em: <www.jusbrasil.com.br/busca?q=SUPPRESSIO&s=jurisprudencia>. Acesso em: 23 jul. 2010. 43 MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A boa-fé objetiva e seus institutos. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/9087>. Acesso em: 30 maio 2010. 44 MINAS GERAIS (Estado). Tribunal de Justiça Décima Sexta Câmara Cível. Direito Civil. Locação Residencial. Situação jurídica continuada ao arrepio do contrato. Aluguel. Cláusula de preço. Apelação Cível nº 1.0024.03.163299-5/001. Relator Des. Mauro Soares Freitas. Acórdão em 07 de março de 2007. Disponível em: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4131817D5>. Acesso em: 07 nov. 2010. 45 GARCIA, Leonardo de Medeiros. Op. cit. p. 218. 29 Suppressio e surrectio correspondem aos dois lados de uma mesma moeda, pois, enquanto a supressão de um direito em razão da inércia de seu titular leva à perda desse direito na suppressio, tem-se que gera a aquisição desse direito subjetivo na surrectio em razão de um comportamento continuado. 5.1.3 Tu Quoque - Aos 15 de Março (Idos de Março) de 44 a.C. Júlio César, ditador romano, é assassinado por um grupo de senadores republicanos (os Liberatores) e por seu filho adotivo Brutus. Ao descobrir que Brutus atentava contra sua vida, Júlio César, pronuncia a seguinte frase que se eterniza: Tu quoque, Brute; tu quoque fili mi? (Até tu, Brutus, até tú, filho meu?). Com essa frase ficou eternizada a expressão tu quoque, cuja idéia é de que ninguém pode invocar normas jurídicas após descumpri-las. Essa expressão significa “até tu”, indicando um sentimento de surpresa pelo fato de alguém tentar se beneficiar de sua própria irregularidade no agir.46 Tu quoque vem a ser o emprego desleal de critérios valorativos diversos para situações substancialmente idênticas. A utilização do tu quoque é corriqueira nos casos em que o sujeito viola uma norma e depois quer valer-se desta, para o fim de gozar daquilo que ela garante. O objetivo precípuo do tu quoque é a vedação de dois pesos e duas medidas, ou seja, a não adoção de comportamentos contraditórios numa mesma relação. Segundo CORDEIRO,47 haveria uma tríplice função do tu quoque: a) manter, dentro do espaço contratual, o equilíbrio sinalagmático, b) manter o equilíbrio do exercício de direitos subjetivos que deferem o mesmo conteúdo de bens e, também, c) vedando o que se possa entender como abuso de direito, que na prática se trata de atuação de posição jurídica de que não se é titular ou que foi obtida de modo indevido. A diferença substancial entre tu quoque e venire contra factum proprium reside no objetivo primordial de cada um. Muito embora ambos se assemelhem pela idéia de incoerência, no tu quoque há uma nítida repressão à má-fé, enquanto no venire contra factum proprium o que se tutela é a legítima confiança. Um exemplo desse princípio é a exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus) prevista no art. 476 do Código Civil de 2002,48 querendo dizer que se a 46 GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: Código Comentado e Jurisprudência. 4. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2008. p. 219. 47 CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes, Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2001, v. II. p. 851. 30 parte não executar a sua prestação no contrato sinalagmático, não poderá exigir da outra parte a contraprestação. O inadimplente não pode exigir da outra parte o cumprimento da contraprestação que não prestou, e nem poderá invocar a regra que descumpriu em seu benefício. Aldemiro Rezende DANTAS JÚNIOR, 49 citando Antônio Junqueira de Azevedo, diz que: em termos jurídicos, o tu quoque se caracteriza pela mudança de valoração em relação à mesma situação, ou seja, o sujeito, diante de duas situações idênticas, adota dois critérios valorativos completamente distintos, ou seja, vale-se da “utilização de dois pesos e duas medidas”. Entretanto, Menezes de Cordeiro,50 aduz que na figura do tu quoque, “a contradição não está no comportamento do titular-exercente em si, mas nas bitolas valorativas por ele utilizadas para julgar e julgar-se”. Um exemplo clássico citado pela doutrina, diz respeito ao artigo 180 do CC/02, 51 em que, o incapaz relativo, sem assistência, minora sua idade e depois tenta desfazer-se do negócio jurídico, alegando sua incapacidade. Nesse aspecto, já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais: Aplicação da Teoria da Aparência, a fim de que se proceda à defesa da credibilidade dos negócios jurídicos comutativos, como o da espécie. E "é exigir demais, com efeito, no âmbito do comércio, onde as operações se realizam em massa, e por isso sempre em antagonismo com o formalismo, que a todo instante o terceiro que contrata com uma sociedade comercial solicite desta a exibição do contrato social, para verificação dos poderes do gerente". (Rubens Requião, in "Curso de Direito Comercial"). Verifica-se a configuração da tu quoque, espécie de abuso do direito, quando da adoção indevida pela apelante de uma primeira conduta que se mostra incompatível com a conduta posterior, comportamento contraditório este que deve ser combatido, sob pena de estar-se privilegiando a torpeza da mesma e, até mesmo, o seu locupletamento.52 48 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. (VADE Mecum. 9. ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 182) 49 AZEVEDO, Antônio Junqueira apud DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá, 2008. p. 380. 50 CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da Boa-fé no Direito Civil . Coimbra: Almedina, 2001. v. II. p. 843. 51 Art. 180. O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior. (VADE Mecum. Op. cit. p. 160) 52 MINAS GERAIS (Estado). Apelação Cível. Anulação de Contrato. Vício na representação da pessoa jurídica. Descabimento. Teoria da Aparência. Comportamento contraditório. Abuso de direito. Tu quoque. Improvimento. Apelação Cível nº 1.0024.05.863126-8/001. Relator Des. Hilda Teixeira da Costa. Acórdão em 14 de novembro de 2007. Portal TJMG. Disponível em: <www.tjmg.jus.br/..._/inteiro_teor.jsp >. Acesso em: 07 nov. 2010. 31 6 NEMO POTESTI VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM "O coração do homem existe para reconciliar as contradições." David Hume 6.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS A idade moderna tem como elemento característico o dinamismo social, que faz com que as pessoas estejam constantemente em busca de mudanças. Esse caráter inovador tem como uma de suas fontes a utilização da internet, que pelo fenômeno da globalização possibilitou a todos, de uma maneira geral, estar a par da evolução cotidiana. Isso traz como consequência uma inquietude que se traduz pela busca de novos conhecimentos e alteração de convicções, fazendo com que sejam adotados às vezes, comportamentos contraditórios. O Código de 1916 foi baseado no anteprojeto de Clovis Bevilaqua que se inspirou no Código francês, na legislação luso-brasileira e no Código Alemão. Dessa forma, tem-se um Código cujo projeto, elaborado em 1889, distancia-se da realidade brasileira, posto que, sofreu forte influência das codificações européias, elaboradas para países, que possuíam um grau de desenvolvimento que não se compatibilizava com o brasileiro. Este diploma legal não continha uma previsão relativa ao comportamento contraditório. Com o advento da Constituição de 1988 foi preciso pensar em uma reformulação para o Código Civil. O que se buscava era uma participação democrática na elaboração do referido diploma, entretanto, não foi isso que ocorreu. O Código Civil de 2002, baseado no anteprojeto de Miguel Reale, foi inspirado no Código Civil italiano. Entretanto, este diploma legal não teve muitas alterações, em relação ao seu precedente. A ausência de grandes inovações se explica, em parte, pela própria desatualidade do projeto original, elaborado mais de uma década antes da atual Constituição e indiferente às profundas transformações por ela provocadas no direito brasileiro.53 Diante dessa situação, alega SCHREIBER54 que seria impossível esperar grandes inovações, principalmente, no que se refere a uma norma geral expressa de proibição ao comportamento contraditório. Tanto o Código Civil brasileiro de 1916, como o de 2002, basearam-se no direito romano, que foi em grande parte compilado, inicialmente, pelo trabalho dos glosadores e, 53 SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 73. 54 Ibidem. p. 74. 32 posteriormente, pelos pós–glosadores, exercendo forte influência nos Códigos da Europa, e sendo recepcionado nas legislações do mundo inteiro. O primeiro registro expresso do princípio da vedação do comportamento contraditório se encontra na obra do glosador Azo,55 intitulado Brocardica, que consistia numa compilação de brocardos jurídicos extraídos a partir da interpretação de fontes romanas. No título X dessa obra encontra-se o aforismo “venire contra factum proprium nulli conceditu”, ou seja, “a ninguém é concedido vir contra ato próprio”.56 Inicialmente, esse aforismo tinha como fundamentação a incoerência, e em consequência disto, ficou um longo lapso temporal sem poder ser aplicado, pois havia ao mesmo tempo dispositivos legais que permitiam a sua utilização e outros que a vedavam. Foi a obra de Erwin Riezler, em 1912, conforme cita SCHREIBER, 57 que assinala o marco para o ressurgimento contemporâneo do nemo potesti venire contra factum proprium através da identificação do verdadeiro rectius, ou seja, o verdadeiro fundamento normativo desse princípio, que é a boa-fé objetiva. O Código Civil de 2002, não trouxe expresso uma norma sobre a vedação do comportamento contraditório, mas manteve alguns artigos do Código de 1916, que faziam referência a uma repressão legislativa a respeito do comportamento incoerente, como pode ser observado nos artigos 17558, 47659, 49160, e no parágrafo único do artigo 61961. Todas essas normas acima descritas, apesar de versarem sobre temas diferentes, trazem em comum, uma preocupação do legislador em evitar as consequências de um comportamento contraditório, ou seja, trazem implícito o princípio do nemo potesti venire nulli conceditur. 6.2 CONCEITO O nemo potesti venire contra factum proprium se traduz por dois comportamentos lícitos, independentes e contraditórios de uma mesma pessoa, porém diferidos no tempo. O 55 O termo glosador, se refere ao método da glosa que consistia essencialmente em tecer comentários à margem ou entre as linhas dos textos romanos. 56 SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 24. 57 Ibidem. p. 81. 58 Art. 175. A confirmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anulável, nos termos dos arts. 172 a 174, importa a extinção de todas as ações, ou exceções, de que contra ele dispusesse o devedor. (VADE Mecum. 9. ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 160) 59 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. (Ibidem. p. 182) 60 Art.491. Não sendo a venda a crédito, o vendedor não é obrigado a entregar a coisa antes de receber o preço. (Ibidem. p. 183) 61 Art. 619. (...) Parágrafo único. Ainda que não tenha havido autorização escrita, o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acréscimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando, e nunca protestou. (Ibidem. p. 191) 33 primeiro comportamento faz surgir em outrem a confiança, a expectativa de que determinada relação jurídica será concretizada. Sobrevindo posteriormente um segundo comportamento que contraria o anterior, o seu não-cumprimento é capaz de causar dano ou iminência de dano na contraparte, surgindo dessa forma o venire contra factum proprium. O escopo da teoria dos atos próprios não é o de evitar a anulação ou a revogação de atos cuja preservação se afigura ilícita ou inconveniente. Não se trata de uma teoria voltada a eternizar atos jurídicos, conservando-os de modo permanente em contrariedade às exigências da lei ou dos interesses em jogo. Sua função é tão-somente a de evitar que a confiança legítima depositada por certa pessoa no comportamento adotado por outra seja lesada pela abrupta alteração deste comportamento. Esta proibição ao comportamento contraditório não decorre da regra pacta sunt servanda – princípio da força obrigatória, que privilegiando a autonomia da vontade, estipula que tudo aquilo que foi pactuado deve ser cumprido – mas sim da concretização da cláusula geral da boa-fé objetiva e da tutela da confiança. Destarte, a função precípua da vedação ao comportamento contraditório é a proteção à confiança. Segundo Aldemiro Rezende DANTAS JÚNIOR62 uma tradução da expressão poderia assim ser definida: A expressão venire contra factum proprium poderia ser vertida para o vernáculo em tradução que se apresentaria em algo do tipo "vir contra seus próprios atos" ou "comportar-se contra seus próprios atos". Pode ser apontada, em uma primeira aproximação, como sendo abrangente das hipóteses nas quais, uma mesma pessoa, em momentos distintos, adota dois comportamentos, sendo que o segundo deles surpreende o outro sujeito, por ser completamente diferente daquilo que se poderia razoavelmente esperar, em virtude do primeiro. Para Menezes CORDEIRO,63 esta expressão pode ser assim retratada: A locução ‘venire contra factum proprium’ traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Esse exercício é tido, sem contestação por parte da doutrina que o conhece, como inadmissível. A articulação interna do ‘venire contra factum proprium’, o seu âmbito, a sua fundamentação, as suas ligações às outras regulações típicas do exercício inadmissível dos direitos e, até, a sua recondução à boa-fé suscitam, pelo contrário, controvérsias acesas. 62 DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá 2008. p. 291. 63 CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2001, v. II. p. 742. 34 E no mesmo diapasão:64 Venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo. [...] Só se considera como ‘venire contra factum proprium’ a contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor. Segundo Régis Fichtner PEREIRA,65 a proibição ao venire contra factum proprium, ou como cita a doutrina, a teoria dos atos próprios pode ser conceituada como a inadmissibilidade de contradição a uma conduta anteriormente adotada numa relação jurídica, por se exigir que as partes atuem com coerência, com base na palavra dada, que está contida na cláusula geral da boa-fé. 6.3 O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM E OS EXEMPLOS DE SUA APLICAÇÃO O princípio da vedação do comportamento contraditório ou princípio da tutela da confiança legítima ou nemo potest venire contra factum proprium, ou nemo potesti venire contra factum proprium nulli conceditur ou ainda, venire contra factum proprium non potesti, ocorre quando uma pessoa pratica dois atos consecutivos, lícitos. Entretanto, o segundo ato contradiz o primeiro, surgindo o abuso do direito, quando a segunda conduta frustra as legítimas expectativas de confiança da contraparte da relação jurídica. O exemplo mais clássico do venire ficou conhecido como o “caso dos tomates”, proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A empresa Cica, procurando incentivar o plantio de tomates da região, distribuía sementes aos agricultores gaúchos, e posteriormente fazia a compra da safra para industrialização, gerando uma expectativa que se fazia presente desde a fase pré-contratual, embora nenhum contrato escrito fosse celebrado. Entretanto, em determinado ano, após ter distribuído aos agricultores as sementes como vinha fazendo em vários anos, sob a alegação de queda no consumo, a empresa não adquiriu a produção, o que levou a perda da safra. O TJ/RS responsabilizou a empresa por tais condutas de quebra da confiança.66 64 CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 1984. p. 745-746| 65 PEREIRA, Régis Fichtner. A responsabilidade Civil Pré-contratual. Rio de Janeiro: Renovar. 2001. p. 84. 66 RIO GRANDE DO SUL (Estado). Tribunal de Justiça Terceiro Grupo de Câmaras Cíveis. Contrato. Teoria da Aparência. Inadimplemento. O trato, contido na intenção, configura contrato, porquanto os produtores, nos anos anteriores, plantaram para a CICA, e não tinham por que plantar, sem a garantia da compra. Embargos Infringentes nº 591083357. Relator Des. Adalberto Libório Barros. Acórdão em 01 de novembro de 1991. 35 Outro exemplo de venire reside na súmula 370 do STJ67 que diz que apesar da reiterada prática de emitir cheques pós-datados, não há autorização legal para seu uso, conforme dispõe o artigo 32 da Lei do cheque (7.357/85).68 O ponto fundamental da Súmula 370 para caracterizar o venire está no fato da apresentação do cheque pós-datado ocorrer antes da data pactuada entre as partes envolvidas posto que, a primeira conduta do credor foi de aceitação do cheque pré-datado, dando ao devedor uma legítima expectativa de confiança que o credor esperaria o tempo estipulado para fazer o depósito do cheque. A segunda conduta do credor ao depositar o cheque antes do prazo combinado, frustra as expectativas do credor pela “quebra” da boa-fé objetiva, surgindo o abuso do direito. 6.4 PERMISSÃO LEGISLATIVA PARA O COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO A proibição ao venire contra factum proprium não veda peremptoriamente a revisitação dos próprios rumos. “A vida é tecida por imprevistos, a surpresa pode ser um dom, viver é adaptar-se ao inesperado no que este tem de vantagens e desvantagens: só os robôs (mecânicos ou humanos) tudo têm programado de forma inflexível.”69 Nem toda incoerência comportamental pode ser caracterizada como sendo caso de venire, e a contrariedade em si mesma não será sancionada, ou seja, nem toda conduta contraditória a uma conduta anterior, será considerada como hipótese de venire contra factum proprium. O legislador brasileiro, ao mesmo tempo em que faz menção à proibição do comportamento contraditório, em vários dispositivos autoriza a contradição, como v.g., nos artigos 428, IV70, 196971, 43872, 79173 todos do Código Civil de 2002. Embora cada (GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: Código Comentado e Jurisprudência. 4. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2008. p. 216) 67 Súmula 370 do STJ: Caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado. (VADE Mecum. Op. cit. p. 1.809).. 68 Art.32 da Lei do cheque (7.357/85) O cheque é pagável à vista. Considera-se não escrita qualquer menção em contrário. Parágrafo único: O cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação. (Ibidem. p. 1.402) 69 MARTINS-COSTA, Judith. A ilicitude derivada do exercício contraditório de um direito: o renascer do venire contra factum proprium. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 120. 70 Art. 428. Deixa de ser obrigatória a proposta: (...) IV – se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente. (VADE Mecum. Op. cit. p. 178-179) 71 Art. 1.969. O testamento pode ser revogado pelo mesmo modo e forma como pode ser feito. (Ibidem. p. 304) 72 Art. 438. O estipulante pode reservar-se o direito de substituir o terceiro designado no contrato, independentemente da sua anuência e da do outro contratante. Parágrafo único. A substituição pode ser feita por ato entre vivos ou por disposição de última vontade. (Ibidem. p. 179) 36 dispositivo verse sobre assuntos diversos, eles trazem em comum a permissão do legislador para que alguém possa contradizer seu comportamento anterior. O venire contra factum proprium, nem sempre é proibido, posto que, a própria lei, assim o permite como ocorre quando os pais, tutores ou curadores revogam a autorização que já haviam concedido anteriormente para o casamento do menor impúbere desde que essa ocorra antes da celebração do matrimônio (art. 1518 CC/02).74 A incoerência em si mesma é irrelevante, apenas interessando as suas consequências quanto ao surgimento ou não, da confiança, na contraparte. 6.5 PRESSUPOSTOS OU REQUISITOS PARA APLICAÇÃO DO NEMO POTESTI VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM 6.5.1 Pressupostos - Para que uma norma jurídica possa ser aplicada faz-se mister que os pressupostos de sua aplicabilidade estejam presentes. Pressupostos são os componentes da situação fática sobre a qual a norma incide,75 levando em consideração além da estrutura e da proposição, a função pela qual a norma se expressa. A função do nemo potesti venire contra factum proprium é a tutela da confiança. Os pressupostos para aplicação do princípio de vedação do comportamento contraditório são: a) factum proprium; b) legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; c) um comportamento contraditório; e d) a existência de um dano ou um potencial de dano a partir da contradição. 76 Em seguida, será feita uma análise dos aludidos pressupostos. 6.5.1.1 Factum Proprium - Como primeiro pressuposto, tem-se o factum proprium, que se refere a um comportamento, a uma conduta inicial, que pode ser omissivo ou comissivo, e que deve ser válido quando individualmente considerado, posto que, se não o for, estar-se-ia diante do campo da ilegalidade, e não mais se poderia falar em venire, devendo também ser capaz de repercutir na vida das pessoas. O termo factum é uma expressão derivada do latim que pode ser traduzida como um fato, não no sentido de fato jurídico em sentido amplo, nem tampouco em sentido estrito, 73 Art. 791. Se o segurado não renunciar à faculdade, ou se o seguro não tiver como causa declarada a garantia de alguma obrigação, é lícita a substituição do beneficiário, por ato entre vivos ou de última vontade. (VADE Mecum. 9. ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 203) 74 Art. 1.518. Até à celebração do casamento podem os pais, tutores ou curadores revogar a autorização. (Ibidem. p. 267) 75 SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 131. 76 Ibidem. p. 132. 37 posto que englobaria os acontecimentos naturais que independem da vontade humana, e sob esse ponto de vista, deixariam de poder ser caracterizados no âmbito do nemo potesti venire contra factum proprium, já que o direito brasileiro adotou a necessidade da declaração da vontade para que se constitua um ato jurídico. Segundo Orlando GOMES,77 atos jurídicos são “manifestações de vontade que produzem, em virtude da cobertura legal, a aquisição ou a extinção de direitos”. O factum proprium não é um ato jurídico no sentido tradicional, posto que o comportamento inicial não goza de cobertura legal. O comportamento inicial não pode ser vinculante, pois a contradição a um comportamento que o próprio ordenamento jurídico já atribui força vinculante terá uma sanção legalmente prevista, que é a responsabilização civil. Nestes casos, torna-se desnecessário invocar a figura da confiança, que só será utilizada para aplacar os rigores da sanção. Nos dizeres de Anderson SCHREIBER,78 o factum proprium: É, por definição, uma conduta não-vinculante. Torna-se vinculante apenas porque e na medida em que, despertando a confiança de outrem, atrai a incidência do princípio de proibição do comportamento contraditório e impõe ao seu praticante a conservação do seu sentido objetivo. O factum proprium não consiste em ato jurídico no sentido tradicional; passa a produzir efeitos jurídicos somente por força da necessidade de tutelar a confiança legítima depositada em outrem. Em síntese, não é jurídico, torna-se jurídico. Para Aldemiro Rezende DANTAS JÚNIOR79: O primeiro comportamento (o factum proprium), se isoladamente considerado, não é vinculante, não vincula o sujeito a um específico e determinado comportamento posterior. A vinculação surgirá apenas porque, no contexto da situação, verificou-se o surgimento da confiança no segundo sujeito, e a proteção dessa confiança é que conduzirá à necessidade de que o segundo comportamento se mostre coerente, rejeitando-se o que seja contraditório (o venire). Esse comportamento só se torna vinculante ao despertar a confiança de outrem, onde então, poderá ser invocado o princípio de vedação ao comportamento contraditório. Não se exige que o factum proprium seja juridicamente relevante ou eficaz, mas sim que tenha 77 GOMES, Orlando Introdução ao direito civil, Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 239. SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p.134. 79 DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá, 2008. p. 317. 78 38 relevância fática, repercutindo na esfera alheia, e sendo capaz de gerar em outrem, a legítima confiança. Salienta Anderson SCHREIBER,80 que o caráter inicialmente não-vinculante do factum proprium não deve ser ignorado, pois ao atuar sobre condutas que a princípio não recebem qualquer proteção jurídica, o nemo potesti venire contra factum proprium transforma as condutas em juridicamente vinculantes, no sentido de que passam a não ser mais passíveis de contradição. Tais condutas, inicialmente irrelevantes ao direito, tornam-se, desta forma, relevantes, porque o direito passa a exigir a sua conservação. Faz-se oportuno consignar, que o factum proprium é o núcleo central do instituto em estudo, posto que, a tutela da confiança é o fator que fundamenta a proteção à incoerência e legitima a alegação do venire contra factum proprium nos casos em que aquela haja sido ludibriada. 6.5.1.2 Legítima Confiança81 - O princípio do nemo potesti venire contra factum proprium exige como pressuposto de aplicação, que o factum proprium desperte em outrem a 80 SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 139. 81 (i) DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça Décima Terceira Câmara Cível. TERCEIRA CÂMARA CÍVEL EMBARGOS À EXECUÇÃO. Auxílio Previdenciário. Termo Final dos Cálculos. Concordância das Partes. Posterior Irresignação do Apelante/Beneficiário. Inadmissibilidade. Violação à Boa-Fé. Preclusão Lógica. Após transcorridos 02 (dois) anos dessa concordância, o exeqüente/embargado passou a afirmar que nunca recebeu qualquer benefício e, ainda, que os cálculos deveriam incluir o que não foi pago até a presente data, alterando, assim, o termo final dos cálculos da execução. A toda evidência, essa postura ofende a boa-fé objetiva, atentando contra a lealdade processual (CPC, 14, II). Com isso, o apelante viola o padrão ético de comportamento esperado e legalmente imposto (CC, 187) ao assumir conduta contrária/contraditória àquilo que legitimamente dele se espera e foi afirmado. Quebra-se a legítima confiança que nele foi depositada, gerando séria insegurança jurídica e provocando, em última análise, a desestruturação das respectivas relações. Nesse sentido, vale o brocardo latino nemo potest venire contra factum proprium. O reconhecimento do apelante importou na preclusão lógica do ponto. Desse modo, havendo prévia concordância, a impugnação do apelante posteriormente apresentada deve ser rejeitada. Desprovimento do recurso. Apelação Cível nº 2007.001.41829. Relator Des. Sérgio Cavalieri Filho. Acórdão em 19 de dezembro de 2007. (ii) RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça Décima Terceira Câmara Cível. AÇÃO DE COBRANÇA. Serviços Educacionais Integralmente Prestados. Inadimplência do Consumidor. Ausência de Justificativa. Alegação Genérica de Ilegalidade de Cláusulas Contratuais. Venire Contra Factum Proprium. Contrariedade à Boa-Fé. É vedado à demandada/apelante furtar-se ao cumprimento daquilo a que livremente se comprometeu, sob o falso e genérico pretexto de ilegalidade de cláusulas contratuais, principalmente após a outra parte ter cumprido integralmente o que lhe cabia (CC, 422; 476, a contrario sensu). Os deveres de transparência e lealdade são exigidos tanto do prestador/fornecedor do serviço quanto do consumidor. Cuida-se de imanência lógica e necessária da boa-fé (v.g., CC, 422; CDC, 4º, III). Desse modo, se o consumidor experimentar situação crítica capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, deverá informar o fato ao prestador/fornecedor do serviço, objetivando a solução consensual do problema e, assim, honrar o pacto. Tem-se aqui autêntico venire contra factum proprium, ou seja, o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente, o que ofende o valores da segurança jurídica e da boa-fé.Desprovimento do recurso. Apelação Cível nº 2007.001.42856. Relator Des. Sérgio Cavalieri Filho. Acórdão em 12 de setembro de 2007. 39 legítima confiança de que a conduta inicial será mantida, entendida em seu sentido objetivo, não havendo necessidade da prova cabal da adesão, bastando apenas alguns indícios. Nas palavras de Anderson SCHREIBER,82 para a verificação da adesão da legítima confiança ao factum proprium, faz-se mister analisar a existência de alguns indícios gerais não-cumulativos: (i) a efetivação de gastos e despesas motivadas pelo factum proprium, (ii) a divulgação pública das expectativas depositadas, (iii) a adoção de medidas ou a abstenção de atos com base no comportamento inicial, (iv) o grau elevado de sua repercussão exterior, (v) a ausência de qualquer sugestão de uma futura mudança de comportamento, e assim por diante. A vinculação da legítima confiança à conduta inicial deverá ser analisada no caso concreto através da verificação das circunstâncias presentes e do juízo de valor do magistrado. Aldemiro Resende DANTAS JÚNIOR83 afirma que a confiança só poderá ser aferida na hipótese real para caracterizar ou não o venire, e que funciona como um elemento de ligação entre a boa-fé e o caso concreto. No entanto, essa confiança deve ser legítima, ou seja, deve inexistir norma legal ou contratual que autorize expressamente a contradição. Entretanto, essa legítima confiança dá-se por excluída caso seja verificada a má-fé por parte daquele que invoca o princípio de proibição do comportamento contraditório. 6.5.1.3 Contradição ao factum proprium84 - O venire, ou seja, a contradição ao factum proprium é o terceiro pressuposto para aplicação do princípio de vedação ao comportamento contraditório, sendo o exercício de um comportamento em contrariedade ao 82 SCHREIBER, Anderson. Op. cit. p. 141-142. DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá, 2008. p. 295. 84 (i) RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça Nona Câmara Cível. AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. VEÍCULOAUTOMOTOR FINANCIADO JUNTO AO BANCO-RÉU. SENTENÇAQUE JULGA PROCEDENTE O PEDIDO. RÉU QUE NÃO SEDESINCUMBIU DO ÔNUS DE DEMONSTRAR A INSUFICIÊNCIADOS DEPÓSITOS. DESPROVIMENTO DO RECURSO. - A alegação concernente à insuficiência dos depósitos efetuados pelo autor não merece prosperar em razão do não atendimento pelo réu do disposto no art. 896, parágrafo único do Código de Processo Civil, já que a contestação não traz uma planilha delimitando os valores faltantes. - O autor comprovou o pagamento das prestações mencionadas na inicial e das vencidas no curso do processo, pelo valor previsto no contrato, não se insurgindo o réu contra os comprovantes apresentados. - A não inclusão dos juros de mora, multa e comissão de permanência nos valores depositados pelo autor não foi sustentada na contestação, estando preclusa a matéria. - A discussão acerca da verificação da adoção de práticas abusivas por parte do réu ou da cobrança de juros capitalizados não se mostra cabível na presente ação, visto que não se pede a revisão de cláusulas contratuais .- Não há que se cogitar de aplicação do venire contra factum proprium, vez que não se observa comportamento contraditório da parte do autor. Desprovimento do recurso. Apelação Cível nº 2007.001.67974. Relator Des. Carlos Santos de Oliveira. Acórdão em 22 de janeiro de 2008. 83 40 comportamento inicial. Essa conduta, no entanto, é lícita, posto que, se contrária fosse ao ordenamento jurídico, já seria por ele sancionando, não cabendo, desse modo, se invocar o aforismo latino. Essa conduta lícita, só se torna inadmissível na presença dos outros pressupostos do ditado latino. Menezes CORDEIRO85 lembra que “só se considera como venire contra factum proprium a contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor”. Pelo fato do nemo potesti venire contra factum proprium ser um princípio estritamente objetivo, é irrelevante a análise do animus subjetivo, da vontade de contrariar ou de romper a confiança de outrem. O que realmente é importante é a tutela da confiança da contraparte atingida. Aldemiro Resende DANTAS JÚNIOR citando Judith Martins-Costa, aduz que a incoerência em si mesma é irrelevante: (...) nem toda a conduta contraditória constitui requisito suficiente para a invocação do princípio, nem há um dever de coerência absoluta que possa ser apreciado in abstracto . A coibição é à deslealdade impregnada no ato contraditório, e o telos é a proteção da parte que confiou fundamentadamente na primeira conduta (o factum) [grifos no original].86 Anderson SCHREIBER87 sustenta que: “Também não é de se exigir, como pretende a doutrina, que haja um lapso temporal entre o factum proprium e o comportamento que o contradiz: basta que a sua repercussão não tenha chegado simultaneamente ao tutelado”. 6.5.1.4 Dano ou potencial de dano - Como último pressuposto de aplicação do provérbio latino, faz-se necessário demonstrar a ocorrência do dano ou do potencial de dano que aquele que contradisse sua conduta inicial possa ter causado em outrem. Para Anderson SCHREIBER:88 não se exige um dano efetivo; o mero potencial lesivo já é suficiente, porque, sendo bem sucedido em seu efeito primordial, o nemo potest venire contra factum proprium impedirá mesmo a produção de qualquer prejuízo, obstando o 85 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001, v. II. p. 746. 86 MARTINS-COSTA, Judith apud DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá, 2008. p. 294. 87 SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 286. 88 Ibidem. p. 153. 41 comportamento contraditório. Se, todavia, o comportamento contraditório não puder ser obstado a tempo, e dano se verificar, assumirá o princípio um efeito reparatório, impondo o desfazimento da conduta posterior ou ressarcimento pecuniário dos danos, conforme o caso. Os danos decorrentes do venire podem ser patrimoniais, como os danos emergentes, os lucros cessantes devidos à determinada atividade rentável que deixou de ser concretizada, além das despesas efetuadas por conta de expectativas despertadas e também morais,89 como reflexo de frustração de expectativas sobre os atributos da personalidade humana. 6.6 FINALIDADE Tem-se como indubitável que a finalidade precípua do princípio em tela, é resguardar aquele que aderiu de boa-fé, ao sentido da conduta inicial, impedindo que a incoerência e a ruptura da confiança, possam lhe ocasionar prejuízos Anderson SCHREIBER90 assim aduz sobre a finalidade do venire: “eis, aliás, o que há de mais sedutor no nemo potest venire contra factum proprium, e o que consiste na sua mais nobre função, qual seja, a de correção das injustiças provocadas pelo formalismo excessivo do sistema jurídico positivo”. 89 (i) RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça Décima Quinta Câmara Cível. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. REFORMA. Empresa autorizatária do serviço de telefonia móvel celular que emite conta de consumo, em cumprimento à sentença proferida no JEC, mas cobra, novamente, valores indevidos. Conduta contraditória que não se sustenta em justificativa plausível. Aplicação do princípio que veda a adoção de comportamento contraditório (venire contra factum proprium). Dano moral caracterizado pela negativação indevida do nome do consumidor. Indenização arbitrada em R$ 10.000,00 (dez mil reais). Recurso a que se dá parcial provimento para julgar parcialmente procedentes os pedidos formulados na inicial. Apelação Cível nº 2007.001.54208. Relator Des Agostinho Teixeira de Almeida Filho. Acórdão em 04 de março de 2008. (ii) RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça Décima Terceira Câmara Cível. RENOVAÇÃO DA CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO Exigência de Apresentação da Ata de Direção Veicular. Descabimento. Venire Contra Factum Proprium. Dano Moral Configurado Redução do Valor da Indenização. njustificável exigir o Detran que o motorista apresente dados e informações, que deveriam constar dos seus arquivos, relativos a fatos ocorridos a mais de 30 anos. Em face da presunção de legalidade do ato administrativo, esse ônus recai sobre a autarquia. A expedição da Carteira de Habilitação, bem como a sua anterior renovação, legitima a pretensão a uma nova renovação, caracterizando a recusa do Detran - o venire contra factum proprium - exercício de um posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente.Tal conduta gera mais do que aborrecimentos banais ou mera irritação; vão ao ponto de causar insegurança, perplexidade e preocupações, porquanto dirigir sem habilitação ou com a carteira vencida constitui ilícito administrativo e penal.Redução da indenização para ajustá-la aos princípios da razoabilidade e exemplariedade e adequá-la a casos semelhantes já apreciados por este Tribunal. Apelação Cível nº 2007.001.42628. Relator Des. Sérgio Cavalieri Filho. Acórdão em 14 de novembro de 2007. 90 SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 137. 42 6.7 CONSEQUÊNCIAS DA UTILIZAÇÃO DO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM Duas são as possíveis consequências da utilização desse princípio: o impedimento do exercício da conduta contraditória, e a reparação dos prejuízos advindos dessa conduta. A segunda consequência ocorre como derivação da primeira, pois o que se está levando em consideração é o abuso do direito por violação à boa-fé objetiva para evitar, dessa forma, que ocorram danos ou a potencialidade de dano de ordem moral ou patrimonial, o que ensejará sua reparação. Paulo MOTA PINTO91 assim se refere quanto aos efeitos do venire: O principal efeito será o da inibição do exercício de poderes jurídicos ou direitos, em contradição com o comportamento anterior. Por outro lado, a proibição de comportamento contraditório torna ilegítima a conduta posterior, podendo assim, constituir o agente numa obrigação de indenizar, designadamente por violação de uma obrigação (no caso, por exemplo, de o comportamento posterior contraditório visar a cessação dos efeitos de um contrato). Pode acontecer, contudo, que a conseqüência seja a eventual constituição de uma obrigação do agente. 6.8 FIGURAS ASSEMELHADAS O venire contra factum proprium guarda uma semelhança com determinadas figuras, as quais, em breve explanação, serão em seguida elencadas, sem, no entanto, com elas se confundir. 6.8.1 Estoppel - Estoppel é uma preclusão jurídica ou impedimento, pelo qual alguém se encontra proibido de alegar alguma coisa que tenha anteriormente negado na realidade ou por implicação na sua atividade, ou de negar alguma coisa que tenha, da mesma forma, afirmado anteriormente. Estoppel pode ser entendido, ainda, como preclusão, caducidade, prescrição, renúncia expressa ou tácita de direito material. Sua principal característica procedimental é o fato de ser apresentado com o intuito de obstaculizar uma pretensão no curso do processo.92 A figura do estoppel pode ser definida de acordo com Juliana Salles ALMEIDA,93 como “instituo de defesa contra a "quebra" de uma promessa com a mudança de posição da parte que fez a oferta em detrimento da outra”. 91 PINTO, Paulo Mota. Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Volume comemorativo, 2003. p. 305. 92 ALVIM, Artur da Fonseca. Coisa Julgada nos Estados Unidos. Disponível em: <http://www.tex.pro.br/wwwroot/04de2005/coisajulgada_arturdafonsecaalvim.htm>. Acesso em: 11 out 2010. 43 Sobre a figura do estoppel, afirma Aldemiro DANTAS JÚNIOR,94 citando Judith Martins, que este não se confunde com a figura do venire, embora guarde certas semelhanças, em relação a algumas das funções desempenhadas por este. Ainda citando Judith Martins, continua Aldemiro DANTAS JÚNIOR:95 o estoppel é de uso processual, ligado às provas, servindo para impedir (em virtude de presunção juris et de jure) que um dos litigantes possa afirmar ou negar a existência de um determinado fato, se antes fizera afirmação ou formulara negativa em sentido oposto. o estoppel [...] consiste em uma barreira contra as pretensões da parte que pleiteia algo em franca contradição com o que anteriormente havia aceitado, e por isso a sua função é eminentemente defensiva, enquanto o venire, além dessa mesma função defensiva também pode ser invocado como fundamento para a ação ou para a exceção. 6.8.2 Renúncia tácita - Não se pode confundir o instituto do venire com a renúncia tácita, uma vez que esta se caracteriza por uma conduta omissa inicial, pela qual se renuncia ao futuro exercício de um direito. 6.8.3 Exceptio doli - A exceptio doli, ou exceção de dolo, é uma das formas pela qual o devedor (lato sensu) pode deixar de prestar a obrigação que, em situação normal, estaria adstrito a cumprir. Refere-se a um meio processual genérico de defesa criado pelos romanos para impedir ações fundadas no dolo do autor e que foi ampliada para abranger qualquer forma de atuação iníqua ou contrária à bona fides. Consiste na isenção de um dever (ainda que temporária), baseada no dolo da outra parte. Sua aplicação ressurgiu no direito moderno com o renascimento da boa-fé objetiva, como meio de repressão ao abuso do direito. A exceptio doli tem maior relevância nas situações em que se verifica o abuso de direito, não se prestando para elidir o direito da parte, mas apenas para impedir que a ação acarrete maiores prejuízos ao demandado. Apesar de guardar com o instituto do venire uma semelhança, com relação ao fundamento de ambos que se fulcram na boa-fé, dele se difere por apresentar um rol amplo de 93 ALMEIDA, Juliana Salles. Breves considerações sobre o direito contratual americano e a formação dos contratos à luz do Common Law. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5574>. Acesso em: 11 out. 2010. 94 MARTINS-COSTA, Judith apud DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá, 2008. p. 297. 95 Ibidem. 44 aplicação, ao passo em que o venire se limita aos casos de contrariedade aptos a ferir a legítima confiança de outrem na conservação do sentido da conduta inicial. 45 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o escopo de se ter uma visão panorâmica do brocardo latino venire contra factum proprium, que constitui o tema central desse trabalho, foi-se construindo de forma paulatina as bases que o fundamentam. Dessa forma, preambularmente, foram tecidos os conceitos e as diferenças entre princípios, normas e cláusulas gerais, uma vez que o Código Civil de 2002 se vale destas, para proporcionar maior discricionariedade ao magistrado no julgamento do caso concreto. Em relação aos princípios e normas, constituem estes, os pilares da Constituição Federal de 1988, que os utiliza de forma incisiva, como modo de proporcionar dignidade aos cidadãos brasileiros impondo a todos o dever de solidariedade social. Este princípio vem a se constituir de forma primária, o fundamento constitucional do instituto em comento, enquanto a dignidade da pessoa humana serve de esteio, para que toda a sociedade nela se espelhe. A seguir foi feita uma análise sucinta da boa-fé subjetiva e objetiva com suas vertentes, eis que esta, vem a ser o fundamento infraconstitucional do brocardo em análise, e se encontra positivada no artigo 422 do Código Civil de 2002, ao passo que, a tutela da confiança, descrita em seguida, que seria a chave mestra, o âmago do venire, não pode embasá-lo, eis que não encontra previsão legal no ordenamento pátrio. Da terceira função da boa-fé, insculpida no artigo 187 do Código Civil de 2002, surge a teoria do abuso do direito, da qual o venire, segundo vários doutrinadores, constitui uma modalidade, juntamente com os institutos da suppressio, da surrectio e do tu quoque. Insta consignar, que apesar de o princípio do venire não vir consagrado de forma expressa no ordenamento jurídico brasileiro, é crescente a sua utilização pelos tribunais pátrios, o que tornou fundamental a análise de seus pressupostos para que o mesmo pudesse ser utilizado, quais sejam: o factum proprium, a legítima confiança despertada em outrem, o comportamento contraditório, ou seja, o venire, o lapso temporal entre esses comportamentos, e o dano, ou a possibilidade de dano que a legítima confiança despertou na contraparte . Restou, assim, confirmando, ao longo da pesquisa, o que o legislador já havia previsto: a permissão para o comportamento contraditório, eis que, as atitudes humanas podem e devem mudar, querendo dizer que não se pode exigir do homem um comportamento robótico, o que tornaria a vida sem cor, uma simples repetição de atos. É dentro dessa premissa que o venire se consolida, não apenas se opondo à incoerência, mas coibindo 46 atitudes contrárias à confiança depositada em um comportamento inicial, com o escopo de preservar a boa-fé e a solidariedade entre os homens. Para demonstrar a veracidade de tal constatação, foram apresentadas algumas jurisprudências, com o fito de mostrar que a lei não consegue acompanhar a evolução constante da sociedade, fazendo-se necessário que o magistrado lance mão de outras formas para que a justiça possa ser exercida de forma ampla. Por derradeiro, foram apresentadas figuras assemelhadas ao venire, como o estoppel, a renúncia tácita e a exceptio doli, mas que com ele não se confundem. Em última análise, pode-se afirmar que o homem contemporâneo é por si só um ser contraditório. Isso se faz sentir em todos os níveis de sua convivência, seja ela de caráter social, moral ou político. Disso se infere, que a ninguém, nem mesmo ao ordenamento jurídico é dado o poder de impedir essas contradições, posto que elas são inerentes ao ser humano. A este cabe tutelar a confiança que deve pautar as relações humanas para que, com isso se obtenha uma maior segurança jurídica. A cada um é dada a possibilidade de conduzir sua vida da forma mais proba e correta. O próprio ordenamento jurídico permite que o homem volte sobre seus próprios atos. O que não é permitido é que se fira a confiança que foi depositada em determinada relação, baseada na boa-fé objetiva. É nesse contexto que surge o nemo potesti venire contra factum proprium coibindo comportamentos contraditórios quando esses possam romper a legítima confiança depositada por outrem na conservação de um comportamento inicial. Dessa forma esse brocardo latino vem como instrumento para a proteção das expectativas alheias, resguardando a contraparte de uma relação, preservando assim, a dignidade e a solidariedade, que são a base maior onde esse princípio foi fundamentado. A utilização do princípio da vedação do comportamento contraditório deve ser usada com cautela pelos tribunais, como forma de coibir comportamentos abusivos por violação à boa-fé objetiva. O objetivo que deve ser almejado ao utilizar esse princípio como fundamentação é a busca incessante da justiça como forma de proteção contra toda e qualquer arbitrariedade. 47 REFERÊNCIAS AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A boa-fé na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, n. 14, p. 20-27, abr./jun. 1995. 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