SILMA MARIA AUGUSTO
A JURISDIÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DAS
COTAS RACIAIS
INSTITUIÇÃO TOLEDO DE ENSINO
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO
BAURU / SP – 2010
SILMA MARIA AUGUSTO
A JURISDIÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DAS
COTAS RACIAIS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito (Área de Concentração:
Sistema Constitucional de Garantia de
Direitos) do Centro de Pós-Graduação da
Instituição Toledo de Ensino, para a
obtenção do título de Mestre em Direito,
sob orientação do Professor Doutor
Flávio Luis de Oliveira.
INSTITUIÇÃO TOLEDO DE ENSINO
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO
BAURU / SP – 2010
SILMA MARIA AUGUSTO
A JURISDIÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DAS
COTAS RACIAIS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito (Área de Concentração:
Sistema Constitucional de Garantia de
Direitos) do Centro de Pós-Graduação da
Instituição Toledo de Ensino, para a
obtenção do título de Mestre em Direito,
sob orientação do Professor Doutor
Flávio Luis de Oliveira.
BANCA EXAMINADORA
____________________________
____________________________ (Nota)
____________________________
____________________________ (Nota)
____________________________
____________________________ (Nota)
Bauru/SP, ___ de __________ de 2010.
A todos os que lutam pela igualdade e
pela justiça social, em qualquer lugar
do mundo.
AGRADECIMENTOS
Com certeza muitas pessoas contribuíram para a realização deste trabalho,
mesmo as que aqui não tiverem o nome declinado, recebam o meu Muito
Obrigado!
Agradeço a DEUS pela oportunidade que recebi para realizar este trabalho.
Agradeço aos meus pais, Otaviano Antônio Augusto e Maria Antônia
Augusta, que não tiveram oportunidade de estudar, mas sempre souberam o
valor dos estudos e lutaram em defesa de minhas conquistas. A eles eterna
gratidão, carinho e amor. MUITO OBRIGADO!
Aos meus sobrinhos/as. Aos meus irmãos e irmãs; Aparecida, Fernando,
Vilma, Maria, Ângela, Augusto, Antônio e especialmente Hortência que
sempre acompanhou minha trajetória de vida.
Ao Programa Internacional de Bolsa de Pós-Graduação da Fundação Ford, ao
IFP que proporcionou os recursos financeiros para a realização deste trabalho,
sem os quais seria difícil frequentar um curso de pós-graduação de qualidade.
A toda equipe da Fundação Carlos Chagas responsável pela gestão do
Programabolsa no Brasil, principalmente, à Coordenadora Profª. Dra. Fúlvia
Rosemberg e à Profª. Dra. Maria Luisa Ribeiro, que com dedicação e
competência têm contribuído, muitíssimo, para a inclusão de estudantes
negros/as nos Programas de Pós-Graduação no Brasil.
Ao Coordenador do Programa de Pós-Graduação Profº. Livre Docente Luiz
Alberto David Araujo pelas orientações e disposição em contribuir para a
realização deste trabalho.
Ao meu Orientador Profº. Dr. Flávio Luis de Oliveira pelas orientações
recebidas, especialmente, por despertar meu interesse no estudo do
processo civil.
Às professoras Doutoras Marta Araújo e Cecília MacDowell Santos pela
contribuição durante meu estágio acadêmico no Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra/Portugal.
As minhas amigas e amigos, em especial, Silvia Adriana a quem devo eterna
gratidão nesta conquista, Sônia Maria, Lídia, Nilsa Penha, Lília, Vanessa,
Sarah, Ivone, Cláudia Cambraia, Ana Maria, Janice, Inês, Rozangela, Vilma
Silva, Vírginia, Jhota, Gilsa, Nelson, Valdênia, Wagner, Kely, Sr. Manuel, Tio
Geraldo e Maria Helena. Muito Obrigada pelas palavras amigas, pela
colaboração e incentivo.
Aos Professores Doutores Ivair Augusto e José Adércio Sampaio pelas
orientações e contribuições, principalmente, no período de preparação para
a seleção do mestrado.
Aos colegas de mestrado pelo acolhimento, reconhecimento e amizade,
especialmente Andréia, Catarina, Taís e Neto.
A todos os bolsistas e ex-bolistas do Programa Internacional de Bolsa de
Pós-Graduação pela cumplicidade na luta pela justiça social.
A todos os que me acolheram na cidade de Bauru, especialmente, Inah,
Angelina, Valter, Neusa, Ari, Patrícia.
Enfim, agradeço à Instituição Toledo de Ensino e todos/as funcionários,
especialmente, as meninas da secretaria e bibliotecas, pela eficiência e
dedicação no atendimento do público.
“Não
estamos
satisfeitos
e
nem
ficaremos satisfeitos até que a justiça
jorre como uma fonte; e a equidade,
como uma poderosa correnteza”.
(Martin Luther King)
RESUMO
Este trabalho teve a finalidade de proceder a uma análise da tutela processual
como instrumento de efetivação das cotas raciais. Buscou compreender o impacto
da jurisdição e da efetividade dos mecanismos processuais como forma de
garantir a realização da justiça social através da política de cotas, no ensino
superior público. Ou seja, se a jurisdição mediante a tutela processual pode ser
vista como instrumento de efetivação da política, de cotas ou, ao contrário,
constitui-se obstáculo para essa efetivação. Através da análise jurisprudencial
sobre as cotas raciais busca-se conhecer o diálogo dos julgadores sobre a
Constituição Federal que prevê inúmeros princípios processuais e a sua
aplicação, no caso concreto. O interesse em estudar o tema das cotas foi
suscitado pela importância de tal política como medida de inclusão social e à
complexidade que surgiu em torno do assunto, na sociedade brasileira. Sendo
que vincular o assunto das cotas à matéria processual se deve ao fato da
importância da tutela processual para a realização de um direito social e a visão
social do processo defendida por muitos juristas no direito brasileiro. Segundo
estudiosos do processo civil, a leitura do processo, a partir da Constituição
Federal, rompeu com a visão tradicional de processo que foi cultivada com
fundamento na doutrina clássica. Período em que o processo era pensado de
modo “fechado” e não motivava a realização do direito material. Atualmente, a
Constituição de 1988 deu abertura para a edição de novas técnicas processuais
que se adapte ao catálogo de direitos fundamentais sociais assegurados no
ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-Chave: Tutela Processual; Cotas Raciais; Jurisdição; Igualdade Formal;
Igualdade Substancial.
ABSTRACT
This study aimed to undertake a review of procedural protection as an
instrument of realization of racial quotas. It sought to understand the jurisdiction
impact and the effectiveness of the procedural mechanisms in ensuring the
realization of social justice through the policy of quotas, in the high level of
public education. That is, if the jurisdiction under the processual guardianship
can be seen as a mean of the policy of quotas effectiveness, or otherwise,
constitutes a barrier to this effectiveness. Through jurisprudential about racial
quotas it analysis seeks to know the dialogue among the judges about the
Federal Constitution that provides numerous processual principles and their
application in this case. The interest in studying the issue of quotas was raised
by the importance of such a policy as a way of social inclusion and to the
complexity that has arisen about the theme in the Brazilian society. Being that
to link the theme of quotas to the processual matters is due to the importance
of processual custody in order to carry out a social right and a social vision of
the process defended by many jurists in Brazilian law. According to scholars of
civil process, the process reading starting from the Federal Constitution, broke
with the traditional view of process that had been cultivated as the basis of
classical doctrine. Period in which the process was thought as in a “closed” way
and it did not motivate the achievement of the material right. Nowadays, the
Constitution of 1988 is opened for editing new processual techniques
appropriate to the catalog of fundamental social rights guaranteed in the
Brazilian legal system.
Keywords: Processual Custody; Racial Quotas; Jurisdiction; Formal Equality;
Substantial Equality.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADC
ADIN
ADPF
AI
Ampl.
Art.
Arts.
Atual.
CDC
CES
CF
CF/88
Coord.
Coords.
CPC
DEM
Ed.
EPEJ
Etc.
IBGE
Inc.
Incs.
OJB
ONG
ONU
OPJ
Org.
Orgs.
P.
PL
PLANAPIR
PNUD
RE
Reimpr.
Rev.
SP
Ss.
STF
STJ
Tirag.
TJ
TRF
UFSC
Vol.
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
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–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
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–
–
–
–
–
–
–
Ação Declaratória de Constitucionalidade
Ação Direta de Inconstitucionalidade
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
Agravo de Instrumento
Ampliada
Artigo
Artigos
Atualizada
Código de Defesa do Consumidor
Centro de Estudos Sociais
Constituição Federal
Constituição Federal de 1988
Coordenador
Coordenadores
Código de Processo Civil
Democratas
Edição
Comissão Européia para Eficiência da Justiça
E outras coisas mais
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Inciso
Incisos
Observatório Permanente da Justiça Brasileira
Organização Não Governamental
Organização das Nações Unidas
Observatório Permanente da Justiça Portuguesa
Organizador
Organizadores
Página
Projeto de Lei
Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
Recurso Extraordinário
Reimpressão
Revisada
São Paulo
Seguintes
Supremo Tribunal Federal
Superior Tribunal de Justiça
Tiragem
Tribunal de Justiça
Tribunal Regional Federal
Universidade Federal de Santa Catarina
Volume
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ........................................................................................
11
2
DA IGUALDADE JURÍDICA ...................................................................
16
2.1
2.2
2.3
2.4
2.5
2.6
Introdução ao Capítulo..........................................................................
Natureza Jurídica dos Princípios Constitucionais .............................
O Princípio da Igualdade no Histórico da Humanidade .....................
Igualdade Formal e Igualdade Material................................................
O Princípio da Igualdade nas Constituições Brasileiras....................
Igualdade e o Princípio da Não Discriminação na Constituição de
1988.........................................................................................................
16
18
22
26
31
3
AÇÃO AFIRMATIVA ...............................................................................
44
3.1
3.2
3.3
3.4
3.5
3.6
As Cotas e o Conceito de Raça ............................................................
Conceito de Ações Afirmativas ............................................................
Evolução Histórica das Ações Afirmativas .........................................
Ações Afirmativas no Brasil .................................................................
Finalidade das Ações Afirmativas........................................................
Modalidades de Ações Afirmativas......................................................
44
59
62
65
67
71
4
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E AS COTAS RACIAIS ....
73
4.1
4.2
4.3
4.4
4.5
4.6
Conceito de Constituição e a Jurisdição Constitucional...................
Controle da Constitucionalidade: Origem e Fundamento..................
Breve Relato Sobre o Controle da Constitucionalidade no Brasil ....
O Controle de Constitucionalidade na Constituição Federal de 1988 ..
O Conteúdo Material da Constituição e sua Aplicabilidade...............
O Debate Judicial Sobre a Constitucionalidade das Cotas ...............
73
79
82
85
89
93
5
O ACESSO AO DIREITO E A JUSTIÇA E A INCLUSÃO SOCIAL
MEDIANTE AS COTAS RACIAIS NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO .... 106
5.1 O Conceito de Jurisdição .....................................................................
5.2 Acesso ao Direito e a Justiça: Um Estudo em Curso.........................
5.3 Destaques Sobre o Acesso ao Direito e à Justiça em Outros
Contextos ...............................................................................................
5.4 O Acesso ao Direito e à Justiça na Perspectiva da Constituição de
1988.........................................................................................................
5.5 Direito ao Prazo Razoável do Processo ..............................................
5.6 Direito de Ação como Instrumento de Acesso à Justiça ...................
5.7 O Acesso ao Direito e à Justiça da População Negra ........................
35
106
109
117
120
123
125
129
5.8 O Amicus Curiae e a Participação de Entidades do Movimento
Negro no Debate Sobre as Cotas Raciais: O Sistema Jurídico
Brasileiro ................................................................................................ 133
5.9 Novas Perspectivas para o Acesso ao Direito e à Justiça: A
Implantação do Observatório Permanente da Justiça Brasileira ...... 138
6
TUTELA PROCESSUAL – PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL........... 144
6.1
6.2
6.3
6.4
6.5
6.6
6.7
6.8
6.9
Influência do Direito Clássico no Processo Civil Brasileiro ..............
Tutela de Direito e Tutela Jurisdicional ...............................................
Perspectiva Constitucional do Processo Civil....................................
Princípios Constitucionais na Constituição de 1988..........................
Inovações do Código de Processo Civil..............................................
A Cognição como Técnica Processual................................................
Modalidades de Tutelas ........................................................................
Os Direitos Sociais e a Dimensão Processual ....................................
A Tutela Processual como Mecanismo de Inclusão Social: Análise
Jurisprudencial Sobre as Cotas Raciais e a Efetividade da
Constituição Federal .............................................................................
7
144
153
156
157
161
168
171
183
184
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................... 192
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................ 201
11
1 INTRODUÇÃO
Neste trabalho buscou-se fazer uma análise da tutela processual como
meio de efetivação da política pública de cotas raciais no ensino superior público.
Compreender o debate do Judiciário sobre a importância da tutela
processual como instrumento de materialização do Direito, ou seja, se a tutela
processual constitui-se meio a efetivar o direito material ou revela-se como
entrave à sua materialização.
Como o Direito é um fenômeno social e acontece no mundo real, percebemos
que o assunto das cotas raciais tem relevância no debate atual por parte de nossa
sociedade, na área acadêmica, política, jurídica e do Estado brasileiro.
A importância da efetivação do direito social com relação à educação foi a
razão que nos levou a vincular o assunto das cotas como matéria processual.
Em breves linhas apontaremos algumas questões que justifica o interesse
pelo tema das cotas raciais em conexão com a matéria processual.
A reserva de cotas para negros nas universidades públicas teve seu início
no Rio de Janeiro, com a edição das Leis nº 3.524/00, 3.708/01 e 4.061/03,
posteriormente, foram unificadas à Lei nº 4.151/03, que determina 20% das vagas
para estudantes negros, no vestibular.
Depois da implantação da política de cotas em universidades do Rio de
Janeiro, outras Unidades da Federação começaram a adotar o sistema de reserva
de vagas para negros e estudantes oriundos do ensino público.
Atualmente quase totalidade dos Estados da Federação já conta com o
sistema de cotas raciais e sociais, entretanto, o debate sobre a pertinência da
medida, persiste de forma acirrada no meio acadêmico, político e principalmente
na área jurídica.
12
Porém, a regulamentação do sistema de cotas raciais tramita no
Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal aos quais caberá a
decisão final sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade dessa
política pública.
Embora o assunto continue em debate o objetivo desse trabalho foi analisar
dados jurisprudenciais proferidos pelo Judiciário. Percebe-se que o assunto é
controverso e essa controvérsia alcançou o discurso do Poder Judiciário que ora
decide favoravelmente, ora contrário ao sistema de cotas raciais.
Existem
alguns
aspectos
sobre
esse
conflito
que
merecem
ser
considerados, como a juridicidade do conteúdo da igualdade e a polêmica em
torno do conceito de raça.
Quem aprova as cotas raciais afirma que tal medida no ensino superior
público consistirá na concretização da igualdade jurídica e permite a
democratização do acesso de estudantes negros no referido ensino, direito esse
assegurado pela Constituição de 1988.
Temas como a desigualdade resultante de processos históricos como foi a
escravidão no período colonial, o racismo e a falta de acesso no ensino superior
público aparecem no discurso dos defensores do sistema de cotas.
Os que contestam o sistema consideram a política de cotas uma afronta à
garantia da igualdade perante a lei e consequentemente ao Estado Democrático
de Direito. Argumentam que a instituição de cotas teria como consequência a
racialização de uma política pública e a violação da igualdade jurídica
estabelecida no texto da Carta Constitucional.
Creio que esses fatos são polêmicos e contribuiu para despertar nosso
interesse na pesquisa do tema, com abordagem processual, uma vez que o
processo é um meio de concretização de direitos e o Judiciário é o ator
principal para decidir se o sistema de cotas raciais permanecerá ou não no
ordenamento jurídico brasileiro. Sendo assim, fizemos uma análise de
13
decisões judiciais sobre as cotas raciais com o objetivo de compreender o
diálogo do Judiciário brasileiro entre a norma formal e a efetivação mediante a
tutela processual.
Debates conflitivos sobre o assunto e sua relevância para a sociedade
foram determinantes para situar o tema como objeto de nossa pesquisa.
Por outro lado o interesse pela matéria processual aliado ao tema das
cotas raciais foram aguçados mediante a leitura de vários estudos sobre a função
social do processo e o sentido da jurisdição após a edição da Constituição
Federal de 1988.
É discutido que a construção de nosso direito processual civil sofreu
influências do direito clássico e por isso desenvolveu-se o pensamento que o
processo consiste em instrumento autônomo em relação ao direito material.
A partir dessa concepção o direito material foi desvinculado do seu
instrumento de realização que é o processo. E o processo que seria a base
fundamental para se efetivar a justiça passou a ser visto como mera ferramenta
formal, que muitas vezes termina com fim em si mesmo.
Somente
a
nova
perspectiva
processual
extraída
da
Carta
Constitucional pode dinamizar a tutela processual e permitir outras leituras
sobre a função do processo, da técnica e dos procedimentos que se amoldam
ao direito material.
Garantir um catálogo de direitos sociais em diversos diplomas, sem contar
com técnicas processuais adequadas à realização desses direitos, parece estar
disforme com o propósito constitucional de promover a justiça social. Portanto é
necessário colocar à disposição do julgador, técnicas processuais capazes de
dar efetividade à norma no momento da aplicação do Direito.
Daí surgiu o interesse em se fazer a análise jurisprudencial sobre as cotas
raciais na vertente processual e, não apenas compreender o debate sobre a
14
constitucionalidade, ou não, dessa política, mas, principalmente, conhecer os
entraves de nosso ordenamento jurídico no momento de substancializar um
direito social. Para isso seguimos algumas linhas teóricas.
Em matéria processual buscamos fundamentos nos estudos realizados por
Ovídio Araújo Baptista da Silva, Kazuo Watamabe, José Roberto Bedaque e Luiz
Gulherme Marinoni, dentre outros. No aspecto sociológico, principalmente, sobre
o tema de acesso ao Direito e à justiça, a base teórica tem como fonte as
investigações coordenadas por Boaventura Sousa Santos junto ao Observatório
Permanente da Justiça Portuguesa. E para a teoria em relação à política de cotas
raciais percorremos os estudos de Flávia Piovesan, Hédio Silva Junior, Joaquim
Barbosa Gomes e outros.
A complexidade do Direito, enquanto fenômeno social, requer mais que
estudos de cunho dogmático porque sugere ir além de conhecer as normas
procedimentais do sistema jurídico ou como acontecem as decisões do Poder
Judiciário. Isso porque a Ciência do Direito está em constante evolução e procura
produzir conhecimento num sentido de emancipação do ser humano.
Neste trabalho o caminho metodológico que percorremos buscou a
trasndisciplinaridade de conhecimentos, no propósito de ampliar o fundamento
teórico que norteia o debate sobre as cotas raciais e a tutela processual.
Para uma visão mais crítica de nosso objeto de estudo buscamos
inspiração em outras áreas do conhecimento, tais como a história, a filosofia, a
ciência política, a educação, a antropologia e, enfaticamente, nos estudos no
campo da sociologia do Direito. Contudo o direito constitucional foi a principal
matéria em discussão e a questão processual a matéria transversal.
Trata-se de uma pesquisa teórica e para ilustrar nosso trabalho fizemos
uma amostra de dados jurisprudenciais sobre as cotas raciais, especialmente, dos
Tribunais Superiores (Tribunais Regionais Federais), bem como daquelas
demandas intentadas por organizações sociais, em defesa ou contrária à reserva
de vaga para negros, no ensino superior.
15
O objetivo específico de nossa pesquisa consiste em compreender se a
tutela processual constitui mecanismo de inclusão social mediante as demandas
das cotas raciais e/ou se os meios processuais causaram obstáculo à
concretização dessa política.
Além desse objetivo busca-se destacar os argumentos dos julgadores na
formação de suas posições sobre o princípio da igualdade e constitucionalidade
do sistema de cotas no Direito brasileiro.
O trabalho foi organizado em cinco capítulos: da igualdade jurídica; ação
afirmativa; controle de constitucionalidade das cotas raciais; acesso ao Direito e à
justiça e a inclusão social; tutela processual: perspectiva constitucional.
Registra-se também que os procedimentos metodológicos foram seguidos
e a investigação foi desenvolvida de acordo como os padrões éticos da pesquisa
científica.
16
2 DA IGUALDADE JURÍDICA
2.1 Introdução ao Capítulo
Optamos por discutir a igualdade jurídica no primeiro capítulo porque se
trata de um dos institutos jurídicos que permeará todo nosso trabalho, tanto em
relação às cotas raciais, quanto em relação à tutela processual. Nosso debate
girará em torno da igualdade formal e de seu alcance no momento da aplicação.
Serão
abordados
temas
como
a
natureza
jurídica
dos
princípios
constitucionais; o princípio da igualdade no curso da humanidade; a relação
igualdade formal versus igualdade material; a evolução da igualdade no
ordenamento constitucional brasileiro; a vinculação da igualdade jurídica com o
princípio da não-discriminação e, por último, serão apresentadas análises de
algumas decisões judiciais que envolvem o princípio da igualdade e as cotas raciais.
Eleger o princípio da igualdade para abrir nosso estudo encontra razão em
muitos estudos sobre as ações afirmativas e também na área processual civil.
De acordo com o pensamento de Hédio Silva Júnior o marco inicial para
discutir a política de cotas raciais, no sistema jurídico brasileiro, exige uma
interpretação sistemática e teleológica da Constituição de 1988, em busca de
compreender o real sentido jurídico do princípio da igualdade correlacionado aos
princípios constitucionais de acesso ao ensino superior e da igualdade étnicoracial proclamados no mesmo sistema.1
Em matéria processual o jogo da igualdade formal versus a igualdade
substancial se coloca como um dos maiores entraves na sociedade moderna.
1
SILVA JÚNIOR, Hédio. Ação Afirmativa para Negros(as) nas Universidades: a concretização
do princípio constitucional da igualdade. In: GONÇALVES, Petronilha Beatriz e Silva;
SILVÉRIO, Valter Roberto (orgs.). Educação e Ações Afirmativas entre a Injustiça
Simbólica e a Injustiça Econômica. Brasília: INEP, 2003, p. 99-114.
17
Lembro aqui os argumentos do Professor Marcelo Neves sobre a pluralidade de
procedimentos no Estado Democrático de Direito, segundo ele:
[...] um procedimento central e superior seria inadequado para enfrentar
a hipercomplexidade da sociedade moderna. Por outro lado, a
pluralidade procedimental é uma resposta ao pluralismo da esfera
2
política.
A igualdade tem por objetivo garantir o Estado Democrático de Direito,
mas, nem por isso deixa de ser também o maior obstáculo de realização do
acesso ao direito e à justiça de forma igual e justa.
As ideias sobre justiça, processo e igualdade têm em si uma representação
abstrata e ideológica. Ideológica no sentido de ideias ou representações que
podem ocultar o verdadeiro significado das normas processuais, da igualdade
formalmente no texto das leis. Porque o mundo do ser humano é um mundo
criado por ideias e representações, nesse sentido temos como referência os
ensinamentos de Marilena Chauí sobre ideologia:
Essas ideias ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos
homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e
a origem das formas sociais de exploração econômica e de
dominação política. Esse ocultamento da realidade social chama-se
3
ideologia.
Segundo Marilena Chauí, o termo ideologia teve origem em 1802, no livro
de Destutt de Tracy, Eléments d’Idéologie, (Elementos de Ideologia). Esse
estudioso, na época, se associou ao médico Cabanis e tinha a pretensão de
inovar a ciência da gênese das ideias a partir da análise de fenômenos naturais
que exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio
ambiente.
Esses estudiosos ditos ideólogos tinham posições políticas contrárias à
teologia, à metafísica e ao regime de monarquia que vigorava naquele período.
2
3
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil – o Estado Democrático de
Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 195.
CHAUÍ, Marilena de Souza. O que é Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 21.
18
Contexto determinante para que o termo ideologia fosse tomado em um sentido
pejorativo numa declaração de Napoleão após se decepcionar com a nomeação
de vários ideólogos para seu governo. Eles foram acusados de incorrerem em
erros na mesma proporção do regime que, anteriormente, se declararam contra.
Isso gerou a insatisfação de Napoleão que os responsabilizou pelas desgraças
que ocorreram na França.4
Em outro sentido Ovídio A. Baptista da Silva adverte ao dissertar sobre
processo e ideologia que o termo precisa ser usado com cuidado de acordo com
o sentido a ser designado, isso porque o termo tem dupla conotação:
Na discussão a respeito da ideologia, devemos precaver-nos contra dois
riscos. O primeiro está representado pela tendência que temos de
atribuir aos nossos opositores a condição de ideológicos, na suposição
implícita de que dispomos de um ‘ponto de Arquimedes’ que nos permite
o acesso privilegiado à vontade absoluta. O outro é que, não alcançando
a ‘nossa verdade’ teriam eles o pensamento distorcido por falsas noções,
mistificadoras da realidade, tida como a única e, enquanto verdade,
eternamente válida. É a marca do pensamento conservador. Tudo o que
questiona a ‘realidade’, construída pelo pensamento conservador, é
ideológico, no sentido de irreal, pois a visão conservadora supõe que
5
nosso ‘mundo’ seja o único possível.
Acredito que discutir temas como igualdade, processo, jurisdição, direitos
sociais vinculados ao acesso de minorias requer uma análise do significado e das
representações que esses institutos têm na sua origem e formação.
2.2 Natureza Jurídica dos Princípios Constitucionais
A natureza jurídica dos princípios constitucionais sempre foi objeto de
diversas indagações e construções teóricas. No campo doutrinário, especialmente
4
5
Ibidem, p. 22-23: “Os ideólogos franceses eram antiteológicos, antimetafísicos e
antimonárquicos. Pertenciam ao partido liberal e esperavam que o progresso das ciências
experimentais, baseadas exclusivamente na observação, na análise e síntese dos dados
observados, pudesse levar a uma nova pedagogia e a uma nova moral. Contra a educação
religiosa e metafísica, que permite assegurar o poder político de um monarca [...]”.
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia: o paradigma racionalista. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 09.
19
na área constitucional nota-se a maior preocupação em desvendar a natureza
jurídica dos princípios.
A matéria recebe destaque porque a constitucionalização dos princípios
tem muita relevância para a compreensão das demais normas que compõem o
ordenamento jurídico.6
Em quase todos os estudos na área jurídica o tema é objeto de análise,
mas, a questão ainda não se esgotou porque estudiosos relutam em demonstrar o
real sentido dos princípios no ordenamento jurídico.
A distinção entre regras e princípios é considerada o ponto crucial que
orienta as discussões e indagações sobre os princípios na Constituição Federal e
sua importância como fonte do ordenamento jurídico infraconstitucional.
Os princípios surgiram a partir de proposições filosóficas e começaram a
ser textualizados em normas de direito civil. Desse ramo do Direito evoluiu-se
para o topo da hierarquia das normas que é a Constituição Federal.7
Após ser inserido na Teoria Geral do Direito o assunto recebeu nova
valoração e os princípios começaram a ser pensados numa perspectiva jurídica, e
passaram a ser admitidos pelo direito como algo imperativo e determinante para
as demais normas.
É por isso que se afirma que os princípios constitucionais são aqueles
mesmos e conhecidos princípios gerais de Direito que historicamente vêm se
firmando
no
ordenamento
jurídico
mediante
a
positivação
na
norma
Constitucional.8
6
7
8
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.
258: “Os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo sistema normativo.
Ibidem, p. 293: Os princípios baixaram primeiro das alturas montanhosas e metafísicas de
suas primeiras formulações filosóficas para a planície normativa do direito civil. Transitando
daí para as Constituições, noutro passo largo, subiram ao degrau mais alto da hierarquia
normativa”.
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2003, p. 14.
20
José Afonso da Silva, em sua produção sobre os princípios constitucionais
fundamentais, nos ensina que o termo princípio pode causar interpretações
equivocadas por ter diversos significados, por exemplo, indicando o começo ou
início de algo.
Mas o termo princípio inserido na expressão – princípio fundamental
referente ao Título I da Constituição de 1988 – tem significado de mandamento
nuclear de todo o sistema. O seu alcance objetiva todo o ordenamento jurídico
porque não é uma norma isolada e sim o núcleo do sistema.
Mas a complexidade reside ao estabelecer a distinção entre princípios e
regras. Essa questão não é atual, desde o direito antigo e clássico ela existe e
mesmo assim a ciência jurídica ainda não estudou, a contento, a distinção entre
regras e princípios.9
A distinção entre princípios e regras poderá ser realizada usando-se de
diversos
critérios
tais
como
considerando
o
grau
de
abstração,
a
determinabilidade e a fundamentalidade dos princípios e das regras. O grau de
abstração dos princípios se revela com maior intensidade enquanto que o das
regras apresenta-se em menor proporção.
A determinabilidade no ato da concretização do direito não condiz com a
natureza dos princípios, devido seu caráter vago, exige ponderações e requer a
equidade a ser feita pelo julgador ou legislador.
Enquanto que a fundamentalidade dos princípios são consideradas bases
de todo um sistema de acordo com sua tipologia estruturante. Isso mostra que os
princípios possuem natureza filosófica e permeiam a ideia de justiça, ao passo
que as regras podem ter conteúdos funcionais e vinculados.
A diferença, portanto, dos princípios em relação às regras reside na forma
qualitativa. Os princípios têm natureza imperativa compatíveis com diversos graus
9
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo:
Malheiros, 2007, p. 91.
21
de materialização do direito e as regras descreve uma exigência que impõe,
permite ou proíbe algo.10
Walter Claudius Rothenburg acresce que as regras e os princípios fazem
parte das normas jurídicas. Sendo assim a distinção entre regras e princípios
constitui numa distinção entre dois tipos de normas.11
No mesmo sentido José Afonso da Silva assegura:
Há, no entanto, quem concebe regras e princípios como espécies de
norma, de modo que a distinção entre regras e princípios constitui uma
distinção entre duas espécies de normas. A compreensão dessa doutrina
exige conceituação precisa de normas e regras, inclusive para
estabelecer a distinção entre ambas, o que os expositores da doutrina
12
não têm feito, deixando assim obscuro seu ensinamento.
Se princípios e regras são espécies de normas jurídicas é importante
mostrar a finalidade específica dos princípios. Eles são fundamentais e têm
função determinante para buscar uma interpretação correta e construtiva das
normas jurídicas no momento da sua aplicabilidade porque os princípios atuam
como norte para atingir soluções interpretativas.13
A posição nuclear dos princípios no ordenamento jurídico, enquanto
estrutura fundamental, o reveste de superioridade em detrimento das demais
normas. Por isso que nossa Constituição Federal de 1988 é sistematizada em
princípios, editou diversos princípios tais como igualdade, liberdade, dignidade da
pessoa humana. O sistema de princípios expressos ou extraídos da Constituição
são fontes nucleares de todo o ordenamento jurídico. Daí se conclui que a
10
11
12
13
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.
ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1160-1161: “Os princípios interessar-nos-ão, aqui, sobretudo
na sua qualidade de verdadeiras normas, qualitativamente distintas das outras categorias de
normas, ou seja, das regras jurídicas. As diferenças qualitativas traduzir-se-ão,
fundamentalmente, nos seguintes aspectos. Os princípios são normas jurídicas impositivas de
uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os
condicionalismos fáticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente
uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida”.
ROTHENBURG, 2003, p. 16.
SILVA, 2007, p. 92.
IVO, Gabriel. Constituição Estadual: competência para elaboração da Constituição do
estado-membro. São Paulo: Max Limond, 1997, p. 144-145.
22
natureza jurídica dos princípios não é apenas de fonte, mas também de base,
suporte fundamental no momento de aplicação do Direito.
2.3 O Princípio da Igualdade na História da Humanidade
Atualmente o princípio da isonomia é defendido por juristas como um dos
princípios pilares do Estado Democrático de Direito, mas, desde a antiguidade,
antes de ser expresso nos documentos e nas leis, os povos já faziam menção à
igualdade entre as pessoas, isso porque a ideia de igualdade surge no contexto
religioso.
A temática da igualdade possui larga trajectória no pensamento
mediterrânico. É possível referi-se desde o velho Egipto. No Livro dos
Dois Caminhos, o ‘Senhor Universal’ diz aos outros deuses: ‘Fiz cada
homem igual ao seu companheiro’; e Ptah-Hotep ensina que as
necessidades fundamentais e a mitigação dos piores azares são, por
vontade de Deus, um direito de cada homem; que Deus fez os homens
14
iguais em valor, como irmãos e membros de uma família.
Com a evolução do direito a igualdade ganhou relevância enquanto
conteúdo jurídico e adquiriu significado de cidadania, de justiça social, de valor de
um Estado Democrático, o que obriga ao Direito uma posição ativa no sentido de
promover a igualdade de direito a todas as pessoas.15
Bem antes do surgimento das Constituições, a igualdade como ideologia
nasce em Sólon (640 a.C. – 560 a.C.), e no pensamento dos pitagóricos a justiça
era concebida de forma numérica, assim a justiça correspondia ao número par, de
partes iguais, de valor igual. Justiça e igualdade eram expressões sinônimas. O
raciocínio matemático empregado ao termo pode ser o fundamento da concepção
de Aristóteles em relação à justiça.16
14
15
16
ALBUQUERQUE, Martim. Da Igualdade: introdução à jurisprudência. Coimbra: Almedina,
1993, p. 07.
Ibidem, mesma página: “Na área do Direito o problema da igualdade adquire lugar de
cidadania desde muito cedo. O Direito, enquanto disciplinador da conduta humana, da vida,
não podia ignorá-lo e abster-se de tomar posição”.
Ibidem, p. 11.
23
A teoria aristotélica de igualdade consiste em tratar desigualmente os
desiguais
na
medida
de
suas
desigualdades.
Essa
máxima
marcou
profundamente o pensamento filosófico sobre a igualdade e, até os dias atuais,
tem forte influência na Teoria Geral do Direito.17
Porém, o entrave maior sobre a igualdade surge quando tal princípio
começou a ser formalizado. Do discurso filosófico para as cartas políticas nasce o
conteúdo jurídico e o discurso sobre sua finalidade e alcance. Daí iniciou o
embate entre a igualdade formal e a igualdade substancial.
Com a edição da Carta Magna de 1215 (Inglaterra) o princípio da igualdade
foi estabelecido formalmente e tinha por finalidade coibir desigualdades de
tratamento jurídico entre o rei, que tinha poderes absolutos e os demais cidadãos.
Na Idade Média os ideais de igualdade começaram a ser disseminados e
tiveram forte influência do direito canônico para a conquista da Declaração de
Direitos de Virgínia, em 1776 (EUA).
Outro acontecimento de grande importância para a igualdade (um dos mais
relevantes da história) foi a Revolução Francesa de 1789 e, consequentemente, a
publicação da Declaração dos Direitos do Homem que afirmaram ideais de
igualdade, liberdade e fraternidade.
Esses ideais de liberdade, igualdade e fraternidade iluminaram os
movimentos que deram origem às Declarações, francesa, inglesa e americana.
Movimento considerado ideológico num sentido positivo porque seus lutadores
defendiam valores nobres.
Esses valores começaram a ser objeto de inspiração para que diversos
Estados positivassem direitos nas suas Constituições. Os valores representavam
17
ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo
Wolfgang (coords.). Direitos Fundamentais e Estado Constitucional: estudos em
homenagem a José Joaquim Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009,
passim.
24
ideologias daquela época, porém não existiu preocupação em se criar
instrumentos concretos para que tais valores fossem realizados.
O
fenômeno
da
positivação
desses
direitos
foi
denominado
de
constitucionalização do direito. Dentre as primeiras Constituições a positivar os
direitos encontra-se a Constituição mexicana de 1917. Dois anos após, a
Alemanha positivou na Constituição de Weimar (1919) muitos direitos e iniciou o
processo de constitucionalização dos direitos humanos.18
A igualdade como fundamento da noção de justiça existe, portanto, desde
a antiguidade e vem sendo cultivada como ideal e essencial à existência
humana.
A partir da Revolução Francesa do século XVIII a positivação dos valores
nobres no texto das Constituições, sendo a igualdade um desses valores, passou
a ser defendido como princípio jurídico filosófico.
O objetivo primeiro da igualdade enquanto princípio jurídico era abolir os
privilégios ofertados à burguesia, entretanto, com a evolução dos direitos sociais o
princípio
vem
alterando
seu
propósito
original,
do
aspecto
puramente
principiológico para atingir a aplicação substancial.19
Piovesan assegura que em 1948 a Declaração Universal dos Direitos do
Homem foi essencial para inaugurar uma nova fase na busca pela igualdade real,
ou seja, a visão material da igualdade ganhou força e passou a ser vinculada à
promoção dos direitos e da dignidade da pessoa humana.
As ideias inspiradas na Declaração Universal formaram um misto de
valores no período liberal, como o pensamento social contemporâneo que passou
18
19
LOPES, Maria Elizabeth de Castro; OLIVEIRA NETO, Olavo de. Princípios Processuais na
Constituição. São Paulo: Salvatier, 2008, p. 137-140.
GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da
Igualdade: o direito como instrumento de transformação social – a experiência dos EUA. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001, p. 01-25.
25
a exigir os direitos de cidadania e de liberdade interligados com o discurso da
igualdade.20
Desde a positivação da igualdade nas Constituições e na Declaração
Universal a igualdade jamais deixou de ser consignada nos documentos e leis.
Em documentos recentes, como a Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia a igualdade está assegurada; o art. 20º dispõe: “Todas as
pessoas são iguais perante a lei. Além desse dispositivo em todo documento
existe um verdadeiro sistema de direitos e garantias vinculados à igualdade”.21
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirma atuação com base no
primado e defesa da igualdade e dignidade da pessoa humana, e ainda coloca como
objetivo o propósito de coibir todas as formas de discriminação e intolerância.22
Também a defesa da igualdade material pode ser observada no documento
editado pela Conferência Mundial contra o racismo que aconteceu nos dias 20 a 24
de abril de 2009, em Genebra, na Suíça – o documento ratifica o relatório da
Conferência Mundial Sobre o Racismo, Xenofobia e Intolerância que acorreu em
Durban, na África do Sul. Tal documento enfatiza, no art. 15, o princípio da
igualdade e da não discriminação como mandamento nuclear do Direito
Internacional dos Direitos Humanos. No art. 82 do mesmo documento recomenda
aos Estados signatários de tal proposta garantir o respeito e a igualdade de
tratamento às minorias étnicas, religiosas, linguísticas, culturais e de nacionalidade.
Relata que o objetivo de erradicar e coibir práticas discriminatórias consiste em
promover a igualdade, a interação social e a harmonia entre as pessoas e povos.23
De forma que o Estado Democrático de Direito parece inseparável do
princípio da igualdade e da noção de justiça social. Porém, o maior desafio da
20
21
22
23
PIOVESAN, Flávia. Ação Afirmativa e Direitos Humanos. In: Revista USP, nº 69, p. 36-43.
São Paulo, mar./mai. 2006.
RAMOS, Rui Manuel Gens de Moura. Tratado da União Européia e Tratado Sobre o
Funcionamento da União Européia. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 246.
Disponível em: <http://www.cidh.org>. Acesso em: 12 dez. 2009.
Disponível em: <http://www.un.org/en/events/archives.shtml>. Acesso em: 13 dez. 2009.
26
ciência jurídica, especialmente dos operadores do direito, consiste em aplicar a
igualdade em uma situação concreta; extrair o significado do princípio no sistema
constitucional e torná-lo real.
Isso porque a expressão igualdade em si é dotada de vagueza,
ambiguidade e de tamanha abstração que, ao longo da história, tem suscitado
contradições quando se busca aplicação no caso concreto.24
2.4 Igualdade Formal e Igualdade Material
A igualdade formal era considerada a base edificadora das regras gerais
dos direitos fundamentais e marca do constitucionalismo liberal. Defendida na
fase liberal com fim puramente formal, o pensamento era que os homens nascem
e permanecem livres e iguais em direitos, apesar de não garantir nenhum meio
para efetivar a igualdade subistancial.25
A igualdade esculpida no texto das constituições não objetivava minimizar
diferenças sociais, tão pouco evitar que elas acontecessem. Isso fez com que a
igualdade ficasse apenas na lei e não contribuísse para resolver questões como
discriminações e injustiças.
Segundo Marinoni a igualdade não objetivava efetuar mudanças no mundo
real e sua função não era garantir a materialização de direitos, na esfera
processual a sanção pecuniária imposta pelo Poder Judiciário tinha função de
“igualizar” os bens e as necessidades.26
24
25
26
NEVES, 2006, p. 167.
CANOTILHO, 2003, p. 426: “A igualdade é, desde logo, a igualdade formal (‘igualdade
jurídica’ ou ‘igualdade liberal’) estritamente postulada pelo constitucionalismo liberal: os
homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos.
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela dos Direitos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 59: “A sanção pecuniária teria a função de ‘igualizar’ os bens e as
necessidades, pois, se tudo é igual, inclusive os bens – os quais podem ser transformados
em dinheiro –, não existiriam motivo para pensar em tutela específica. No direito liberal, os
limites impostos pelo ordenamento à autonomia privada são de conteúdo negativo, gozando
dessa mesma natureza as tutelas pelo equivalente e ressarcitória”.
27
O sentido mercadológico da igualdade foi despertado na doutrina marxista
na obra o Capital, onde Karl Marx defende que a igualdade formal não
representava valor de justiça social, mas servia ao ajuste de uma ordem
econômica.27
De acordo com Marcelo Neves o princípio da igualdade, por ser uma
expressão abstrata e retórica, exige delimitação semântica. Para melhor
interpretá-lo é preciso ser afastada qualquer concepção que se trata de
igualdade de fato. O objetivo do princípio da igualdade deve neutralizar as
desigualdades no âmbito do exercício dos direitos. A igualdade que almejamos
no âmbito do Estado Democrático de Direito corresponde à igualdade jurídicopolítica.28
Existe certa confusão quando o princípio da igualdade é interpretado na
concepção jurídico-política enquanto princípio constitucional e dentro de uma
visão de homogeneidade da sociedade.
A dificuldade de compreensão por parte da doutrina pode estar relacionada
a uma visão simplista para caracterizar a sociedade moderna e a noção de
democracia. Mas na verdade a complexidade e a heterogeneidade social são os
pressupostos na emergência e concretização do princípio jurídico-político da
igualdade.
Embora o princípio da igualdade não tenha nascido com a pretensão de
resultar em igualdade de fato, na sociedade, ou criar homogeneidade social,
acaba por associar ao princípio a desigualdade como uma de suas “faces”. Isso
significa que o princípio da igualdade apresenta-se inicialmente mediante a
diferença entre igual e desigual, ou seja, na visão aristotélica, nesse sentido
poder-se-ia justificar as próprias injustiças sociais.
27
28
MARX, Karl. O Capital. Tradução de Gabriel Deville. Bauru: Edipro, 2008, passim.
NEVES, 2006, p. 167-168: “Para evitar, de um lado, ilusões e, de outro, críticas
ideológicas fundadas na sobrecarga do princípio, que este não aponta para a igualdade
conteudística de direitos e poder dos indivíduos e grupos. O princípio refere-se antes à
integração ou acesso igualitário aos procedimentos jurídico-políticos do Estado
Democrático de Direito”.
28
Essa concepção de igualdade que veio do período clássico precisa ser
revisitada, no sentido de produzir novas leituras e atender demandas da
sociedade moderna.29
A sociedade moderna com desigualdades sociais acentuadas exige a
realização da igualdade jurídico-política. Mas o problema maior é conseguir
estabelecer os parâmetros para eleger grupos ou segmentos a serem priorizados
em determinadas situações.
Na política de cotas raciais o debate sobre a igualdade gera o maior
conflito nesse aspecto, como medir a desigualdade de um grupo em detrimento
de outro.
De acordo com Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior o
obstáculo maior da igualdade encontra-se no plano da aplicação jurídica e na
implantação
de
políticas
públicas
que
têm
por
objetivo
minimizar
as
campo
da
desigualdades e promover a justiça social de determinados grupos.
Essa
dificuldade
reside
em
questões
limítrofes
no
regulamentação da norma jurídica, ou seja, na dificuldade para medir a dimensão
da desigualdade dos desiguais bem como definir quem são os iguais, no caso
concreto.30
Dificuldade essa, que encontra sua origem no sentido histórico atribuído à
igualdade no texto das leis. Porque a proclamação da igualdade de todos perante
a lei não significava que essa igualdade teria que acontecer na realidade. Mas a
luta pela garantia de direitos sociais desencadeou o processo político a favor da
igualdade material.
29
30
Ibidem, p. 168.
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito
Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 131: “A questão da igualdade é tratada
sob a vértice da máxima aristotélica que preconiza o tratamento igual aos iguais e desigual
aos desiguais, na medida dessa desigualdade. A locução, conquanto correta, parece não
concretizar explicações adequada quanto ao sentido e ao alcance do princípio da isonomia,
porque a grande dificuldade reside exatamente em determinar, em cada caso concreto, quem
são os iguais, quem são os desiguais e qual a medida dessa desigualdade”.
29
Assim, a luta pela igualdade material surgiu no contexto dos movimentos
políticos no fim do século XIX, início do século XX, e seu objetivo era exigir do Poder
Constituído a edição de novos direitos nos campos econômicos, sociais e culturais –
os direitos doutrinariamente nomeados de segunda geração. Essa gama de direitos
sociais teve origem no período onde valores, como a igualdade, eram os principais
argumentos das classes que se sentiam excluídas da proteção do Estado.
Mas foi a Constituição alemã de Weimar, de 1919 que deu início à
consagração desses direitos ao lado das liberdades individuais e mudança do
Estado Liberal para Estado Social de Direito – evento que é considerado marco
histórico do direito constitucional moderno. Além de evoluir na positivação de
direitos sociais, tal Carta explicitou o dever do Estado e deixou mais visíveis as
situações para que os cidadãos exigissem o conteúdo material de seus direitos.31
Na contemporaneidade a igualdade deixa de ser defendida somente na
concepção formal. A busca pela concretização dos direitos, principalmente,
aqueles direitos sociais fundamentais tais como a vida, saúde, educação, trabalho
e moradia faz com que a igualdade, tão somente no plano formal, ceda lugar à
igualdade substancial.
Além do mais, a igualdade real constitui-se em pressuposto da democracia
e enseja ser compreendida não como princípio e sim como valor que norteia o
Estado Democrático.32
Tal fato representa que a igualdade não deve servir a uma ordem imposta
e ditada por valores já ultrapassados pelo tempo.
A partir do movimento pelos direitos sociais, o princípio da igualdade tem
representado muito além do objetivo pelo qual foi positivado no período das
31
32
ZOLLINGER, Márcia Brandão. Proteção Processual aos Direitos Fundamentais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 09-30.
SILVA, 2007, p. 131-132: “Igualdade e liberdade, também não são princípios, mas valores
democráticos, no sentido de que a democracia constitui instrumento de sua realização no
plano prático. A igualdade é o valor fundante da democracia, não a igualdade formal, mas a
substancial”.
30
revoluções burguesas. Por isso que se defende que a política de ações
afirmativas não ofende a igualdade perante a lei e sim precisa ser a norma que
oferece fundamento para a implantação das medidas.33
Celso Antônio Bandeira de Mello em suas lições sobre a igualdade jurídica
revela que a norma comporta tratamento desuniforme, ou seja, o objetivo da
igualdade perante a lei é justamente para acolher situações desiguais:
[...] o princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas.
Sem embargo, consoante se observou, o próprio da lei, sua função
precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamentos
desiguais. Isto é, as normas legais nada mais fazem que discriminar
situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou em
34
outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes.
O fato de a lei criar alguma situação de discriminação entre pessoas,
coisas ou situações para promover a busca da igualdade real não gera quebra do
princípio da isonomia, desde que o interesse a ser protegido encontra amparo no
texto da Constituição.
É nesse sentido que se discute a política de cotas raciais porque a
Constituição
prevê
diversos
artigos
com
o
objetivo
de
erradicar
a
desigualdade racial e, ao mesmo tempo, garante a igualdade de todos
perante a lei.35
Se
a
Constituição
Federal
estabelece
situações
que
comportam
discriminações para construir um tratamento isonômico, a diferenciação não pode
ser considerada quebra do princípio da igualdade.
Estudos reforçam a ideia de que o princípio da isonomia deve pautar-se
pela proteção substancial e não mais a isonomia meramente formal. Porque a
33
34
35
ROCHA, C. L. A. Ação Afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica.
In: Revista de Direito Administrativo Aplicado, vol. 131, p. 649-664. Curitiba, jul./set. 1996.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed.
São Paulo: Malheiros, 2008, p. 12.
CASSEB, Henrique Morgado. Ação Afirmativa como Instrumento Constitucional de
Igualdade da Raça Negra no Ensino Superior Brasileiro. Dissertação de Mestrado
apresentada à Instituição Toledo de Ensino – Centro de Pós-Graduação. Bauru, 2003,
passim.
31
igualdade real vem se afirmando como o objetivo central na busca por justiça
social.36
2.5 O Princípio da Igualdade nas Constituições Brasileiras
No histórico das Constituições brasileiras observa-se que todas elas
contemplaram o princípio da igualdade. A Constituição de 1824 criou um artigo
assegurando a igualdade dos cidadãos em relação aos direitos civis e políticos;
esse artigo (art. 179, inc. XIII), previa que a lei seria igual para todos, “[...] quer
proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada
um”. Trouxe a garantia de igualdade em relação ao serviço público, mas a
expressão do texto deixava transparecer um juízo subjetivo no ato da contratação
dos servidores porque o texto definia que os cargos públicos civis, políticos ou
militares em condições de igualdade com a ressalva de prevalecer os “talentos e
virtudes”. Nessa Carta nenhum outro dispositivo tratava de proteger quem
estivesse em situação desigual.
Na Constituição Federal de 1891, o princípio da igualdade não foi
valorado como fonte nuclear, porém o Título IV, seção II, art. 72, declara
igualdade entre brasileiros e estrangeiros em relação à liberdade individual, à
propriedade, etc. O art. 72, § 2º, assim dispunha: “Todos são iguais perante a
lei”. Outro dado importante foi a proibição de privilégios em relação à classe
social de nascimento isso é os privilégios que tinha a nobreza.
Já a Carta Constitucional de 1934, influenciada pela Constituição de Weimar
de 1919 e a Carta Magna do México 1917, positivou interesses de diversos
segmentos políticos. Dispôs no art. 113, inc. I: “Todos são iguais perante a lei. Não
haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões
próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crença religiosa ou ideia política”.
36
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000, passim.
32
Definiu sobre a igualdade entre brasileiros e estrangeiros, a liberdade, subsistência,
segurança individual e a propriedade. Além de assegurar o acesso à justiça a
todos.37
A Constituição de 1937, editada no período do golpe militar, foi outorgada
por Getúlio Vargas na época do Estado Novo. A igualdade foi consignada no
tópico sobre “Os Direitos e Garantias Individuais”, mais precisamente o art. 122,
inc. I, e assegurou a igualdade perante a lei.
Na Constituição Federal de 1946 editada no cenário denominado de
redemocratização do Brasil, o processo foi similar ao que ocorreu na Carta de
1934, ou seja, houve evolução no sistema de garantias que sustentou uma
perspectiva mais coletiva sobre a igualdade jurídica.
O art. 141 dispôs que “todos são iguais perante a lei” e os arts. 146 e
148 asseguravam a intervenção do Estado no domínio econômico, em casos
de interesse público (igualdade promocional), tendo como limites ao ato
interventivo os direitos fundamentais.
Com a Emenda Constitucional nº 04, de 02 de setembro de 1961, foi
instaurado o regime parlamentarista de governo que foi anulado em 1963, por um
plebiscito e o regime presidencialista voltou à vigência. Esses fatos contribuíram
para a tomada de poder realizada pelas Forças Armadas em 31 de março de
1964.
O acontecido reverteu em domínio e centralização do poder a favor do
Presidente da República, fatos que resultaram em prejuízos em relação à
evolução do direito de igualdade jurídica. Mesmo assim a igualdade formal foi
mantida no art. 153, § 1º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo,
raça, trabalho, credo religioso e convicção política. Será punido pela lei o
preconceito de raça”.38
37
38
ATCHABAHIAN, Serge. Princípio da Igualdade e Ações Afirmativas. São Paulo: RCS,
2006, p. 61-74.
Ibidem, mesmas páginas.
33
A Constituição Federal de 1988 inovou e criou um verdadeiro sistema
sobre a igualdade jurídica interligada à promoção da justiça social. O art. 5º,
caput, inc. I assegura que “todos são iguais perante a lei [...]”.
Tal postulado permeia todo o texto constitucional através de outras
normas sobre a igualdade jurídica. A Carta dispõe sobre a igualdade entre
homens e mulheres (art. 5º, inc. I); em matéria trabalhista proíbe a diferença de
salários (art. 7º, inc. XXX); a discriminação salarial em decorrência de sexo,
idade, cor ou estado civil (art. 7º, inc. XXXI); garante a igualdade de tratamento
em relação ao salário e os critérios para contratação de pessoas com deficiência
(art. 7º, inc. XXXIV); dentre outros incisos que estabelece a garantia de
igualdade.39
Ainda no texto da Carta Magna de 1988, podemos citar a igualdade entre
brasileiros natos e naturalizados previstos no art. 12, § 2º, que dispõe sobre a
distinção entre eles, ressalvados os casos definidos em lei.
Também consta no Capítulo IV a igualdade quanto aos direitos políticos o
art. 14 define: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo
voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I
– plebiscito; II – referendo e III – iniciativa popular”. Proclama igualdade política
administrativa no título III da Constituição e afirma o princípio da igualdade como
fundamento do pacto federativo.
Garante a igualdade na área tributária no Título VI, o art. 150, inc. II, define
a possibilidade que estabelece distinções entre contribuintes em situações
desiguais.40
Assim como a previsão de tratamento diferenciado às cooperativas e
associações civis – art. 5º, inc. XVIII – cujo objetivo é garantir a igualdade em
39
40
Ibidem, mesmas páginas.
Ibidem, p. 124-125: “O principio da igualdade tributária tem relação com a divisão do quinhão
em matéria fiscal. Diz respeito a partilha da obrigação fiscal de modo mais justo e
proporcional possível”.
34
situações reais e promover a defesa social. Outra matéria em que foi assegurada
a igualdade diz respeito ao direito previdenciário – o art. 201, § 1º – coíbe a
adoção de critérios diferentes para conceder benefícios previdenciários, mas
permite a aplicação de medidas compensatórias em casos de atividades
especiais, em casos de risco à saúde ou à integridade física da pessoa. Observase que essa norma permite critérios diferenciados para concessão de benefícios
quando existir situações que exijam tratamento disforme para promover a
igualdade real.41
O art. 37 da Constituição contempla a igualdade de acesso a cargos
públicos para brasileiros e estrangeiros com ressalva dos impedimentos legais.
Ainda o inc. VIII deste artigo assegura a reserva de vagas em concursos públicos
às pessoas portadoras de deficiência.42
Na perspectiva processual a Constituição garante tratamento igual entre as
partes, representa que os envolvidos no litígio têm o direito de receber tratamento
idêntico por parte do juiz. Tal previsão já existia no art. 125, inc. I do Código de
Processo Civil e foi recepcionada pelo novo texto constitucional.43
Outros exemplos de tratamento diferenciado que não infringem o princípio
da igualdade são em relação aos prazos processuais ofertados a operadores do
direito como o Ministério Público, a Fazenda Pública, a Defensoria Pública e
Autarquias.
O rol de normas que prevê a igualdade na Constituição de 1988 não se
esgota aqui, apenas, citamos alguns exemplos que compõem o sistema de
igualdade nessa Carta.
Resumindo, todas as Constituições brasileiras, com influência do contexto
histórico, consignaram o princípio da igualdade jurídica, ora com mais intensidade
41
42
43
Ibidem, p. 128-129.
Ibidem, p. 131: “O tratamento excepcional adotado aos portadores de deficiência é evidente
tentativa de compensar a incapacidade daqueles desafortunados para o desenvolvimento de
determinadas atividades comuns aos outros”.
NERY JUNIOR, 2000, passim.
35
ora com menos. Mas a Constituição de 1988 deve ser considerada o maior
documento sobre a igualdade que o país já conheceu, pois declinou maior
vontade política no sentido de realizar a igualdade material.
2.6 O Princípio da Não Discriminação na Constituição de 1988
Nesse tópico descreveremos sobre o princípio da não discriminação e sua
relação com a política de ações afirmativas a favor da população negra.
Em matéria de não discriminação a Constituição Federal estabelece a
igualdade perante a lei no art. 5º, caput, assim como, dispõe de um sistema de
princípios em todo seu texto constitucional. Mas a proteção da dignidade humana
(art. 1º, inc. III) é considerada a norma que se destina a todos os demais
princípios constitucionais. Entre estes, o princípio da não discriminação previsto
como objetivo fundamental da República – art. 3º, inc. IV: “promover o bem de
todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra forma
de discriminação”. Também o art. 4º, inc. VIII promete “repúdio ao terrorismo e ao
racismo” de acordo com as normas internacionais de proteção dos direitos
humanos. Estas e outras normas que estão expressas, direta ou indiretamente,
na Constituição formam um sistema de princípios que culminam no princípio da
não-discriminação e do mandado de criminalização do racismo expresso no art.
5º, inc. XLII, da Constituição Federal.
Em nosso ordenamento jurídico a Constituição Federal de 1988 emitiu uma
ordem, um mandado de criminalização do racismo no art. 5º, inc. XLII.
O mandado de criminalização consiste num mandamento ou ordem da
Constituição que determina mais rigor na criminalização de determinados direitos
ou bens.44 Os bens ou direitos a serem protegidos precisam representar
44
AUGUSTO, Silma Maria; MARTA, Taís Nader. Mandado de Criminalização do Racismo:
acesso à justiça e efetividade da Lei nº 7.716/89. In: Revista USCC Direito, ano 10, nº 16, p.
149-169. Bauru, jan./jun. 2009.
36
relevância no ordenamento constitucional e esse é o motivo que leva a própria
Constituição trazer expresso tal ordem.
A obrigação tácita de criminalizar envolve um juízo de proporcionalidade,
levando a um arranjo entre dois elementos deste princípio: a proibição do
excesso e a proibição insuficiente. O reconhecimento de que
determinado bem jurídico exige a atuação do legislador, no sentido da
criminalização, supõe que outros mecanismos de controle social são
45
inadequados ou insuficientes.
O mandado de criminalização está sujeito a juízo de proporcionalidade e os
critérios ou pré-requisitos para sua eleição dependem da expressividade do direito
a ser protegido.46
O art. 5º, inc. XLII define que a prática de racismo constitui crime
inafiançável, sujeito à pena de reclusão. Esse dispositivo foi regulamentado pela
Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989, que pune o preconceito de raça ou de cor
com posterior alteração através da Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997. Essa
norma acrescentou no art. 140 do Código Penal o § 3º e criou o crime de injúria
resultante de preconceito de raça ou cor.
Se voltarmos um pouco no tempo percebe-se que o Brasil não adotou
nenhuma medida no sentido de inclusão dos ex-escravos após o Decreto
Abolicionista nº 3.353, de 13 de maio de 1888.
A omissão do Estado em criar instrumentos para que os ex-escravos se
tornassem sujeitos de direitos em condições de igualdade ficou sendo o principal
fator que contribui para gerar a desigualdade cíclica em nosso país. Atualmente
constitui dever do Estado a conduta ativa para promover a justiça social da
população negra.47
45
46
47
GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a
Proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte:
Fórum, 2007, p. 136.
Ibidem, p. 139: “Os mandados expressos de criminalização trazem decisões constitucionais
sobre a maneira como deverão ser protegidos direitos fundamentais. A atuação do legislador
no sentido de promover a proteção desses direitos recebe um elemento de vinculação”.
SANTOS, Hélio. Uma Avaliação do Combate às Desigualdades Raciais no Brasil. In:
GUIMARÃES, Antônio Sérgio; HUNTLY, Lynn. Tirando a Máscara: ensaios sobre o racismo
no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 57-58.
37
Do ponto de vista histórico jurídico a criminalização do racismo foi avanço.
Depois da criminalização do racismo, ainda que insuficiente, o assunto passou a
ser discutido em nossos Tribunais.
No julgamento do caso Siegfried Ellwanger, editor e autor de uma revista
de Porto Alegre que publicou diversas obras que incita a discriminação racial, o
Supremo Tribunal Federal no Acórdão reconhece a construção do conceito
político-social de raça e sua relação como o racismo nos dias atuais – conforme
ementa do Acórdão:
Raça e Racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um
processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto
origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o
48
preconceito segregacionista.
A Constituição Federal de 1988 conforme já revelado declarou um projeto
de igualdade político-jurídico e comprometeu-se com a promoção da justiça
social. Nesse contexto o mandado de criminalização do racismo e o princípio da
não-discriminação se entrelaçam ao projeto de igualdade que a Constituição de
1988 proclama: “A proibição do racismo e a mensagem no sentido de sua
criminalização, por igual, versam sobre o direito fundamental à igualdade e à
dignidade da pessoa humana”.49
Epistemologicamente o princípio da não discriminação positivado na
Constituição de 1988 encontra suas razões nas raízes históricas da formação do
povo brasileiro e nos processos políticos de exploração como ocorreu no período
colonial, com a escravidão negra.
O princípio da não discriminação encontra significado dentro de uma
sociedade somente quando existiu ou existe uma prática de vedação de direitos.
Não fosse assim não teria sentido nossa Carta assegurar que ninguém poderá ser
48
49
LAFER, C. Análise e Interpretação do art. 5º, inc. XLII, da Constituição de 1988: sobre o
alcance e significado do crime da prática do racismo, uma discussão do caso Ellwanger e da
decisão do STF no HC nº 82.424-2. In: Revista da Academia Brasileira de Direito
Constitucional, nº 05, p. 53-55. São Paulo, 2004.
GONÇALVES, 2007, p. 159.
38
objeto de discriminação seja por raça, cor, sexo, religião, filosofia ou por questões
físicas e mentais.
Basta um breve olhar pela história da humanidade para encontrar as
razões da discriminação atual de muitos segmentos excluídos do acesso
ao direito e a condições digna de vida. Quase sempre a discriminação
sofrida no presente tem raízes num passado onde tais grupos foram
submetidos a algum processo subalternizante e de violações. Exemplo
disso são os negros, indígenas, pessoas com deficiência, mulheres,
crianças, etc.
Estudos sobre a pessoa com deficiência e sua relação com o mercado
de trabalho mostra que a discriminação desse grupo tem origem no passado,
desde a idade antiga os deficientes eram submetidos a tratamentos vexatórios
degradantes e humilhantes. Fato que tem sequelas até os dias atuais e por
isso existe a proteção em favor desse segmento.50
Nelson Do Valle Silva é categórico ao dizer que as desigualdades raciais
no Brasil estão relacionadas não apenas à pobreza vivenciada pela grande
maioria das pessoas negras, mas tem relação direta com o passado de
escravidão o qual seus ancestrais viveram.51
É nesse sentido que o princípio da não discriminação precisa ser
interpretado no texto da Carta Constitucional, ligado à razão histórica de sua
existência na lei. O princípio da não discriminação implica comportamento
preventivo devido ao caráter histórico, político e ideológico da discriminação
sofrida, neste caso, pela população negra.
Sendo assim, o princípio da não discriminação busca alcançar três
dimensões: a) a dimensão repressiva, no sentido de aplicar punição àqueles que
50
51
ALVES, Rubens Valtecides. Deficiente Físico: novas dimensões da proteção ao trabalhador.
São Paulo: LTr, 1992, passim.
SILVA, Nelson do Valle. Extensão e Natureza das Desigualdades Raciais no Brasil. In:
GUIMARÃES, Antônio Sérgio; HUNTLY, Lynn. Tirando a Máscara: ensaios sobre o racismo
no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 37.
39
cometem tal ilícito; b) a dimensão preventiva sugere criar instrumentos e ações no
sentido de evitar o ato discriminatório; e c) a dimensão positiva que consiste em
criar medidas concretas no sentido de reduzir o prejuízo ou sequelas sociais que
a prática discriminatória pode causar.
Nessa perspectiva a não discriminação correlaciona que a ética da
dignidade humana e os princípios constitucionais precisam ser mais do que um
projeto ou uma utopia. Precisa ir além da norma formal, para isso a justiça
precisa cumprir o seu papel e restituir a alteridade negada, não ficar restrita a
procedimentos formais que simplesmente acabam por legitimar uma suposta
ordem de igualdade.
A justiça existe vinculada à condição ética da alteridade humana, sem
ela a justiça fica restrita à lógica simbólica da retórica argumentativa e
dos procedimentos formais de legitimação da ordem. A dimensão
ética da justiça lhe confere potencialidade utópica para almejar uma
vida mais digna possível para todos os seres humanos. Sem essa
condição utópica a justiça passa a funcionar como elemento operativo
da ordem estabelecida. A utopia não projeta a justiça no horizonte
das fantasias senão que a coloca no presente como desafio
52
possível.
O papel do direito desvinculado da alteridade do ser humano perde todo o
sentido. O ser humano depende do reconhecimento como tal para que possa se
desenvolver, se comunicar e interagir com o outro. A discriminação reprime a
dimensão comunicativa do ser humano, consiste num dos modos mais perversos
de negação do outro, enquanto pessoa humana. O direito não é justo pela força,
mas pela possibilidade de promover e proteger o outro, em especial os
injustiçados.
A condição ética da vida humana se desenvolve como plenitude de
vida, realização do sujeito ou reconhecimento de sua dignidade. Em
todas as conceituações possíveis a dimensão ética da alteridade
humana exige que a justiça se aplique como respeito e promoção da
vida humana. Numa ordem inversa podemos dizer que o direito, a
legalidade e a justiça procedimental não se legitimam pela força, ou
quando se legitimam exclusivamente pela força perdem sua
legitimidade. A sua legitimação primeira deve ser a justiça ética, o que
52
CASTOR, Bartolomé Ruiz. Justiça e Memória: para uma crítica ética da violência. São
Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 11.
40
requer o seu confronto constante com a alteridade humana. O direito
não é justo pela força, mas pela possibilidade de promover e proteger o
outro, em especial os injustiçados. Caso contrário, se torna um aparato
ideológico para legitimar a força, o que torna essa força uma forma de
53
violência.
Creio ser importante retratar aqui o direito de memória. Porque a memória
pode conduzir ao reconhecimento de algo ou trazer ao presente uma visão
daquilo que ocorreu no passado. A memória é um instrumento que as vitimas de
processos degradantes têm para trazer à realidade os fatos passados que se
perdem no tempo e caem no esquecimento.54
Se adotarmos o sentido de justiça numa perspectiva ética, o princípio da
não-discriminação deve compor também a esfera dos direitos inalienáveis, de
memória, de identidade e de personalidade que são valores imateriais.55
Talvez seja nesse sentido que a discussão sobre as cotas raciais no
sistema jurídico brasileiro tem contribuído para reascender a memória de um
passado que vinha sendo camuflado por outros fatores como: o discurso da
igualdade perante a lei, do processo de miscigenação do povo brasileiro enfim da
desigualdade social que atinge a todos.
Argumentos que não retratam a realidade brasileira que por si só mostra a
situação precária de milhares de negros. O fato é que a desigualdade racial no
53
54
55
Ibidem, p. 108.
Ibidem, p. 12: “A justiça ética requer a memória como condição necessária. A memória é o
recurso que o injustiçado tem para fazer presente: a injustiça passada [...]. Reyes Mate
defende que a memória pode levar ao reconhecimento ou visibilidade. Porém a memória
torna se um problema de ordem hermenêutica porque objetiva atribuir um sentido de algo
passado e não uma reparação em casos de sofrimentos de vítimas. Mas a memória é
importante para trazer à realidade aquilo que vai sendo camuflado com o tempo. Porque a
invisibilidade das vítimas de determinado processo histórico contribui para não reconhecer o
significado do sofrimento que foi provocado e a eliminarão das seqüelas”.
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1995, p. 35. Vimos que a personalidade se resume no conjunto de caracteres do
próprio indivíduo; consiste na parte intrínseca da pessoa humana. Trata-se de um, bem, no
sentido jurídico, sendo o primeiro bem pertencente à pessoa, sua primeira utilidade. Através
da personalidade, a pessoa poderá adquirir e defender os demais bens. Os bens do homem
são protegidos tanto pelos efeitos reflexos do direito objetivo como pelo direito subjetivo,
sendo sua natureza diversa. Os bens que aqui nos interessam são aqueles inerentes à
pessoa humana, a saber; a vida, a liberdade e a honra, entre outros. A proteção que se dá a
esses bens primeiros do indivíduo são denominados de direitos de personalidade.
41
Brasil foi neutralizada com o percurso do tempo. Fator que comprometeu uma
visão mais crítica do cidadão comum em relação às condições de vida desigual
da maioria da população negra. Construiu-se o pensamento de que é natural
grande parte dos negros ocuparem os piores postos de trabalhos, não
frequentarem a escola e viverem em condições de miserabilidade.56
As desigualdades raciais acontecem no presente, mas, a busca pela
origem do problema tem relação com o passado nesse ponto o direito a memória
deve ser um instrumento importante que permite construir soluções para
problemas atuais e esquecidos.
O princípio da não discriminação é proclamado em quase todos os
documentos publicado na atualidade. Um exemplo disso é a Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia, no art. 1º dispõe que: “a dignidade do ser
humano é inviolável e deve ser respeitada e protegida”. E no art. 21º assegura:
Art. 21º: [...].
1. É proibida a discriminação em razão, designadamente, do sexo,
raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua,
religião ou convicção, opiniões políticas ou outras, pertença a uma
minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação
sexual.
2. No âmbito de aplicação dos tratados e sem prejuízo das suas
disposições específicas, é proibida toda a discriminação em razão da
57
nacionalidade.
Atualmente o debate se volta para as ações e instrumentos para fazer
acontecer o direito de não ser discriminado. Após incessante luta do movimento
negro e social e exigências impostas por Organismos Internacionais, o Estado
brasileiro começou a construir uma pauta política em matéria da promoção da
igualdade étnico-racial.
Encontra-se em trâmite no Senado Federal o Projeto de Lei (PL nº
6.264/05) que prevê vários direitos já assegurados pelo sistema constitucional e
infraconstitucional.
56
57
SANTOS, 2000, p. 66.
RAMOS, 2009, p. 242-246.
42
Foi editado pelo Governo Federal o Plano Nacional de Promoção da
Igualdade Racial – PLANAPIR – mediante o Decreto nº 6.872, de 04 de junho de
2009, instituindo também um Comitê de Articulação e Monitoramento. O plano
contempla políticas públicas direcionadas para a população negra, indígena e
cigana nas áreas da educação, saúde, segurança pública, trabalho e outras. No
eixo trabalho e desenvolvimento econômico consta:
I – promover a inclusão e a igualdade de oportunidades e de
remuneração das populações negra, indígena, quilombola e cigana no
mercado de trabalho, como destaque para a juventude e as
58
trabalhadoras domésticas.
Reconhece-se a importância de uma pauta política para promover a
igualdade étnico-racial, mas cabe uma análise cautelosa sobre a edição dessas
leis pelo Estado brasileiro. O documento contém muitos artigos e repete diversas
normas que já estão na Constituição.
Um ponto de destaque nesse Plano é a previsão de um sistema para
monitorar as ações da Administração Pública. Mas o fato de criar um plano não
significa que haverá efetivação da igualdade caso não crie a estrutura para tal fim.
Entre garantir na lei e ter o direito efetivado percorre-se longo caminho.
Em outras palavras entre o direito formal e a sua concretização existem
obstáculos de grandes proporções. Desde aspectos como dotação de
recursos,
planejamento,
gestão,
capacitação
de
recursos
humanos
e
integração da Federação. O próprio Plano refere que sua execução depende
do envolvimento não apenas do Executivo, mas de todos Estados e Poderes
da Federação.
Garantir na lei parece ser de praxe na história política da nação brasileira;
inúmeros estatutos já foram editados e anos após, novas leis são criadas como se
elas se tornassem efetivas por si mesmas. Assim acontece com a própria
Constituição. Luis Roberto Barroso afirma que: “[...] os direitos sociais têm
58
Conforme Decreto nº 6.872, de 04 de junho de 2009. Disponível em: <http://www.presidenciabr.gov.br/seppir>. Acesso em: 12 dez. 2009.
43
enfrentado trajetória mais acidentada, sendo a sua efetivação um dos tormentos
da doutrina e da jurisprudência”.59
Nesse aspecto merece destaque o pensamento de Lunhmann sobre a
complexidade na formação do direito positivo que normalmente se baseia na
formação de expectativa:
O caso contrário, ou seja, o da expectativa cognitiva de uma expectativa
normativa ou cognitiva, privilegia a assimilação individual e não a
regulamentação social. Aqui o indivíduo está orientado no sentido da
assimilação das expectativas dos outros, sejam elas normativas ou
cognitivas. Ele não estabelece normas, mas toma conhecimento de
eventuais surpresas e está em condições de adaptar-se se outros
reformulam suas expectativas normativas ou cognitivas – por exemplo
quando é promulgada uma nova lei, uma decisão jurídica inesperada, ou
quando se alteram os hábitos normatizantes da vida cotidiana, quando a
moda muda, a moral se liberaliza. Veremos ainda que essa
fundamentação puramente cognitiva, e aberta a alteração, de estruturas
normativas é especialmente importante nas condições do direito
60
positivo.
Os direitos sociais muitas vezes se situam no campo das expectativas, pois
a lei pode existir e o direito permanecer só na Lei, sem alcance real. Mas a
expectativa foi gerada, ela mantém o ciclo de formação do próprio direito positivo.
Caso o Estado não crie as condições para realizar esse Plano Nacional de
Promoção da igualdade étnico-racial, ele poderá ficar no contexto da expectativa,
o que ocorreu com outras leis de crimes raciais que prometiam a coibição do
racismo e da discriminação – o que não ocorreu de forma satisfatória.
59
60
BARROSO, Luis Roberto. 20 anos da Constituição Brasileira de 1988: O estado a que
chegamos. In: Revista de Direito do Estado, nº 12, p. 42. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
LUNHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1983, p. 65.
44
3 AÇÃO AFIRMATIVA
3.1 As Cotas e o Conceito de Raça
A política de cotas raciais teve início no Estado do Rio de Janeiro com a
edição de duas leis estaduais (Lei nº 3.524/00 e Lei nº 3.708/01), posteriormente
revogadas pela Lei Estadual nº 4.151/03, em vigência, que prevê sobre cotas
raciais e sociais em universidades públicas.
Desde o início da política de cotas raciais, no Rio de Janeiro, dezenas de
instituições federais de ensino superior público editaram normas contendo reserva de
vagas para negros ingressarem no ensino superior. Atualmente, pode se constatar
que quase a totalidade dos Estados da Federação adota alguma modalidade de
ações afirmativas principalmente o direito a cotas no ensino superior.61
Isso tem provocado discursos explosivos na sociedade, no meio acadêmico
e jurídico sobre os métodos utilizados para a identificação dos candidatos negros,
que normalmente ocorre mediante critério autodeclarativo.
Um dos casos mais polêmicos aconteceu na Universidade de Brasília onde
dois irmãos (gêmeos) se inscreveram no vestibular pelo sistema de cotas raciais,
sendo que um foi considerado negro e o outro não.62
O significado do conceito de raça, o mérito acadêmico, a igualdade perante
a lei, a desigualdade racial e outras questões correlatas são motivos de teses,
livros, seminários, reportagens, entrevistas e manifestos. São instrumentos
utilizados tanto pelos adeptos das cotas quanto pelos detratores.63
61
62
63
Conforme site da Universidade Federal de São Carlos. Disponível em:
<http://www.acoes.ufscar.br>. Acesso em 12 dez. 2009.
CAMARGO, Leoli. Eles são Gêmeos Idênticos, mas Segundo a UnB, Este é Branco e ... In:
Revista Veja, 2011 ed., p. 82-87. São Paulo, jun. 2007.
Conforme site da Universidade Federal de São Carlos. Disponível em:
<http://www.acoes.ufscar.br>. Acesso em 12 dez. 2009.
45
O projeto de Lei nº 6.264/05 (intitulado estatuto da igualdade racial) de
autoria inicial do Senador da República Paulo Paim propõe medidas no sentido de
inclusão social da população negra. Foi aprovado na seção da Câmara dos
deputados, porém retirado os artigos que previam reservas de vagas a negros. O
projeto encontra-se em curso e aguarda aprovação no Senado Federal, em
princípio, no cenário político, as cotas raciais não foram garantidas.
Existem duas ações em trâmite no Supremo Tribunal Federal cujo objeto
versa sobre a constitucionalidade das cotas raciais e aguardam decisão da Maior
Corte do país (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186 e o
Recurso Extraordinário nº 597285).
Percebe-se que o movimento político sobre as cotas raciais provocou a
aproximação do Poder Judiciário de setores populares. O movimento social
negro, há décadas, tem atuado de forma incessante pela inclusão social da
população e atualmente luta pela aprovação das cotas raciais. Salienta-se que o
movimento negro compõe-se de pessoas de vários segmentos da sociedade civil
e engloba diferentes instituições. Também a comunidade científica, como
pesquisadores e professores (negros e brancos) que estudam a temática racial
formam grande força política no debate sobre as cotas, onde se notam duas
linhas de pensamento: adeptos e detratores da política de cotas raciais.64
O resultado de toda essa discussão já provocou diversas audiências
públicas sobre o assunto, tanto no Congresso Nacional65 e, por último, no
Supremo Tribunal Federal onde foi realizada audiência pública nos dias 03, 04 e
05 de março de 2010, cuja pauta foi a política de cotas raciais nas universidades
públicas.
A abertura do Supremo Tribunal Federal à população e à comunidade
acadêmica segundo o Ministro Ricardo Lewandowski tinha por objetivo ouvir
64
65
WERNECK, Jurema. Nossos Passos Vêm de Longe: movimentos de mulheres negras e
estratégias políticas contra o sexismo e o racismo. In: Revista da ABPN – Associação
Brasileira de Pesquisadores (as) Negros(as), vol. 01, nº 01, p. 12-16. São Paulo, mar./jun.
2010.
Disponível em: <http://www.congressonacional.gov.br>. Acesso em: 04 jan. 2010.
46
posições de estudiosos da ciência social e jurídica de ambas as correntes;
adeptos e detratores do sistema de cotas raciais.66
Os detratores das cotas raciais no direito brasileiro afirmam que raça foi um
conceito criado por volta do século XIX pela biologia e a partir do século XX esse
conceito perdeu sentido com o desenvolvimento da genética e da biologia
molecular, por isso tal conceito já se encontra superado.67
Enquanto para os adeptos do sistema de cotas raciais o conceito de raça
foi ideologicamente construído e usado como mecanismo de controle político e
social. O período de colonização e escravidão negra no Brasil foram citados como
exemplos de utilização desse conceito, por parte do Poder Político dominante
daquela época.
Há entendimento de que se for adotado critérios científicos para definir
quem é ou não é negro no Brasil, certamente, inviabilizará a proposta de ação
afirmativa em benefício dos negros e dos pobres. Porque a discussão sobre o
conceito de raça não passa pela afirmação de existência de raça, no sentido
biológico, o que se discute é a construção de raça enquanto mecanismo de
dominação política e como esse conceito se estabeleceu no cotidiano das
pessoas.
Kabengele Munanga acresce que no Brasil a identificação do negro não se
coloca no plano do genótipo, mas sim do fenótipo porque práticas racistas
ocorrem de acordo com a cor do indivíduo, sendo o racismo no Brasil de marca e
não de origem.68
66
67
68
Conforme site do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso
em: 12 jan. 2010.
FRY, Peter; MAGGIE, Yonne; MAIO, Marcos Chor; et. al. Divisões Perigosas: políticas
raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 29-42: “No
século XX, com o desenvolvimento da genética e da biologia molecular, o estudo do corpo
humano ultrapassou largamente os aspectos morfológicos mais aparentes, como a cor da
pele, que serviram de base para as classificações anteriores”.
MUNANGA, Kabengele. Políticas de Ação Afirmativa em Benefício da População Negra no
Brasil: um ponto de vista em defesa de cotas. In: GONÇALVES, Petronilha Beatriz e Silva;
SILVÉRIO, Valter Roberto (orgs.). Educação e Ações Afirmativas Entre a Injustiça
Simbólica e a Injustiça Econômica. Brasília: INEP, 2003, p. 117-123.
47
Esse debate nos instiga a aprofundar um pouco mais sobre a construção
do conceito de raça na história da humanidade e também os impactos que essa
construção tem causado na sociedade contemporânea.
Embora muitos estudiosos defendam que o termo raça surgiu na Europa,
no século XIX, há pesquisadores que acreditam que a ideia de raça surgiu na
antiguidade, mas a ideia de classificação de seres humanos iniciou-se somente
no século XVIII.69
Nota-se que parte significativa de estudiosos defende que foi no século
XIX, mediante as teorias biológicas de Darwin sobre a evolução humana, que o
conceito de raça se solidificou e começou a ser utilizado com mais vigor, como
instrumento de dominação política em relação a determinados grupos.
Teorias de Darwin serviram de sustentáculo para o poder dominante
construir a ideia da sociedade baseada em raça e, esse poderoso instrumento de
dominação, apesar de ter sido desarticulado no século XX ainda opera, de forma
disfarçada, contribuindo para a manutenção da exclusão social.70
João Felipe Marques acresce que o racismo baseado na ideia de raça
(critério biológico de hierarquização de pessoas) utilizado como estratégica de
dominação política no século XIX perdeu força e entrou em declínio, mas a
ideologia ainda persiste no meio de muitas sociedades, principalmente na Europa
onde o conceito de raça foi substituído por outros termos como etnia, cultura e
nacionalidade.
Segundo Marques o uso da palavra etnia dificulta a individualização da
pessoa e dissimula práticas racistas, já o uso da nacionalidade pode ser um
poderoso instrumento para justificar as práticas racistas no continente europeu.
Pois, através do discurso nacionalista as práticas racistas tornam-se invisíveis e o
69
70
Teorias racistas surgiram na Antiguidade e o esquema de classificação dos seres humanos
começou a partir do século XVIII.
WEST, Cornel. A Genealogy of Modern Racism. Oxford: Blackwell Publishers, 2002, p. 90109.
48
controle racial é camuflado, por exemplo, pela regulação da imigração baseada
no nacionalismo. No controle da imigração o alvo são os segmentos
historicamente discriminados, os negros, os ciganos, os europeus do leste, etc.
Afirma também que na atualidade o racismo se apresenta de forma menos
declarada, não parece tão brutal e arrogante como as práticas do passado, mas
se revela tão perigoso quanto antes, devido sua vinculação direta com teorias
racistas do passado.
No mesmo sentido Giralda Seyferth afirma:
Agregar raça e nação tem sido a falácia de muitos nacionalistas. No caso
brasileiro, produziu uma retórica sobre a mestiçagem apoiada na
desqualificação daqueles que não possuíam um fenótipo branco. A
referência anterior aos teuto-brasileiros tem o propósito de mostrar um
dos efeitos esperados da imigração européia – ‘arianizar’ o Brasil, para
usar a expressão extrema do branqueamento de autores mais próximos
do racismo darwinista social, como Vianna. Daí a sistemática
preocupação com os graus de assimilabilidade das diferenças
nacionalidades européias no âmbito das discussões sobre as políticas
imigratórias, dentro e fora do aparelho de Estado, desde 1850. Na
verdade, os negros eram considerados o ‘problema’ – razão do atraso
brasileiro (o que acentuou o aspecto racial da questão da escravidão) –,
pois, também no Brasil, a desigualdade social era interpretada como
expressão das leis universais da natureza, com suas implicações de
71
inferioridade inata dos não-brancos.
Alana Lentin acrescenta que nas sociedades contemporâneas existe o mito
de que o racismo é assunto do cotidiano das pessoas. Mas na verdade não é. O
fato de existir inúmeros sites na internet e o assunto parecer tão próximo das
pessoas, não significa que está sendo discutido de forma profunda.72
Em perspectiva que se aproxima, Wieviorka descreve que o racismo requer
estudos mais profundos no campo científico, além do senso comum, de algo
corriqueiro. Para isso requer ser investigado através de diferentes vertentes;
histórica, política, jurídica e sociológica.73
71
72
73
SEYFERTH, Giralda. O Beneplácito da Desigualdade: breve digressão sobre racismo.
Petrópolis: ABONG, 2002, p. 35.
LENTIN, Alana. Racism: a beginner’s guide. Oxford: Blackwell Publishers, 2008, passim.
WIEVIORKA, Michel. O Racismo: uma introdução. Lisboa: Fenda Edições, 2002, passim.
49
No contexto brasileiro, Jerry Dávila relata que a ideia de raça surgiu na
Europa e teve forte influência na formação do pensamento da elite brasileira,
principalmente, para construir uma política social que excluía os pobres e negros.
Segundo ele, os cientistas daquele período tratavam a eugenia como uma ciência
de
ampla
abrangência
que
combinava
diferentes
teorias
sobre
raça,
hereditariedade, cultura e influência do meio ambiente em práticas e receitas que
visavam, geralmente, “melhorar” uma população nacional.74
A partir desse pensamento, as elites brasileiras passaram a adotar a
mesma prática de inferiorização dos pobres e não-brancos.75
No processo de reformas na área da educação, a partir da segunda década
do século XX, as ideias eugênicas ganharam força e os reformadores
estabeleceram uma visão de valor social que fortalecia a predominância da classe
média branca, a década de 30 se revelou como um período de ouro para os
reformistas da política de educação no país.76
74
75
76
DÁVILA, Jerry. Diploma de Brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945). São
Paulo: UNESP, 2006, p. 31: “Uma eugenia ‘pesada’ baseada na remoção do acervo
reprodutivo de indivíduos que possuíam traços indesejados por meio da esterilização ou do
genocídio foi praticada em diversos graus em países como a Alemanha nazista, a GrãBretanha e os Estados Unidos. Grande parte da América Latina e algumas partes da Europa
adotaram uma eugenia ‘leve’, que sustentava que o cuidado pré e neonatal, a saúde e a
higiene públicas, além de uma preocupação com a psicologia, a cultura geral e a forma física
melhorariam gradualmente a adequação eugênica de uma população”.
Ibidem, p. 32: “Para os brasileiros que a adotavam, a eugenia não era apenas um meio de
aperfeiçoar indivíduos ou grupos específicos. Era uma forma de superar o que eles
percebiam ser as deficiências da nação, aplicando uma série de diagnóstico e soluções
científicas. Tratava-se de um nacionalismo eugênico, que congregou médicos, sociólogos,
psicólogos, higienistas e antropólogos. Essas autoridades científicas procuravam vias em
meio ás políticas e instituições para aplicar suas mãos curativas sobre uma população a
quem costumavam encarar com brando desprezo. Eles se agruparam, reunindo diversas
disciplinas da ciência e regiões geográficas, para criar programas de saúde pública e
educação que seriam o campo onde iriam aplicar sua intervenção redentora”.
Ibidem, p. 33-34: “As reformas educacionais começaram a se firmar na segunda década do
século XX quando os nacionalistas começaram a adotar idéias eugênicas sobre degeneração
e a contemplar as possibilidades de regenerar a vasta subclasse racial e social. Na década
de 1920, esse movimento ganhou coesão e visibilidade nacional. Os reformadores
educacionais começaram a trabalhar com um sentido comum de propósito permeando várias
disciplinas e regiões do Brasil, embora suas energias estivessem concentradas nos sistemas
escolares das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, que poderiam servir de ‘vitrine’ para
seus projetos. A Revolução de 1930, que conduziu Getúlio Vargas ao poder, levou à quase
imediata criação de um Ministério da Educação e Saúde Pública (mais tarde Ministério da
Educação e Saúde, ou MES), assim como a uma mudança da orientação política em todo
país que apressou a consolidação de reformas e provocou a expansão dos sistemas
escolares”.
50
Por volta do ano de 1938 o ministro da Educação e Saúde, Gustavo
Capanema, solicitou a grupos de estudiosos brasileiros (antropólogos e
intelectuais nacionalistas) que elaborassem ideias sobre a representação do povo
brasileiro (o indivíduo). O objetivo de tal ministro era usar das ideias para
encomendar uma estátua para o novo prédio do Ministério da Educação porque o
ministro estava preocupado com a aparência dessa escultura.77
Ao escultor Celso Antonio foi pedido que esculpisse a estátua, mas sua
sensibilidade o levou a esculpir uma com traços negróides como era a maioria do
povo brasileiro, tal peça de arte foi rejeitada por muitos cientistas daquela época
que defenderam que a escultura deveria conter traços da cultura europeia.78
Lilia Mortiz Schwarcz, na obra intitulada o Espetáculo das Raças, teoriza,
de forma profunda, sobre a construção do conceito das teorias racistas no
contexto brasileiro. Aponta como foram construídos, pelo Estado e pela
sociedade, mecanismos de exclusão racial. Mecanismos que foram muito bem
arquitetados e inseridos na política educacional, nos institutos jurídicos e políticos.
Exemplo disso foi a teoria de Lombroso difundida entre juristas. Essa teoria
baseava-se na identidade do criminoso nato mediante a identificação de
características fenotípicas; normalmente, tais características tinham vínculo direto
com a ideia de raça.79
77
78
79
Ibidem, p. 47: “A estátua do ‘Homem Brasileiro’ deveria completar a alegoria mostrando que a
educação pública tornaria os brasileiros brancos e fortes, dignos de seu brilhante futuro. Segundo
Capanema, “o edifício e a estátua se completarão, de maneira exata e necessária”. Entretanto, a
figura do ‘Homem Brasileiro’ que o escultor Celso Antônio extraiu da pedra representava tudo o
que Capanema esperava que o Brasil deixasse para trás. A figura era um caboclo, um homem
das matas, de raça mestiça. Para tornar as coisas piores, esse caboclo era barrigudo. O escultor,
Celso Antônio, justificou sua obra afirmando que, ao olhar para o Brasil, era aquilo que ele via.
Essa figura era o retrato do homem médio brasileiro. Aparentemente, ele desconsidera o
significado alegórico desse monumento para o Brasil do futuro que era branco e forte”.
Ibidem, p. 49: “Os cientistas estavam todos de pleno acordo. Edgar Roquette Pinto, diretor do
Museu Nacional de Antropologia, desaconselhou a escolha de quaisquer tipos raciais que, em
sua opinião, mais cedo ou mais tarde desapareceriam. Em vez disso, a figura deveria ser
branca de expressão mediterrânea, para representar o fenótipo para o qual ‘a evolução
morfológica dos outros tipos raciais do Brasil tendia. O jurista Francisco Oliveira Vianna
concordou, replicando que a escultura deveria refletir não só os tipos brancóides, resultantes da
evolução arianizante dos nossos mestiços, como também representantes de todas as raças
européias aqui afluentes, sejam os colonos aqui fixados, sejam os descendentes deles”.
SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial
no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 141-183.
51
Trazemos aqui um julgado, nessa linha de pensamento, decisão do
Tribunal Regional Federal da Quarta Região – no Agravo de Instrumento nº
2009.04.00.007415-1/RS – uma das ações onde foi discutida a política de cotas
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O Relator Roger Raupp Rios, com
discurso favorável às cotas argumenta:
Argumentam-se com a inexistência de racismo no Brasil ou, pelo menos,
com a prevalência de um padrão de relações raciais que torna
desnecessária a adoção de ações afirmativas atentas para o critério
racial. Do ponto de vista constitucional, acompanhada de manifestação
histórica do STF, a constatação do racismo, inclusive com a juridicidade
de sua criminalização, é questão definida. Quanto à conveniência e às
bases da implementação de ações afirmativas no direito brasileiro, já
manifestei-me acima (item IV). Não obstante, nunca é demais atentar
para as características do racismo entre nós, perceptível cotidianamente,
seja pelos seus resultados nefastos, seja pelas práticas disseminadas.
Ainda mais quanto, como se mostra no debate sobre ações afirmativas,
é necessário afastar concepções do senso comum que impossibilitam à
80
sociedade (em geral) essa nitidez.
O Relator deste caso faz longa discussão sobre a natureza ideológica
do conceito de raça, faz referência às concepções teóricas de Thomas
Skidmore (obra Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento
brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976), declina o nome de outras obras
e ainda faz o histórico do tratamento concedido à população negra na
legislação brasileira:
Essa ideologia foi disseminada na mentalidade nacional. De uma forma
ou de outra, noticia esse autor, o ideal do branqueamento (com seus
pressupostos
notadamente
racistas)
foi
compartilhado
pela
intelectualidade nacional, presente na obra de inúmeros e influentes
pensadores, juristas, políticos e escritores brasileiros (são citados, dentre
outros, Euclides da Cunha, Afrânio Peixoto, Clóvis Bevilácqua, Monteiro
81
Lobato, Gilberto Freire, Oliveira Vianna, Paulo Prado).
Prossegue em seu discurso relatando que o ordenamento jurídico brasileiro
fortaleceu o pensamento de raça e contribuiu para que o racismo fosse encoberto
pela democracia racial.
80
81
TRF 4ª Região, Agrado de Instrumento nº 2009.04.00.007415-1/RS, Rel. Des. Roger Raupp
Rios.
Idem.
52
No campo especificamente jurídico, essa ideologia pode ser constatada,
emblematicamente, no Decreto-Lei nº 7.967/1946. Cuidando da política
imigratória, dispôs que o ingresso de imigrantes dar-se-ia tendo em vista
‘a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da
população, as características mais convenientes da sua ascendência
européia’ [...]. Ao encerrar essa passagem pelo tratamento jurídico
dispensado à população negra no ordenamento pátrio, importante referir
o estudo da Profª. Eunice Aparecida de Jesus Prudente, O Negro na
Ordem Jurídica Brasileira (Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, vol.83, jan.-dez. 1988, p.135-149). Nele é
examinado a evolução do direito brasileiro, no que respeita à negritude,
sob a dupla ótica do elemento negro como objeto de direito (1530 a
1888) e sujeito de direito (após 1988), em análise donde sobressai o
caráter da desigualdade racial [...]. A ideologia do branqueamento,
como dito, foi encoberta pela afirmação da “democracia racial”.
Cria-se (e em grande parte ainda se crê) que o Brasil é uma terra sem
impedimentos legais e institucionais para a igualdade racial, onde o
preconceito e a discriminação raciais são reduzidos. Sustenta-se que há
igualdade de oportunidades, podendo, os negros disputarem em iguais
condições com os demais cidadãos o acesso aos bens sociais e
materiais (essa a enunciação da democracia racial por Florestan
Fernandes, O mito da democracia racial, citado por George R. Andrews,
Negros e brancos em São Paulo (1888-1988), Bauru, EDUSC, 1998,
p.203). Essa democracia racial, explicam Sérgio Buarque de Holanda e
Francisco Weffort, integram os equívocos da própria experiência
82
republicana no Brasil (grifou-se).
Ocorreu a sedimentação das teorias racistas na sociedade e instituições
brasileiras bem como a desconstituição da identidade da população negra. O
impacto dessas teorias na vida real da maioria das pessoas negras parece ser o
principal motivo que a exclui do acesso aos bens e direitos na sociedade
brasileira.83
Daí surge o debate sobre a construção sociopolítica e cultural do conceito
de raça. Também é evidente que o conceito de raça jamais poderá ser utilizado
no aspecto biológico, como forma de hierarquização de seres humanos.
Justifica-se o uso desse conceito num sentido político, como forma de
restaurar a dignidade dos que foram subalternizados.
O conceito de raça é histórico e ideológico, assim seria irônico defender
que ele não existe. Até porque, inúmeros documentos nacionais e internacionais,
82
83
Idem.
SILVA, Maria Aparecida Bento. Branqueamento e Branquitude no Brasil. Petrópolis:
Vozes, 2008, p. 223-224.
53
leis e a Constituição Federal de 1988 fazem referências à expressão raça em
seus textos e tais disposições objetivam a proteção das pessoas sob qualquer
forma de discriminação, por motivo de raça.
Acredita-se que a expressão raça empregada nas leis tenha sentido
pedagógico e também para preservar o direito à memória e garantir
reparação das sequelas causadas, bem como provocar atitudes éticas, no
presente, contra retrocessos daqueles direitos que foram construídos e ainda
não realizados.
Seria absurdo em pleno século XXI, se consignar em nossas leis o termo
raça para induzir práticas que, num passado recente, causaram graves crimes
contra a humanidade, como a escravidão negra, o holocausto dos judeus e
outros.
O termo raça aparece em nossa Constituição aliado aos princípios e
objetivos fundamentais de nossa nação. Nenhuma valoração ao termo pode ser
desvinculada do significado maior que é a defesa da dignidade humana e da
promoção da justiça social.
É nesse sentido que a reserva de vagas para estudantes negros se
justifica, caso contrário estaríamos reforçando práticas raciais que ainda se fazem
presentes em nossa sociedade.
Detratores das cotas raciais, no direito brasileiro, sustentam que o uso do
termo raça no texto da lei compromete a igualdade e acabaria racializando as
políticas públicas.
Tal argumento parece equivocado porque o termo raça foi positivado
nas Constituições modernas justamente com o objetivo de explicitar que a lei
proibiria qualquer forma de discriminação de natureza racial como também
faz um pacto para criar políticas públicas a fim de eliminar as desigualdades
raciais.
54
A polêmica quanto à reserva de vaga para negros reside também em
relação aos critérios para identificar quem é negro no Brasil. Atribui-se dificuldade
quanto ao critério racial para identificar o público a ser beneficiado devido a
miscigenação que ocorreu no nosso país.
O fato da miscigenação é real, porém o que não se admite é o pensamento
de que esse processo de miscigenação construiu uma democracia racial e que a
discriminação no Brasil é apenas de ordem social.84
Os critérios para a identificação dos negros realmente pode parecer
complexo para implantar a política de cotas, mas no cotidiano a realidade é outra
– Nelson Jobim (quando era Ministro do Supremo Tribunal Federal) em palestra
que proferiu em 20 de agosto de 2004 na Câmara Municipal de São Paulo
afirmou:
Vamos dizer, então, que negro, no Brasil, é aquele personagem
identificado como tal pelo porteiro do hotel. Ponto. E está resolvido o
problema. Ou não é assim que a sociedade brasileira se manifesta? Ou
o motorista de táxi não sabe quem é negro? Sabe, sabe, e ainda olha
com desconfiança. ‘Você paga adiantado’ (risos). Ou seja, para fugir ao
enfrentamento do problema, meu caro Desembargador, nós começamos
por áreas em que se está discutindo o uso de palavras, e não situações
85
reais.
Essa fala do ex-ministro representa muito a ambiguidade da sociedade
brasileira em relação ao critério de identificação na política de cotas, porque nas
relações cotidianas todos sabem quem é negro no Brasil.
Embora vários estudos acadêmicos relatem os malefícios das teorias
raciais na vida real de milhares de pessoas, o mito da democracia racial parece
permanecer não apenas entre a população comum, como também entre os
membros do Judiciário e de nossos representantes políticos.
84
85
DÁVILA, 2006, p. 355-356: “A eugenia perdeu a legitimidade científica após o final da
Segunda Guerra Mundial, mas as instituições, práticas e pressuposições a que ela deu
origem – na verdade, seu espírito – sobrevivem. A idéia de uma “raça brasileira” permanece
em muitas áreas da vida pública”.
In: A Inserção do Afro-Descendente na Sociedade Brasileira. Palestra ministrada pelo
Ministro Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal, realizada na Câmara
Municipal de São Paulo, em 20 de agosto de 2004.
55
Exemplo desse fato pode ser visto no voto do Senador Marconi Perillo, na
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sobre o Projeto de Lei da Câmara
(PLC) nº 180, de 2008 (PL nº 73, de 1999, na casa de origem) que dispõe sobre o
ingresso nas universidades federais e estaduais e nas instituições federais de
ensino técnico de nível médio – e dos Projetos de Lei do Senado (PLS) nº 215, de
2003; nº 344, de 2008; e, nº 479, de 2008 –, ficou acentuado na fundamentação
do Senador que o racismo para ser considerado como uma conduta repugnante
precisa ser declarado, de forma visivelmente separatista e institucionalizado como
foi nos Estados Unidos.86
O Senador afirma que a democracia racial constitui-se num mito:
Entretanto, comparada a realidade norte-americana à brasileira, temos
de reconhecer que, se não houve no Brasil uma verdadeira democracia
racial, tampouco houve, entre nós, um processo de segregação nos
moldes estadunidenses. Talvez isso tenha ocorrido porque o colonizador
português fosse já mestiço, como bem observa Sérgio Buarque de
Holanda, em ‘Raízes do Brasil’. A mestiçagem do português se deu com
o invasor mouro e, mais tarde, entre a burguesia e a nobreza, porque
87
esta encontrou naquela uma forma de se fortalecer economicamente.
O argumento do Senador da Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania sobre a desigualdade racial parece não ser o melhor critério para
contestar o sistema de cotas raciais. Porque aparente convivência, dita
harmônica, atribuída ao processo de miscigenação constitui-se na forma mais
simples de proclamar a democracia racial e contestar a política de cotas.
A leitura a ser feita sobre a discriminação racial no Brasil requer olhar para
realidade e conhecer o contingente de negros/as nas universidades públicas,
como docentes; políticos e no mercado de trabalho.88
Olhar para conhecer quem é a maioria dos condenados presos abarrotados
no nosso sistema carcerário, as crianças de rua, as condições de moradia e a
população que mora na rua.
86
87
88
Documento
disponível
no
site
do
Senado
Federal.
Disponível
em:
<http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 21 fev. 2010.
Idem. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 21 fev. 2010.
Conforme dados do IBGE. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 02 fev. 2010.
56
Parece que essa ideia do Senador sobre o processo de miscigenação com
o Colonizador dito “bondoso” encontra semelhança com o lusotropicalismo –
termo usado cientificamente para nominar o mito do colonizador português de
relações amistosas – o lusotropicalismo é uma construção de ideologia que se
desenvolveu no contexto português.
Marta Araújo descreve que na sociedade portuguesa desenvolveu-se a
ideia errônea de que o povo português, pelo passado dito “aventureiro”, é uma
sociedade aberta a relações amistosas com outras culturas, mais que outros
países europeus.
Certas virtudes, como a ‘simpatia’, a ‘capacidade de acolhimento’ e o
‘espírito aventureiro’, são frequentemente evocadas para reforçar a ideia
de que a sociedade portuguesa é distinta do resto da Europa, pelo
menos da Europa Central e do Norte. Como tal, haveria uma
89
especificidade portuguesa face ao racismo.
Crença que não condiz com a realidade porque dados coletados pelo
(SOS RACISMO), em Portugal, e as análises acadêmicas produzidas sobre o
assunto mostram uma situação totalmente oposta. Ao ponto de considerar
Portugal um dos países mais etnocêntricos da União Europeia. A origem desse
pensamento se desenvolveu na sociedade e Estado portugueses durante longo
período.
Em termos científicos o lusotropicalismo se define como “um conjunto de
ideias inicialmente trabalhadas para explicar o “sucesso” da sociedade multirracial
brasileira”. Esse conceito foi adotado em Portugal no período do Estado Novo,
início dos anos 50, para desconstruir a ideia de dominação colonial e motivar um
discurso com conotação integrativa nas relações entre colonizador e colonizados.
A obra do antropólogo Gilberto Freyre e seu pensamento de que o povo
português teria uma vocação particular para o relacionamento e a miscigenação
com os povos dos trópicos foram citados no contexto da formação desse
imaginário na sociedade lusa.90
89
90
ARAÚJO, Marta. Racismo. In: CUNHA, Teresa; SILVES, Sandra (orgs.). Somos Diferentes:
diversidade, cidadania e educação. São Paulo: Justiça e Paz, 2008, p. 25-49.
Ibidem, p. 37-39.
57
O lusotropicalismo, que teve como objetivo central desvincular a ideia de
raça da cultura, foi determinante para dissimular as teorias sobre raça
incentivadas pelo pensamento de Darwin.
O lusotropicalismo foi um discurso que permitiu ecoar ensaios anteriores
sobre as representações da identidade nacional, podendo ser
encontrado tanto antes como após Freyre, mas que simultaneamente
marcou uma rotura com o pensamento racial de então. Tal só foi
91
possível porque dissociava ‘raça’ e cultura.
De forma que a ideologia do lusotropicalismo impediu a construção de
ações concretas do Estado português para eliminar o racismo, a discriminação e
promover a justiça social.92
As ideias do Senador Marconi têm fortes semelhanças com a ideologia do
lusotropicalismo no sentido de propagar as ideias da sociedade multiracial e
encobrir a discriminação racial:
Desse modo, não é menos excluído o pardo ou negro das periferias do
Norte, Nordeste e Sudeste que o gaúcho pelo alemão, polaco ou italiano
dos subúrbios da região Sul, conquanto estes e aqueles estejam,
também, em bolsões de pobreza no Centro-Oeste e em todo o território
nacional. Na verdade, muitos brasileiros pobres são oriundos das
massas de imigrantes europeus que vieram substituir a mão de obra
escrava e foram também exploradas em áreas urbano-industriais,
93
mediante o sistema assalariado.
Em 1992, o relatório elaborado pela CIDH - Comissão Interamericana de
Direitos Humanos apresentava que o analfabetismo entre os negros era cerca de
30% e essa situação se agravava no nordeste do país. Também que a
discriminação no acesso a cargos eletivos se confirmava, além de descrever que
a discriminação aparentava mais acentuada com mulher negra. Fatos que
alteraram pouco desde este período.94
Segundo Edite Piza e Fúlvia Rosemberg a ausência de dados
desconsiderava questões importantes como a cor da pele, raça ou etnia. O não
91
92
93
94
Ibidem, p. 43.
Ibidem, p. 37-45.
Documento pesquisado disponível no site do Senado Federal.
<http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 21 fev. 2010.
Disponível em: <http://www.geledes.org.br>. Acesso em: 20 jan. 2010.
Disponível
em:
58
registro desses dados contribuía para a invisibilidade do problema e, por longo
período, dificultava a análise real das relações raciais no Brasil.95
Inclusive essa preocupação continua ser objeto de recomendações
internacionais mais recentes, como o documento que foi publicado em 2009, ratifica
o relatório da Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Intolerância que
ocorreu em 2001 na África do Sul; no art. 103 recomenda aos Estados participantes
que estabeleçam mecanismos para coletar, compilar, analisar, divulgar e publicar
dados estatísticos confiáveis para avaliar regularmente a situação de todas as
vítimas de racismo, xenofobia e discriminação racial, intolerância correlata em
conformidade com a Declaração de Durban e de seu programa de ação. O Brasil
compõe o quadro dos Estados que assinaram tal documento.
Também o artigo 104 do mesmo documento enfatiza a recomendação para
que os Estados desenvolvam um sistema de dados, incluindo indicadores sobre a
igualdade de oportunidades cujo objetivo consiste em orientar formulação de
políticas públicas em prol dos segmentos discriminados.96
No campo sociológico estudos sobre a questão racial, há décadas, vêm
confirmar a exclusão da população negra dos bens sociais.97
95
96
97
PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia. A Cor nos Censos Brasileiros. In: BENTO, Maria
Aparecida Silva; CARONE, Iray (orgs.). Psicologia Social do Racismo. 3. ed. Petrópolis:
Vozes, 2007, p. 91-120: “O mito (alimentado pela ideologia da democracia racial) de que o
dinheiro embranquece e de que, no Brasil, o espectro de cores corresponde a uma cor
puramente social aparece com frequência em estudos comparativos (Cf. Davis, 1992).
Considerando sempre uma perspectiva unilateral – a da população negra brasileira –, estudos
estrangeiros e mesmo brasileiros deixam de notar que, no processo brasileiro de construção
de identidade, a população de brancos (ou dos que assim se consideram) não coloca como
dado importante de identidade sua cor, raça ou etnia, como ocorre, por exemplo, na
sociedade americana”.
Conforme documento que reafirma Conferência Mundial Contra o Racismo em Durban.
Disponível em: <http://www.un.org/en/events/archives.shtml>. Acesso em: 28 fev. 2010.
SILVA, Nelson do Valle. Extensão e Natureza das Desigualdades Raciais no Brasil. In:
GUIMARÃES, Antônio Sérgio; HUNTLY, Lynn. Tirando a Máscara: ensaios sobre o racismo
no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 34: “Um dos aspectos que recentemente tem
vindo a público de modo crescente são as marcadas diferenças que estão associadas à cor
do indivíduo. Na verdade, a pesquisa sociológica que trata desta dimensão das
desigualdades no Brasil já tem uma história que se estende por algumas décadas. Os
resultados são bastante estáveis, invariavelmente apontando para o fato de que não apenas
as diferenças de renda associadas à cor dos indivíduos são gritantes, como não podem ser
totalmente explicadas por outras diferenças, tais como as de origem social, localização
geográfica ou educação”.
59
Em suma, o argumento de que as desigualdades no Brasil são apenas de
natureza social, não se sustenta mais.
3.2 Conceito de Ações Afirmativas
O termo ação afirmativa foi e ainda é objeto de muitos debates no plano da
aplicação e no aspecto conceitual. Desde o momento em que surgiram as ações
afirmativas no contexto mundial existe atenção de pesquisadores em busca de
definição ou ampliação do significado de tal expressão.98
Em geral, os estudos partem de países onde foram ou são adotadas as
ações afirmativas e aspecto que parece simples como o próprio sentido
gramatical da expressão, ainda provoca conflito.
A terminologia equal opportunity policie surgiu no contexto norte-americano
no período da política afirmativa com a finalidade de proporcionar igualdade de
oportunidade aos negros e outros grupos discriminados e pode ser traduzida
como ação afirmativa ou discriminação positiva.99
A expressão ação afirmativa foi extraída do decreto do presidente John F.
Kennedy, na ocasião em que houve o movimento civil pela implantação de
medidas efetivas para coibir, ou minimizar, desigualdades raciais e sociais nos
Estados Unidos.100
98
99
100
SILVA, Sidney Pessoa Madruga da. Discriminação Positiva: ações afirmativas na realidade
brasileira. Brasília: Brasília Jurídica, 2005-a, p. 57.
MUNANGA, 2003, p. 117-123.
SOWELL, Thomas. Ação Afirmativa ao Redor do Mundo: um estudo empírico. Rio de
Janeiro: UniverCidade, 2004, p. 04: “O termo ‘ação afirmativa’ surgiu nos Estados Unidos
num decreto do presidente John F. Kennedy, determinando uma ‘ação afirmativa para
assegurar que os candidatos sejam contratados e os empregados sejam tratados no
trabalho sem levar em conta raça, cor, credo ou origem nacional’. Em suma, não deveria
haver absolutamente cotas ou preferências, apenas uma preocupação especial para
garantir que aqueles que tinham sido discriminados no passado não mais fossem no futuro
– e que passos concretos deveriam ser dados para que todos tomassem conhecimento
disso”.
60
Conceitua o termo, com mais precisão, a americana Bárbara Reskin, essa
foi considerada uma das definições mais completas e foi citada em estudos
realizados no Brasil:
O termo ação afirmativa refere-se a políticas e procedimentos
obrigatórios e voluntários desenhados com o objetivo de combater a
discriminação no mercado de trabalho e também de retificar os efeitos de
práticas discriminatórias exercidas no passado pelos empregadores. Da
mesma forma que no caso das leis anti-discriminatórias, o objetivo da
ação afirmativa é tornar a igualdade de oportunidade uma realidade,
através de um ‘nivelamento do campo’. Ao contrário das leis antidiscriminação, as políticas de ação afirmativa tem como objetivo prevenir
a ocorrência da discriminação. A ação afirmativa pode prevenir a
discriminação no mercado de trabalho substituindo práticas
discriminatórias – intencionais ou rotinizadas – por práticas que são uma
101
proteção contra a discriminação.
Na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial, ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968, o conceito de ação
afirmativa pode ser extraído do art. 1º, § 4º, que prevê a possibilidade de
discriminação positiva, mediante a adoção de medidas especiais protetivas a
grupos ou indivíduos que foram ou são vítimas da exclusão social decorrentes de
processos históricos.
Contudo as primeiras definições sobre as ações afirmativas no Brasil
surgiram no Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) criado durante o governo de
Fernando Henrique Cardoso por ocasião das comemorações do dia 20 de
novembro de 1995 (dia nacional da consciência negra).
A finalidade da instituição do grupo era desenvolver um plano de trabalho
para uma política de Estado que tratasse da questão racial no país, o texto final
foi elaborado a partir da definição de ações afirmativas nos Estados Unidos da
América.102
101
102
SILVA, 2005-a, p. 96.
SANTOS, Sales Augusto dos. Ação Afirmativa e Mérito Individual. In: LOBATO, Fátima;
SANTOS, Renato Emerson dos (orgs.). Ações Afirmativas: políticas públicas contra as
desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 95-96: “Foi no GTI onde surgiu um dos
primeiros conceitos nacionais de ação afirmativa e, ao que parece, fortemente influenciado
pelos conceitos estadunidenses, especialmente os conceitos que têm uma tendência a
enfatizar o postulado da justiça compensatória ou de reparação. Ao que parece, foi a partir da
esfera política que se começou a produção e/ou divulgação mais visível de conceito nacionais
sobre o que é ação afirmativa”.
61
Consta no documento:
As ações afirmativas são medidas especiais e temporárias, tomadas ou
determinadas pelo Estado, espontânea ou compulsoriamente, com o
objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas,
garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem como de
compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização,
decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros.
Portanto, as ações afirmativas visam combater os efeitos acumulados
103
em virtude das discriminações ocorridas no passado.
Outra menção ao assunto pode ser encontrada no Plano de Ação assinado
pelo Brasil na III Conferência Mundial de Durban, na África do Sul, em 2001, o
qual usa a expressão medidas positivas.
Como se vê, existem várias denominações sobre a expressão ação
afirmativa, mas, em termos gerais, tal conceito ainda guarda vinculação com a
finalidade do primeiro documento que surgiu nos Estados Unidos.
Em uma decisão sobre as cotas raciais na Universidade Federal do
Paraná, Apelação Cível nº 2005.70.00.010977-0/PR, publicada em 23 de julho de
2009, consta o seguinte conceito:
Conforme o Direito da Antidiscriminação, ações afirmativas são medidas,
conscientes da discriminação experimentada em virtude de raça, etnia,
sexo, gênero ou qualquer outro critério proibido de diferenciação,
visando a combater e superar situações injustas de desvantagem social,
política, econômica, jurídica ou cultural. Prevalência da expressão "ações
afirmativas"
sobre
as
expressões
"tratamento
preferencial",
"discriminação benigna" e "discriminação inversa", pois a estas são
associados conteúdos indesejáveis e equivocados de preferência ou da
criação de nova discriminação: trata-se do combate a situações de
discriminação e a privilégios e vantagens indevidas desfrutadas por
quem, direta ou indiretamente, se beneficia das desvantagens sofridas
104
por indivíduos e grupos discriminados.
De forma geral, o conceito de ações afirmativas não se distancia muito da
origem, ou seja, da ideia inicial que surgiu nos Estados Unidos, com uma ou outra
variação o pensamento central se relaciona com a edição de medidas para
combater a desigualdade, seja de natureza racial, social, religiosa e outras.
103
104
SANTOS, 2003, p. 96.
TJ/PR, Apelação Cível nº 2005.70.00.010977-0/PR.
62
3.3 Evolução Histórica das Ações Afirmativas
Nos Estados Unidos a desigualdade racial motivou a criação de
movimentos civis no final da década de 1950. Os negros exigiam igualdade de
oportunidade, em relação aos brancos.
Naquela época era possível a atuação do judiciário em casos isolados
sobre condutas racistas, o que não foi suficiente para garantir direitos sociais
iguais, daí surgir o movimento por ações afirmativas e igualdade jurídica.
O Presidente John F. Kennedy, ainda como senador, foi influenciado pela
plataforma política do movimento civil negro e adotou em seu discurso (para
presidente dos Estados Unidos, em 1960) a afirmativa de atender às
reivindicações dos segmentos em situação desigual, como os negros.
No ano de 1961 após ser eleito presidente dos Estados Unidos editou a
Executive Order n. 10.925, que previa a reprimenda da discriminação e das
desigualdades raciais.105
A importância política desse tema foi assimilado pelo jovem senador
John F. Kennedy, que, a despeito da formidável fortuna de sua família,
não deixava de integrar um segmento minoritário da sociedade norte106
americana, ao menos como católico e descendente de irlandeses.
A finalidade era criar instrumentos que reprimisse as desigualdades
principalmente no mercado de trabalho. A edição da Executive Order n.10.925
tinha condão fiscalizatório e, assim, o termo Affirmative Action foi empregado pela
primeira vez. O documento fazia referência à coibição de discriminação por
motivo de raça, credo, cor ou nacionalidade.107
105
106
107
MENEZES, Paulo Lucena de. A Ação Afirmativa (Affirmative Action) no Direito NorteAmericano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 87-89.
Ibidem, p. 87.
Ibidem, p. 88: “Visando estabelecer uma igualdade de oportunidades e erradicar a discriminação e
o preconceito nas relações mantidas entre o governo federal e os seus contratantes, ele expediu,
apenas dois meses após assumir a presidência, a Executive Order nº 10.925, que, afora criar um
órgão para fiscalizar e reprimir a discriminação existente no mercado de trabalho (President’s
Comittee on Equal Employment Opportunity), empregou pela primeira vez em um texto oficial,
ainda que com uma conotação restrita, o termo affirmative action”.
63
Na data de 22 de novembro de 1963, o Vice-Presidente Lyndon B. Johnson
assumiu a presidência devido ao assassinato do Presidente Kennedy e deu
seguimento à agenda do governo sobre as políticas raciais no país.
Alguns projetos foram aprovados pelo Congresso Nacional como o Civil
Right Act, de 02 de julho de 1964 e Executive Order nº 11.246.
[...] editada a Executive Order nº 11.246, exigindo que os contratantes
como o governo federal não apenas banissem práticas discriminatórias,
mas que dessem um passo além, estabelecendo medidas efetivas em
favor de membros de minorias étnicas e raciais, de várias formas
(recrutamento, contratação, transferência, níveis salariais e benefícios
indiretos, promoção, treinamento, etc.), com o escopo de corrigir as
iniqüidades decorrentes de discriminações presentes ou passadas. O
monitoramento dessas ações, entretanto, foi transferido para o
Departamento do Trabalho, que se tornou o órgão responsável pela
108
implantação de todas as medidas relacionadas com o tópico.
Tal documento entrou (Executive Order nº 11.246) para a história política
americana e também mundial, porque previa medidas para a redução das
desigualdades sociais com determinação de medidas positivas a favor de quem
sofria discriminações no aspecto negativo; além de ser considerado determinante
na evolução do conceito de ação afirmativa.109
Nesse mesmo período houve edição de documentos internacionais
importantes como a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial.110
108
109
110
Ibidem, p. 91: “Entre esses projetos destaca-se o Civil Right Act, de 02 de julho de 1964, que
impôs, no plano legal, a proibição de discriminação ou segregação em lugares ou
alojamentos públicos (Título II); a observância de medidas não discriminatórias na distribuição
de recursos em programas monitorados pelo governo federal (Título VI); a proibição de
qualquer discriminação no mercado de trabalho calcada em raça, cor, sexo ou origem
nacional, proibição essa que deveria ser observada pelos grandes empregadores, assim
comprometidos todos aqueles que tivessem pelo menos quinze funcionários, incluindo-se as
universidades, públicas ou privadas (Título VII). Essa última passagem do texto legal também
instituiu a Permanent Equal Employment Opportunity Commission (EEOC), a qual foram
conferidos poderes específicos para executar as novas diretrizes fixadas”.
Ibidem, p. 92: “Apesar de os resultados alcançados não terem sido plenamente satisfatórios,
a Executive Order nº 11.246 reveste-se de um grande significado histórico, pois é a partir de
seu surgimento que os programas voltados para o combate das desigualdades sociais com
base em condutas positivas crescem em importância e passam a ser avaliados sob a ótica de
políticas governamentais, o que viria a sedimentar o conceito que se tornou conhecido por
ação afirmativa”.
Ibidem, mesma página.
64
Embora os Estados Unidos sejam considerados os primeiros na edição de
políticas de ações afirmativas, o registro mais antigo sobre essas ações
afirmativas encontra-se na Índia. Elas tiveram início em 1949 e encontram-se em
vigor até os dias atuais.111
Além desses, outros países como a Malásia, a União Soviética, o
Paquistão, também adotaram o sistema.
Com modelo similar ao americano, o Canadá adotou o sistema de ações
afirmativas mediante lei infraconstitucional. Durante o processo de implantação
das medidas, muitas críticas surgiram, mas, posteriormente, grande parte das
normas que previam medidas positivas foram acolhidas pela Constituição de
1982.
Também a África do Sul, após longo período de racismo institucionalizado,
como foi o apartheid (regime político de separação entre negros e brancos),
contempla o sistema de ações afirmativas.
Diversas propostas foram discutidas neste país, mas apenas duas
preponderaram: a primeira apresentada pela South African Law Commission (1991)
– definia a igualdade jurídica e coibia a discriminação racial e por outros critérios e a
segunda foi desenvolvida pelo Comitê Constitucional do African National Congress
(A Bill of Rights for a Democratic South África – Working Draft Consultation).
Todavia, a Constituição da África do Sul relativizou as propostas e definiu
igualdade perante a lei e a possibilidade de adotar medidas legislativas para coibir
as diferenças entre grupos discriminados.112
Ainda sobre as ações afirmativas no contexto mundial, países como Israel,
Nigéria, Peru, Iugoslávia, União Soviética implantaram políticas de ações
afirmativas com a finalidade de eliminar desigualdades.113
111
112
113
SOWELL, 2004, p. 11.
MENEZES, 2001, p. 127-128.
Conforme site da Universidade Federal de
<http://www.acoes.ufscar.br>. Acesso em 12 dez. 2009.
São
Carlos.
Disponível
em:
65
3.4 Ações Afirmativas no Brasil
No contexto brasileiro as ações afirmativas, há longa data, fazem parte do
sistema jurídico. O Decreto nº 63.788, de 12 de dezembro de 1968, regulamentou a
Lei nº 5.465, de julho de 1968, que definia cotas para estudantes agricultores ou
filhos destes nos estabelecimentos de ensino agrícola e nas escolas superiores de
agricultura e veterinária, mantidas pela União. Um percentual de 50% de vagas era
destinado a esse público. O mesmo decreto garantia 30% das vagas para os
candidatos com o mesmo perfil social, se morasse na zona urbana onde não tinha
estabelecimento de ensino médio. Os pré-requisitos eram: ser agricultor ou filhos
deste; preferência para alunos oriundos de estabelecimentos de ensino agrícola;
atender às normas do processo seletivo. A política de reserva de vagas era garantida
aos candidatos agricultores independentemente de possuírem título de propriedade.
Com a edição da Constituição de 1988, o art. 3º define os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil e é considerado o alicerce para
que nosso ordenamento jurídico acolha as ações afirmativas.114
Além desse artigo, a Constituição de 1988 admite a ação afirmativa em
muitos outros, a exemplo, o art. 7º, inc. XX, que protege a mulher no mercado de
trabalho; o art. 37, inc. III, que dispõe da reserva de vagas para deficientes; o art.
170, que permite tratamento preferencial para empresas de pequeno porte; o art.
227, que prevê tratamento preferencial à criança e ao adolescente; o art. 215, §
1º, que versa sobre a proteção das culturas populares, indígenas e da cultura
afro-brasileira e de todos os grupos participantes do grupo civilizatório; e, o art.
216, § 5º, que garante proteção às comunidades quilombolas.115
No contexto infraconstitucional destaca-se a Lei nº 8.112/90, que determina
20% das vagas para deficientes físicos em todos os concursos públicos e a lei
114
115
Conforme art. 3º da Constituição Federal de 1988: Constituem objetivos fundamentais da
Republica Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir
o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais, e, IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Conforme Constituição Federal de 1988.
66
eleitoral (Lei nº 9.504/97), que dispõe sobre a reserva de vagas nas eleições, na
proporção de 30% e o máximo de 70% para cada sexo.116
Outro fato que contribuiu para intensificar a discussão sobre ações
afirmativas no Brasil foi a Conferência Mundial Sobre o Racismo de Durban,
realizada no ano de 2001, considerado o marco no pleito sobre as cotas raciais e
outras medidas voltadas à igualdade étnico-racial.
[...] a Conferência de Durban apareceu com uma referência central para
as discussões dos militantes, vinculando reparações e ações afirmativas.
Era evocada como marco de legitimidade para os pleitos com o Estado
tanto pelos militantes como por agentes do poder público, mas também
117
como espaço construído por esses militantes.
A partir da Conferência de Durban diversas normas foram publicadas com
a finalidade de implantar medidas positivas no sentido de promover a igualdade
étnico-racial no país.
Além da Lei nº 10.639/03 que instituiu o estudo de história da África nos
currículos escolares, dois decretos se colocam como importantes nesse quadro: o
que disciplina os eixos temáticos sobre o sistema de igualdade étnico-racial a ser
implantado pela Administração Pública (Decreto nº 6.872, de 04 de julho de 2009,
– Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial – PLANAPIR); e, aquele que
aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos (Decreto nº 7.037, de 21 de
dezembro de 2009).118
Um ponto de destaque do PLANAPIR talvez seja a previsão de um sistema
de monitoramento das políticas públicas que serão implantadas pelo Estado
brasileiro. Tal garantia pode ter sido em atendimento à recomendação feita pela
Conferência que ocorreu em 2009 (Genebra – Suíça) e ratificou o documento
produzido em Durban sobre a igualdade étnico-racial.
116
117
118
Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 21 fev. 2010.
LAURA, Cecília Lopes. América Latina: uma análise antropológica das políticas e poéticas
do ativismo negro em face às ações afirmativas e às reparações no Cone Sul. Tese de
Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009, p. 390.
Conforme Decreto nº 6.872, de 04 de julho de 2009 e o Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro
de 2009. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br>. Acesso em: 28 jan. 2010.
67
3.5 Finalidade das Ações Afirmativas
Desde surgimento das ações afirmativas muito se discute sobre sua
finalidade e há muitas divergências sobre os reais objetivos a serem alcançados
com essas medidas.119
Conforme já descrevemos, nos Estados Unidos, país que é considerado o
pioneiro na edição da política de ações afirmativas, a finalidade era promover a
inclusão de grupos discriminados no campo político, na educação, no mercado de
trabalho, em cargos públicos e privados.
Observa-se que o objetivo era também o de incentivar a iniciativa privada
na adoção de medidas promocionais e de inclusão dos negros nos quadros das
empresas. Mas, especificamente, a finalidade das ações afirmativas naquele
contexto era adotar uma postura positiva do Estado; esse foi o objetivo da ordem
Civil Right Act, de 02 de julho de 1964 e o Executive Order n. 11.246.
O Estado naquela época procurava romper com uma política apenas na
área fiscalizatória e da manutenção do racismo, enquanto comportamento
antijurídico. Ao determinar a Order n. 11.246 adotou uma política bem mais
próxima da realidade fática do segmento discriminado.
Embora seja esse o posicionamento de muitos cientistas sociais existem
posições contrárias.
Thomas Sowell, num estudo empírico realizado sobre as ações afirmativas
no contexto mundial, assegura que a política de ações afirmativas não diminuiu as
desigualdades sociais, na maioria dos países.
119
TRF 4ª Região, 4ª Turma, AMS nº 2005.70.00.006966-8, Relator Des. Valdemar Capeletti, DJ
em 25/10/2006: “O tema das cotas por origem racial e capacidade financeira é polêmico,
havendo, presentemente, ruidosa discussão a respeito. Somente um juízo interpretativo mais
aprofundado autoriza seja adiantado convencimento sobre a matéria em debate, devendo
prevalecer, por ora, a autonomia administrativa que a Constituição Federal no seu art. 207
confere às universidades”.
68
Defende que a finalidade da igualdade de oportunidade, entre os grupos
discriminados, não ocorreu além de gerar custos para a sociedade e provocar a
desigualdades ao reverso.120
Sowell defende também que o caráter temporário de tais medidas acaba
sendo ilusório, porque além de não atingir a sua finalidade, a política se torna
permanente e não temporária:
O ressurgimento de preferências para grupos em sociedades
comprometidas com a igualdade perante a lei vem acompanhado de
declarações de que tais preferências seriam não só temporárias como
também limitadas e não muito difundidas. Isto é, esses programas
seriam supostamente delimitados no tempo e no objetivo, com a
política de tratamento igualitário prevalecendo fora do domínio fixado
para uma assistência especial aos membros de um grupo
121
particular.
Em posição contrária Dworkin afirma que os estudos que avaliaram as
ações afirmativas nos Estados Unidos precisam ser analisados com cuidado,
porque contêm muitas limitações. Cita dois estudos importantes que tinham o
propósito de avaliar as medidas – um realizado por William G. Bowen, ex-reitor
da Universidade de Princeton – o estudo The Shape of the River, (“A Forma do
Rio”), onde se faz uma análise de numerosa base de dados em relação aos
históricos escolares dos alunos que tiveram acesso ao ensino superior pelo
sistema de cotas. O outro estudo foi desenvolvido por Stephan e Abigail
Thernstrom no livro America in Black and White (América em Preto e
Branco).122
120
121
122
SOWELL, 2004, p. 187: “Nem na Índia nem em lugar algum, as políticas de ação afirmativa
são simplesmente uma questão de redistribuição de benefícios. Tais programas também
geram custos sociais importantes que recaem sobre a população geral. A perda de eficiência
está entre esses custos, seja porque gente menos qualificada é escolhida em detrimento de
pessoas mais preparadas, seja porque muitos membros altamente capacitados dos grupos
não-preferidos emigram de uma sociedade onde suas chances ficariam reduzidas”.
Ibidem, p. 03.
DWORKIN, 2005, p. 548: “[...] o estudo de River tem limitações, evidentemente, que os
autores tiveram o cuidado de reconhecer. A pesquisa estatística, por mais substanciais que
sejam os dados e minuciosas as técnicas, não é uma experiência de laboratório, e embora os
autores demonstrem considerável engenhosidade na pesquisa e no uso de controles e de
outros métodos em suas conclusões, algumas delas, conforme os autores assinalam,
inevitavelmente contêm hipóteses. O estudo limita-se à ação afirmativa na educação superior,
e seus resultados podem ter pouca influência sobre as conseqüências das classificações para
outras finalidades”.
69
Afirma que os autores não atingiram o objetivo em responder todas as
indagações em relação aos dados que foram coletados, mas traz indicações
importantes, todavia uma análise de dados estatísticos por si só pode conduzir a
erros, assim não é tão simples afirmar que as medidas nos Estados Unidos
atingiram, ou não a finalidade.
Precisamos tomar cuidado, obviamente, para não aceitar nem mesmo
esse estudo tão imponente de maneira acrítica. Pode-se descobrir mais
tarde que sua análise estatística contém falhas. Ou podem vir a ser
publicados estudos ainda mais abrangentes que refutem algumas ou
todas as suas principais conclusões. Mas seria surpeendente e
lamentável se The Shape of the River não aprimorasse bastante o longo
debate político e jurídico. Sua análise elevou de maneira significativa o
padrão da argumentação. Não bastarão mais indícios impressionistas e
casuais: qualquer debate respeitável acerca das conseqüências da ação
afirmativa nas universidades precisa agora reconhecer suas descobertas
ou refutá-las, e qualquer refutação deve estar à altura dos padrões de
amplitude e profissionalismo estatístico que Bowen, Box e seus colegas
123
alcançaram.
O pensamento de Sowell encontra-se muito presente no debate brasileiro
sobre as cotas raciais. Porque detratores das cotas raciais alegam que a política
de reserva de vagas para negros nas universidades públicas são medidas
paliativas e podem representar a falta de uma política educacional de qualidade,
o ideal seria uma política pública de caráter universal, posição de Yvonne
Maggie:
Os críticos da política de cotas raciais estão querendo alertar a
sociedade brasileira de que se desenrola uma operação política e
ideológica para transformar nossa sociedade em uma sociedade dividida
“legalmente” em brancos e negros e afirmam ser preciso dar às políticas
124
públicas a natureza universalista que devem ter.
Concepção que é defendida por Schwartzman ao afirmar que a
regulamentação das cotas raciais no cenário jurídico poderá criar um novo direito,
que será o direito à reparação de uma nova categoria denominada de cidadãos
afro-brasileiros. Acredita-se que a finalidade dessa proposta que é eliminar o
racismo e promover a justiça social não será alcançada. Que a inclusão social da
123
124
Ibidem, p. 551.
FRY; MAGGIE; MAIO; et. al., 2007, p. 56-57.
70
população negra na educação precisa acontecer mediante a construção de
políticas públicas de natureza universal.125
Em sentido oposto acredita-se que o objetivo das ações afirmativas é
também histórico porque tem a finalidade compensatória de processos que
ocorreram no passado, como foi a escravidão; sendo assim, o propósito é reduzir,
é promover a igualdade de oportunidades entre os diferentes.126
Nesse sentido a decisão da Apelação Cível nº 2005.70.00.008336-7 – TRF,
4ª Região:
POLÍTICAS AFIRMATIVAS. Conjunto de políticas públicas e privadas,
tanto compulsórias, quanto facultativas ou voluntárias, com vistas ao
combate à discriminação racial, de gênero e outras intolerâncias
correlatas. Técnicas que não se subsumem ao sistema de cotas, ainda
127
que com elas sempre relacionadas.
No “calor” dos debates sobre a implantação das cotas raciais no sistema
jurídico brasileiro pode-se dizer que a finalidade das ações afirmativas “aparecem
como a possibilidade e a estratégia de diminuir a distância entre almejar e
alcançar um espaço de prestígio social, “ligando mundos” sociais diversos e
desiguais”.128
Também o reconhecimento e o sentimento de autorrespeito estão entre a
finalidade da inclusão de estudantes negros/as no ensino superior público.129
125
126
127
128
129
SCHWARCZ, 1993, p. 109.
SILVÉRIO, 2003, passim.
TRF 4ª Região, Apelação Civil nº 2005.70.00.008336-7.
LAURA, 2009, p. 369.
SILVA, 2008, p. 135: “Nesta medida, estereótipos são abandonados, abrindo a possibilidade
da criação de uma outra auto-imagem; auto-culpabilizações são relativizadas frente a
considerações críticas mais amplas formuladas em torno da organização da sociedade em
que se está inserido(a); o aumento do conhecimento a respeito de ancestralidade negra e as
efetivas contribuições desta para o desenvolvimento do país contribui também para a
formação de uma nova consciência de si e de seu grupo; e, o desenvolvimento de interrelações entre sujeitos que se identificam e se acolhem cria um espaço de troca e
solidariedade extremamente importante para a criação de um lócus de mobilização em torno
das questões tratadas. Há, ainda, a possibilidade de consolidação de um sentimento de autorespeito individual e em termos de grupo, corolário de um movimento contínuo de
transformação e reposição de uma identidade constituída sobre pilares positivos de
reconhecimento”.
71
As cotas raciais não devem ser tomadas como lema de campanha
contrário às ações afirmativas e a população precisa ser informada da real
finalidade dessa política.130
3.6 Modalidades de Ações Afirmativas
As ações afirmativas não se resume a uma política de reserva de vagas e
isso dificulta o entendimento do sistema de forma global e impede atingir outras
áreas, além da educação. As cotas constituem apenas uma das modalidades
(espécie) do gênero ação afirmativa.131
Inúmeras ações podem ser desenvolvidas como medidas afirmativas. Como
incentivos à iniciativa privada para contratação de pessoas dos segmentos
discriminados; promoção de bolsas de estudos; de cursos preparatórios para
ingressos em vestibulares ou serviço público; políticas na área de saúde voltada
para esse público, etc. Além disso, a finalidade das ações afirmativas é alcançar
outros grupos que estão expostos à discriminação, tais como os indígenas, as
pessoas de poucos recursos, a população cigana, pessoas com deficiência, etc.132
Quanto às cotas no ensino superior encontra significado porque a
educação pode permitir ao ser humano o desenvolvimento pleno de suas
capacidades e potencialidades, oferecem condições para que a pessoa consiga
desenvolver seu potencial crítico em relação a si e seus semelhantes.133
130
131
132
133
Ibidem, p. 140: “Um dos motivos dessa confusão é que a discussão em torno dessa temática
envolve desconhecimento, incompreensão e manipulação política. Muitas pessoas se
colocam contrárias a qualquer tipo de ação afirmativa sem saber exatamente o que isso
significa. Outras usam falsos argumentos apenas para defender a manutenção de sua
posição privilegiada na sociedade; há ainda aqueles que distorcem os fatos e afirmam, sem
provar, que as ações afirmativas não tiveram resultados positivos em outros países onde
foram implantados, o que não é verdadeiro. E ainda há aqueles que reduzem as ações
afirmativas às cotas raciais e dizem que estas poderão gerar ainda mais discriminação. As
cotas representam uma das estratégias de ação afirmativa e, ao serem implantadas, revelam
a existência de um processo histórico e estrutural de discriminação que assola determinados
grupos sociais e étnico-raciais da sociedade”.
VIEIRA, 2003, p. 93-97.
Ibidem, mesmas páginas.
SOUZA, Luciano Simões de. A Educação pela Comunicação como Estratégia de Inclusão
Social: o caso da escola interativa. In: GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira; PAHIM, Regina
Pinto (orgs.). Educação. São Paulo: Contexto, 2007, passim.
72
A Constituição Federal de 1988 traz no art. 1º, inc. III, a dignidade humana
como um dos princípios fundamentais e no art. 3º, inc. I garante a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária. O inc. III, do art. 3º propõe, como objetivo
da nação, erradicar a pobreza, a marginalização e as desigualdades sociais e
assume o compromisso de promover o bem de todos sem discriminação, no inc.
IV, do mesmo artigo.134
O Título VIII da Carta Republicana é dedicado à Ordem Social, no Capítulo
III assegura o direito à educação, sendo que no art. 205, propõe que a educação
é direito de todos, dever do Estado e da família e requer a participação da
sociedade.135
Se os direitos básicos de cidadania são condições primeiras para que os
segmentos excluídos tenham acesso ao direito e à justiça, a educação deve ser
considerada o ponto de partida, no sentido de possibilitar às pessoas a
emancipação para o exercício pleno da cidadania.136
Rubem Alves ao dissertar sobre a educação faz referência ao pensamento
de Ludwig Wittgenstein de que “a educação é o processo pelo qual aprendemos
uma forma de humanidade e ele é mediado pela linguagem. Aprender o mundo
humano é aprender uma linguagem, porque os limites da minha linguagem
denotam os limites do meu mundo.”137
Nesse sentido a política de cotas na área da educação pode contribuir
muito para a inclusão de grupos historicamente excluídos do espaço público, que
são as Universidades.
134
135
136
137
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000, p. 113.
Conforme Constituição Federal de 1988.
SANTOS, Boaventura de Sousa; PEDROSO, João. O Acesso ao Direito e à Justiça: um
direito fundamental em questão. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev.
2010.
ALVES, Rubem. Conversas com Quem Gosta de Ensinar. São Paulo: Cortez, 1991, p. 59.
73
4 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E AS COTAS RACIAIS
4.1 Conceito de Constituição e a Jurisdição Constitucional
Esse capítulo significa muito no contexto deste trabalho por ser um dos
temas mais discutidos sobre as cotas raciais tanto no meio jurídico, como no
acadêmico.
Divergências surgiram e continuam a existir sobre a constitucionalidade
das cotas raciais no direito brasileiro. A maior controvérsia sobre o tema versa
sobre a igualdade perante a lei (art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988) e
o critério racial para identificar candidatos para concorrer ao vestibular.
A corrente que defende as cotas raciais se ampara no princípio da
igualdade para fundamentar a constitucionalidade da política de cotas e exigir a
ação do Estado no sentido de efetivar a igualdade jurídica entre negros e
brancos.
Quem contesta o sistema de cotas faz uso do mesmo princípio para se
opor à política de cotas, e o argumento usado é que todos são iguais perante a
lei, as normas das Universidades que admitem a identificação de candidatos
mediante
critérios
raciais
seria
um
retrocesso
e
está
em
flagrante
desconformidade com a Lei superior do país, por isso tais normas devem ser
extirpadas do ordenamento jurídico.
Essa divergência fez surgir um movimento político com a participação de
entidades ligadas ao movimento negro e social; intelectuais de várias áreas do
conhecimento, entre eles se encontram juristas, antropólogos, sociólogos,
médicos, educadores, psicólogos, biólogos e geneticistas.
Manifestos contrários e a favor da política de cotas e da aprovação do
Estatuto da Igualdade Racial (Projeto de Lei nº 6.264/05, em trâmite no Senado
74
Federal) foram organizados por ambas as correntes e apresentados aos Poderes
Legislativo e Judiciário.138
Esse capítulo complementa a discussão realizada nas duas primeiras
partes da dissertação, onde foi abordada a igualdade perante a lei e a política de
ações afirmativas. Importante retomar o significado do princípio da igualdade
perante a lei, no texto na Constituição.
Mediante uma visão global de nosso sistema constitucional se consegue
identificar o objetivo da igualdade jurídica. Já foi dito que a igualdade formal
surgiu no período clássico e seu objetivo não era garantir a igualdade real
conquanto a igualdade substancial que busca alcançar a efetivação dos direitos
sociais começou a ser construída somente no século XVIII.139
O objetivo nessa parte consiste descrever os fundamentos da jurisdição
constitucional e a origem do controle de constitucionalidade, após, apresentar
análise jurisprudencial sobre as cotas raciais e o posicionamento dos
julgadores sobre a compatibilidade, ou não, com a Constituição Federal de
1988.
Abordar o tema da constitucionalidade exige primeiramente trabalhar
algumas questões que se mostram importantes, como o conceito de constituição
e de jurisdição constitucional.
Observe-se que o termo constituição pode ser empregado de diversas
formas. De acordo com Araujo e Serrano Nunes a palavra constituição “[...] traz
em si uma ideia de estrutura”.140 Isso porque tal expressão nos remete à ideia que
simboliza a estruturação de determinado objeto ou até mesmo de um processo de
construção, de formação ou de composição de algo.
138
139
140
Conforme site do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso
em: 12 jan. 2010.
PIOVESAN, 2006, passim.
ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2007, p. 34: “[...] a palavra constituição traz em si uma ideia de
estrutura, de como se organiza”.
75
A expressão constituição provém do verbo construir, por isso recai sobre a
palavra um peso que demanda força cognitiva de alguma coisa considerada
essencial, mas para finalidade jurídica a expressão Constituição objetiva delimitar
o documento que significa a Lei Fundamental de um Estado.141
Quanto ao conceito de constituição enquanto Lei Fundamental, ainda,
surgem posições divergentes porque pode ser investigado a partir de diversas
concepções, seja do ponto vista jurídico, político ou sociológico.
Jorge Miranda afirma que o conceito de constituição, para o direito,
somente aparece por volta do século XVIII. Defende que antes de se estabelecer
uma Lei fundamental (uma Constituição) algumas formulações já existiam no
sentido de organização política do Estado. Embora os direitos só começaram a
ser positivados na Idade Média.142
Para alguns juristas pode-se extrair daí os anéis do processo históricojurídico ou fases de desenvolvimento, que culminaria nas Constituições escritas.
Enquanto outros defendem o exemplo inglês, que dispunha de uma Constituição
adequada à estrutura histórica.143
[...] a Constituição traduz algo de diverso e original. Traz consigo uma
limitação nova e envolve todo um modo de ser concebido o poder. Na
Constituição se plasma um determinado sistema de valores de vida pública,
dos quais é depois indissociável. Um conjunto de princípios filosófico144
jurídicos e filosófico-políticos vem-na justificar e vem-na criar.
Num sentido científico, a Constituição tem conotação de algo rigoroso,
rígido, pensamento típico que foi desenvolvido no constitucionalismo. Representa
o alicerce de todo o Direito positivo e se define por estar num patamar de
superioridade. Essa ideia de Constituição surge do constitucionalismo –
movimento político que desenvolveu na fase do iluminismo.145
141
142
143
144
145
Ibidem, p. 34-35: “[...] a palavra constituição tem origem do verbo constituir que significa ‘ser a
base de, a parte essencial de; formar, compor’ que pode ter emprego em diversas expressões
triviais, tais como constituição de um objeto (cadeira, mesa, etc.)”.
MIRANDA, Jorge. Contributo para uma Teoria da Inconstitucionalidade. Coimbra:
Coimbra Editora, 1996, p. 29-30.
Ibidem, mesmas páginas.
Ibidem, p. 30.
Ibidem, p. 31.
76
José Joaquim Gomes Canotilho acresce que não existiu apenas um
movimento do constitucionalismo, mas vários movimentos políticos dos quais
surgiram as constituições modernas, cada constituição tem a sua história política
que motivou a sua formação.146
Manoel Gonçalves Ferreira Filho assegura que a dificuldade no campo
doutrinário, em relação ao conceito, se deve ao fato da forma genérica que o
assunto foi introduzido no sistema jurídico, pela revolução burguesa.
Acredita-se que o termo Constituição, enquanto conceito jurídico, é mais
usado para designar a organização jurídica fundamental. A expressão
Constituição no mundo jurídico é algo moderno. No Direito romano e Grego não
se fazia distinções entre as normas constitucionais e as demais leis. E o conteúdo
material da Constituição consiste no aspecto primordial que o torna uma norma
Fundamental.
Araujo e Nunes Júnior afirmam que na concepção de Sieyés a
Constituição é norma pela qual nasce o Estado e o ordenamento jurídico. Nesse
sentido a constituição pode ser definida como Lei Fundamental do Estado,
norma superior da qual emana todo ordenamento jurídico-político. Tal norma
estabelece forma de governo, a estrutura da administração pública, a
distribuição dos poderes, os princípios econômicos e ainda os direitos
fundamentais da pessoa humana.147
Do conteúdo da Constituição surge o fundamento da hierarquização das
normas jurídicas. Tal norma encontra-se no ápice da pirâmide normativa. Toda lei
que nasça no ordenamento jurídico precisa está em consonância com o seu
sistema normativo.
146
147
CANOTILHO, 2003, p. 127-139.
ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2007, p. 03-04: “Podemos definir Constituição como a
organização sistemática dos elementos constitutivos do Estado, através da qual se
definem a forma e a estrutura deste, o sistema de governo, a divisão e o funcionamento
dos poderes, o modelo econômico e os direitos, deveres e garantias fundamentais, sendo
que qualquer outra matéria que for agregada a ela será considerada formalmente
constitucional”.
77
De acordo com Celso Ribeiro Bastos “[...] as normas de direito encontram
sempre seu fundamento em outras normas jurídicas”.148 A Constituição é a fonte
inspiradora de todas as demais normas.
José Afonso da Silva assegura que Kelsen emitiu dois significados para o
termo Constituição: um lógico-jurídico e outro jurídico-positivo:
A concepção de Kelsen toma a palavra constituição em dois sentidos: no
lógico-jurídico e no jurídico-positivo; de acordo com o primeiro,
constituição significa norma fundamental hipotética, cuja função é servir
de fundamento lógico transcendental da validade da constituição jurídicopositiva que equivale à norma positiva suprema, conjunto de normas que
149
regula a criação de outras normas, lei nacional no seu mais alto grau.
Nesse aspecto a dogmática kelsiniana se revela importante porque
esclarece qual o objetivo da norma no sentido jurídico-positivo. Entretanto o peso
que ele atribui à norma conduz a um excesso normativo e pode comprometer a
vinculação da Constituição com a realidade social.150
Canotilho, em suas lições, adverte que o constitucionalismo moderno faz
ligação entre a Constituição e a Jurisdição Constitucional, porquanto a Jurisdição
Constitucional tem como objeto assegurar a existência da Constituição enquanto
Lei Fundamental.
No constitucionalismo recente parece defender-se, em geral, a conexão
necessária entre constituição e jurisdição constitucional. W. Kägi escreveu
impressivamente:
148
149
150
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 345:
“As normas de direito encontram sempre seu fundamento em outras normas jurídicas.
Encadeiam-se de tal sorte a dar origem a um complexo sistema normativo, fora do qual não
podemos imaginar nenhuma regra de direito: ou bem ela se coloca dentro do sistema, dele
passando a retirar sua força obrigatória, ou permanece fora do referido sistema, caso em que
deixa de existir como regra de Direito”.
SILVA, 2007, p. 39.
SILVA, 2007, p. 39: “O sentido jurídico de constituição não se obterá, se a apreciarmos
desgarrada da totalidade da vida social, sem conexão com o conjunto da comunidade. Pois
bem, certos modos de agir em sociedade transforma-se em condutas humanas valoradas
historicamente e constituem-se fundamento do existir comunitário, formando os elementos
constitucionais do grupo social, que o constituinte intui e revela como preceitos normativos
fundamentais: a Constituição”.
78
[...] diz-se a tua posição quanto à jurisdição constitucional e eu digo-te
que conceito de Constituição tens [...]. O carácter de normas jurídicas
directa e imediatamente vinculativa atribuído à constituição e a
necessidade de considerar a garantia e segurança imediata da lei
fundamental como uma das tarefas centrais do Estado democrático
151
constitucional [questões-chave da moderna constitucionalidade].
Mas o que é jurisdição ou justiça constitucional? Jurisdição ou justiça
constitucional pode ser definida como o complexo de atividades jurídicas
desenvolvidas por um ou vários órgãos jurisdicionais, destinadas à fiscalização da
observância e cumprimento das normas e princípios constitucionais vigentes.
Essa construção sobre a Justiça Constitucional (Verfassungsgerichtsbarkeit)
nasce com o pensamento do austríaco Hans Kelsen.152
Segundo Canotilho, na atualidade a jurisdição constitucional assumiu
novos valores e seu fundamento consiste na proteção dos direitos fundamentais:
A justiça constitucional é hoje também um amparo para a defesa de
direitos fundamentais, possibilitando-se aos cidadãos, em certos
termos e dentro de certos limites, o direito de recurso aos tribunais
constitucionais, a fim de defenderem, de forma autônoma, os direitos
fundamentais violados ou ameaçados (a justiça constitucional no
sentido de ‘jurisdição da liberdade’). É aqui que vêm entroncar
institutos como os da Verfassungsbeschwerde alemã, o recurso de
amparo hispano-americano e os mandados de segurança e injunção
153
brasileiros.
De tudo que foi dito, é importante frisar que todos os Estados democráticos
e que estão sob a égide da Constituição tendem a defender um sistema ou uma
Corte para o controle da ordem democrática e do próprio sistema de direitos e
garantias.
Na concepção de Louis Favoreu, o desenvolvimento da justiça
constitucional é certamente o acontecimento mais marcante do Direito
constitucional europeu da segunda metade do século XX; hoje não se
concebe mais uma ordem constitucional sem garantir uma instituição de
controle, como a jurisdição constitucional. Assegura que no sistema europeu
151
152
153
Apud, CANOTILHO, 1997, p. 892.
Ibidem, p. 892-894.
Ibidem, p. 893-894.
79
todas as novas Constituições fazem previsão da Corte Constitucional.
Embora a maioria das Cortes Constitucionais se estabelecerem na Europa, a
ideia surgiu na América Latina e na Ásia, posteriormente foi implantada no
continente africano.154
4.2 Controle de Constitucionalidade: Origem e Fundamento
O controle de constitucionalidade surgiu nos Estados Unidos depois de
uma decisão do caso Marbury v. Madison que foi julgado pelo Juiz Marshall. Ou
seja, a primeira ideia do controle de constitucionalidade era a de resguardar um
sistema de fiscalização para proteger a Constituição e assim elevá-la ao patamar
de norma suprema.
Essa fiscalização surgiu do julgamento de um caso concreto julgado pelos
juízes comuns, denominado pela doutrina de controle pela via de defesa ou
difusa.155
A via de defesa ou difusa é aquela onde a inconstitucionalidade é suscitada
e discutida em qualquer processo comum e o juiz tem poderes para se pronunciar
sobre o assunto que envolve o próprio objeto da ação. Foi assim no caso de
Marbury v. Madison.
154
155
FAVOREU, Louis. As Cortes Constitucionais. Tradução de Dunia Marinho Silva. São Paulo:
Landy, 2004, p. 15: “Entretanto, mesmo que a maior parte das Cortes Constitucionais situemse efetivamente na Europa, mais precisamente na Europa continental, esta nova forma de
justiça constitucional surgiu na América Latina e na Ásia, após instalar-se também na África.
Portanto, se existe um ‘modelo europeu’ de justiça constitucional, como há um ‘modelo
estadunidense’, é evidente que esses dois modelos podem ser aplicados em outros sistemas
além daqueles que lhe deram origem”.
BASTOS, 1996, p. 356: “Surgiu o sistema de controle judicial nos Estados Unidos da
América do Norte, como resultante da prática jurisprudencial da Corte Suprema naquele
país. Foi o Juiz Marshall quem o elaborou na sua forma definitiva, e cujos fundamentos
expôs com grande brilho quando da ocasião do julgamento do famoso caso Marbury contra
Madison. Os pontos centrais dessa doutrina são: sendo a lei inconstitucional nula, a
ninguém obriga, e muito menos vincula o Poder Judiciário à sua aplicação; por outro lado,
diante de um conflito entre a lei ordinária e a Constituição, ao Poder Judiciário incumbe
inelutavelmente preferir uma em desfavor da outra. Diante de tal dilema, esposa a teoria
que inevitavelmente deve ser dada à Lei Constitucional, que é superior a qualquer outro ato
praticado sob sua vigência”.
80
Em outros termos, o objetivo da ação não era discutir a constitucionalidade,
mas sim outras questões da relação jurídica. De modo que a fiscalização da
constitucionalidade surge no próprio debate do litígio tornando-se pré-requisito
para o juízo decidir o mérito do litígio.156
Clèmerson Merlin Clève afirma:
A judicial review foi definitivamente incorporada ao direito constitucional
americano em 1803 com a decisão do Chief Justice Marshall no célebre
caso William Marbury v. James Madison. Como acentua Polletti, Marshall
foi original na lógica imbatível de sua decisão, não porém quanto à
substância da ideia. Ela já era corrente na jurisprudência [...]. A Justiça
do Estado de New Jersey, em 1780, declarou nula uma lei por contrariar
ela a Constituição do Estado. Desde 1782, os juízes da Virgínia
julgavam-se competentes para dizer da constitucionalidade das leis. Em
1787, a Suprema Corte da Carolina do Norte invalidou lei pelo fato de ela
colidir com os artigos da Confederação.
Na doutrina de Marshall, a Constituição teria que se apresentar acima das
demais leis, caso contrário, não justificaria a exigência de processo distinto para a
sua elaboração. Fosse assim, poderia ser alterada a qualquer momento e poderia
ser colocada no patamar das demais leis como as resoluções, as leis ordinárias e
outras.157
Por isso que se defende a jurisdição constitucional, porque o Estado
Constitucional pressupõe um controle dos atos e ações que possam comprometer
a norma Superior.158
A ideia sobre o controle da constitucionalidade era compreendida no
sentido de Estado, após o constitucionalismo moderno,159 recebeu outros valores
como os da proteção dos direitos sociais, aí o objetivo da jurisdição constitucional
156
157
158
159
FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Controle de Constitucionalidade das Leis
Municipais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 28-29.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito
Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 64-65.
CANOTILHO, 1997, p. 887.
Ibidem, mesma página: “A idéia de proteção, defesa, tutela ou garantia da ordem
constitucional tem como antecedente a ideia de defesa do Estado, que, num sentido amplo e
global, se pode definir como o complexo de institutos, garantias e medidas destinadas a
defender e proteger, interna e externamente, a existência jurídica e fáctica do Estado (defesa
do território, da independência, defesa das instituições)”.
81
não era mais proteger o Estado, mas a defesa da própria Constituição e de seu
sistema de garantia.
Para que o sistema normativo constitucional se efetive, é necessária a
existência de uma sistematização institucionalizada e política, que permita o
controle dessa aplicação.160
A própria norma superior cria diversos mecanismos de controle, como por
exemplo, a vinculação de todos os poderes públicos, as formas de controle
político e judicial e as repartições de competências.
A garantia da constituição enquanto diploma fundamental é o objeto do
sistema de controle, porém essa garantia difere das garantias constitucionais
asseguradas aos cidadãos. Em suma, o controle de constitucionalidade visa
assegurar a garantia da Constituição como documento principal e essa protege as
garantais subjetivadas a favor do cidadão.161
Ou seja, nasce com o objetivo de preservar a Constituição enquanto norma
fundamental, no ordenamento jurídico:
É a partir desta preocupação em consolidar o constitucionalismo e tomar
a Constituição a sério que surge o mecanismo de controle da
constitucionalidade. O controle da constitucionalidade impõe a criação de
instrumentos de defesa da ordem constitucional. O pressuposto do
controle da constitucionalidade é, por certo, a idéia de supremacia e
162
rigidez constitucional.
Segundo o pensamento de Piovesan, o motivo da existência do controle de
constitucionalidade decorre da supremacia da Constituição. Também é esse o
entendimento de Celso Ribeiro Bastos ao afirmar que o controle da
constitucionalidade das leis consiste no exame da adequação das mesmas à
160
161
162
Ibidem, p. 888: “A defesa da constituição pressupõe a existência de garantias da constituição,
isto é, meios e institutos destinados a assegurar a observância, aplicação, estabilidade e
conservação da lei fundamental. Como se trata de garantias de existência da própria
constituição (Cfr. a fórmula alemã: Verfassungsbestandsgarantien), costuma dizer-se que
elas são a ‘constituição da própria constituição’”.
Ibidem, mesma página.
PIOVESAN, 2006, p. 84.
82
Constituição, “[...] tanto de um ponto de vista formal quanto material, para o efeito
de recusar-se obediência a seu mandamento, ou mesmo para o efeito de
declarar-lhes a nulidade”.163
Assim, o controle de constitucionalidade tem sentido de atribuir à
Constituição uma superioridade em face das demais leis, por isso que se
distingue formalmente a norma constitucional das leis ordinárias.164
Sendo a finalidade maior do controle de constitucionalidade reprovar a
ação ou a omissão contrária à Constituição, isso quer dizer corrigir os vícios da lei
ou ato normativo que infringe a Lei Superior.165
4.3 Breve Relato Sobre o Controle da Constitucionalidade no Brasil
Na história das Constituições brasileiras pode-se dizer que somente na
primeira Constituição (1824), denominada Constituição do Império, não existia
qualquer forma de controle de constitucionalidade das leis. Mas nesse período
vigorava o Poder Moderador que, de forma implícita, era considerado o guardião
da Constituição.
A Constituição Federal de 1891, nomeada de Constituição Republicana,
introduziu
no
ordenamento
constitucional
a
forma
de
controle
de
constitucionalidade das leis e extinguiu o Poder Moderador. É certo que o controle
introduzido nesta Carta não se reportava perfeito, pois permitia apenas a
aplicação da via de exceção, mediante recurso extraordinário. Entretanto do ponto
163
164
165
BASTOS, 1996, p. 350.
Ibidem, p. 351: “O controle da constitucionalidade somente foi possível quando se fez
corresponder à maior importância das leis constitucionais para a estruturação do Estado uma
superioridade destas sobre as demais. somente após a distinção formal entre lei
constitucional e lei ordinária foi que elas se tornaram juridicamente diferentes”.
PIOVESAN, Flávia. Proteção Judicial Contra Omissões Legislativas: ação direita de
inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, p. 86: “[...] a inconstitucionalidade advém sempre uma relação de contrariedade com a
Constituição: de um lado a Constituição e de outro um comportamento ameaçador e violador
à ordem constitucional”.
83
de vista científico jurídico foi inaugurada a via de exceção, no ordenamento
pátrio.166
A forma republicana e federativa instituída com a Constituição de 1891 foi
fundamental para a eleição de outra ordem constitucional que privilegiasse o
sistema de controle, via de exceção.
Já a Constituição de 1934 operou a favor do aperfeiçoamento do sistema
de controle e constituiu o marco histórico do controle de constitucionalidade no
direito brasileiro. Determinou que declarações de inconstitucionalidade fossem
submetidas ao julgamento dos Tribunais por maioria absoluta de votos e deferiu
poder para o Supremo Tribunal Federal (STF) suspender, de forma parcial ou
total, lei ou ato normativo que contrariasse a Constituição e assim fosse declarada
a inconstitucionalidade.
O Procurador-Geral da República foi legitimado para provocar o STF a
declarar a inconstitucionalidade de lei quando houvesse qualquer afronta aos
princípios constitucionais, aspectos considerados inovadores, porque passou a
permitir a via de ação provocada e não apenas a incidental.167
Segundo Bonavides esse fato constituiu o elemento mais relevante porque
a ação ampliou a possibilidade de controle mediante a via provocada, que era
apenas incidental.168
Essa Carta também inovou ao prever a suspensão de execução das leis
declaradas inconstitucionais, contudo mesmo com todas essas inovações, não
consignou a possibilidade da ação de inconstitucionalidade.169
Na Constituição de 1937 ocorreu situação contrária à anterior, editada
na vigência do Estado-Novo; tal Carta reportou-se autoritária e outorgada.
166
167
168
169
BASTOS, 1996, p. 358-359.
Ibidem, p. 359-360.
BONAVIDES, 2007, p. 328.
BASTOS, 1996, p. 350.
84
Dentre outros fatores que mantinha sua tendência absolutista, o Parlamento
era
o
órgão
responsável
para
reexaminar
as
decisões
objeto
de
inconstitucionalidade.
Isso foi considerado um retrocesso às conquistas da Constituição
Federal de 1937.
Somente na Carta Constitucional de 1946 o processo (inovações) iniciado
na Carta de 1934 foi revigorado no sentido de permitir o controle de
constitucionalidade.
O controle por via de exceção foi assegurado como também o recurso
extraordinário, fase em que foi introduzida, no texto, a ação direta de declaração
de inconstitucionalidade.
A Emenda Constitucional nº 16, de 26 de novembro de 1965, foi
decisiva; não apenas alargou o sistema de controle como também criou o
controle da constitucionalidade por via de ação, em nosso ordenamento
constitucional.
Mediante o art. 2º daquela Emenda foi alterado o art. 101, inc. I da
Constituição Federal de 1946.
Embora a Constituição de 1967 conservasse o sistema de controle como
as mudanças da Emenda Constitucional nº 16 (art. 114) houve uma alteração
de competência em se tratando de intervenção nos Estados. O poder de
suspender o ato ou lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal deixou de ser do Congresso Nacional e passou a ser da
responsabilidade do presidente da República. Importante registrar que a
Emenda Constitucional nº 01 à Constituição de 1967 não alterou o conteúdo da
Carta de 1967 apenas manteve o sistema, alterando tão somente a disposição
dos artigos.170
170
Ibidem, p. 363.
85
4.4 O Controle de Constitucionalidade na Constituição de 1988
A Constituição Federal de 1988 trouxe um leque de direitos e garantias
fundamentais ao cidadão. Quanto ao sistema de controle de constitucionalidade
não apenas ampliou, mas, trouxe inovações e o curioso, é que isso nos parece
estratégica política de nosso legislador constituinte.
Porque se a Constituição Federal de 1988 vem como uma carta para a
cidadania
era
preciso
um
sistema
eficiente
de
proteção
à
norma
fundamental.
Essa Carta garantiu, no sistema de controle, a ação direta de
inconstitucionalidade (já figurava nas Constituições anteriores) e ampliou o rol
dos legitimados (conforme art. 103 da Constituição Federal de 1988). Além de
criar a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, garantiu as formas de
controle via de ação (método concentrado) e via de exceção ou defesa (método
difuso).171
O método concentrado encontra a inconstitucionalidade por ação, cujo
objetivo é retirar do ordenamento jurídico a lei ou ato normativo em
desconformidade
com
a
Constituição,
uma
vez
pronunciada
a
inconstitucionalidade, a lei passa à inaplicabilidade. Interessante lembrar que
essa consiste em uma das modalidades de ação proposta contra as cotas raciais,
perante o Supremo Tribunal Federal.
Uma das características fundamentais da inconstitucionalidade por ação
consiste em repudiar o vício da lei abstrata (em tese). O objeto dessa ação
constitui-se no próprio vício de inconstitucionalidade da lei. Se a lei for declarada
inconstitucional, a decisão faz coisa julgada erga omnes, alcança a todos. Isso
significa que a lei não poderá mais ser aplicada. Fica extirpada do mundo
jurídico.
171
SILVA, 2007, passim.
86
Nossa Carta definiu que o único órgão que tem competência tanto para
conhecer dessa ação quanto para decidir, é o Supremo Tribunal Federal, o motivo
que levou a doutrina nomear esse controle de “concentrado”.172
De
acordo
com
Gilmar
Mendes,
uma
lei
quando
considerada
inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, não pode gerar nenhum direito,
pois se isso ocorrer fere o princípio da supremacia constitucional.
[...] o princípio da supremacia da Constituição não se compadece com
uma orientação que pressupõe a validade da lei inconstitucional. O
reconhecimento de validade de uma lei inconstitucional representaria
uma ruptura com o princípio da Supremacia da Constituição. A lei
inconstitucional não pode criar direitos, nem impor obrigações, de modo
que tanto os órgãos estatais como o indivíduo estariam legitimamente
autorizados a negar obediência às prescrições incompatíveis com a
173
Constituição.
Já a inconstitucionalidade por omissão é de competência também do
Supremo Tribunal Federal (art.102, inc. I, alínea “a”, conjugado com o art.103, §
2º, ambos da Constituição Federal). Tal ação tem por finalidade reprimir a
omissão por parte dos poderes competentes, que atentem contra a Constituição.
E o seu objeto consiste no próprio vício omissivo.174
São características da inconstitucionalidade por omissão: a) falta ou
insuficiência de medidas políticas ou de governo; b) falta de
implementação de medidas administrativas, incluídas as medidas de
natureza regulamentar, ou de outros atos da Administração
175
Pública.
Têm
legitimidade
para
propor
ação
de
inconstitucionalidade
o
Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos
Deputados, a Mesa da Assembleia Legislativa, o Governador de Estado, o
Procurador Geral da República (que deverá ser ouvido previamente em todas
as ações de inconstitucionalidade), além de constar no rol dos entes
172
173
174
175
BASTOS, 1996, p. 366.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no
Brasil e na Alemanha. São Paulo: Saraiva, 1999, passim.
PIOVESAN, 2003, p. 134: “A inconstitucionalidade por omissão é a inconstitucionalidade
negativa, que resulta de abstenção, inércia ou silêncio do poder político que deixa de praticar
determinado ato exigido pela Constituição”.
Ibidem, mesma página.
87
legitimados para propositura da Adin, (art. 103, § 1º), o Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no
Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito
nacional.
Já a via de exceção ou defesa objetiva atacar o vício de validade da lei no
caso concreto (diverso da apreciação em tese), ou seja, a arguição deve se dar
no curso do processo comum.
Qualquer tribunal é plenamente competente para receber a ação e decidir,
também todos os juízes e tribunais são legitimados para tal fim. A
inconstitucionalidade é suscitada no contexto da matéria em litígio. Esse tipo de
controle pode ser efetivado em qualquer modalidade de ação, entretanto, é mais
frequente em ações de mandado de segurança, habeas corpus e nas defesas
judiciais.176
Outra inovação trazida ao sistema de controle no direito brasileiro foi a
Ação Declaratória de Constitucionalidade, criada com a edição da Emenda
Constitucional nº 03, de 1993, acrescenta o § 4º ao art. 103. De conteúdo muito
parecido com a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade mantém os mesmos
legitimados para provocar a ação.
Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 03/93 foi regulamentado o
processo para julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação
declaratória de constitucionalidade. Além de regulamentar o ADPF (Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental).177
Oportuno lembrar que se encontra em trâmite no Supremo Tribunal Federal
duas ações que têm por objeto as cotas raciais a (ADPF nº 186) proposta pelos
Democratas (DEM), e o RE (Recurso Extraordinário) impetrado por uma
vestibulanda que se sentiu prejudicada pelo sistema de cotas da Universidade
176
177
BASTOS, 1996, p. 366.
CARVALHO, Fábio. ADIN e ADC e a Ambivalência Possível: uma proposta. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 67-99.
88
Federal do Rio Grande do Sul, ambas as ações discutem a constitucionalidade
das cotas raciais.178
O controle de constitucionalidade também se aplica à esfera estadual, ou
seja, as Constituições das Unidades da Federação são impelidas a criarem o
sistema de controle com base nos princípios da Lei Maior.
O Brasil sendo uma Federação implica aos Estados Membros vinculação
com a Carta Constitucional, sem prejuízo, da autonomia para a autoorganização, capacidade de autogoverno, capacidade de autolegislação e
capacidade
de
auto-administração.
É
isso
que
sustenta
a
base
da
Federação.179
Luiz Alberto David Araujo assegura que o Estado Federal é composto de
partes autônomas, de vontades parciais, que devem se relacionar entre si e com
a vontade central.180
Gabriel Ivo, na tese sobre a auto-organização estatal na federação
brasileira destaca que, a Constituição Federal de 1988 prevê, no art. 25,
competências próprias dos Estados-Membros; sendo a autonomia dos
Estados-Membros um dos fundamentos essenciais na configuração do Estado
Federal.181
Quanto às leis municipais estas não estão sujeitas a um controle por via de
ação direta em face da Constituição Federal, isso é, a uma ação direta perante o
Supremo Tribunal Federal, mas se submete a um controle em face da
Constituição Estadual.
178
179
180
181
Conforme despacho do Ministro Ricardo Lewandowski – ADPF nº 186. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 mar. 2010.
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Poder Constituinte do Estado Membro. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007, p. 112.
ARAUJO, Luiz Alberto David. Características Comuns do Federalismo. In: BASTOS,
Celso Ribeiro. Por uma Nova Federação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 3952.
IVO, 1997, p. 96.
89
No Brasil, no que se refere ao controle de constitucionalidade, pode se afirmar
que foi construído um sistema mais eficaz para fiscalizar o cumprimento,
especialmente, dos direitos fundamentais assegurados no sistema constitucional.182
Embora nosso país tenha um sistema avançado de controle de
constitucionalidade das leis ainda não existe uma Corte Constitucional o que seria
instrumento de cidadania para o cidadão participar, de forma mais eficaz, da
realização dos direitos.183
4.5 O Conteúdo Material da Constituição e sua Aplicabilidade
Uma Constituição sem alcance real não tem finalidade alguma, suas
normas se tornam desprovidas de qualquer sentido.
José Afonso da Silva nos ensina que a aplicabilidade das leis se relaciona
com os meios disponíveis a substancializar os direitos materiais.184
A Constituição para se tornar legítima tem a ver com o grau da aplicação
de seu conteúdo material e do envolvimento dos diversos atores e,
principalmente, do cidadão.
182
183
184
CARVALHO, 2006, p. 68: “É correto a ideia de que o Brasil apresenta hoje um verdadeiro
“sistema” de controle de constitucionalidade. O sistema não foi trazido pela Constituição de 1988,
mas foi se formando paulatinamente a partir dele e, embora seja fruto de tudo o que foi pensado,
publicado, discutido e também decidido em sede de controle de constitucionalidade das leis”.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Notas Sobre Algumas Recentes Inovações no Perfil
Constitucional do Poder Judiciário. São Paulo: Método, 2005, p. 25: “Isso porque o órgão
que delibera em última instância sobre a constitucionalidade de normas e atos, normativos ou
não, exerce necessariamente um poder político, promovendo uma espécie de ‘legislação
negativa’, como ensina o mesmo autor. Então, um poder político, com o compromisso de
implementar a ordem jurídica, em um Estado Democrático de Direito, tendo como principais
tarefas a manutenção da harmonia entre os poderes estatais e a efetivação dos direitos
fundamentais, deverá necessariamente ser investido e exercido de acordo com os
parâmetros consagrados para tal investidura e exercício.Isso significa concretamente, que os
membros de uma Corte Constitucional devem ter mandato obtido por meio de eleições”.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros,
1998, p. 51: “Aplicabilidade exprime uma possibilidade de aplicação. Esta consiste na atuação
concreta da norma, no enquadrar um caso concreto em a norma jurídica adequada. Submete
às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um
fato determinado. Por outras palavras: tem por objeto descobrir o modo e os meios de
amparar juridicamente um interesse humano”.
90
Embora tenha ocorrido num contexto de transição do regime militar para o
regime democrático houve participação de diversos segmentos na Carta de 1988
e isso reforça a ideia de que a concretização das normas constitucionais deve
fazer parte do cotidiano do país, uma vez, que o seu conteúdo representa o
anseio da comunidade.
Para que o seu núcleo material seja realizado é preciso que haja o
envolvimento dos três poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário) e da sociedade.
O Poder Executivo tem o dever de criar a estrutura adequada e implantar
programas e políticas públicas de enfrentamento contra a desigualdade social,
seja na área da saúde, educação, moradia e trabalho. Sendo que a ação ativa
desse Poder é fundamental para garantir a realização material da Constituição. O
Poder Executivo deve ser o principal motor para garantir o núcleo material da
Constituição.
[...] essa atuação garante a concretização mantenedora do cerne
material da Constituição, o que assegura legitimação perante o povodestinatário, ao passo que, por outro, assegura as condições básicas
materiais para que milhões de novos cidadãos atuem de modo cada vez
185
mais presente e qualificada como povo ativo.
O Poder Legislativo deve ser o principal guardião dos mecanismos de
participação popular no processo político, na vida da nação e na busca pela
realização da Carta Constitucional. O povo, ao legitimar os representantes para
editar a Carta política da nação, não só é o principal ator na construção das
normas constitucionais como deve ser partícipe de realização de seu conteúdo.
Enquanto que ao Poder Judiciário incumbe proferir decisões que busquem
alcançar o conteúdo material da Carta Republicana, caso contrário tais decisões
se tornarão ilegítimas e sem fundamento, para isso se exige renovação das
estruturas da ciência jurídica e do Poder Judiciário, mudança da cultura jurídica
185
SANTOS, Rodrigo Mioto dos. A Legitimação Democrática da Constituição Brasileira de 1988:
primeira conversa com algumas propostas da teoria estruturante de Friedrich Müller. In:
ALBUQUERQUE, Paulo Antonio de Menezes; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (orgs.).
Democracia, Direito e Política: estudos internacionais em homenagem a Friedrich Müller.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 727-739.
91
no sentido de ampliar a visão sobre a finalidade do direito e da justiça em tempos
presentes.186
Quanto aos objetivos reais de uma Constituição esse ainda se constitui
num emaranhado de interesses, ora na mesma direção, ora em colisão.
Discussões e movimentos políticos sempre surgirão no sentido de exigir
aplicabilidade das leis e garantia de realização do sistema de direitos e garantias
eleito pelo Legislador Constituinte, que recebe a legitimação do povo.
Karl Engisch trabalha com uma teoria denominada Jurisprudência dos
Interesses, doutrina que se ocupa da discussão em relação a lei e os
fundamentos do direito. O direito deve ser o fundamento da lei, a lei não se
sustenta por si só, não é postulado divino. Na aplicação, ela requer restrições
correções, aperfeiçoamento e o direito precisa ser a estrutura da própria lei. Esse
pensamento
sobre
a
Jurisprudência
dos
Interesses
(Vortrag
über
Interessenjurisprudenz) surgiu em 1933, sendo Philip Heck um dos seus
principais defensores.
O Direito é uma ciência que constantemente protegerá um interesse em
detrimento de outros interesses, a ponderação, precisa ser a arma para eleger o
interesse a ser protegido, assim afirma Karl Engisch:
Às exigências da vida chamam ‘interesses’, Destarte, são ‘interesses’
não só os interesses materiais, econômicos e sociais, mas também os
interesses ideais: há ‘interesses’ culturais, morais e religiosos. O Direito
tutela, por exemplo, os interesses no rendimento e na propriedade, na
vida, na saúde, na liberdade e na honra, na valorização e divulgação
dos produtos do espírito, na conservação dos sentimentos morais e
religiosos. Mas a verdade é que os interesses dos homens não se
situam isoladamente uns ao lado dos outros, antes se encontram uns
com os outros, podendo conduzir na mesma direcção, mas podendo
também colidir entre si. Importa sobretudo ao Direito a colisão de
interesse, o ‘conflito de interesse’. Muito frequentemente, talvez
sempre, a proteção de um interesse pelo Direito significa a postergação
187
doutro interesse.
186
187
BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à Função: novos estudos de teoria do Direito. Tradução de
Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007, passim.
ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. 10. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2008, p. 368-369.
92
Se na concepção tradicional o direito gira em torno de selecionar um
interesse em detrimento de outro interesse, surge a indagação sobre a própria
estrutura do direito, quais os interesses que o direito busca proteger?
Diz-se isso porque o direto, principalmente, o direito civil e processual civil no
período clássico se estruturaram para a defesa das propriedades e dos interesses
privados, mercadológicos e isso influencia, até os dias atuais, o direito moderno.
Como houve a busca pela proteção de interesses de outra dimensão, nãomaterial, a estrutura e a função do direito precisam ser revistas e um outro
pensamento construído.
A proteção de interesses não patrimoniais é realidade em nosso sistema
Constitucional. No caso das cotas raciais não se busca apenas o direito a
oportunidades de acessão social, por via da educação, almeja-se muito mais o
reconhecimento
da
capacidade
cognitiva
de
pessoas
e
grupos
que,
historicamente, foram tratados com inferioridade no âmbito de espaços públicos,
como as Universidades.188
Se o Direito é a base da lei e essa base foi desenvolvida dentro de uma
concepção materialista teremos a consequência disso no momento da aplicação
do direito, se o interesse eleito continuar a ser aquele mais resguardado pelo
direito tradicional.
Segundo Arthur Kaufmann compreender a relação lei e direito consiste
numa das dificuldades dos juristas atuais:
Apesar de todos estes esforços em torno dum pensamento jurídico
realista e dotado de conteúdo, torna-se difícil para a actual geração de
juristas a compreensão do ‘direito’ como algo diverso da lei. Eles
queixam-se da ‘juridificação’ do nosso mundo da vida, mas aquilo a que
se querem na verdade referir é à ‘legiferação’, ocasionando, assim, em
vez duma contenção do fluxo legislativo, um empobrecimento do direito.
Nos tempos anteriores a 1800, a maioria dos juristas e filósofos do direito
não considerava as leis e o direito idênticos; a Aristóteles, Cícero, Tomás
de Aquino ou Thomas Hobbes, por exemplo, não ocorreria medir ambos
pela mesma bitola. A razão de assim ser, apenas se pode compreender
188
SILVA, 2008, p. 85.
93
a partir da evolução histórica do conceito de direito e do conceito de
189
lei.
Os interesses que a Constituição Federal acolheu no processo de
provocação e da produção não se podem transformar em documentos reais para
alguns segmentos e para outros, em normas meramente fictícias, ao aplicador da
lei exige-se leitura atualizada da real função do Direito e do objetivo que se
propõe a Constituição Federal de 1988.190
Creio ser importante ter clara a convicção que direito e lei são institutos
distintos. Acredita-se que é nessa ceara que o real sentido de uma Constituição
se afirma como um documento fundamental de uma nação.
4.6 O Debate Judicial Sobre a Constitucionalidade das Cotas Raciais
No contexto americano o Judiciário foi fundamental para a implantação das
ações afirmativas à época.191 Hoje se discute a importância do judiciário brasileiro
para assegurar a política de cotas raciais em vigor em diversas universidades
públicas.
Ao Poder Judiciário caberá o pronunciamento final sobre o assunto se as
cotas raciais têm ou não compatibilidade com o sistema constitucional.
É justamente nesse sentido que desenvolvemos esse trabalho, buscar
compreender o diálogo do Judiciário entre a Constituição Federal e a
aplicação do direito mediante a via processual, se norma material e
instrumento
processual
se
conduzem
em
harmonia
com
o
sistema
constitucional.
189
190
191
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2009, p. 203-204.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do
Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004, passim.
GOMES, 2001, p. 01-25.
94
No debate judicial é possível perceber o dilema quando da interpretação da
norma constitucional, do significado dos princípios, da jurisdição, da legitimidade
popular para participar das decisões judiciais, enfim, dos valores da Carta,
enquanto norma fundamental.
De acordo com Marco Aurélio Melo a Constituição de 1988 admite a ação
afirmativa e também a modalidade de reserva de vagas para segmentos
discriminados. Cita exemplos do art. 7º, inc. XX (proteção da mulher no mercado
de trabalho); do art. 37, inc. III (reserva de vagas para deficientes); do art. 170
(que permite tratamento preferencial para empresas de pequeno porte); do art.
227 (que prevê tratamento preferencial à criança e ao adolescente). Já, a Lei nº
8.112/90 determina 20% de vagas para deficientes físicos, em todos os concursos
públicos e Lei eleitoral nº 9.504/97, que dispõe sobre a reserva de vagas nas
eleições, na proporção de 30% e o máximo de 70% para cada sexo.192
Um estudo realizado pelo Núcleo de Direito e Democracia do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento sobre a constitucionalidade da reserva de
cotas para mulheres, na política, cita dois casos julgados pelo Tribunal Superior
Eleitoral em que foi confirmada a constitucionalidade das cotas e a
compatibilidade com o princípio da igualdade perante a Lei.193
O tema sobre a constitucionalidade da reserva de vagas é amplamente
discutido no sistema jurídico, teses, livros e artigos e têm revelado que a
Constituição não só permite, mas coloca, entre os objetivos fundamentais, a
redução das desigualdades. Entende-se que a Constituição de 1988 recepcionou
a política de ações afirmativas, porque ainda no ano de 1968 vigorou no Brasil a
chamada Lei do Boi que previa reservas de vagas em estabelecimentos agrícolas
de ensino médio e superior para estudantes agricultores ou filhos destes.194
Porém na análise que realizamos sobre os julgados em relação às cotas
raciais ainda mostra divergência no âmbito do Judiciário, nos resta saber qual o
192
193
194
MELO, Marco Aurélio. Óptica Constitucional: a igualdade e as ações afirmativas. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 05-11.
Ibidem, mesmas páginas.
GOMES, 2001, p. 129-152.
95
papel do Judiciário; essa preocupação aparece no discurso do Ministro Marco
Aurélio Melo que afirma: “[...] deve ser a postura do juiz, a decisão justa, não ficar
à mercê da dogmática jurídica”.195
Passando a apresentar uma amostra da jurisprudência sobre o assunto
pode se ver que na decisão do Tribunal Regional da Quarta Região, Processo
nº 2008.72.00.000960-4/SC, onde se discutiu o direito de um candidato do
curso de medicina que se sentiu prejudicado em razão da reserva de vagas
para negros e estudantes de escolas públicas na Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC – no tópico que se trata da ilegalidade e
inconstitucionalidade do sistema de cotas o Relator argumenta que o art. 5º,
caput, da Constituição Federal, define a igualdade como regra geral e que o
art. 206, inc. I, dispõe a igualdade de condições para o acesso e permanência
na escola.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96), em harmonia
com o texto constitucional, garante que o objetivo é atender com perfeição ao
pressuposto de igualdade constitucional legalmente estabelecido. Assim o critério
social, racial, de sexo, de religião não têm relevância alguma, o mérito deve ser o
critério do vestibular.
Mesmo acreditando na existência da desigualdade social da população
negra, considera-se que a política de cotas não é a melhor forma para reduzir as
desigualdades raciais, pois acredita-se que tal medida resultará na criação de
privilégios no acesso ao ensino superior público, porquanto a miscigenação que
ocorreu no Brasil não permite que se adote critério autodeclarativo, porque fere a
Constituição Federal.
Nota-se que esse julgador tem o sentido da igualdade estática e abstrata
quando aduz que a igualdade é algo legalmente estabelecido, não permitindo um
tratamento disforme para o alcance da igualdade substancial e argumenta que a
política de cotas raciais “fere, de morte, a ideia de igualdade”:
195
MELO, 2001, p. 05-11.
96
Ora, não se pode olvidar que no Brasil a miscigenação, mais do que
fazer parte da cultura, dificulta enormemente a distinção entre negros e
não-negros ou negros e brancos apenas pela aparência. Trata-se de
uma tarefa árdua e inglória, com grande margem de erro, já que é
inegavelmente possível um descendente preponderante de raça negra
196
possuir fenótipo europeu e vice-versa.
A reserva de vaga é, como visto no item acima, por si só discriminatória.
A reserva de vagas com base fenótipo da pessoa, então, fere de morte a
ideia de igualdade, pois privilegia não os que pertencem à raça negra,
197
mas os que parecem a ela pertencer.
No final da decisão o Relator assim profere:
Ante o exposto, confirmo a antecipação dos efeitos da tutela e julgo
procedente a pedido para, em face da inconstitucionalidade da reserva
de vagas prevista na Resolução Normativa nº 008/CUn/2007 e no Edital
do Vestibular UFSC 2008, determinar à Universidade Federal de Santa
Catarina que observe a classificação obtida pelo autor dentro da
totalidade das vagas previstas para o curso escolhido, inclusive às
reservadas para os candidatos negros e os provenientes de ensino
público; e que possibilite, em conseqüência, a sua matrícula e freqüência
no Curso de Medicina. Custos ex lege: Condeno a ré ao pagamento dos
honorários advocatícios, que fixo em 10% sobre o valor corrigido da
198
causa.
Outra decisão recente sobre o sistema das cotas – Processo nº
2009.72.00.000315-1/SC, do TRF da 4ª Região, publicada em 12/08/2009, que
discute a política de cotas na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC –,
o Relator com posição contrária ao sistema alega que o art. 5º, caput, da
Constituição Federal – princípio da igualdade perante a lei – não autoriza fazer
distinções entre os cidadãos por motivos raciais, somente permite a distinção por
motivo de classe social. Nesse caso o julgado filia a corrente de que a
discriminação no Brasil é de ordem social e não de natureza racial:
Não é possível firmar distinção entre os cidadãos, para acesso a
serviços públicos, como a educação, baseando-se em critérios genéticos
de cor, raça ou etnia, nos termos do art. 5º, caput, da Constituição
Federal. É cabível apenas a distinção que vise a privilegiar o acesso das
classes menos favorecidas, aí compreendidos, com razoabilidade, os
199
cidadãos que freqüentaram escolas públicas.
196
197
198
199
TRF 4ª Região, Apelação Cível nº 2008.72.00.000960-4.
Idem.
Idem.
TRF 4ª Região, Apelação Cível nº 2009.72.00.000315-1.
97
Em perspectiva similar, o Relator Desembargador Federal Paulo Gadelha,
no Agravo de Instrumento nº 61.893/AL (Processo nº 2005.05.00.012284-1), tece
longos comentários sobre os fatos que motivam a política de cotas raciais, admite
que existe desigualdade racial no Brasil além de fazer referência aos estudos
acadêmicos realizados sobre o assunto, mas, ao final decide que a utilização da
cor da raça não pode ser admitida como critério para se ingressar na universidade
pública e somente o investimento na qualidade do ensino público poderá
contribuir para todos:
A população brasileira possui alto grau de miscigenação racial, contudo,
recentemente foram realizados estudos nos meios universitários que
revelaram o reduzido índice de estudantes negros nas universidades.
Este fato foi o motivo desencadeante da tese referente à reserva de
cotas raciais nas Universidades Brasileiras. Muitos dos defensores do
sistema de cotas, alegam serem históricas as razões da ínfima
participação da raça negra nas universidades, sendo a principal a
relacionada à época da escravidão. Índios, brancos e negros
transformaram a população brasileira em descendentes com alto grau de
miscigenação, apesar disso, apenas os descendentes da raça branca
ocupam as posições sociais e políticas mais influentes. Tal fato, a meu
ver, é decisivo em atribuir à escravidão a razão do lento progresso
econômico desta etnia não apenas no cenário brasileiro, mas em todos
os países que adotaram o sistema escravagista [...]. A utilização da cor
da raça, com critério diferenciador para o acesso a vagas nas
universidades, constitui critério de segregação racial e, talvez, o mais
indicado para reduzir estas diferenças seja o investimento na qualidade
do ensino público, pois, este critério ajudaria não só os estudantes
negros, mas, sim, todos os estudantes carentes do Brasil, independente,
de raça, sexo ou religião [...]. Entendo, portanto, ser medida de afronta
aos princípios constitucionais da igualdade e da legalidade qualquer
200
determinação administrativa relativa à reserva de cotas raciais.
Com pensamento contrário às cotas raciais, o Relator Desembargador
Élio Siqueira Federal, do Tribunal Regional Federal da Quinta Região,
(Agravo de Instrumento nº 69.760/AL) no debate sobre as cotas raciais na
Universidade Federal de Alagoas, afirma que o princípio da autonomia
universitária tem peso inferior ao princípio da legalidade e declara a
ilegalidade da Resolução nº 09/2004 – CEPE que instituiu o sistema de cotas
naquela universidade:
Penso que o princípio da autonomia universitária, consagrado na
Constituição Federal, não supera o princípio da legalidade, diante de
200
TRF 4ª Região, Apelação Cível nº 2005.05.00.012284-1.
98
questão intrinsecamente
201
Instrumento nº 69.760.
complexa
e
controvertida.
Agravo
de
Também o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (Suspensão de
Segurança nº 2006.01.00.039103-8/BA) no discurso sobre a política de cotas
na Universidade Federal da Bahia o princípio da igualdade e legalidade foram
o alvo argumentativo dos julgadores. Ainda os processos do mesmo Tribunal:
2005.01.00.033082-5,
2005.01.00.020017-2,
2005.01.00.029169-3,
2005.01.00.030457-0 e 2005.01.00.030457-0.
O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no mesmo sentido (Agravo de
Instrumento nº 61.893/AL, Relator Desembargador Paulo Gadelha) afirma
categoricamente:
1. A reserva de cotas raciais, no momento, não tem amparo legal, nem
constitucional, existindo, tão-somente, projeto de lei em tramitação e
ampla discussão social sobre o tema. 2. A aprovação de aprovação de
projeto de lei relativo à reserva de cotas raciais nas universidades
brasileiras, se ocorrer, não afetará o controle jurisdicional de
constitucionalidade das leis pelo julgador. 3. A implementação prévia, por
parte de universidades brasileiras, de medidas relativas à reserva de
cotas raciais, constitui procedimento contrário ao princípio da
202
legalidade.
Com posição favorável às cotas raciais no ensino superior, julgadores
afirmam compatibilidade do sistema com o princípio da igualdade perante a lei.
Na decisão da Apelação Cível nº 2005.70.00.010977-0/PR, publicada em
23/07/2009, referente à discussão sobre o sistema de cotas na Universidade do
Paraná, o Relator argumentou que o princípio da igualdade na Constituição
Federal não significa tratamento uniforme entre as pessoas, mas é compatível
com a política de ações afirmativas na modalidade de cotas, porque o princípio
tem a dimensão material/fática, sempre que houver razão suficiente para a
aplicação de um tratamento desigual, isso será possível. No caso das cotas esse
tratamento desigual se justifica para os segmentos considerados discriminados
por motivo de raça, sexo, etnia, gênero. O princípio da igualdade no texto
201
202
TRF 5ª Região, Agravo de Instrumento nº 69.760/AL.
TRF 5ª Região, Agravo de Instrumento nº 61.893/AL.
99
constitucional proíbe a perpetuação da discriminação e da desigualdade que
consistem num mandamento de antissubordinação:
O princípio da igualdade vai além da instituição de uniformidade de
tratamento (mandamento constitucional de antidiferenciação), cujo efeito
recorrente é a manutenção da desigualdade e a reprodução da
discriminação; ele impõe a proibição de tratamentos que, de modo
intencional ou não, perpetuem discriminação e desigualdade
203
(mandamento de antissubordinação).
A promoção da igualdade fática, expressamente determinada na
Constituição da República de 1988, fundada na dinâmica da dimensão
material do princípio da igualdade, autoriza a implementação de ações
afirmativas, combatendo discriminações raciais, sociais, sexuais, étnicas
e regionais, tudo no contexto da promoção da justiça social, da
204
solidariedade, dos direitos fundamentais sociais, do pluralismo.
Quanto às decisões favoráveis ao sistema de cotas, o principal argumento
se refere à igualdade substancial e ao dever do Estado em fazer criar
mecanismos para que o conteúdo material da Constituição se torne real.
Na decisão da Apelação Cível nº 2005.70.00.010977-0/PR, publicada em
23/07/2009, o Relator, em longo discurso, afirma que as cotas tanto para negros
quanto para alunos de escola pública é constitucional. A Constituição não é
apenas uma norma formal e o princípio da igualdade estabelece a dimensão
material, sendo perfeitamente compatíveis ações afirmativas na modalidade social
e racial.
A promoção da igualdade fática, expressamente determinada na
Constituição da República de 1988, fundada na dinâmica da dimensão
material do princípio da igualdade, autoriza a implementação de ações
afirmativas, combatendo discriminações raciais, sociais, sexuais, étnicas
e regionais, tudo no contexto da promoção da justiça social, da
solidariedade, dos direitos fundamentais sociais, do pluralismo. O
mandamento de igualdade material (tratar aos iguais igualmente e aos
desiguais desigualmente, na medida da desigualdade) conduz à
promoção da igualdade fática, pois, conforme a segunda parte da
máxima da igualdade jurídica (a norma de tratamento desigual), se há
uma razão suficiente para ordenar um tratamento desigual, então está
ordenado um tratamento desigual, decorrendo, portanto, o direito à
205
criação de igualdade fática.
203
204
205
TRF 4ª Região, Apelação Cível nº 2005.70.00.010977-0.
Idem.
Idem.
100
No mesmo sentido a decisão:
A universidade tem autonomia para editar normas, desde que
compatíveis com a Constituição, o que, segundo o Relator a política de
cotas não afronta a Lei Superior e a igualdade somente pode ser
cotejada entre pessoas em situação equivalente, no caso das cotas o
interesse é social e precisa prevalecer sobre o interesse individual do
206
candidato que se sentiu prejudicado.
Interessante o posicionamento do Relator sobre a balança (juízo de
valor) dos interesses. Conforme descrito antes, o direito envolve um feixe de
interesses, de ordem privada, individual, social e subjetiva. Ocorre que, por
longo período, a prevalência do interesse individual que era a marca central
do direito tradicional tem sido combatida, após a declaração dos direitos
humanos e a evolução dos direitos sociais. No Estado Democrático de Direito
urge uma leitura atualizada dos valores a serem considerados pelo
ordenamento jurídico.
O art. 207 da Constituição Federal consagra a autonomia didáticocientífica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial das
universidades, sendo lícito, portanto, à recorrida estabelecer sistema
de cotas para as vagas oferecidas à seleção de candidatos como lhe
aprouver, desde que não afronte, como não está a afrontar no caso em
tela, nenhuma outra regra matriz da Constituição. Ademais, com
relação à alegação de violação ao princípio da isonomia, cabe
esclarecer que a igualdade somente pode ser cotejada entre pessoas
que estejam em situação equivalente, sendo levados em consideração
os fatores ditados pela realidade econômica e social, que influem na
capacidade dos candidatos para disputar vagas nas universidades
públicas. Assim, não se há de reconhecer quebra de igualdade no ato
administrativo realizado pela parte apelada. O interesse particular não
pode prevalecer sobre a política pública; não se poderia sacrificar a
busca de um modelo de justiça social apenas para evitar prejuízo
207
particular.
Na Apelação Cível nº 2007.01.00.013134-0/BA, do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região, decidiu-se sobre o sistema de cotas na Universidade
Federal da Bahia e sua compatibilidade com a Constituição Federal. A Relatora
alega que a medida encontra amparo no art. 3º da Constituição Federal que
define os objetivos fundamentais da República Federativa:
206
207
TRF 4ª Região, Apelação Cível nº 2005.70.00.003167-7.
Idem.
101
Art. 3º: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A Relatora Selene Maria Almeida afirma que a política de cotas não infringe
o princípio da igualdade perante a lei, mas representa uma medida de
enfrentamento das desigualdades sociais, ainda que timidamente, em relação à
extensão desta, na sociedade brasileira.
Para ela a adoção de uma política positiva estar em harmonia com o
sistema constitucional, não há nenhuma inconstitucionalidade na medida,
conforme argumenta:
Afigura-se, em um exame preliminar, que a adoção de cotas não é
incompatível com o regime constitucional brasileiro, antes, apresenta-se
como possibilidade de adequação com o objetivo de observância efetiva
à concretização dos direitos e garantias fundamentais estipulados no
texto constitucional, com a devida observância ao instituto da igualdade.
Assim, entendo inexistente qualquer violação ao texto constitucional,
quer em relação ao art. 5º, quer em relação aos arts. 205 a 214,
especialmente no que se refere à igualdade de condições para o acesso
e a adoção de políticas públicas que conduzam à universalização do
208
ensino.
O entendimento da relatora vai de encontro com o discurso sobre a
finalidade da Constituição Federal que prevê o princípio da não discriminação, o
princípio da igualdade perante a lei, que por si só não funcionam como elementos
de inclusão social, apenas como indicadores de ações ativas para o Estado
promover a igualdade material e reduzir as desigualdades raciais.209
208
209
TRF 1ª Região, Apelação Cível nº 2007.01.00.013134-0/BA.
SILVA, 2000, p. 380: “É a história, portanto, que atesta a inutilidade de uma atitude estatal
negativa, abstencionista, no sentido de não-discriminar, como de resto demonstra a
inutilidade das declarações solene de repúdio ao racismo. Noutros termos: numa sociedade
como a brasileira, desfigurada por séculos de discriminação generalizada, não é suficiente
que o Estado se abstenha de praticar a discriminação em suas leis. Vale dizer, incumbe ao
Estado esforçar-se para favorecer a criação de condições que permitam a todos beneficiarse da igualdade de oportunidade e eliminar qualquer fonte de discriminação direta ou
indireta. A isto dá-se o nome de ação positiva, compreendida como comportamento ativo do
Estado, em contraposição à atitude negativa, passiva, limitada à mera intenção de não
discriminar”.
102
Faz referência à desigualdade histórica que atinge a população negra e
afirma que a tendência doutrinária é no sentido de considerar as cotas como uma
das medidas de concretização de direitos.
A posição da Relatora lembra as lições de Piovesan sobre as ações
afirmativas:
As ações afirmativas, como políticas compensatórias adotadas para
aliviar e remediar as condições resultantes de um passado
discriminatório, cumprem uma finalidade pública decisiva ao projeto
democrático, que é a de assegurar a diversidade e a pluralidade.
Constituem medidas concretas que viabilizam o direito à igualdade
deve se moldar no respeito à diferença e à diversidade. Através delas
transita-se da igualdade formal para a igualdade material e
210
substantiva.
Nesse sentido foi a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no
Processo nº 2006.33.00.002830-9/BA e na Apelação Cível em Mandado de
Segurança
nº
2005.33.00.005134-0/BA,
os
julgados
enfatizam
a
constitucionalidade das ações positivas destinadas a negros e indígenas.
Ademais, defende que as desigualdades são visíveis e sequer precisam de
dados estatísticos para mostrá-las, e que a Constituição Federal resguardou
expressamente a proteção a esses segmentos.
Ponto de destaque nessas decisões diz respeito aos critérios empregados
na política de ações afirmativas. Eles não podem ser matemáticos – nos dizeres
da Relatora:
[...] nas ações afirmativas não é possível ater-se a critérios matemáticos,
próprios do Estado liberal, que tem como valores o individualismo e a
igualdade formal. Uma ou outra ‘injustiça’ do ponto de vista individual é
inevitável, devendo ser tolerada em função da finalidade social (e muitas
211
vezes experimental) da política pública.
Creio ser importante retomar a concepção de igualdade e de justiça do
pensamento pitagórico, onde a igualdade e a justiça eram vistas num sentido
210
211
PIOVESAN, 2006, p. 40-41.
TRF 1ª Região, Apelação Cível em Mandado de Segurança nº 2005.33.00.005134-0.
103
numérico, matemático e tal ideia marcou profundamente a Teoria Geral do
Direito.
A Relatora nos alerta que pensar ações afirmativas numa perspectiva
matemática, com valores do período liberal pode criar sérios entraves. Porque
a discussão pode ficar presa à definição de percentuais de reserva, de critérios
de identificação, prazo de duração da política e o objetivo maior, que é a
inclusão social e redução das desigualdades raciais, assumir posição
secundária.
Outro aspecto importante nessa decisão é a discussão sobre o custo social
da medida.
Sem dúvida que cabe à sociedade suportar o custo da omissão do Estado
brasileiro na edição tardia de políticas públicas em matéria de igualdade étnicoracial. O custo da omissão da própria sociedade camuflou as desigualdades
raciais enquanto era de seu interesse manter o silêncio em relação à igualdade
material.
Outro julgado sobre a política de cotas raciais no Tribunal Regional Federal
da 4ª Região (Agravo de Instrumento do Processo nº 2005.04.01.010438-9/PR), o
Relator Luiz Carlos de Castro Lugon defende a constitucionalidade das cotas e
afirma que tal política pode ser considerada um dos mecanismos de inclusão
social.212
“Basta olhar em volta para perceber que o negro no Brasil não desfruta de
igualdade no que tange ao desenvolvimento de suas potencialidades e ao
preenchimento dos espaços de poder”.213
212
213
TRF 4ª Região, Agravo de Instrumento do Processo nº 2005.04.01.010438-9: “É simplismo
alegar, em relação ao tema sub examine, que a Constituição proíbe discrímen fundado em
raça ou em cor. O que, a partir da declaração dos direitos humanos, buscou-se proibir foi a
intolerância em relação às diferenças, o tratamento desfavorável a determinadas raças, a
sonegação de oportunidades a determinadas etnias. Basta olhar em volta para perceber que
o negro no Brasil não desfruta de igualdade no que tange ao desenvolvimento de suas
potencialidades e ao preenchimento dos espaços de poder”.
Idem.
104
Ainda no Tribunal Regional Federal da Quarta Região – Apelação Cível nº
2005.70.00.005658-3/PR, o Relator Des. Federal Valdemar Capeletti faz leitura
sistêmica dos princípios na Constituição e assegura que as cotas raciais e sociais
são acolhidas no Direito brasileiro:
Assim sendo, impõem-se as conclusões de que não há como postergar
os princípios constitucionais da autonomia universitária (CR/88, art. 207),
da progressão segundo a capacidade (CR/88, art. 208, inc. V), da
igualdade, da publicidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da
dignidade da pessoa humana, da impessoalidade e da eficiência, nem
reconhecer a vulneração do devido processo legal ou a violação da Lei
nº 9.784/99, devendo, portanto, ser proclamada a constitucionalidade da
214
Resolução COUN 37/04 e do Edital 01/04.
A controvérsia sobre a constitucionalidade das cotas raciais alcançou o
Supremo Tribunal Federal que, no mês de março de 2010, convocou a sociedade
para se pronunciar sobre a problemática que envolve a matéria, eis o despacho
do Ministro Ricardo Lewandowski:
O MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL RICARDO
LEWANDOWSKI, Relator de Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 186 e do Recurso Extraordinário 597.285/RS, no uso das
atribuições que lhe confere o art. 21, inciso XVII do Regimento Interno do
Supremo Tribunal Federal. CONVOCA: Audiência Pública para ouvir o
depoimento de pessoas com experiência e autoridade em matéria de políticas
de ação afirmativa no ensino superior. No que tange à argüição de
descumprimento de preceito fundamental, a ação foi proposta contra atos
administrativos que resultaram na utilização de critérios raciais para
programas de admissão na Universidade de Brasília - UnB. Os dispositivos
tidos por afrontados são os artigos 1º, caput e III; 3º, IV; 4º, VIII; 5º, I, II, XXXIII,
XLII e LIV; 37, caput; 205, 206, caput e I; 207, caput e 208, V, da Constituição
Federal. No que concerne ao recurso extraordinário, este foi interposto contra
acórdão que julgou constitucional o sistema de reserva de vagas (sistema de
‘cotas’) como forma de ação afirmativa estabelecido pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS como meio de ingresso em seus
cursos de ensino superior [...]. O debate em questão consubstancia-se na
constitucionalidade do sistema de reserva de vagas, baseado em critérios
215
raciais, como forma de ação afirmativa de inclusão no ensino superior.
Também nas ações em trâmite no STF a interpretação dos princípios
constitucionais aparece como entrave à aplicação do direito material.
Até porque interpretar os princípios na Constituição Federal exige ir além
da lógica racional, exige outras dimensões de natureza sentimental, intuitiva e de
214
215
TRF 4ª Região, Apelação Cível nº 2005.70.00.005658-3.
STF, Recurso Extraordinário nº 597.285.
105
vontade.216 Ir além do texto da lei em busca do seu significado no contexto
histórico e político, de acordo com as mudanças sociais.
Essa simples amostra jurisprudencial revela como o tema das cotas raciais
vem sendo discutido no âmbito do Judiciário e como os julgadores constroem os
fundamentos para defender ou contestar a política. Observa-se que a
interpretação do princípio da igualdade e da própria Constituição ainda causa
divergência no momento de realização do direito material.
O julgamento de duas ações, em curso no Supremo Tribunal Federal, será
determinante para pacificar os conflitos sobre a constitucionalidade, ou não, do
sistema de cotas. Tamanha complexidade que a Corte máxima do Judiciário
brasileiro convocou a sociedade para uma audiência pública para ouvir estudiosos
sobre o assunto.
216
ROTHENBURG, 2003, p. 65: “O acesso aos princípios não se dá apenas por intermédio da
razão, mas também da emoção. Dito de outro modo: o acesso à constituição não é só
intelectual; também é afetivo. Os princípios, que não conseguem ser perfeitamente
formulados e compreendidos através da linguagem, conseguem, porém, traduzir sentimentos.
Quiçá por isso a preensão que se tenha dos princípios é, muita vez ou em parte. Intuitiva; é
uma impressão”.
106
5 O ACESSO AO DIREITO E À JUSTIÇA E À INCLUSÃO SOCIAL MEDIANTE
AS COTAS RACIAIS NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO
5.1 Conceito de Jurisdição
Antes de iniciar o relato sobre o conceito de jurisdição destaca-se que
esse capítulo será dedicado à discussão sobre o acesso ao direito e à justiça.
De acordo com o objeto da pesquisa elegemos alguns temas que julgamos
importantes para este tópico tais como: o conceito de Jurisdição e de acesso
ao direito e à justiça; os estudos realizados sobre acesso ao direito e à justiça
no Brasil e no contexto internacional; destaques sobre formas de acesso ao
direito; o acesso ao direito e à justiça na perspectiva da Constituição de 1998;
o direito ao prazo razoável do processo; o direito de ação como instrumento de
acesso à justiça; o acesso ao direito e à justiça da população negra; sobre o
instrumento processual amicus curiae e a participação de Entidades do
Movimento Negro no debate sobre as cotas raciais no sistema jurídico
brasileiro além de trazer reflexão sobre a implantação do Observatório
Permanente da Justiça Brasileira.
Para abordar a matéria sobre o acesso ao direito e à justiça é muito
importante fazer algumas considerações sobre a construção conceitual do termo
jurisdição.
No contexto do sistema constitucional brasileiro o direito à jurisdição está
inserido no rol dos direitos fundamentais. Tal conclusão pode ser extraída do art.
5º, inc. XXXV da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça de direito”. Acredita-se que esse dispositivo é o mais
preciso na definição da garantia de acesso ao direito e à justiça no ordenamento
jurídico brasileiro.217
217
NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Sobre o Direito Fundamental à Jurisdição. In: DIDIER
JÚNIOR, Fredie; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Constituição e
Processo. Salvador: Podivum, 2007, passim.
107
Porém definir o conceito de jurisdição não é tarefa simples, exige uma
análise mais profunda do objetivo inicial desse instituto jurídico. Em
princípio a jurisdição não era atribuição diretamente relacionada com
questões processuais nem se sabe se era função dos Reis ou de líderes
religiosos.
No ano 367 a.C. (através da Leges Liciniae Sextiae) foi instituída a figura
do praetor que era uma espécie de magistratura. Esse praetor passou a
desenvolver o exercício da jurisdição, então, surgiu a necessidade de fazer a
distinção da figura do praetor (pessoa que tinha função de resolver os conflitos)
com a do imperium. Isso porque o poder supremo (divino) era atribuído aos reis
e não o poder processual, ou seja, o poder numa concepção mais ampla. Talvez
essa situação confusa tenha causado divergência sobre a ideia de que na
primeira fase do Direito romano os reis exerciam a jurisdição.218
De certa forma, ao Rei era atribuído o poder supremo, assim, todos os
poderes estavam submissos a ele. Então o praetor ao assumir o poder supremo
(imperium) para dirimir conflitos de natureza privadas, no governo das civitas
(direito privado) era preciso fazer a distinção entre a figura do praetor e do
(imperium). Período em que a função de quem exercia a jurisdição era de declarar
ou mostrar perante as partes, as leis aplicáveis ao caso, esse era o papel do
praetor perante as partes.
A sua derivação de ius dicere (mostrar ou declarar o direito) faz pensar
que designava a actividade do magistrado que consistia na declaração,
perante as partes dum litígio, das normas jurídicas aplicáveis. Neste
sentido, a iurisdictio identificar-se-ia com o acto inicial do processo que
precede a concessão ou a denegação da actio. Depois, ter-se-à
estendido a todas as actividades desenvolvidas pelo magistrado na fase
219
in iure do processo.
Segundo Moacyr Amaral Santos, no período medieval, tinham poderes de
jurisdição os senhores feudais e a Igreja que se associava ao Estado para efetuar
negociações ligadas ao clero e à prática religiosa.
218
219
JUSTO, A. Santos. Direito Privado Romano: parte geral. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora,
2008, p. 270.
Ibidem, p. 271.
108
A palavra jurisdição teve origem no latim – ius (= direito) e dicere (= dizer) –
e significa declarar ou proclamar direito. Mas, atualmente, exige-se do jurista
outra concepção. Porque o objetivo maior da jurisdição foi alterado e as
mudanças sociais impõem o dever de uma jurisdição justa atenta à promoção dos
direitos.220
Que ela é uma função do Estado e mesmo monopólio estatal, já foi dito;
resta agora, a propósito, dizer que a jurisdição é, ao mesmo tempo,
poder, função e atividade. Como poder, é manifestação do poder estatal,
conceituando como capacidade de decidir imperativamente e impor
decisões. Como função, expressa o encargo que têm os órgãos estatais
de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a
realização do direito justo e através do processo. E como atividade ela é
o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo
a função que a lei lhe comete. O poder, a função e a atividade somente
transparecem legitimamente através do processo devidamente
221
estruturado (devido processo legal).
Se a jurisdição já foi exercida por outros atores como Reis e Religiosos,
verifica-se em nosso ordenamento jurídico, que tal função não se restringe ao
Poder Judiciário, embora este tenha o controle quase absoluto sobre a função.
Existem situações em que a Constituição Federal confere poder de
jurisdição ao Legislativo, exemplo, o art. 52 da Constituição Federal de 1988, que
prevê hipóteses de julgamento pelo Senado Federal do Presidente da República,
dos Ministros de Estado, Comandantes das Forças Armadas, em crimes de
responsabilidade.
Outro caso é a Lei da Arbitragem (Lei nº 9.303/96 – arts. 1º e 18) que
confere poderes a particulares para exercerem a jurisdição. Assim o objetivo da
atividade jurisdicional não se restringe à resolução de litígio, envolve também
relações jurídicas de natureza não litigiosa, como nos casos de tutela, curatela,
testamento, separação consensual, jurisdição denominada pela doutrina de
jurisdição voluntária.222
220
221
222
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. São Paulo:
Saraiva, 1980, 1 vol., p. 67.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada
Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 147.
LOPES, João Batista. Curso de Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2005,
passim.
109
A jurisdição assume novos horizontes para que possa cumprir sua
finalidade ou missão, por isso a definição clássica de jurisdição – mostrar ou
declarar a lei –, não atende mais a realidade social.
Deve a atividade jurisdicional ter em conta o seu conceito e a sua missão
no terceiro milênio; deve a atividade jurisdicional levar em conta que o
descumprimento de um programa social ou a ausência de lei
infraconstitucional que regulamente um direito constitucional são
lesões/ameaça ao direito material e que ela está apta a reparar a
lesão/ameaça em face ao princípio do acesso da justiça (art. 5º, inc.
223
XXXV da Constituição Federal de 1988).
Cabe ao jurista moderno aviar novas leituras e questionamentos em busca
de redefinir os sentidos de termos vazios de conteúdo e desintegrados da
concepção atual do papel da jurisdição.224
Na Sociologia do Direito estudos realizados pelo Observatório Permanente
da Justiça Portuguesa constatou que o modelo tradicional de Justiça não atende
mais à realidade e o sentido clássico da jurisdição precisa ser alterado além de
ampliar o seu exercício a outros atores da sociedade civil para a resolução dos
conflitos.225
5.2 Acesso ao Direito e à Justiça: Um Estudo em Curso
O acesso ao direito e à justiça é tema recorrente de juristas e cientistas
sociais brasileiros, principalmente, após a edição da Constituição Federal de
1988. Mas, antes de se tratar do acesso à justiça na ambiência constitucional,
considera-se importante tecer algumas notas sobre o termo justiça, bem como
sobre o histórico do acesso ao direito e à justiça, no contexto brasileiro.
223
224
225
PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. A Jurisdição como Elemento de Inclusão Social:
revitalizando as regras do jogo democrático. Barueri: Manole, 2002, p. 82.
Ibidem, p. 162: “A função do jurista moderno, inspirado numa filosofia crítica, com a
ampliação de sua epistemologia – o jurista moderno é ao mesmo tempo causa e resultado de
sua ciência -, é a de buscar no Direito, a re-construção social, a interação das classes sociais,
a promoção do bem estar comum”.
Conforme estudos realizados pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 19 jan. 2010.
110
Desde a idade antiga o conceito de justiça faz parte do pensamento da
maioria, para não dizer de todos os filósofos. Mesmo assim o tema ainda é objeto
de grandes discussões. Embora o termo justiça seja facilmente mencionado pelo
censo comum, sua aplicação no caso concreto não se traduz de forma simplista,
nossos julgadores e operadores do direito continuam a buscar leituras e
revisitações nas lições filosóficas.
Talvez seja um dos conceitos com a maior carga ideológica e motivo de
muitas construções teóricas, utopias e lições. A expressão justiça também inspira
músicas, peças teatrais, filmes e grandes obras artísticas e literárias.
Por isso, desnudar esse tema não constitui tarefa fácil; requer um olhar no
sentido epistemológico na busca de compreender seu significado e importância
na sociedade contemporânea.
Pela dimensão e profundidade do assunto pretende-se apenas lembrar
algumas posições filosóficas que será útil em todo trabalho, mas de forma
particular nesse capítulo que se trata do acesso ao direito e à justiça.
A noção de justiça, para Platão, está ligada ao poder, ou seja, ao interesse
e à utilidade. A concepção platônica de justiça tem conotação de força política,
atributo do mais forte.
E cada forma de governo cria leis para sua própria vantagem. A
democracia cria leis democráticas, a tirania cria leis tirânicas e assim por
diante no que concerne à outras formas. E declaram o que criam – aquilo
que é para sua própria vantagem – como o justo para seus súditos,
punindo qualquer um que o contrarie como transgressor da lei e injusto.
É isto, então, que digo ser a justiça, princípio idêntico em todos os
Estados, sempre a vantagem do governo estabelecido. Uma vez que o
governo estabelecido é seguramente mais forte, qualquer um que
raciocine corretamente concluirá que o justo é o mesmo em todo lugar, a
226
saber, a vantagem do mais forte.
Carlos Eduardo Meirelles Matheus em análise do pensamento desse
filósofo sobre a noção de justiça afirma que para Platão existe diferença entre o
226
PLATÃO. A República. Bauru: Edipro, 2006, p. 59.
111
ideal de justiça e a justiça real. Que o caráter individual da justiça retorna ao
debate através destes dois novos elementos: o interesse e a utilidade. Ambos se
apoiam sobre um elemento comum – a força.227
Acredito ser importante a concepção platônica de justiça porque tal
filósofo atribuiu ao conceito uma carga valorativa baseada no interesse e
utilidade. Se voltarmos para o dever do Estado de promover o acesso ao
direito e à justiça o conceito de justiça se relaciona diretamente com o papel do
Estado.
Mas aquilo que parece ser justo na lei nem sempre reflete o ideal de justiça
ou de algo verdadeiro porque a lei muitas vezes busca atingir determinado
interesse e com isso revela sua face utilitarista. Segundo Platão, o poder político
pode criar suas formas e moldar seu próprio conceito de justo e injusto tanto para
os súditos, quanto para criar privilégios para o Rei. O justo é aquilo que o mais
forte determina, assim, os súditos estão sujeito às normas pré-determinadas e o
(Rei) cria as leis segundo seus interesses.
Por outra vertente Rousseau, no contato social, teoriza sobre o poder e
afirma que a força consiste num poder físico, não moral e isso significa que a
palavra direito nada acresce à força:
O mais forte jamais é bastante forte para ser sempre o senhor se
não transformar sua força em direito e a obediência em dever.
Assim é constituído o direito do mais forte, direito tomado
ironicamente em aparência e realmente estabelecido em princípio,
Mas jamais a nós será explicada essa palavra? A força é um poder
físico: não vejo de modo algum, que moralidade pode resultar de
228
seus efeitos.
227
228
MATHEUS, Carlos Eduardo Meirelles. A Noção de Justiça em Platão. In: FABBRINI, Ricardo;
PISSARRA, Maria Constança Peres (orgs.). Direito e Filosofia: a noção de justiça na historia
da filosofia. São Paulo: Atlas, 2007, p. 132: O argumento de Trasímaco tem a evidencia e a
autoridade da observação e da evidência empírica: “[...] por todas as cidades em que alguém
exerce o poder, justo é sempre aquilo que convém ao mais forte”. E conclui ele: “[...] justo é o
que convém ao interesse do mais forte”. O caráter individual da justiça retorna ao debate
através destes dois novos elementos: o interesse e a utilidade. Ambos se apóiam sobre um
elemento comum – a força.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social: princípio do direito político. Tradução e
notas de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2000, p. 28-29.
112
Do ponto de vista de Rudolf Von Ihering a justiça deve estar ligada à ideia
de equidade e o direito deve ser uma força, mas, uma força viva que precisa ser
impulsionada pela luta. Defende que o direito é conquistado e não dado, o direito
exige um labor contínuo que envolve não apenas o poder do Estado, mas, de
toda a população.229
Na concepção de Ihering, justiça consiste no equilíbrio de forças, onde a
princípio, cabe ao juízo de equidade definir aquilo que é o justo.
Todavia o embate das teorias reside justamente nesse ponto: o que é
justo?
O positivista Kelsen em sua obra O que é Justiça?, ao indagar sobre o
conceito de justiça, concluiu que através de meios racionais não é possível definir
o que é justo ou injusto.
O conceito de justiça foi inspirado nas ideias messiânicas do Reino de
Deus que era o centro do ensinamento de Jesus. Esse reino divino seria de
perfeita harmonia e felicidade. Pensamento que influenciou muito a formação
teórica sobre a noção de justiça como algo perfeito. Valores que numa aplicação
prática do direito se traduz em grandes conflitos. Por certo definir o que é justo e
injusto coloca em xeque a racionalidade, através do reino da razão torna-se muito
difícil definir um comportamento como sendo justo.
Segundo Kelsen, a valoração de um comportamento justo jamais pode
excluir-se a possibilidade de considerar o juízo de valor contrário. Assim um
comportamento pode ser justo para A e injusto para B e vice-versa. É por isso que
a ideia de justiça deve ser relativizada.
229
IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. Tradução e notas de Edson Bin. Bauru:
Edipro, 2001, p. 25: “O direito não constitui um simples conceito – é uma força viva. Eis
a razão porque vemos a Justiça segurando numa mão a balança por meio da qual o
direito é pesado e na outra a espada por meio da qual o direito é defendido. A espada
sem a balança é força bruta, ao passo que a balança sem a espada é a impotência do
direito. Completam-se mutuamente e somente é possível que exista o autêntico estado
de direito se a Justiça souber brandir a espada tão destramente quanto sabe manusear
a balança”.
113
Eis o pensamento de Kelsen:
Se existe algo que a história do conhecimento nos pode ensinar é como
tem sido vãos os esforços para encontrar, por meios racionais, uma
norma absolutamente válida de comportamento justo, ou seja, uma
norma que exclua a possibilidade de também considerar o
comportamento contrario como justo. Se podemos aprender algo da
experiência espiritual do passado é o fato de que a razão humana só
consegue compreender valores relativos. Isso significa que o juízo, por
meio do qual é declarado como justo, nunca poderá ser emitido como a
reivindicação de excluir a possibilidade de um juízo de valor contrário.
230
Justiça absoluta é um ideal irracional.
Kelsen concluiu que na vida real é irracional considerar um comportamento
justo de forma absoluta. A racionalidade também não poderá ser extrema porque
a justiça pode ser relativizada.
Faz aqui uma ponte com o discurso do judiciário sobre a questão das cotas
raciais. O que é justo ou injusto aparece fortemente no discurso de julgadores.
Aquilo que é justo para um segmento não é justo para outro, mas, como medir os
limites do justo e do injusto no caso das cotas raciais?
Francis Bacon tem a concepção de justiça como algo verdadeiro que deve
emergir da essência humana e se elevar ao patamar de maior bem que se pode
conhecer, entre os mortais. Associa a noção de justiça a uma conduta franca que
possa conferir dignidade ao ser humano. O senso de justiça do indivíduo é
equiparado ao ouro enquanto que a falsidade é semelhante aos vis metais.231
Observa-se que há várias indagações sobre o conceito de justiça. Nesse
sentido
percebe-se
que
a
expressão
justiça
constitui-se
em
conceito
permanentemente em construção e na história da humanidade foi objeto de
230
231
KELSEN, Hans. O que é Justiça?: A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. 3.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 23.
BACON, Francis. Ensaios Sobre Moral e Política. Bauru: Edipro, 2001, p. 22-23: “Se
passamos agora da verdade filosófica ou teológica à verdade prática, ou melhor, à boa-fé e a
sinceridade nos assuntos do mundo, não podemos duvidar – e esta é uma máxima
incontestável mesmo para aqueles que pensam diferentemente – que uma conduta franca e
sempre correta é o que confere maior elevação e dignidade aos homens e que a falsidade no
intercâmbio da vida é semelhante aos metais vis que se ligam ao ouro, que embora o tornem
mais fácil de lavrar, reduzem seu valor”.
114
diversas lições, divergências cujo significado precisa ser reavaliado no contexto
político, jurídico e social.
Talvez um dos fatores primordiais para a construção do conceito de justiça
requer transcender o pensamento abstrato e alcançar a vida real do ser humano,
pois o conceito de justiça somente nas belas lições e nas letras em nada protege
a dignidade humana.
Retornando ao assunto do acesso ao direito, sabe-se que os precursores
no estudo foram Mauro Cappelletti e Brian Garth. Na década de setenta (ano
1978) desenvolveram um protejo investigatório voltado para esse tema. Como
proposta de investigação problematizou o estudo em duas perspectivas
temáticas: a primeira seria analisar o acesso ao direito e à justiça no sentido de
igualdade da acessibilidade ao sistema judicial; e na segunda seria o acesso ao
direito e à justiça analisado como garantia de efetividade dos direitos
fundamentais. O estudo foi considerado inovador e contribuiu muito para envolver
outros pesquisadores no estudo do tema.
Cappelleti e Garth associaram o acesso ao direito e à justiça à efetividade dos
instrumentos judiciais e desenvolveram uma visão da justiça voltada para realizar os
direitos fundamentais. Ou seja, ao passo que o cidadão tivesse acesso aos mecanismos
judiciais, esses teriam maior garantia de concretização de seus direitos.232
O sociólogo jurídico Boaventura de Sousa Santos, atualmente, desenvolve
investigação sobre o acesso ao direito e à justiça em Portugal e outros países.
Relativamente recebeu influência dos estudos realizados por Cappelleti e Garth.
Porém nos estudos de Boaventura a proposta é discutir o acesso ao direito e à
justiça a partir do monitoramento permanente das atividades que envolvem o
sistema de direito e da justiça. O estudo tem natureza sociológica jurídica e o
objetivo é compreender os obstáculos do sistema.233
232
233
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Garcie Northfleet. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988, p. 45.
SANTOS, Boaventura de Sousa; PEDROSO, João. O Acesso ao Direito e à Justiça: um
direito fundamental em questão. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev.
2010.
115
Em Portugal, por volta do ano de 1996, houve a criação de um sistema
investigatório para melhor conhecer os problemas atinentes ao acesso do direito e
à justiça, o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (OPJ). O objetivo
desse núcleo de pesquisa consiste em, não apenas, conhecer os obstáculos da
justiça em relação à aplicação da lei, mas conhecer o contexto anterior à
produção da lei. E com isso despertar o Estado para a relevância de problemas
estruturais no campo do acesso ao direito e à justiça.
Muitos dos estudos do OPJ identificaram, ora de forma genérica ou
específica, que existe relação profunda entre o acesso ao direito e à justiça como
o modelo de sociedade e Estado. Que os obstáculos sobre o acesso ao direito e à
justiça, principalmente do segmento populacional mais pobre, relaciona-se com a
falta de acesso à própria cidadania. Isso quer dizer que a falta de acesso em
condições de igualdade para conhecimento dos direitos se coloca como um dos
maiores entraves para se ter acesso ao direito e à justiça. Sendo assim o acesso
ao direito e à justiça estão para além do acesso aos tribunais e demais órgãos de
aplicação da justiça.
Segundo o OPJ o acesso ao direito e à justiça é um direito fundamental e
precisa ser concebido dentro de um contexto social, político, jurídico e cultural. Por
isso acredita-se que o acesso ao direito e à justiça está vinculado aos objetivos
fundamentais de um Estado e a forma de organização da sociedade.
O funcionamento ou não do Estado e da sociedade influencia na
construção das estruturas básicas no sentido de garantir a cidadania plena e
possibilitar o acesso ao sistema de direito e de justiça.234
Questões de ordem culturais e sociais são componentes a serem
considerados como entraves ao acesso ao direito e à justiça e não apenas
àquelas de ordem econômica, que normalmente faz parte do discurso políticojurídico. Explicando melhor, uma pessoa pode deixar de buscar o direito e a
justiça por sentir-se fora dessa participação, devido à negação histórica de
234
Idem. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev. 2010.
116
direitos, aniquilação cultural, exclusão do contexto da cidadania. Por outro lado
poderá perceber o direito e o a justiça apenas como algo aparentemente dado
pelos governos ou atribuído a que tem poderes econômicos, sociais ou políticos.
Para o OPJ o acesso aos direitos de cidadania constitui-se em pressuposto
fundamental para que as pessoas tenham acesso ao direito e à justiça. Isso
porque a cidadania implica na garantia a todas as pessoas, principalmente
aquelas desprovidas de recursos, do acesso não apenas aos mecanismos
judiciais, mas, em primeiro plano, de possibilitar o acesso ao conhecimento dos
direitos. Ponto de relevo entre a perspectiva de Cappelletti e Garth sobre o
acesso ao direito e à justiça e a nova visão, ampliada pelo OPJ.
Enquanto Cappelletti e Garth, à época, inovaram estabelecendo dois eixos
no estudo sobre o acesso ao direito e à justiça: a) o acesso ao direito e à justiça
no sentido de igualdade à acessibilidade ao sistema judicial; e b) o acesso ao
direito e à justiça como garantia de efetividade dos direitos fundamentais.
Nota-se que o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa ampliou o
conceito de acesso ao direito e à justiça e aponta que o modelo tradicional de justiça
não atende mais a realidade social. Que o monopólio do Judiciário na resolução dos
conflitos talvez não constitua a melhor forma de permitir às pessoas o acesso ao direito
e à justiça. Somente com a ação do Estado no sentido de promover a cidadania estará
se garantindo o acesso ao direito e, consequentemente, o envolvimento e participação
da sociedade para se ter um sistema de justiça mais equilibrado.
O nosso estudo parte da hipótese geral que o acesso ao direito depende
do funcionamento da sociedade e do Estado. Assim, garantir o acesso
ao direito é assegurar que os cidadãos, em especial os socialmente mais
vulneráveis, conhecerem os seus direitos, não se resignam face à sua
lesão e têm condições para vencer os custos de oportunidades e as
235
barreiras econômicas, sociais e culturais a esse acesso.
Essa constatação do Observatório se torna de relevância social e política
porque revela que o acesso ao conhecimento dos direitos exige do Estado a
235
Idem. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev. 2010.
117
criação de políticas públicas com qualidade em diversas áreas, categoricamente
na área da educação. Caso contrário não terá significado garantir o acesso aos
mecanismos da justiça ou editar uma infinidade de direitos e garantias sem que
as pessoas tenham noção seja da violação ou omissão desses direitos por parte
de outros, ou do próprio Estado.
5.3
Destaques Sobre o Acesso ao Direito e à Justiça em Outros
Contextos
No contexto da União Europeia discute-se muito sobre a necessidade de
reformas nos sistemas judiciais. São frequentes recomendações da Comissão
Europeia para a Eficiência da Justiça (EPEJ) no sentido de orientar os países
para garantir, de forma plena, o acesso ao direito e à justiça.236
Na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia consta o direito ao
acesso à justiça de forma equitativa e efetiva no art. 47:
Art. 47: Toda pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito
da União tenham sido violados tem direito a uma acção perante um
tribunal nos termos previstos no presente artigo.
Toda pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma
equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal
independente e imparcial, previamente estabelecido por lei.
Toda pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e
237
representar em juízo.
Para que a justiça consiga cumprir o seu papel, de forma eficiente, é
necessária uma nova cultura jurídica, não apenas pensar no melhoramento da
qualidade dos processos cíveis ou na eleição de procedimentos menos
burocratizados, implica mudanças em diversos aspectos organizacionais, no
método de trabalho e na formação e gestão dos recursos humanos.238
236
237
238
Idem. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev. 2010.
RAMOS, 2009., p. 252.
SANTOS, Boaventura de Sousa; PEDROSO, João. O Acesso ao Direito e à Justiça: um
direito fundamental em questão. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev.
2010.
118
Existem diferentes formas de conceber o acesso ao direito e à justiça em
outros países. Percebe-se que desde a Declaração Universal dos Direitos
Humanos o acesso ao direito e à justiça tem sido contemplado nos principais
documentos e Constituições de Estados Democráticos.
De acordo com o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa a França
está entre os países que oferecem aos cidadãos os melhores serviços de acesso
ao direito e à justiça. Nesse país a resolução de conflitos não se concentra aos
órgãos judiciais, englobam outras organizações extrajudiciais que atuam e auxiliam,
de forma integrada ao sistema judicial, na resolução dos conflitos.
A França, entre os países analisados, apresenta o modelo mais
complexo e mais completo. Este modelo foi alvo de reformas intercalares
em 1972, 1991 e 1998. A nova Lei de 1998 de acesso ao direito e à
justiça vem aprofundar o caminho seguido pela lei de 1991,
nomeadamente na consideração de uma visão plural do acesso ao
direito e à justiça e de um sistema integrado de resolução de litígios de
que os tribunais são partes do todo. As estruturas deste modelo de
acesso, para além das estruturas judiciais e das formas de resolução
extrajudicial de conflitos, assegurados pela conciliação, arbitragem e
mediação, são os Conselhos Departamentais de Acesso ao Direito
(CDAC), as Casa de Justiça e de Direito (CJD) e os Pontos de Acesso
239
ao Direito (PAD).
Na Inglaterra e no País de Gales o acesso ao direito e à justiça está
descrito como assistência judiciária, consultas jurídicas, redação de documentos e
outros. A assistência judiciária gratuita é concedida de acordo com a situação
econômica da família.
A Espanha também dispõe de serviços de natureza similar, porém, há um
diferencial em relação à assistência judiciária, taxas judiciais não são cobradas. Outro
ponto de destaque surgiu com a reforma da lei em 1996, para que o cidadão recebesse
assistência judiciária gratuita, a lei passou a exigir dois critérios: O critério objetivo
definido pela condição da renda e o apoio subjetivo sujeito à avaliação de cada caso.
Já a Holanda conta com cerca de cinquenta gabinetes para assistir
juridicamente os cidadãos. Um ponto de relevo é que lá para conceder o apoio
239
Idem. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev. 2010.
119
jurídico é preciso de maior probabilidade de resolução do conflito, ou seja, dados
reais que vislumbrem a procedência da ação; além, da pessoa assistida participar
com algum valor, em contrapartida.
O sistema da Alemanha traz algumas inovações; a Lei de (1994) dispõe
sobre o sistema de acesso ao direito e à justiça e cada Estado Federado cria a
sua estrutura de apoio. Talvez o mais inovador nesse sistema se refira ao acesso
gratuito das pessoas públicas ou privadas. Evidente que se submeterão a prérequisitos de ordem financeira e hipóteses reais de procedência do litígio. Outro
aspecto a considerar é a não distinção de nacionalidade para a concessão do
apoio.
O apoio judiciário é disponibilizado para todas as pessoas, públicas ou
privadas, que satisfaçam certas condições em matéria de recursos e de
seriedade do pedido, sem nenhuma limitação em razão da
240
nacionalidade.
A legislação em vigor de apoio judiciário tem em vista proteger não
apenas os mais carenciados economicamente, mas também quem se
encontra em situação de desigualdade no recurso aos tribunais por
241
circunstância ocasionais.
Em Portugal, o sistema de acesso ao direito e à justiça está previsto no art.
20 da Constituição da República Portuguesa:
Art. 20: [...]
1 – A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa
dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a
justiça ser denegada por insuficiência de meios econômicos.
2 – Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta
jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado
242
perante qualquer tribunal.
Também o sistema de acesso à justiça em Portugal vem modificando de
forma considerável com os estudos realizados e propostas de soluções sugeridas
240
241
242
Idem. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev. 2010.
Idem. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev. 2010.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República
Portuguesa: lei do tribunal constitucional. 8. ed. rev. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 1920.
120
pelo OPJ, diga-se de passagem, que muitos estudos sobre o sistema parte da
solicitação do próprio Estado português.243
5.4 O Acesso ao Direito e à Justiça na Perspectiva da Constituição de 1988
O acesso ao direito e à justiça está definido na Constituição Federal nos
termos seguintes: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito” (art. 5º, inc. XXXV). A partir desse artigo presume-se que a
Constituição garante o acesso ao direito e à justiça, a tutela jurisdicional e
processual.244
Creio ser importante trazer à discussão algumas questões sobre a
introdução do estudo do acesso ao direito e à justiça no contexto brasileiro.
Fizemos comentários sobre a origem do estudo sobre o acesso ao direito e à
justiça na contemporaneidade. Porém, é importante delimitar, de forma mais
precisa, a introdução do estudo na ciência jurídica e social no Brasil.
Defende-se que o estudo sobre o acesso ao direito e à justiça tem certa
vinculação com a trajetória da Sociologia do Direito na história brasileira. Porque
investigações mais profundas sobre as instituições jurídicas somente começaram
a ocorrer por volta da década de oitenta.245
243
244
245
SANTOS, Boaventura de Sousa; PEDROSO, João. O Acesso ao Direito e à Justiça: um
direito fundamental em questão. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev.
2010.
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os Elementos Objetivos da Demanda Examinados
à Luz do Contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 13.
JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo. Rio de Janeiro:
Estudos Históricos, 1996, p. 01-15: “Apesar da investigação sobre processos decisórios
formais e informais coordenada por Felippe Augusto de Miranda Rosa na década de 70, não
se pode falar de uma produção sistemática na área direito e sociedade, ou seja, de uma linha
de investigação sobre temas e instituições jurídicas, antes dos anos 80. Localizada não na
área das ciências sociais, mas sim entre bacharéis de direito sociologicamente orientados, a
sociologia do direito no Brasil surge, coincidentemente ou não, com as primeiras pesquisas
sobre acesso à Justiça. Resenhar as investigações que têm sido produzidas sobre acesso à
Justiça tema cuja amplitude permite incluir toda e qualquer investigação sobre o Poder
Judiciário e sobre formas alternativas de resolução de conflitos – é, portanto, (re)escrever, a
partir de um novo recorte, a trajetória da sociologia do direito brasileira e a sua vinculação a
discussões político-jurídicas presentes na história recente do Brasil”.
121
De fato, a Sociologia do Direito representa importante instrumento que permite
análise mais profunda da realidade. Em se tratando de aspectos voltados para questões
ligadas ao estudo somente do ponto de vista jurídico seria ineficaz para compreender os
reais problemas no sistema de acesso ao direito e à justiça. Adriana Loche acresce:
A Sociologia do Direito tem mais o sentido técnico de reflexão sobre as
interações, recorrências, contradições e ambigüidades existentes entre o
sistema formal de justiça e as práticas e concepções sociais a respeito
da justiça, do Estado e do direito. Em outros termos, ela se preocupa
com as ambigüidades existentes entre lei e ordem, entre regra formal e
práticas informais, entre Estado e sociedade, entre direito positivo e
direitos sociais, enfim entre legalidade e legitimidade. A idéia básica, que
funda a reflexão sociológica na área do Direito, é que a relação entre
sociedade e o direito não é uma relação puramente mecânica, mas
marcada por profundas descontinuidades. Isso significa dizer que, em
certas circunstâncias históricas, o Direito pode ser entendido como
246
transformador ou conservador dos valores e da ética sociais.
Atualmente o diagnóstico sociológico tem sido defendido como um dos
principais instrumentos de investigadores nas áreas das ciências sociais e
jurídica. O estudo da problemática da justiça no campo da sociologia do direito
consegue transpor o positivismo, questionar e propor novas ideias sobre os
institutos jurídicos. Ou seja, os estudos sociológicos rompem com o discurso da
dogmática jurídica e alcança os problemas reais do sistema.247
Sobre a importância da Sociologia do Direito no estudo de temas jurídicos,
pensadores como Durkheim, Marx e Weber são os pioneiros na visão mais crítica
do direito, isso os tornam fundadores da Sociologia do Direito.
[...] a Sociologia do Direito é uma reflexão da sobre o direito, que pode e
deve ser feita também por juristas, mas a partir de outro prisma, mais
amplo que o mero direito positivo. Portanto, não é um pensamento
qualquer de juristas sobre a sociedade; deveria ser um pensamento dos
juristas e dos sociólogos a respeito de um objeto específico que é o
248
fenômeno jurídico na sociedade.
Retomando a trajetória do estudo do acesso ao direito e à justiça no Brasil
existe entendimento que o motivo inicial do tema não tinha relação com inclusão
246
247
248
LOCHE, Adriana. Sociologia Jurídica. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 47-48.
MASCARO, Alysson Leandro. Lições de Sociologia do Direito. 2. ed. São Paulo: Quartier
Latin, 2007, p. 23.
Ibidem, p. 22.
122
de minorias, como ocorreu nos países contemplados no projeto de Mauro
Capelletti e Bryant Garth.
O estudo teria iniciado aqui por uma questão de ordem ideológica do
ordenamento jurídico brasileiro quando o pensamento sobre o direito e justiça era
liberalista e individualista.
No período da ditadura militar grande maioria da população não tinha
acesso ao sistema de direito e justiça, o debate no sentido de garantir o acesso
às minorias ficou veemente com acirramento das desigualdades em relação a
determinados segmentos.249
Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 houve
positivação de um sistema de direitos que priorizava a promoção da justiça social
e a ineficácia do Poder Executivo em implantar políticas públicas de acesso à
saúde, educação, trabalho e moradia o que intensificou a discussão sobre o
acesso ao direito no meio jurídico e social.
O acesso ao direito e à justiça está previsto na Constituição Federal de
1988, art. 5º, inc. XXXV, cuja redação: a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direitos.
Desse artigo extrai-se o princípio intitulado de inafastabilidade do
controle jurisdicional ou princípio da proteção judiciária, o que consiste no
fundamento do acesso ao direito e à justiça no Direito brasileiro e significa
também, o princípio de garantia de direito de ação, do processo, do princípio
do juiz natural e outros.
Pode-se dizer que o princípio da inafastabilidade tem como finalidade o
controle jurisdicional por parte do Estado e tem sentido porque o ordenamento
jurídico brasileiro não admite a vingança privada. Isso quer dizer que o acesso à
justiça deve ser de forma ampla e efetiva, acesso tanto aos Tribunais e Órgãos
249
JUNQUEIRA, 1996, p. 144.
123
auxiliares da justiça como Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança
Pública e outros.
O acesso à justiça significa ter acesso a uma ordem justa, em termos
processuais garantir uma ordem jurídica justa impõe ao Estado o dever de
garantir, não apenas, o direito no texto da lei, mas, dispor de instrumentos e
técnicas processuais adequadas à sua realização do direito.250
5.5 Direito ao Prazo Razoável do Processo
Outra matéria em estudo na área processual e que está diretamente ligada
ao tema de nossa dissertação é a duração do processo, do direito à razoável
duração processual. Esse direito é considerado primordial na efetividade do
acesso ao direito e à justiça. Também um dos temas que aparece
constantemente em trabalhos na área jurídica no Brasil e em outros países.
O direito processual espanhol é considerado um dos mais modernos
devido a sua efetividade na solução dos conflitos. Apesar disso não traz expresso
no texto constitucional o chamado direito ao prazo processual, mas faz menção
na Constituição sobre o direito de todos terem o seu caso resolvido dentro de um
prazo razoável.
Já o direito processual italiano por ser o berço das primeiras normas de
direito processual ainda contém em suas normas muito do formalismo da era
clássica. Mas existe esforço no sentido de evoluir na efetividade do processo
inclusive em respeito à duração dos mesmos.251
No sistema português, o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa,
em quase todos os estudos realizados, discute a morosidade da justiça e a
250
251
2002, passim.
ANDOLINA, Ítalo. II Modelo Constitucionale del Processo Civile. Roma: Gênesis, 1997, p.
153-154.
124
duração dos processos. A Constituição Portuguesa também traz norma sobre o
assunto.252
Quanto ao sistema jurídico brasileiro a questão da duração do processo
sempre foi assunto de muita discussão entre juristas e nos tribunais.
Principalmente após edição da Emenda Constitucional nº 45 que acresce no art.
5º, inc. LXXVIII, da Constituição Federal de 1988, o direito ao prazo razoável do
processo conforme enunciado: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são
assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantem a
celeridade de sua tramitação”.253
Normalmente a maioria dos sistemas processuais democráticos o direito ao
prazo razoável do processo é considerado direito fundamental. O fato de garantir
na Constituição o acesso ao direito e à justiça implica que o prazo razoável
engloba o conjunto.254
Mas a questão maior sobre o direito ao prazo razoável do processo reside
no aspecto conceitual. O que seria a duração razoável do processo?
No Direito português há quem defenda o direito ao prazo razoável do
processo como sendo direito subjetivo, individual, universal e permanente, cuja
finalidade consiste em resguardar a dignidade humana.
[...] o direito à decisão em prazo razoável exprime uma posição jurídica
universal e permanente, pois é atribuído pela Constituição a todas as
pessoas, em razão da sua condição humana (não é privilégio de um
252
253
254
Conforme estudos realizados pelo OPJ . Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em:
12 jan. 2010.
HERTEL, Daniel Roberto. Aspectos Processuais da Emenda Constitucional nº 45. In: Revista
Brasileira de Direito Público – RBDP, ano 04, nº 13, p. 167-185. Belo Horizonte: Fórum,
Belo Horizonte, 2006: “Uma das mais relevantes alterações da Emenda nº 45 refere-se à
inserção no art. 5º do texto constitucional de um inciso, o LXXVIII, contemplando o princípio
da razoável duração dos processos. O citado preceptivo reza o seguinte: a todos, no âmbito
judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantem a celeridade de sua tramitação”.
LEAL, Fábio Resende. A Celeridade Processual como Pressuposto da Efetividade dos
Direitos Fundamentais. Dissertação de Mestrado apresentada à Instituição Toledo de
Ensino – Centro de Pós-Graduação. Bauru, 2009, p. 373.
125
grupo restrito de pessoas), e sem limites de temporais (designadamente,
255
de idade do titular).
O direito à decisão em prazo razoável deve também ser qualificado
como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias.
Efectivamente, esse direito reconduz-se à ideia de dignidade humana,
em face de sua estreita ligação ao direito à tutela jurisdicional efectiva e
à proteção jurídica, e o nº 04, do art. 20 da Constituição tutela-o
plenamente, dispensando uma intervenção concretizada, por parte do
256
legislador ordinário.
Não existe uma fórmula mágica para aperfeiçoar a justiça e torná-la mais
rápida senão analisar os fatores que contribuem para a morosidade, celeridade e
ineficiência da justiça. Há um mito na fórmula mágica dos procedimentos para a
redução dos prazos, como forma de fazer justiça rápida, sem analisar o conjunto
de fatores o que compromete a qualidade da justiça.257
5.6 Direito de Ação como Instrumento de Acesso à Justiça
Esse tópico complementa os itens anteriores porque decorre do mesmo
artigo que garante o direito à justiça (art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal
de 1988) e porque o direito de ação compõe o sistema de acesso ao direito e à
justiça.258
Entretanto compreender o direito de ação nos exige voltar à história em
busca de saber a origem e fundamentos desse instituto, na ordem jurídica.
Sabe-se que o direito de ação teve origem no Direito romano, onde tal
instituto tinha por finalidade garantir o acesso à jurisdição em busca de solução
dos conflitos jurídicos de natureza subjetiva (individuais) na área do direito
255
256
257
258
PINTO, Ana Luísa. A Celeridade no Processo Penal: o Direito à decisão em prazo razoável.
Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 55.
Ibidem, p. 56.
SANTOS, Boaventura de Sousa; PEDROSO, João. O Acesso ao Direito e à Justiça: um
direito fundamental em questão. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev.
2010.
BEDAQUE, 2002, p. 13.
126
privado, como, por exemplo, defender o direito de propriedade, direitos do credor
e de sucessão.259
No período romano havia instrumentos processuais como as actiones e os
interdicta. Os interditos eram utilizados para proteger situações diversas e a
actione era o instrumento do qual o cidadão se valia para proteger seus bens.
Também existiam diversas modalidades de actiones: a actio privada,
conforme descrito, era outorgada a pessoas particulares para defenderem direitos
subjetivos e actio populares que podia ser proposta por qualquer pessoa, na
defesa de interesses públicos.260
Moacyr Amaral Santos relata que a ação no Direito romano era o direito de
pedir em juízo o que nos é devido. A ação era um direito na concepção romana e
não um simples instrumento processual, mas, com a evolução do direito surgiu
dúvidas quanto à natureza jurídica da ação.261
Séculos após sua formulação, reajustados os povos à cultura jurídica
romana, voltaria esse conceito a ser matéria de especiais
preocupações. Reproduzindo no original, ou com acrescentamentos –
quod sibi debeatur aut nostrun est – o conceito romano suscitava
indagações sobre a natureza do ius actionis; a que se entregaram os
juristas dominados pela idéia de que a ação, como o processo, eram
simples capítulos do direito privado, ou mais declaradamente, do direito
262
civil.
A controvérsia sobre a natureza jurídica da ação resultou em diversas
teorias no campo do direito civil. Para melhor situar tais divergências faremos
breve comentários sobre algumas teorias.
A teoria civilista ou clássica, que teve como principal defensor Savigny,
defendia a ação como direito subjetivo material, ou seja, um instrumento apto à
defesa contra ameaça ou violação. O pensamento desse civilista era que a ação
259
260
261
262
JUSTO, 2008, p. 233-238.
Ibidem, p. 237.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. São Paulo:
Saraiva, 1980, 1 vol., p. 149.
Ibidem, 1 vol., mesma página.
127
tinha finalidade contratualista na ótica do direito privado, aspecto que contribuiu
para pensar a ação apenas numa visão privada.263
Na Alemanha surgiu a Teoria de Windscheid e Muther sobre actio romana.
Esses juristas evoluíram no discurso sobre a natureza jurídica da ação e
afirmaram que a ação consistia no direito do ofendido de pedir proteção do
Estado, o direito de ação é um direito contra o Estado para invocar a sua tutela
jurisdicional. Teoria que foi relevante e alcançou o direito contemporâneo porque
fez a distinção entre direito subjetivo e o direito de ação, assim o direito de ação
atingiu o campo do direito subjetivo público.
Também foi formulada a Teoria do Direito Concreto à Tutela, seu
idealizador foi Adolpho Wach, jurista de relevo na formação da teoria processual
contemporânea porque destacou que a ação deve ser concebida como direito
autônomo que se propõe contra o Estado.
Já a teoria elaborada pelo italiano Chiovenda – Teoria da Ação como
Direito Potestativo – seguiu o pensamento de Wach e revelou que a ação podia
ser considerada um direito autônomo, mas não dirigida contra o Estado e sim
contra o adversário.
Enquanto que a Teoria da Ação no Sentido Abstrato surgiu também na
Alemanha proclamada pelo jurista Degenkolb e na mesma ocasião, surgiu na
Hungria, no discurso de Plosz. A teoria Degenkolb defendia que o direito de ação
independe da existência efetiva do direito invocado. Por isso essa teoria contesta
as demais teorias sobre a natureza jurídica da ação porque não basta fazer a
distinção da ação do direito material a ser exigido.264
Além dessas teorias existiram outras, porém, nosso objetivo aqui era tão
somente trazer à discussão a origem e os conflitos teóricos sobre a ação, bem
como mostrar os impactos que tais teorias ainda causam em nossos dias porque
263
264
Ibidem, 1 vol., p. 150: “O que caracteriza essa teoria, não obstante as variantes imprimidas
por seus adeptos, é a ação se prende indissoluvelmente ao direito que ela se tutela”.
Ibidem, 1 vol., p. 151-152.
128
todas acabaram por influenciar a Teoria Geral do Direito, principalmente, no
processo civil.
Na atualidade, a concepção sobre o direito de ação ganhou outra dimensão
porque está assegurada como um direito fundamental e inserida no rol das
garantias constitucionais do direito ao acesso à justiça:
[...] pode-se dizer que a garantia de acesso ao Poder Judiciário, direito
constitucional de ação ou regra da inafastabilidade, representa a
possibilidade, conferida a todos, de provocar a atividade jurisdicional do
Estado e instaurar o devido processo constitucional, como as garantias a
ele inerentes, como contraditório, ampla defesa, juiz natural, motivação
265
das decisões, publicidade dos atos, etc.
Para Marinoni a finalidade do direito de ação recebeu outro sentido
diferente do direito clássico (visão do direito material apartado do processo),
entretanto ainda resiste reflexos de tal pensamento na forma de aplicar os direitos
materiais.266
Somente com a Constituição de 1946 foi consignada norma de proteção ao
direito à jurisdição e com isso positivou o direito de ação. A norma referia: “a lei
não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito
individual”, vê-se que o direito de ação conduzia a garantia de direito individual e
sequer fazia referência ao direito coletivo ou social.
Já, a Constituição de 1988 acrescentou nova visão ao dispor no art. 5º, inc.
XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça
a direito”, enunciado considerado inovador em relação à visão anterior sobre ação
porque abriu espaço para proteção, não apenas do direito lesado, mas, da
ameaça de lesão. Além de retirar do texto a palavra direito individual de forma que
265
266
BEDAQUE, 2002, p. 14.
MARINONI, Luiz Guilherme. Direito Fundamental de Ação. Disponível em:
<http://www.marinoni.com.br>. Acesso em: 22 jan. 2010: “Na época do Estado Liberal, o
direito de ação, quando finalmente visto de forma dissociada do direito material, foi concebido
como direito de pedir à Jurisdição a realização do direito material que fora negado pelo
obrigado [...]. O direito de ação, em outras palavras tinha sentido como garantia da proteção
da liberdade, da propriedade e, ainda, da manutenção do funcionamento dos mecanismos de
mercado, através da outorga do equivalente em dinheiro ao credor que não tivera o seu
direito de crédito adimplido”.
129
assegurou a apreciação pelo Poder Judiciário não só dos direitos individuais,
como também dos direitos difusos e coletivos.267
Mesmo assim ainda é possível perceber a influência do pensamento
clássico no direito processual civil brasileiro; o direito de ação, numa visão
autônoma, distanciava o objeto da ação do mecanismo de realização e não tinha
como prever uma tutela específica, por exemplo, para a defesa de interesse não
patrimonial:
Nesta época, como é óbvio, sequer se podia cogitar a respeito de
dificuldades econômicas para o exercício da ação. Da mesma forma, não
havia como admitir tutela específica do direito material e, por
conseqüência, vislumbrar a necessidade de técnicas processuais
idôneas às diferentes situações substanciais carentes de tutela
jurisdicional. Na verdade, as tutelas jurisdicionais típicas desta época, no
plano civil, eram a declaratória e a ressarcitória pelo equivalente ao valor
268
do dano ou da prestação não cumprida.
É preciso construir nova concepção sobre a ação; hoje, a ação constitui um
direito fundamental e o Legislador constitucional facultou a edição de outras
modalidades de tutela, que consiga efetivar direitos de valores de outra natureza
com os direitos coletivos e difusos.269
5.7 O Acesso ao Direito e à Justiça da População Negra
Após discorrer sobre o conceito de acesso ao direito e à justiça e demais
temas correlatos pensa-se que este trabalho ficaria inócuo se não abordasse de
forma mais específica a questão do acesso à justiça da população negra, na
realidade brasileira; segmento considerado minoria no acesso aos direito e que
não desfruta de igualdades de oportunidades.270
267
268
269
270
Idem. Disponível em: <http://www.marinoni.com.br>. Acesso em: 22 jan. 2010.
Idem. Disponível em: <http://www.marinoni.com.br>. Acesso em: 22 jan. 2010.
BEDAQUE, 2002, p. 24.
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. Tradução de
Jussara Simões. Revisão Técnica e da Tradução de Cícero Araújo e Luiz Moreira. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p. 543-607.
130
Sabe-se que poucos estudos são realizados na ciência jurídica sobre o
acesso ao direito e à justiça da população negra, principalmente na área cível.
Existem alguns estudos no campo da sociologia que discute o acesso
desse grupo social em relação ao sistema penal (quando figuram como réus nos
processos penais) e outros estudos sobre a aplicação da lei de crimes raciais
(quando figuram como vítimas de crimes raciais), ou seja, analisa se a Lei nº
7.716/89 é efetiva quando a população negra busca a jurisdição.
Na década de noventa, estudos revelaram que o próprio sistema de justiça
parecia selecionar o público para fazer valer a legislação penal porque a cor da
pele dos réus mostrava tendência a um racismo institucional, o racismo de
marca,271 no tratamento processual e na forma de aplicação das garantias
constitucionais.272
Os negros, muitas vezes, eram condenados com maior frequência que os
réus brancos, mas em relação às garantias constitucionais como ampla defesa e
a assistência jurídica, isso não acontecia com mesmo vigor, conforme na
condenação de seus atos.
Além do que, os réus negros serem defendidos, em grande parte, pela
Defensoria gratuita que, em muitos casos, trabalhavam em condições deficitárias
e não desempenhava uma defesa técnica apropriada ao caso.273
Estudos recentes mostram que essa situação pouco mudou, pois continua
a denuncia da falta de acesso da população negra quando figura como vítima e a
aplicação rigorosa da lei ou a falta de acesso à defesa técnica, quando são réus
em processos.
271
272
273
GUIMARÃES, Antônio Sérgio. Como Trabalhar com “Raça” em Sociologia. In: Revista USP –
Educação e Pesquisa, vol. 29, nº 01, p. 93-107. São Paulo, jan./jun. 2003.
ADORNO, Sérgio. Violência Urbana, Justiça Criminal e Organização Social do Crime. In:
Revista Critica de Ciências Sociais, nº 23, p. 34-39. São Paulo, out. 1991.
LOCHE, 1999, p. 147-149: “A discriminação racial não está expressa apenas nas sentenças,
mas marca toda a passagem desses réus pelo sistema judicial, principalmente no acesso às
garantias constitucionais de ampla defesa: a apresentação de testemunhas e o
acompanhamento de um advogado”.
131
Numa dissertação de mestrado feita no Rio Grande do Sul foram
analisados 531 casos sobre conflitos raciais onde ficou acentuado que a
Legislação que coíbe crimes raciais não tem efetividade e o Poder Judiciário
ainda tem muito problema no momento de decidir um caso envolvendo a questão
racial:
A esfera jurídica é palco de um conflito mais amplo, uma vez que o
Poder Judiciário tende a desracializar os casos, utilizando o manto da
universalidade, da aplicação dos textos jurídicos, fazendo operar uma
violência simbólica. Fazendo com que se ignore o que há de arbitrário
nas decisões judiciais. Operando um processo de desrealização dos
274
casos.
Nesse sentido, Ivair Augusto Alves dos Santos na sua tese de doutorado
sobre direitos humanos e práticas de racismo que apresentou em 2009 à
Universidade de Brasília afirma que existe ausência crônica de dados para
estudos sobre o acesso ao direito e à justiça em relação à população negra:
Marcelo Paixão (2008: 169) afirmava que ‘um dos grandes problemas
para o estudo da atuação do sistema jurídico brasileiro é a crônica
ausência de bases de informações sobre jurisprudência’ ante os casos
de racismo. Na verdade, repetia o que Bertulio (1989: 21) dizia há vinte
anos: Na coleta de dados feita nos Tribunais de Justiça e Fórum Criminal
de diversas Comarcas (Rio de janeiro, Florianópolis, São Paulo e
Cuiabá), a ausência da informação e ausência de ações com base no
ato de discriminar racialmente um indivíduo ficou evidenciada, além da
observação da população trabalhadora desses locais. Esta tese tem
como um dos objetivos analisar sentenças produzidas pelo judiciário
brasileiro nas situações de discriminação racial. Durante o ano de 2007,
foi solicitado aos tribunais de justiça do país que nos fornecessem cópias
de sentenças proferidas nos últimos cinco anos. Foram obtidos 271
documentos de 18 estados, entre eles alguns relatórios da quantidade de
275
ações penais em andamento ou já tramitadas.
O discurso sobre a inexistência de estudos sobre o acesso ao direito e à
justiça da população negra é frequente em teses, dissertações e núcleos de
investigações ligados à área da sociologia:
274
275
SILVA, Luciane Soares da. O Cotidiano das Relações Raciais: o processo de
criminalização dos atos decorrentes de preconceito de raça e cor no Rio Grande do Sul
(1998-2001). Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2003, p. 129.
SANTOS, Ivair Augusto Alves dos. Direitos Humanos e as Práticas de Racismo: o que
faremos com os brancos racistas? Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de
Sociologia da Universidade de Brasília – UnB. Brasília, 2009, p. 514.
132
Se a percepção social sobre os negros propagada a partir das doutrinas
evolucionistas darwinistas, estabeleceu uma hierarquia entre as raças, e
essa hierarquia parece ter se tornado bastante visível na distribuição dos
diversos capitais na sociedade brasileira, os insultos registrados e o
processo de criminalização decorrente desse registro, buscam perpetuar
tais distâncias. Como já afirmaram Hasenbalg (1985) faltam estudos
microssociais que dêem da forma os mecanismos discriminatórios se
276
perpetuam na manutenção de uma sociedade polarizada.
Diante dessa realidade não se sabe ao certo a dimensão dos obstáculos
que podem surgir para o acesso da população negra à Jurisdição. Não se sabe
quais são os entraves que bloqueiam tal acesso, se de ordem cultural,
econômica, social ou simultaneamente os três aspectos.
A própria inexistência de investigação no que tange o acesso ao direito e à
justiça da população negra ratifica que não existe igualdade no acesso à
jurisdição porque a invisibilidade nos estudos evidencia este fato.
Para além da efetividade da lei de crimes raciais e alguns estudos na área
penal, na área cível quase não se encontra investigações com recorte racial. Por
isso não se sabe se a população negra recorre à justiça cível, caso recorra, não
sabemos se é para reivindicar indenizações, direitos relativos a bens, lesões nas
relações de consumo, se direitos previdenciários ou se o desconhecimento da lei
e dos direitos, ou a falta de estrutura da maioria das defensorias públicas a
impede de exercer a cidadania plena.
O debate atual sobre as cotas raciais tem intensificado a luta pelo acesso
ao direito e à justiça da população negra. Percebe-se na análise de decisões
judiciais que há envolvimento da população (através das entidades civis do
movimento negro) no sentido de provocar a Jurisdição.
E o judiciário, em alguns casos, tem oferecido uma resposta a sua
provocação. Nesse aspecto parece que o movimento das cotas tem alterado
significativamente a relação de segmentos da população negra com o sistema de
direito e à justiça.
276
SILVA, 2003, p. 129.
133
Na ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF
nº 186) que discute a constitucionalidade das cotas raciais no sistema jurídico
brasileiro, em curso no Supremo Tribunal Federal, o Ministro Ricardo
Lewandowski descreve sobre a Audiência Pública realizada no STF nos dias 03,
04 e 05 de março de 2010:
A preservação da isonomia tem pautado, a história desta Corte
Constitucional. Fundado neste princípio constitucional organizei
audiência
pública
para
ouvir
as
diferentes
perspectivas
conformadoras da sociedade brasileira sobre a utilização do critério
étnico-racial na seleção de candidatos para o ingresso no ensino
277
superior.
Além da participação em audiências públicas promovidas pelo Poder
Judiciário, outros instrumentos têm sido utilizados pela população negra a fim de
provocar a jurisdição, em especial: ações coletivas, ação civil pública (Ministério
Público) e a participação como amicus curiae.
5.8 O Amicus Curiae e a Participação de Entidades do Movimento Negro no
Debate Sobre as Cotas no Sistema Jurídico Brasileiro
Numa dissertação de mestrado sobre a política de ações afirmativas no
Estado da Bahia foi relatado a participação de Entidades do Movimento Negro,
inclusive, de entidades historicamente discriminadas, como os terreiros de
candomblé, essa participação se deu mediante o instituto do amicus curiae:
Assim, em 24 de maio de 2004, uma nova petição de Amicus Curiae
sobre a nova ADIN 3197-0, foi impetrada por 24 entidades do Movimento
Negro, reiniciando o processo de defesa, sendo que todas foram aceitas,
inclusive, ressaltamos, para reafirmar a importância deste tipo de ação
por parte dos movimentos sociais, que foram aceitos cinco terreiros de
278
candomblé, feito inédito nos tribunais brasileiros.
277
278
Consulte ADPF nº 186, no site do Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>.
OLIVEIRA, Ilzver de Matos. O Discurso do Judiciário Sobre as Ações Afirmativas para a
População Negra na Bahia. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Federal
da Bahia. Salvador, 2008, p. 131.
134
O amicus curiae é um instrumento processual, uma forma de assistência
qualificada. Esse instituto é muito utilizado na Inglaterra e consta também em
diversas normas norte-americanas (leis federais e estaduais).
A palavra curiae veio do direito romano por isso precisa ser interpretada de
acordo com o contexto jurídico. A expressão amicus é um substantivo e significa
na língua portuguesa a palavra amigo; na doutrina brasileira a expressão usada
vem direta do latim e no plural quer dizer amici curiae.279
A finalidade da atuação como amici curiae consiste em oferecer
oportunidade para pessoas, entidades, órgãos públicos ou privados a prestarem
assistência qualificada ao Judiciário (em razão do conhecimento que têm sobre a
matéria em litígio) em casos de grande relevância social e do bem jurídico a ser
protegido. O sistema jurídico brasileiro na Lei nº 9.869, de 1999, dispõe sobre
essa possibilidade de atuação como amicus curiae.280
O primeiro caso da atuação de entidades do movimento negro como amici
curiae foi na Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Confederação
Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – COFENEN contra a Lei nº 4.151, de
2003, que reserva vagas para negros e outros segmentos minoritários da população.
Embora no nosso ordenamento jurídico ainda prevaleça a busca pela
realização do direito material de forma individual, os instrumentos coletivos se colocam
como importantes na resolução de conflitos que envolvem segmentos minoritários.
No Brasil desde a publicação da Lei nº 7.347/85 (Ação Civil Pública) e da
edição da Constituição Federal de 1988 que trouxe diversos instrumentos
coletivos como o mandado de segurança coletivo e ação popular, de certa forma
percebe-se ruptura com o modelo de resolução de conflitos somente pela via
279
280
BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro: um terceiro
enigmático. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 06: “Essa primeira aproximação do significado da
expressão é esclarecedora da função processual daquela figura e bastante rente às funções
desempenhadas pelos seus mais remotos ancestrais no direito medieval inglês, como dá
notícia a bibliografia que ocupa o item 2 do capítulo”.
ERNESTO, Luciene Marcelino. Cotas Raciais: a jurisprudência do amicus curiae e seu
impacto na implantação de ações afirmativas para as (os) negras (os) no Brasil. In: Anais do
IV Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros (as). Salvador, 2006.
135
processual individual. Isso porque os instrumentos processuais coletivos impõem
novas possibilidades para assegurar a defesa e a concretização de direitos,
principalmente, do segmento populacional com pouco acesso à justiça.281
Nota-se que após a edição de tais normas tem aumentado o interesse da
população por demandas coletivas em busca de respostas mais rápidas e efetivas
por parte do Poder Judiciário.282
A previsão de instrumentos coletivos para provocar a realização de direitos
existe em diversos sistemas jurídicos, o modelo de tutela coletiva teve sua origem
no direito romano-germânico e influenciou outros sistemas jurídicos no mundo.283
Embora o uso dos instrumentos coletivos, por si só, não são suficientes para
alterar a desigualdade de acesso ao direito e à justiça na sociedade brasileira, o
movimento pelas cotas, tem provocado discursos mais amplos sobre a participação
da população negra. O que caminha num sentido de ruptura da forma de
apropriação do sistema de acesso ao direito e à justiça pela população pobre.
Embora existam poucos estudos sobre o acesso ao direito e à justiça
referente à população negra, dados sobre as desigualdades raciais não deixam de
omitir a existência de descompasso no acesso a direitos como educação, saúde,
moradia, emprego entre a população negra e a população branca. Isso pode ser a
281
282
283
GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. O Uso da Lei no Combate ao Racismo: direitos difusos
e as ações civis públicas. In: GUIMARÃES, Antônio Sérgio; HUNTLY, Lynn. Tirando a
Máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 389-409.
LOCHE, 1999, p. 79: “Cada vez mais o aparelho judiciário tem sido chamado a intervir em
conflitos de interesse coletivo, ou plurilaterais, como sugere Lopes (1994). Além disso, a
população confronta-se, em seu dia-a-dia, com um crescente e diversificado número de
conflitos, que exigem respostas cada vez mais rápidas da justiça”.
SOUSA, Michel Teixeira de. A Legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos.
Lisboa: LEX, 2003, p. 114: “A concessão de legitimidade para propositura de acções relativas
a interesses supra-individuais a algumas organizações é conhecida de vários sistemas
jurídicos pertencentes à família romana-germânica. No direito alemão, a primeira
consagração da Verbandsklage surgiu em 1896 no § 1 UWG, que permitia a propositura de
uma acção inibitória relativa à violação das regras da concorrência por qualquer industrial ou
por qualquer associação de promoção de interesses industriais. A previsão da Verbandsklage
mantém-se no actual § 13 UWG, bem como, no âmbito das cláusulas contratuais gerais, no §
13 AGBG e ainda, no que se refere à protecção do ambiente, no § 29 da
Bundesnaturschutzgesetz. A Verbandsklage é igualmente conhecida do direito austríaco
(cfr., v.g., § 29 KSchG; § 14 UWG)”.
136
base para afirmar que os obstáculos relacionados com o acesso ao direito e à justiça
têm relação profunda com a falta de acesso digno ao próprio sistema de ensino.284
Conforme já mostramos nos capítulos anteriores a população negra ainda
permanece em situação desigual e a igualdade substancial ainda não se tornou
de fato efetiva, daí surgem algumas indagações: quais os principais entraves que
a população negra encontra no momento de buscar a jurisdição cível?
Desconhecimentos dos direitos básicos de cidadania? Desconhecimento das
normas de funcionamento dos Tribunais? Impedimentos de ordem econômica,
social ou cultural?
Evidente que esta pesquisa não se propôs a buscar respostas para essas
questões, que são complexas e requerem estudos bastante aprofundados. Mas
nosso interesse consiste apenas em problematizar tais questões no sentido de
despertar novos estudos que tenham por objeto o acesso da população negra à
justiça, principalmente à justiça cível.
Conforme já citamos, o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa
coloca como um dos problemas no acesso ao direito e à justiça da população
pobre a falta de comprometimento do Estado e da sociedade.285
Num estudo sobre a implantação do Observatório Permanente da Justiça
Brasileira, pesquisadores confirmam que há reclamações de setores sociais em
relação à falta de acesso ao direito e à justiça. Situações tais como baixa
sensibilidade
do
Poder
Judiciário
pelas
demandas
da
comunidade;
desconhecimento dos direitos; distanciamento e falta de reconhecimento das
experiências das comunidades não positivadas além da burocratização do
sistema judicial fazem parte do rol das reclamações de segmentos populares, na
questão do acesso ao direito e à justiça.286
284
285
286
Conforme dados do IBGE. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>.
Conforme estudos realizados pelo OPJ. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em:
12 jan. 2010.
Observatório do judiciário. Série Pensando o Direito nº 15/2009 – Secretaria de Assuntos
Legislativos / Ministério da Justiça. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/SAL>. Acesso em:
12 abr. 2010.
137
A representação do cidadão em relação ao direito e à justiça tem influência
direta no modo de sua apropriação. A justiça pode ser vista como algo próximo ou
distanciado. Depende do valor que a Justiça tem na vida da pessoa e sendo
assim pode gerar diferentes formas de apropriação.
O fato de realizar poucos estudos nas Ciências Socais sobre o
Judiciário, o Ministério Público e a Segurança Pública (polícias) têm gerado
consequências drásticas para a população brasileira se apropriar do direito e
da justiça.
O cidadão, muitas vezes, não busca o Judiciário para realizar um direito
devido ao desconhecimento, a falta de informação sobre os mecanismos
processuais e o objetivo das funções auxiliares como Ministério Público,
Defensoria Pública, Segurança Pública, etc.
O Estado Democrático de Direito tem como sustentáculo garantir o acesso
a todos sem qualquer discriminação de natureza negativa. Portanto, o acesso ao
direito e à justiça significa também ter acesso aos Órgãos do Poder Judiciário e à
decisão justa. Implica a construção de um sistema que permita a todos os
segmentos condições dignas para reclamarem os seus direitos porque cabe ao
Judiciário zelar pelo exercício desses direitos e, por isso, o acesso a eles também
deve ser garantido e facultado a todos.287
Percebe-se uma lacuna entre a lei que garante o acesso ao direito e à
justiça como a real concretização por isso a ampliação conceitual da jurisdição e
novas práticas sobre o sistema jurídico pode possibilitar a abertura do sistema
judicial à participação popular.
Nota-se, ainda que timidamente, que a tutela processual tem se afirmado
como meio de inclusão social e aproximação da população negra ao sistema de
acesso ao direito e à justiça.
287
LOCHE, 1999, p. 80.
138
5.9 Novas Perspectivas para o Acesso ao Direito e à Justiça: A Implantação
do Observatório Permanente da Justiça Brasileira
Conforme dito no tópico anterior, no Brasil há uma necessidade de conhecer
melhor os obstáculos do sistema de acesso ao direito e à justiça. Em termos da
efetividade das leis processuais e também sobre o que impede as pessoas e grupos
sociais de buscarem a Jurisdição, ou se buscam, de receberem tratamento desigual.
Há também dificuldades quanto ao levantamento de dados sobre o acesso
da população negra. Não existe uma estrutura sistêmica que monitore as
questões pertinentes ao sistema jurídico brasileiro.
Esse pode ser um dos motivos da criação de um sistema que irá fazer o
monitoramento da Justiça brasileira. Recentemente foi inaugurado no Brasil, na
Universidade Federal de Minas Gerais, o Centro de Estudos Sociais da América
Latina. Também será implantado o Observatório Permanente da Justiça Brasileira
sob a consultoria do (CES) Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra, cuja coordenação científica é do cientista social e jurídico Boaventura de
Sousa Santos.
O sistema em implantação no país seguirá o modelo de monitoramento
realizado pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa que está
estruturado junto ao CES da Universidade de Coimbra.
O Observatório em Portugal tem causado mudanças não apenas no
pensamento científico sobre a concepção de acesso ao direito e à justiça, isso
porque ele monitora, diariamente, a gestão dos tribunais, a aplicação das
reformas operadas nos sistemas processuais e administrativos e o nascimento
das propostas de reformas, entre outras atividades.
É considerado um dos maiores centros de pesquisa sobre o acesso ao
direito e à justiça no mundo, pois desenvolve estudos comparados e ampliou a
produção do conhecimento sobre o tema.
139
O sucesso desse centro de pesquisa tem relação com a interação da
pesquisa científica com a realidade. As análises são realizadas a partir do
cotidiano dos tribunais, o que significa maior amplitude do sistema e possibilita
conhecer os principais obstáculos no acesso ao direito e à justiça por parte dos
cidadãos, quer de ordem política, jurídica, social ou cultural.
A inovação do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa
resulta muito dessa proximidade da pesquisa com a realidade empírica.
Porque a produção vai além da construção de teorias abstratas sobre a
realidade social e também provoca mudanças efetivas no sistema de
acesso, em Portugal.
Mesmo diante dessa proposta inovadora de criação do Observatório
Permanente da Justiça Brasileira instiga indagar como a influência dessa
consultoria do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra se
conduzirá na realidade brasileira.
É consenso entre pesquisadores da área social e jurídica que cada país ou
região tem suas peculiaridades culturais, políticas, jurídicas e sociais, nos próprios
relatórios do Observatório Português essa questão é destacada.288
Como se sabe o Brasil tem realidade bastante diferenciada do contexto de
Portugal. Desde problemas herdados do período colonial, pobreza, aniquilação
cultural; discriminação religiosa, de gênero, racismo, baixo grau de escolaridade da
maioria da população, além da dimensão territorial e cultural, esses são apenas
alguns fatos que o distingue de Portugal. Outros problemas se acrescentam como a
globalização dos mercados financeiros e a expansão da violência.
Embora essas questões sejam fatores comuns a quase todas as
sociedades contemporâneas, o impacto desses problemas nos parece bem
diferentes da realidade de um país para outro. O motivo de nosso questionamento
288
SANTOS, Boaventura de Sousa; PEDROSO, João. O Acesso ao Direito e à Justiça: um
direito fundamental em questão. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev.
2010.
140
é porque o Observatório Permanente da Justiça Brasileira (OJB) adotará o
modelo do Observatório Português conforme descreve:
O lançamento do projecto de criação do Observatório da Justiça
Brasileira (OJB), que assenta no modelo do Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa, ocorreu durante um seminário realizado para o efeito
em Brasília nos dias 02 e 03 de junho, com a participação do Director do
Centro de Estudos Sociais (CES). Por solicitação do Ministério da Justiça
brasileiro, o CES tem vindo a apoiar, na qualidade de consultor, todos os
trabalhos de criação do OJB, apresentando propostas definidoras da sua
289
estrutura e funcionamento.
Dentre os objetivos que orientam a consultoria do CES para a formação do
Observatório Permanente da Justiça Brasileira consta: construir um espaço
público de pesquisa e elaboração de diagnósticos prévios às reformas normativas
do sistema de justiça; potenciar a produção acadêmica e científica para que seus
estudos e sugestões orientem as avaliações sobre o Sistema de Justiça, as
reformas normativas e as políticas de gestão; acompanhar e analisar o
desempenho das instituições que integram o Sistema de Justiça brasileiro e
sugerir novas formas e instrumentos alternativos de resolução dos conflitos;
monitorar e avaliar os resultados das reformas normativas; desenvolver estudos
que subsidiem políticas para a agilização da prestação jurisdicional; formular e
avaliar políticas públicas que garantam os direitos fundamentais e a participação
social.290
Houve também um estudo desenvolvido no Brasil sobre a implantação do
OJB realizado pelo Núcleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento. O trabalho discute a criação do Observatório da Justiça
Brasileira e outros assuntos correlatos.
Na investigação constam relatos de pessoas ligadas aos movimentos
sociais sobre o acesso ao direito e à justiça. Entre os pontos de relevo
pesquisadores identificaram algumas leituras sobre os obstáculos no acesso
como: baixa sensibilidade para as demandas da comunidade; limites culturais
289
290
Conforme publicação no Folder do CES. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em:
12 fev. 2010.
Idem. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev. 2010.
141
dos membros do Sistema de Justiça; não reconhecimento do direito;
limitações
da formação
técnica
oferecida
ao profissional
do
direito,
excessivamente livresca, que não o prepara para lidar com as complexidades
do mundo em permanente mutação; postura institucional burocrática - as
instituições do sistema de Justiça são percebidas como excessivamente
burocráticas e apegadas aos seus procedimentos – há dificuldades de se
entender o emaranhado de regras processuais e o linguajar excessivamente
técnico usado pelos profissionais do Direito, o que acaba por limitar e
desencorajar grupos a exercerem sua cidadania; sistema de Justiça pouco
aberto ao monitoramento da sociedade civil – as organizações, movimentos e
redes lamentam a pouca possibilidade de diálogo com os integrantes do
Poder Judicial.
O estudo traz também o parecer da Consultoria do Centro de Estudos
Sociais da Universidade Coimbra ao Ministério da Justiça brasileiro sobre a
criação do Observatório Permanente da Justiça Brasileira e a proposta da
estruturação do OJB elaborada em consórcio com a Universidade de Brasília UnB
e a Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Na estrutura do OJB consta
a participação de Programas de Pós-Graduação e Centros de Pesquisa.
Em primeiro momento o Observatório Permanente da Justiça Brasileira
(OJB) será conduzido pela Secretaria de Reforma do Judiciário – Ministério da
Justiça.291
Embora o Centro de Estudos Sociais e o Observatório Português
constituem um dos maiores centros de pesquisa na área da ciência social e
jurídica e tem causado impacto em outros contextos porque desencadeou uma
291
Observatório do judiciário. Série Pensando o Direito nº 15/2009 – Secretaria de
Assuntos
Legislativos
/
Ministério
da
Justiça.
Disponível
em:
<http://www.mj.gov.br/SAL>. Acesso em: 12 abr. 2010: “[...] a justiça brasileira está
neste momento colocada perante o desafio de sua democratização. Trata-se de um
desafio exigente sobretudo quando se têm em conta que o sistema judicial é um
conjunto de conflito em que interesses econômicos e corporativos têm forte incidência e
tendem a prevalecer. A pesquisa analisada está consciente do grau da exigência desse
desafio e procura enfrentá-lo com êxito ao tentar incorporar em um único modelo de
agenda política: reflexão acadêmica, pesquisa empírica, participação social e
concentração política. Nesse sentido, deve ser saudada”.
142
sucessão de medidas efetivas em Portugal, acredita-se ser necessário o
questionamento sobre a transposição do modelo.
Por outro lado destaca-se a importância, para a sociedade brasileira, da
criação do Observatório Permanente da Justiça Brasileira. É inovador no sentido
de que a análise de dados sobre o sistema de acesso ao direito e à justiça no
Brasil partirá da realidade dos tribunais e de dados empíricos sobre o sistema.
Isso certamente contribuirá para se conhecer melhor a aplicação das leis; as
reformas efetuadas no sistema penal; civil; processuais; o modelo de gestão; o
custo da justiça para o contribuinte; a morosidade, o sistema carcerário e de
segurança pública; a atuação dos operadores do direito; os segmentos
priorizados ou desprestigiados no acesso; a estrutura dos tribunais; a
participação da sociedade; etc., enfim a dinâmica global do sistema, em quais
aspectos funciona e os possíveis obstáculos que impedem sua eficiência e
efetividade.
Conforme já afirmado o processo de criação do Centro de Estudos
Sociais da América Latina (CES/AL) e também do Observatório Permanente da
Justiça Brasileira estão sendo construídos com o apoio do CES da Universidade
de Coimbra e por intelectuais e pesquisadores brasileiros e de outros centros de
pesquisa da América Latina.292 Nesse trabalho foram definidos dois eixos
centrais:
Ao OJB são lançados dois principais desafios: por um lado, no plano da
estratégia e acordos necessários para a reforma e modernização do
sistema de justiça no Brasil, a investigação empírica que produzir deverá
dotar os diferentes poderes públicos e a sociedade em geral com
informações relevante neste sector; por outro, no plano das reformas em
curso, assumirá especial papel na sua monitorização de forma a
identificar problemas e bloqueios, eventuais efeitos perversos e
293
propondo recomendações e cenários alternativos.
292
293
De 04 a 06 de Agosto de 2009 realizou-se, em Belo Horizonte, a Conferência Sociedade civil
e pós-colonialismo: um debate sobre paradigmas para o entendimento da América Latina com
o objetivo de lançar o Centro de Estudos Sociais América Latina (CES/AL). Esse Centro
nasceu de um profícuo diálogo entre pesquisadores do CES-Coimbra (Portugal), da UFMG
(Minas Gerais-Brasil) e de outras localidades do Brasil e da América Latina. Conforme
publicação no Folder do CES. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev.
2010.
Idem. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt>. Acesso em: 12 fev. 2010.
143
Pelo que consta, para a criação do CES/AL e consequentemente do
Observatório Brasileiro houve motivação do CES da Universidade de Coimbra e
provocação de estudiosos e pesquisadores brasileiros para que houvesse ação
do Estado Brasileiro (Ministério da Justiça) no sentido de criar mecanismos e
instrumentos para se conhecer melhor o sistema de acesso ao direito e à justiça e
propor medidas, no sentido de torná-lo mais efetivo.
Acredita-se que a participação de intelectuais brasileiros foi determinante
para a criação desses novos instrumentos no cenário nacional. Sendo esse
componente ratificador da responsabilidade do Estado brasileiro na edição dessa
política pública.
Nesse momento de implantação do OJB importante relembrar que no
projeto de Cappelletti e Garth sobre o acesso ao direito e à justiça o Brasil não foi
contemplado no estudo e somente em 1988 foi publicado um resumo da
investigação desses autores em português.
Outro fato que nos faz voltar à história do início dos estudos sobre o
acesso ao direito e à justiça no Brasil é a influência de Boaventura de Sousa
Santos, na década de 70, quando desenvolveu uma pesquisa na Favela do
Jacarezinho no Rio de janeiro, atitude que suscitou interesse da academia
brasileira em colocar nas linhas de pesquisa esse tema.294
294
JUNQUEIRA, 1996, p. 01-15.
144
6 TUTELA PROCESSUAL – PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL
6.1 Influência do Direito Clássico no Processo Civil Brasileiro
Este será o último capítulo de nosso trabalho. A finalidade é demonstrar de
forma mais direta a origem de nosso sistema processual civil, bem como suas
inovações, especialmente, após a Constituição de 1988.
Mostrar com mais especificidade as modalidades de tutelas úteis à
efetivação das cotas raciais, principalmente, a tutela específica, a tutela inibitória
e a preventiva.
Para concluir nosso trabalho será apresentado o resultado da análise
jurisprudencial
que
realizamos
sobre
as
cotas
raciais,
no
aspecto
especificamente processual. O objetivo consistiu em mostrar o discurso de
julgadores sobre a função social do processo e, a partir disso, concluir se a
tutela processual pode ser considerada mecanismo ou obstáculo da efetivação
das cotas raciais.
O capítulo foi organizado da seguinte forma: no primeiro tópico serão
apresentadas algumas teorias do direito processual no período clássico e a partir
dessa matéria evoluir para os demais itens, tais como o conceito de tutela de direito
e de tutela jurisdicional; perspectiva constitucional do processo civil; princípios
constitucionais na Constituição de 1988; inovações do Código de Processo Civil; a
cognição como técnica processual; modalidades de tutelas; os direitos sociais e a
dimensão processual; a tutela processual como mecanismo de inclusão social;
análise jurisprudencial sobre as cotas raciais e a efetividade da Constituição
Federal.
Descrever sobre a influência do direito clássico no processo civil brasileiro
exige-se voltar o curso da história e conhecer um pouco sobre o processo civil no
Direito romano. O ponto mais importante, talvez, seja compreender o significado
de Jurisdição no Direito romano; porque o Direito romano influenciou a formação
145
do direito português que é considerado a fonte direta de nosso direito processual
civil.
Entretanto não se pretende fazer descrição das correntes históricas sobre a
evolução do conceito de jurisdição no Direito romano, nem do rol evolutivo do
direito processual civil, devido às inúmeras vertentes. Apenas trazer pontos
importantes que servirão como impulso ao debate sobre os fundamentos que
deram origem à tutela processual e as consequências disso no direito brasileiro.295
Sabe-se que o Direito romano consiste no conjunto de normas ou regras
jurídicas que regeram a vida romana desde a criação da cidade de Roma no ano
de 753 a.C. até o ano 565 d.C., data em que ocorreu a morte do imperador do
Oriente Justiniano.296
Existe divergência sobre as fases do direito romano entre os historiadores,
mas, alguns adotam o critério de divisão jurídico-interno e define o direito romano
em três fases: o período arcaico vai de 753 a.C. a 130 a.C.; o período clássico
fica entre 130 a.C. a 230 d.C.; e o pós- clássico de 230 d.C. a 530 d.C. e ainda a
fase justinianeia que vai de 530 d.C. a 565 d.C.
O período arcaico teve início com a fundação da cidade de Roma e nessa
época vigorou a Lex Aebutia de Formulis, sistema que contribuiu muito para formar
o processo intitulado agere per formulas, que era considerado o modelo processual
mais dinâmico em relação às normas arcaicas. O processo das fórmulas consegue
afastar o modelo que respeitava as ações da lei – que era nominado de legis
actiones modelo muito útil no desenvolvimento do Direito romano.
A fase do direito clássico se iniciou por volta do ano 130 a.C. e se encerrou
no ano 230 d.C. e o processo civil romano foi evoluindo num misto de elementos
295
296
MACEDO, Eliane Harzheim. Jurisdição e Processo: crítica histórica e perspectiva para o
terceiro milênio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 17-19: “Qualquer discussão que
se pretenda estabelecer sobre o tema jurisdição, independentemente do enfoque a priorizar,
passa necessariamente pelo crivo de uma visão histórica e, no particular, da história do direito
romano”.
JUSTO, 2008, p. 17.
146
do direito público e de interesses privados, mas o direito era aplicado somente
entre os romanos.297
A partir do ano 242 a.C. o Direito romano ultrapassou as fronteiras da
nacionalidade ou região e passou a ser aplicado em relações jurídicas afetas a
estrangeiros ou peregrinos que habitavam Roma.
Assim surgiu a fase do pretor peregrino quando foi criada a aplicação
do Direito que alcançou as relações jurídicas que tinham como litigantes
estrangeiros e romanos, esse período foi nominado de direito romano
universalista. O pretor peregrino tinha poderes para conceder ou negar a
tutela jurídica, bem como determinar as formas e os limites da proteção do
direito.298
Importante acrescer que existiram dois períodos marcantes no
histórico do processo civil romano ou dois grandes sistemas se tornaram
responsáveis pela construção do direito processual: o sistema dos iudicia
privata – foi o primeiro processo que percorreu o período arcaico e clássico.
Nessa fase a administração da justiça ainda não era totalmente assumida
pelo Estado, que se limitava a excluir a arcaica justiça privada: apenas
disciplinava a defesa do direito que mantinha, substancialmente, o seu
caráter privado. E o sistema da cognitio extra ordinem onde o Estado
assumiu a administração da justiça. 299
O sistema da cognitio extra ordinem: surge no início do Principado e,
através dum desenvolvimento gradual, acabou por suplantar o ordo
iudiciorum privatorum na época pós-clássica, tornando-se o único
sistema processual. A administração da justiça é agora uma função
própria e exclusiva do Estado e às partes só pertence a iniciativa da
300
instauração dos processos para obterem a proteção dos seus direitos.
297
298
299
300
Ibidem, p. 265.
Ibidem, p. 18-308: “O pretor peregrino concedia ou denegava livremente a tutela jurídica e
determinava a forma e os limites da sua protecção. A liberdade em que se movia permitia-lhe
proteger novos negócios jurídicos originários do ius gentium, como os quatros contratos
consensuais (emptio-venditio, locatio-conductio, societas e mandatum) cuja simplicidade e
flexibilidade se adaptavam perfeitamente às necessidades do tráfico”.
Ibidem, p. 265-266. A historia do processo civil romano é marcada pela progressiva
penetração do elemento publicístico na esfera dos interesses privados.
Ibidem, p. 266.
147
Vejam que o processo civil romano surgiu dentro da ótica do direito
privado. O sistema ordo iudiciorum privatorum de onde surgiu o processo das
legis actiones foi o primeiro modelo em que o Estado assumiu o controle e
direção. Sendo que esse modelo era destinado a cidadãos romanos (cives
romani) para defesa de direitos subjetivos. Os atos desse modelo eram solenes,
formais e orais e estavam escritos na Lei das XII Tábuas, por isso o processo foi
nomeado de legis actiones.301
A Lei das XII Tábuas302 foi um documento importante naquela época
porque deu abertura para a classe plebeia buscar seus direitos:
[...] a Lei das XII Tábuas teria sido fruto exatamente da necessidade da
classe plebéia de fazer prevalecer seus direitos, limitando o poder dos
magistrados patrícios, passando a ser concebida com uma forma de
composição entre os dois grupos – patrícios e plebeus – visando já
303
agora ao povo romano como uma coletividade única.
Naquela época já se percebia a dificuldade em lidar com situações novas,
que surgiam nas relações jurídicas, que não eram previstas na lei civil, fatos fora
da ótica privada eram difíceis de encontrar soluções com o modelo rígido do
processo legis actiones. Mas esse modelo foi substituído por outro mais formal,
com as normas escritas nomeado de agere per formulas.304
A rigidez do processo das legis actiones, a necessidade de proteger novas
situações não previstas pelo ius civile e a recepção do ius gentium pelo ius
civile conduziram à criação do processo das fórmulas (agere per formulas)
que, durante muito tempo, coexistiu com o processo anterior. É provável
que tenha a sua origem na resolução de litígios entre cidadãos romanos e
peregrinos ou entre estes; porém, logo se estendeu às controvérsias entre
cidadãos romanos: primeiro, pela via consuetudinária; depois, pelo
reconhecimento da Lex Aebutia (do ano 130 a.C.) e da Lex Iulia iudiciorum
305
privatorum provavelmente de Augusto.
A criação do processo das fórmulas, da figura do pretor que tinha mais
liberdade para prever situações e resolver conflitos não previstos na Lei Civil e
301
302
303
304
305
Ibidem, p. 266-267.
VIERINA, Jair Lot. Código de Hamurabi, Código de Manu (Livros Oitavo e Nono); Lei das
XII Tábuas. 2. ed. Bauru: Edipro, 2002, passim.
MACEDO, 2005, p. 28.
JUSTO, 2008, p. 266-267.
Ibidem, mesmas páginas.
148
também
o
instituto
das
actiones
civiles
foram
determinantes
para
o
306
desenvolvimento do Direito romano.
Observa-se que muitos dos princípios do Direito romano nunca deixaram
de fazer parte do direito moderno, influência nas atividades legislativas e na forma
de organizar a prática jurídica:
O elemento romano ocupa uma posição de relevo. Está nos alicerces da
consciência jurídica européia contemporânea. O direito romano difundiuse na sequência da expansão política de Roma, impondo-se mercê da
sua perfeição, posto que combinado com elementos locais. E, depois,
desde o século XII, estudado pelas sucessivas escolas européias, jamais
deixou de estar presente, até aos tempos modernos, na actividade
307
legislativa, na ciência e na prática jurídicas.
No mesmo sentido John Gilissen assegura:
A história do direito romano é uma história de 22 séculos, do século VII
a.C até ao século VI d.C., no tempo de Justiniano, depois prolongada até
ao século XV no império bizantino. No ocidente, a ciência jurídica
romana conheceu um renascimento a partir do século XII; a sua
influência permanece considerável sobre todas os sistemas romanistas
308
de direito, mesmo nos nossos dias.
Os romanos são considerados pioneiros em reduzir a escrito as regras
jurídicas e também em produzir obras importantes; quanto ao estudo do direito foi
e ainda é uma cultura marcada pela tradição e costumes.
No
período
clássico,
diferentemente
do
direito
moderno,
os
magistrados (pretores), responsáveis pela jurisdição ao decidirem os conflitos
jurídicos com base nos costumes, tinham o poder não apenas de reconhecer
o direito como também de atribuir uma ação, ou seja, o meio processual que
306
307
308
Ibidem, mesmas páginas.
COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do Direito Português. 3. ed. 9. reimpr. Coimbra:
Coimbra Editora, 2008, p. 39.
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001, p. 87-88: “Os Romanos foram, parece, os primeiros a sentir necessidade
de reduzir a escrito as regras jurídicas; além disso, foram os primeiros a consagrar obras
importantes ao estudo do direito. As fontes do direito romano clássico continuam a ser a lei e
o costume. A lei porém desempenha um papel cada vez mais importante, tendendo a
suplantar o costume. Contudo, fontes do direito especificamente romanas dominaram esta
época: os éditos dos magistrados e a jurisprudência, fixada nos escritos dos jurisconsultis”.
149
seria utilizado pelo envolvido na defesa do seu direito. A decisão de um caso,
muitas vezes, era repetida por outros pretores como se fosse um sistema
jurisprudencial, que significava as regras jurídicas e a sua atuação pelo uso
prático:
A jurisprudência, no sentido romano, era o conhecimento das regras
jurídicas e a sua actuação pelo uso prático. É antes aquilo que nas
línguas novilatinas se designa por doutrina; porque a jurisprudência
designa nestas línguas o conjunto de decisões judiciais; o termo
inglês ‘jurisprudence’ tem um sentido mais próximo do sentido
romano. A jurisprudência era a obra dos jurisconsultos que
desempenhavam um papel capital na fixação das regras jurídicas. Na
verdade, os jusconsultos eram homens muito experientes na prática
do direito, quer enquanto davam consultas jurídicas (responsa), quer
redigiam actos e orientavam as partes nos processos, embora aí não
309
interviessam.
São breves linhas que nos fazem perceber o quanto o Direito romano,
especialmente, o direito processual civil transcendeu a história e ainda constituise em fonte de muitos sistemas jurídicos.
Razão disso encontra-se na formação do direito português que teve
influência direta do Direito romano e do direito canônico. Até porque Portugal foi
dominado pelos romanos por longo período e absorveu muito dos institutos da
cultura jurídica romana.310
Essa influência foi muito forte a partir do século XIII até a segunda metade
do século XVIII, embora as raízes do direito romano-canônico perdurarem por
longo período.311
309
310
311
Ibidem, p. 90.
COSTA, 2008, p. 39: “[...] o direito português integra-se na família ou sistema romanogermânico. Nele se incluem, do mesmo modo, as ordens jurídicas dos restantes países do
Ocidente europeu continental, bem como as dos destes derivaram em outras áreas,
mormente da América Latina”.
Ibidem, p. 179: “Segue-se o período do direito português de inspiração romanocanónica, que, iniciando-se em meados do século XIII, apenas se encerra na segunda
metade do século XVIII. Corresponde-lhe a força de penetração avassaladora do
chamado direito comum (ius commune). Convirá assinalar, dentro desta longa fase da
evolução do nosso sistema jurídico, dois subperíodos: a) época da recepção do direito
romano renascido e do direito canônico renovado (direito comum); b) época das
Ordenações. Na verdade, embora permaneçam as influências romanísticas e
cononísticas, verifica-se pelos meados do século XV, em 1446 ou 1447, o início da
vigência das Ordenações Afonsinas”.
150
É atribuída às Ordenações Afonsinas uma importância maior na evolução
do direito português porque no período de Afonso III foi consolidada a autonomia
do sistema jurídico nacional no conjunto peninsular. Além disso, representam o
suporte da evolução subsequente do direito português.312
Neste período o Estado passou a ser tutor da ordem pública e a justiça
privada perdeu espaço. As Ordenações Afonsinas passaram a vigorar em
Portugal em 28 de julho de 1446, período que se rompe, de certa forma, com
direito do reino e passou a vigorar o direito comum.313
Com o passar do tempo o processo civil, no contexto europeu e incluindo
Portugal, sofreu mudanças por volta do século XVIII e no percurso do século XIX.
Período em que aconteceu o processo de codificação das leis e individualização
do direito em ramos específicos. Tais mudanças foram alvo de muitas críticas
porque opositores ao processo de codificação discordavam das medidas e
alegavam que causariam desvantagens à aplicação do direito.314
Com esse movimento o processo civil passou a ser preocupação do
legislador português oitocentista e no ano de 1876 foi editado o primeiro Código
de Processo Civil português. A característica principal do sistema processual era
o princípio dispositivo e não mais o princípio inquisitório. O princípio inquisitório
era usado no direito clássico e representava maior passividade do juiz em relação
aos conflitos.
O traço mais característico do sistema na prevalência do princípio
dispositivo, em contraposição ao princípio inquisitório. Quer dizer,
configura-se o processo como um instrumento ao serviço dos
particulares, os quais podem conduzi-lo como lhes aprouver, remetendose o juiz a uma atitude passiva. Não se torna lícito ao tribunal, portanto,
tomar a iniciativa de actos e diligências tendentes ao apuramento da
315
verdade, à regularização da justiça material.
312
313
314
315
Ibidem, p. 278-279: “A publicação das Ordenações Afonsinas liga-se ao fenónemo geral pela
luta pela centralização. Traduz essa colectânea jurídica uma espécie de equilíbrio das várias
tendências ao tempo não perfeitamente definidas, ou seja, uma área intermédia em que ainda
podiam encontra-se. De um outro ângulo, acentua-se a independência do direito próprio do
Reino em face do direito comum, subalternizado no posto de fonte subsidiária por mera
legitimação da vontade do monarca”.
Ibidem, p. 274.
Ibidem, p. 418-419.
Ibidem, p. 441-442.
151
Passado longo período da vigência desse Código houve a edição de outro
Código de Processo Civil em (1939) que procurava modernizar tal disciplina.
O que na verdade houve foi a afirmação do sistema inquisitório, inspirado
no sistema processual civil austríaco de (1895) que recebeu influência do direito
italiano. O reflexo das ideias liberais foi acentuado e o comportamento passivo do
juiz se afirmou ao estabelecer o princípio da verdade formal.316
Pode-se afirmar que dentro deste contexto surgiu o direito processual civil
brasileiro. Apesar de ter conseguido avanços ainda persistem fortes amarras do
direito clássico, principalmente, os instrumentos processuais que são organizados na
ótica do direito privado em desprestígio dos direitos sociais e coletivos. Também os
procedimentos solenes e burocráticos, o excesso de recursos, a ausência de normas
flexíveis ao uso da técnica processual, modalidades de tutelas, a concepção da
verdade (formal) são laços estreitos com o Direito romano e português.317
Segundo Alvim, no período em que nasceu o processo comum no Direito
romano houve também a criação das universidades onde foram iniciados estudos
acadêmicos sobre o Direito romano, isso, contribuiu muito para irradiar a cultura
jurídica romana a países, como Espanha, Itália e Portugal.318
Esse fato é confirmado por Mário Júlio de Almeida:
Assiste-se, durante os séculos XII e XIII, à criação progressiva de
Universidades, onde se cultivam os ramos do saber que então
constituíam o ensino superior. Entre estes, figurava, ao lado do direito
canônico, o direito romano das colectâneas justinianeias, professado
319
segundo os métodos das escolas italianas.
No Brasil, o direito português não apenas influenciou, mas, foi diretamente
aplicado durante o período colonial e logo após a independência do país. Quando
316
317
318
319
Ibidem, p. 442-443.
SANTOS, 1980, 1 vol., p. 37-39.
ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1997, p. 39: “Na Itália ou, mais precisamente, no lugar onde viria a ser a Itália, desenvolveuse o chamado processo comum, manifestação de fenômeno maior, que foi o direito comum”.
Ibidem, p. 441-442.
152
houve a independência, no ano de 1822, as leis vigentes em Portugal eram as
Ordenações Filipinas que vigoram também no Brasil (a partir de 1823), com
edição do Decreto de 20 de outubro de 1823.320
Nesse sentido o processo civil brasileiro atual teve como principais fontes o
direito português e mesmo com as reformas operadas no sistema, no ano de
1832, a matriz das leis portuguesas permaneceram enraizadas em nosso direito e
no pensamento de juristas e aplicadores do Direito.321
Na obra Nulidades e Rescisão de Sentença, (publicada no Brasil em 1911)
de autoria de Rui Barbosa, considerado um dos maiores juristas do Brasil na área
processual civil, é possível notar a influência do direito processual civil português
no direito processual brasileiro. Este jurista publicou comentários sobre os artigos
do Regulamento nº 737 que entraram em vigor em 25 de novembro de 1850. Foi
neste contexto que foi criado o Código de Processo Civil de 1939 e,
posteriormente, o Código de processo de 1973, até hoje em plena vigência.
Observa-se na obra do jurista enfoque exclusivamente no direito privado,
cível e comercial.322
Algum tempo depois, a Constituição da República de 1891 instituiu a
dualidade da justiça e a dualidade de processos. Período inovador porque a
legislação Federal permitiu que cada unidade da Federação legislasse sobre a
organização judiciária e processual.
Também houve a criação da Justiça Federal e suas normas processuais
(Decreto nº 3.084, de 05 de novembro de 1898) e o Decreto nº 848, de 11 de
outubro de 1890, que deu origem ao Supremo Tribunal Federal, conquistas que até
os dias atuais marcaram a história do nosso Direito.323
320
321
322
323
SANTOS, 1980, 1 vol., passim.
Ibidem, 1 vol., p. 51-52: “Enquanto colônia de Portugal ou erigido em reino unido ao de
Portugal e Algarves, o Brasil se regulara pelas leis portuguesas e conforme elas se
disciplinara o seu processo civil”.
BARBOSA, Rui. Nulidades e Rescisão de Sentenças. Campinas: LZN, 2003, p. 102.
SANTOS, 1980, 1 vol., p. 53: “A Constituição de 24 de fevereiro de 1891, estabelecendo a
forma federativa, instituiu não só a dualidade de justiça – a da União e a dos Estados (art. 34,
nº 26), como também a dualidade de processos (art. 34, nº 23), ficando cada Estado
autorizado a organizar a sua justiça e a legislar sobre processo”.
153
Evidente que outros processos históricos tiveram influências na formação
de nosso direito processual civil, como a Revolução de 1930 e a Constituição
Republicana de 1934 que sofreu inspiração significativa da teoria processual
francesa que por sua vez sofreu influência da doutrina romana.
Promulgada a Carta de 1934 retornou a competência da União para legislar
sobre a política processual ficando com os Estados membros somente a
competência supletiva. O Código de Processo Civil aprovado em 18 de setembro
de 1939 – Decreto nº 1.608, entrou em vigor embora não trouxesse inovações. O
destaque desse período foi a revelação de obras de processualistas brasileiros de
grande expressão no campo jurídico e o principal objeto de estudos era a
modernização das leis processuais civis.
Um dos inspiradores desses juristas era o processualista Chiovenda e
outros do direito alemão e austríaco. Por fim, nosso Código de Processo Civil foi
publicado em 17 de janeiro de 1973 e iniciou vigência na data de 1º de janeiro de
1974. Desde esse período o estudo sobre o processo, por alguns juristas, tem
sido conduzido numa perspectiva de despertar para a visão social do processo.324
6.2 Tutela de Direito e Tutela Jurisdicional
Para fazer uma análise satisfatória da tutela jurisdicional na ótica
constitucional requer aprofundamento do conceito de tutela de direito e tutela
jurisdicional, isso porque no campo doutrinário existe certo conflito quanto ao
significado dos termos.
A tutela de direitos representa os direitos que compõem o ordenamento
jurídico material, seja os direitos individuais, sociais, coletivos e difusos, direitos
positivados ou não. Ou seja, a tutela de direito é o direito em tese, apto à
concretização.
324
Ibidem, p. 53-61.
154
Portanto não se confunde tutela de direitos com a tutela jurisdicional
porque a tutela jurisdicional representa os meios para concretizar o direito previsto
no ordenamento jurídico.
A expressão tutela jurisdicional (ou tutela jurídica, termo empregado pela
doutrina italiana) está relacionada com a técnica processual, com os meios que
o Estado precisa dispor para garantir a tutela de direito (o próprio direito
material). Também é atribuída à tutela jurisdicional a pacificação do conflito, o
que não se confunde com a prestação de serviço jurisdicional e com a
organização funcional.
É mediante a tutela jurisdicional que se busca a pacificação do conflito,
todavia a pacificação do conflito deve ser o objetivo final da tutela jurisdicional,
entre os envolvidos no litígio um deles terá seu direito.325
A tutela jurisdicional consiste na análise do fenômeno processual do
ângulo de quem tem razão. A razão de ser da tutela jurisdicional é a própria
existência da tutela de direito. Em outras palavras isso quer dizer que a tutela
jurisdicional consiste no resultado da tutela de direito, que se busca com o
processo.
Compreende-se que a tutela jurisdicional consiste no mecanismo de
atingir a realização da tutela de direito e para isso atender sua finalidade em
concretizar o direito material que depende da técnica processual, caso contrário,
perde seu objetivo.326
Partindo desse pressuposto significa que o direito à tutela jurisdicional
não quer dizer apenas direito de provocação do serviço estatal, é algo mais,
325
326
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: influencia do direito material sobre
o processo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 28-36: “Tutela jurisdicional relaciona-se,pois, com
o direito material, distingue-se de prestação jurisdicional (serviço jurisdicional) ou do dever de
resposta ao poder de ação”.
Ibidem, p. 28: “Importante estabelecer o exato significado de tutela jurisdicional. É análise do
fenômeno processual do ângulo de quem tem razão. O escopo do processo é a tutela, seja
da situação material do autor, seja do réu. Somente com ela obtém-se pacificação definitiva.
Está consubstanciada no provimento jurisdicional que acolhe a pretensão de uma das partes”.
155
significa a resposta da jurisdição em face de determinada situação de conflito
que envolva algum direito material, implica numa resposta ou provimento judicial
justo.327
Sabe-se que parte de juristas encontra dificuldade quanto ao significado do
termo. Tal conflito traz confusões porque a referência à expressão tutela
jurisdicional normalmente é feita num sentido abstrato, sem ligação alguma com o
direito material. É neste sentido que Bedaque realça:
O emprego do termo tutela jurisdicional, todavia, não tem sido feito de
maneira uniforme pela doutrina. Existem processualistas que conferem à
expressão, ao que parece, sentido abstrato, isto é,desvinculado do
direito material.Definem-na como o poder de provocar a atuação da
jurisdição, se enfocada pelo ângulo de quem a requer, do ângulo do
prestador, é, a atividade do Poder Judiciário desenvolvida em esfera que
lhe é normalmente adstrita com exclusividade, a partir, geralmente, de
328
provocação da parte ou interessado.
Por certo, a jurisdição é provocada através da ação que se forma o
processo. O processo é o meio de praticar a jurisdição. A palavra processo
(processus) teve origem no verbo procedere e remete a ideia de direção a um fim,
mas, genericamente o emprego da palavra processo nos liga à ideia de processo
judicial, de busca pela efetivação do direito material no sentido de tutela jurídica
estatal.329
De toda essa sistemática, a tutela jurisdicional consiste num sistema de
medidas determinadas pelo legislador cujo objetivo é efetivar os direitos
materiais.
327
328
329
Ibidem, p. 29: “Nesse sentido, tutela jurisdicional deve ser entendida, assim, como tutela
efetiva de direitos ou de situações pelo processo. Constitui visão do direito processual que
põe em relevo o resultado do processo como fator de garantia do direito material. A técnica
processual a serviço processual de seu resultado”.
Ibidem, mesma página.
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil: processo de conhecimento. 3.
Ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1996, p. 07: “Processo (processus, do
verbo procedere) significa avançar caminhar em direção a um fim. Todo processo,
envolve a idéia de temporalidade, de um desenvolver-se temporalmente, a partir de um
ponto inicial até atingir o fim desejado. Nem só no direito ou nas ciências sociais existem
processos. Também na química, as transformações da matéria se dão através de um
processo; e na biologia costuma-se falar em processo digestivo, processo de crescimento
dos seres vivos, etc.”.
156
6.3 Perspectiva Constitucional do Processo Civil
O estudo do direito processual civil no Brasil assumiu novos formatos a
partir da Constituição Federal de 1988. Ao trazer vários princípios de natureza
processual à doutrina brasileira assegura que houve o fenômeno da
constitucionalização do processo civil em nosso sistema jurídico.
Esse fenômeno muda a leitura sobre o processo civil que passa a ser
inspirado nos princípios processuais constitucionais.
Importante referendar que a constitucionalização do processo civil difere
daquilo que a doutrina denomina de direito constitucional processual que é um
ramo
do
direito
público
formado
pelas
normas
constitucionais
e
infraconstitucionais enquanto que a constitucionalização do processo civil consiste
no sistema de princípios que tem por finalidade disciplinar a jurisdição
constitucional, porém, um fenômeno não exclui o outro porque ambas as
hipóteses fazem parte da justiça constitucional.330
A Constituição de 1988 abarcou novos direitos que exigem um sistema
processual útil e efetivo sob pena de colocar em risco o Estado Democrático de
Direito, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a promoção da justiça social.
Nessa ceara, é necessário criar novas técnicas e instrumentos processuais
capazes de garantir a concretude da norma sob pena de perda dos valores
constitucionais.
Já foi dito que a ausência de técnicas processuais adequadas à efetivação
de direitos sociais tem muita relação com a origem da formação de nosso
processo civil, porque a noção do direito clássico em relação ao processo era
desvinculada do direito material, o processo era mero instrumento e não parte de
um sistema.
330
NERY JUNIOR, 2000, passim.
157
Hoje, parte significativa de processualistas defende a integração direito
material com o direito processual, cuja finalidade consiste garantir efetividade dos
direitos fundamentais. Acreditam que a constitucionalização dos princípios
processuais na Constituição de 1988 inaugurou novo modelo de processo civil, no
direito brasileiro.
6.4 Princípios Processuais na Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal de 1988 traz um verdadeiro sistema de princípios
processuais que, interligados, objetiva garantir o acesso à justiça e ao direito de
forma efetiva e justa.
O primeiro princípio no sistema constitucional (CF/88) é o da garantia de
acesso à jurisdição e justiça no art. 5º, inc. XXXV (a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito); é o cerne do acesso ao direito e à
justiça e se integra a um conjunto de princípios processuais inserido na
Constituição.
Consta o princípio do devido processo legal no art. 5º, inc. LIV, da
Constituição Federal de 1988 – ninguém será privado da liberdade ou de seus
bens, sem o devido processo legal. Esse dispositivo significa que a Constituição
Federal garante o contraditório, a ampla defesa, o juiz natural, a igualdade das
partes.
Também o princípio do contraditório e princípio da ampla defesa expressos no
art. 5º, inc. LV, tanto no processo judicial quanto no administrativo é possível arguir
tal direito – o princípio do contraditório e o princípio da ampla defesa consistem no
direito de ser ouvido, de acompanhar os atos processuais, no direito de produzir
prova, no direito de ser informado regularmente dos atos praticados no processo, no
direito à motivação da sentença e no direito de impugnar as decisões.331
331
LOPES, 2005, p. 331.
158
Ainda, a doutrina contemporânea defende o princípio denominado de
paridade de armas entre as partes, ou seja, o tratamento igualitário que deve ser
dispensado pelo juiz ao autor e ao réu. O princípio da igualdade de tratamento
das partes está previsto na Constituição Federal de 1988, art. 5º, caput, e no inc. I
(“todos são iguais perante a lei”).
De acordo com Nelson Nery Junior, o princípio da igualdade significa que
os litigantes devem receber do juiz, tratamento idêntico. E que a norma do
art.125, inc. I, do Código de Processo Civil que trata da igualdade entre as partes
foi recepcionada pelo novo texto constitucional.332
Exemplo de aplicação do princípio da igualdade entre as partes ocorreu
recentemente no caso das cotas raciais no ADPF nº 186 – Arguição De
Descumprimento de Preceito Fundamental em trâmite no STF. O Partido
Democrata (DEM) autor da ação, requereu ao STF a inclusão de mais um
representante para participar da audiência pública que foi convocada pelo Órgão
com objetivo de discutir os pontos polêmicos das cotas. Como o pedido foi
realizado fora do prazo designado, foi indeferido pelo Ministro Ricardo
Lewandowski nos seguintes termos:
A preservação da isonomia tem pautado a história desta Corte
Constitucional. Fundado neste princípio constitucional organizei
audiência pública para ouvir as diferentes perspectivas conformadoras
da sociedade brasileira sobre a utilização do critério étnico-racial na
seleção de candidatos para o ingresso no ensino superior. Desse modo,
em função da devida paridade de participação daqueles que defendem a
constitucionalidade e a inconstitucionalidade das políticas se ação
afirmativa de reserva de vagas no ensino superior não é mais possível a
333
admissão de novos participantes na Audiência Pública.
Outros exemplos de igualdade real entre as partes estão previstos nos arts.
4º e 6º, inc. VIII, do Código de Defesa do Consumidor.
O consumidor é considerado a parte vulnerável da relação jurídica e, por
isso, deve ser tratado de forma a possibilitar uma igualdade real. Nesse caso a lei
332
333
NERY JUNIOR, 2000, passim.
Ibidem, p. 101.
159
determina ao fornecedor a produção da prova (inversão do ônus) mesmo sendo o
consumidor o autor da ação. Tal hipótese não é considerada quebra da isonomia,
mas, uso da técnica processual para possibilitar a igualdade real.
Essa norma do Código de Defesa do Consumidor é exemplo de que a
igualdade deixa de ser abstrata para atingir situações reais. É nessa linha de
pensamento que se discute a compatibilidade das cotas raciais no direito
brasileiro.
Outras formas de tratamento diferenciado que não infringem o princípio da
igualdade entre as partes, se relacionam com os prazos processuais ofertados ao
Ministério Público, à Fazenda Pública e Autarquias, que são maiores devido ao
interesse público prevalecer sobre o interesse privado.
O sistema contempla tais normas porque o objetivo constitucional em
relação ao princípio da igualdade ultrapassou a versão formal e a igualdade real
foi elevada como razão da segurança e daquilo que é justo.334
Já o princípio do Juiz e do Promotor natural significa que não poderá
existir juízo ou Tribunal ad hoc, ou seja, tribunal de exceção. Porque todas as
pessoas têm o direito de serem processadas e julgadas por um Juiz competente,
investido na função e de acordo com a legislação (art. 5º, inc. XXXVII da CF/88 “ninguém
será
processado
nem
sentenciado
senão
pela
autoridade
competente”). O princípio do Juiz e do Promotor natural teve origem no direito
alemão gesetzlicher Richter, que significa princípio do juiz-legal, terminologia
acolhida pelo direito português.335
Outro princípio que se extrai do texto constitucional é o princípio da
publicidade dos atos processuais, que consiste na divulgação dos atos processuais
de forma cautelosa, pelos órgãos de comunicação, sem comprometer, violar direito
fundamental ou trazer prejuízo para o interesse social e para a própria jurisdição. O
334
335
Ibidem, p. 98.
Ibidem, mesma página.
160
princípio da publicidade dos atos processuais está expresso no art. 5º, inc. XIV,
combinado com art. 5º, inc. LX, ambos da Constituição de 1988.
O princípio do duplo grau de jurisdição não está expresso na Carta de
1988, porém, uma leitura sistêmica e atenta do texto leva a concluir a existência
de tribunais para julgar os recursos (art. 5º, inc. LV), consiste de forma implícita no
direito do duplo grau de jurisdição. Também o direito de ação e o direito de defesa
são fundamentos para afirmar o princípio do duplo grau de jurisdição.
Enquanto que o princípio da motivação (fundamentação) das decisões
judiciais, por um lado significa o dever do Estado em prestar a jurisdição com
transparência, também faz parte da garantia dos cidadãos em receber um
pronunciamento judicial compatível com a Constituição.
Conforme dito anteriormente a audiência pública convocada pelo Supremo
Tribunal Federal sobre as cotas raciais teve por objetivo conhecer os
fundamentos de adeptos e detratores das medidas no sentido de futuramente
servir de inspiração para os Ministros do STF fundamentarem os votos na decisão
final, que certamente acontecerá.
O princípio da motivação das decisões tem intrínseca ligação com a
transparência da função jurisdicional e a natureza de controle e fiscalização pelas
partes, pelos órgãos judiciais superiores e, de forma geral, pela sociedade. No
caso da Audiência Pública pode se dizer que consiste numa forma de fiscalização
da sociedade em relação às decisões judiciais, se elas estão afetas à
Constituição. O art. 93, inc. IX, da Constituição Federal, acrescenta a
obrigatoriedade da publicidade e fundamento de todas as decisões judiciais.336
O
princípio
da
proporcionalidade
decorre
de
outros
princípios
constitucionais como o da legalidade (art. 5º, inc. II da CF/88 – “ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”), do
devido processo legal e do próprio princípio do Estado de Direito. O princípio da
336
Ibidem, p. 48-53.
161
proporcionalidade funciona como uma técnica à disposição do Julgador para
ponderar normas que porventura estejam em conflito e buscar um ponto de
equilíbrio dentro do próprio ordenamento constitucional, cujo objetivo consiste em
adequar a solução mais justa à situação fática.337
Este instrumento da ponderação tem sido muito utilizado pelo Judiciário
para decidir, favoravelmente, ao sistema de cotas raciais e justificar a
possibilidade do sistema e a compatibilidade das reservas de vagas no ensino
superior público, com o princípio da igualdade de todos perante a lei.338
6.5 Inovações do Código de Processo Civil
O Código de Processo Civil Brasileiro permaneceu fortemente atrelado a suas
origens até realizar as primeiras mudanças em 1994, mesmo assim, não conseguiu
abarcar a política processual, que emana da Constituição Federal de 1988.
Entretanto, as modificações que foram realizadas no sistema processual
indicam uma nova visão de processo que foge do modelo fechado de
classificação das tutelas. A doutrina aduz que as reformas tiveram impacto no
sistema e podem ser classificadas em duas importantes fases: as modificações
que começaram no ano de 1985 e outras que culminaram com a edição da
Constituição Federal de 1988.
Na
primeira
fase
foram
criados
instrumentos
processuais
para
demandas coletivas como: a Lei nº 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública); Lei nº
337
338
GUERRA FILHO, 2005, p. 55: “O princípio da proporcionalidade, entendido como
mandamento de otimização do respeito máximo a todo direito fundamental, em situação de
conflito com outros(s), na medida do jurídico e facticamente possível, tem um conteúdo que
se reparte em três ‘princípios parciais’ (Teilgrundsätze); ‘princípio da proporcionalidade em
sentido estrito’ ou ‘máxima do sopesamento’ (Abwägungsgebot), ‘princípio da adequação’ e
‘princípio da exigibilidade’ ou ‘máxima do meio suave’ (Gebot des midesten Mittels)”.
LOPES, 2005, p. 50: “De acordo com a doutrina, o princípio da proporcionalidade tem por
finalidade solucionar a colisão ou conflito entre princípios fundamentais, permitindo que a
autoridade, ao decidir, faça uma avaliação dos interesses em jogo para dar prevalência ao
que melhor corresponder aos valores essenciais da ordem jurídica”.
162
7.853/89, que dispõe sobre a proteção das pessoas portadoras de deficiência;
a Lei nº 8.069/90, que trata de promoção dos direitos da criança e do
adolescente; a Lei nº 8.078/90 (Código de Proteção e Defesa do Consumidor);
a Lei nº 8.429/92, que dispõe sobre a probidade na Administração Pública; a
Lei nº 8.884/94, que regulamenta questões de ordem econômica e a Lei nº
10.741/03, que define a proteção dos direitos da pessoa idosa; a Constituição
Federal de 1988 assegurou a participação de qualquer cidadão para propor a
ação popular (art. 5º, inc. LXXIII) e trouxe um sistema de controle de
constitucionalidade que favorece a participação na proteção das garantias
constitucionais.
Esse rol de instrumentos processuais tem por finalidade alterar uma ordem
jurídica de tradição contratualista porque criou mecanismos de defesa, prevenção
e promoção dos direitos fundamentais. Alterações significativas como a
possibilidade de aplicar a tutela específica; ação sumária em casos de direito
líquido e certo, pela via Mandado de Segurança; ampliação da participação
popular seja mediante as entidades e associações civis, seja através da atuação
do Ministério Público ou de Pessoa de Direito Público.339
Enquanto que a segunda fase das modificações no sistema processual
iniciou-se no ano de 1994. Fase em que o discurso era voltado para a efetividade
do processo em busca de atender os anseios da população em face das
exigências do modelo econômico e social. O impacto dessa reforma iniciou com o
sistema recursal com a Lei nº 8.950, de 13 de dezembro de 1994, após, foram
criados os procedimentos especiais para ações contratuais e possessórias (Lei nº
8.951/94), tal norma alterou diversos artigos no sistema do processo de
conhecimento e cautelar. Um tempo depois as modificações evoluíram e em 2001
foi editada outra norma relativa ao sistema recursal (Lei nº 10.352/01 e também
inovações relacionadas ao processo de conhecimento e de execução (obrigação
de fazer ou não fazer) com advento das leis: Lei nº 10.358/01 e Lei nº
10.444/02.340
339
340
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de
direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 19-21.
Ibidem, p. 23-26.
163
Com essas alterações o art. 461 do Código de Processo Civil permite tanto
a atividade executiva quanto a cognitiva, numa mesma relação processual.
Tal mudança é considerada a linha divisória, que transpassa o modelo de
processo fechado atrelado à classificação taxativas das ações. Sendo que essa
alteração rompeu, de certa forma, com a divisão clássica da atividade cognitiva
que somente podia acontecer no processo de conhecimento e hoje tornou
possível aplicar a cognição também no processo executivo.
O art. 461341 do Código de Processo Civil transporta, quase no mesmo
teor, a norma do art. 84342 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor que
tem como fundamento permitir a tutela específica, de forma que a tutela de
direitos passa a ser mais efetiva.343
Zavascki assegura que as mudanças realizadas no Código de Processo
Civil inauguram outro sistema processual, mais flexível e útil:
341
342
343
Art. 461 do Código de Processo Civil: Na ação que tenha por objeto o cumprimento de
obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou,
se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático
equivalente ao do adimplemento. § 1º – A obrigação somente se converterá em perdas
e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do
resultado prático correspondente. § 2º – A indenização por perdas e damos dar-se-á
sem prejuízo da multa (art. 287). § 3º – Sendo relevante o fundamento da demanda e
havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é licito ao juiz conceder a
tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar
poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada. § 4º
– O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao
réu, independentemente do pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a
obrigação, fixando-lhe prazo razoável para cumprimento do preceito. § 5º – Para a
efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o
juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a
imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e
coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com
requisição de força policial.
Art. 84 do Código de Defesa do Consumidor: Na ação que tenha por objeto o cumprimento da
obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou
determinará providencias que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento
[...] § 1º ao 5º.
ZAVASCKI, 2006, p. 24: “A nova redação do art.461 do Código de Processo Civil,
importado, praticamente ipsis litteris, do art.84 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de
1990 (Código de Proteção e Defesa do Consumidor), trouxe, como se percebe, inovações
expressivas, todas inspiradas no princípio da maior coincidência possível entre a
prestação devida e a tutela jurisdicional entregue. No sistema anterior, a alternativa que
se oferecia ao credor para a impossibilidade (ou, eventualmente, seu desinteresse) de
obter tutela específica era a de converter tal proteção em sucedâneo pecuniário de
perdas e danos”.
164
No particular, o sistema sofreu inversão completa: aquela obrigação, que
originalmente dependiam, necessariamente, de prévia sentença
condenatória e de execução por ação autônoma, agora podem ser objeto
de título extrajudicial e somente nessa hipótese é que seu cumprimento
forçado está sujeito a ação própria. Nos demais casos, o seu regime
processual é o previsto nos arts.461 e 461-A do CPC, segundo os quais
tanto a atividade cognitiva quanto a executiva são promovidas no âmbito
de uma única relação processual .Vista à luz do sistema, a essa
mudança processual quebra uma das características básicas do regime
estabelecido pelo Código de 1973, o da rígida e praticamente
incomunicável distribuição das atividades jurisdicionais cognitiva e
344
executivas em ações e procedimentos separados.
Entende-se, que com a nova redação do art. 461, existe fundamento para
impedir a prática, a continuação ou a repetição do ilícito (não fazer) ou determinar
(um fazer), ou seja, uma atuação positiva. E isso resulta em maior concretização
da tutela de direitos.345
Sem fazer muito esforço verifica-se que a tutela específica pode ser muito
útil à concretização de direitos sociais, como as cotas no ensino superior, porque
a redação do art. 461, § 5º, do Código de Processo Civil,346 concede ao juiz
maiores poderes de adequação da técnica processual ao direito material. Tal
dispositivo inaugura o princípio da concretização dos poderes de execução nas
mãos do juiz e supera o princípio da tipicidade das formas executivas até então
vigentes na norma processualista brasileira.347
O entendimento doutrinário é que essa norma não consiste em
faculdade e sim dever do juiz na busca pela efetividade do processo. Porque
344
345
346
347
Ibidem, p. 23.
SILVA, Jaqueline Mielke. O Direito Processual Civil como Instrumento de Realização de
Direitos. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2005-b, passim.
Art. 461 do Código de Processo Civil: Na ação que tenha por objeto o cumprimento de
obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se
procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático
equivalente ao do adimplemento [...]. § 5º – Para a efetivação da tutela específica ou a
obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento,
determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso,
busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento
de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Específica: arts. 461 do CPC e 84 do CDC. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 155-174: “A nova redação do art. 461 do Código de
Processo Civil que acrescentou o § 5º concede ao juiz maiores poderes de adequação da
técnica processual ao caso concreto. Sendo que essa abertura ‘inaugura o principio da
concretização dos poderes de execução nas mãos do juiz’ e supera o princípio da tipicidade
das formas executivas até então vigentes na norma processualista brasileira”.
165
os poderes do juiz ficam vinculados ao princípio da concretização dos
direitos.348
Não importa se tais institutos são normas do direito civil e objetiva regularizar
conflitos contratuais. Porque as alterações atingem todo o sistema e devem ser
aplicadas em matéria que envolva direitos sociais, coletivos e difusos.349
Abre-se um parêntese para citar exemplo de aplicação de instituto do
direito privado à esfera privada. Há quem diga ser possível aplicar a obrigação de
fazer e não fazer, instituto de direito civil, à esfera pública no sentido de exigir do
Estado cumprimento dos direitos sociais eleitos pela Constituição Federal. A
obrigação de fazer prevista no art. 632 e a obrigação de não fazer no art. 642 do
Código de Processo Civil são meios para exigir, do Estado, a realização da justiça
social. Para isso será preciso que o jurista vença conceitos tradicionais da teoria
civil e extraia novas leituras, com base na Teoria Geral do Direito.350
Voltando ao assunto da reforma do Código de Processo Civil, não havia
norma apropriada à aplicação da tutela específica. Normalmente a ação cautelar
inominada era utilizada para este fim, cuja base, os arts. 798 e 799 do CPC, eram
o recurso para a aplicação da tutela específica. Somente com a edição da Lei nº
8.952, de 13 de dezembro de 1994, que introduziu mudanças no art. 461 do
Código de Processo Civil, um dos maiores avanços no sistema processual civil,
tornou-se possível a aplicação da tutela específica, de forma mais ampla.
O art. 461 do Código de Processo Civil – com redação alterada pela Lei
nº 10.444/02 – permite que o juiz determine o cumprimento de uma
obrigação de fazer ou não fazer na sentença ou mediante tutela
antecipada. Para a efetivação da tutela específica, o magistrado é
348
349
350
Ibidem, p. 15-16.
MAZZILLI, Hugo Nigro. Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente,
consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. São Paulo: Saraiva,
2006, passim.
PAULA, 2002, p. 162-171: “A função do jurista moderno, inspirado numa filosofia crítica, com
a ampliação de sua epistemologia – o jurista moderno é ao mesmo tempo causa e resultado
de sua ciência –, é a de buscar no Direito, a re-construção [sic] social, a interação das classes
sociais, a promoção do bem estar comum [...]. Não se pode simplesmente transpor a
estrutura civilista da relação jurídica obrigacional de fazer e não fazer à esfera pública, a
despeito de os verbos fazer e não fazer apresentarem a mesma atividade comissiva – agir –
ou comissiva por omissão – não fazer – e tais condutas são exigíveis do Estado”.
166
dotado de amplos poderes – com a possibilidade de imposição de
351
diversas medidas em caráter coercitivo.
Outro dado importante sobre o assunto é que a disciplina dos arts. 461 e
461-A do Código de Processo Civil e art. 84 do Código de Defesa do Consumidor
têm a mesma base teórica do princípio da fungibilidade do sistema recursal. A
finalidade do princípio da fungibilidade é permitir ao julgador eleger outra
modalidade de recursos, desde que respeite alguns critérios.352
Se o recurso for interposto inadequadamente, o Tribunal pode recebê-lo e,
posteriormente, fazer a correção e ajustar ao caso o recurso cabível de acordo
com a legislação. Essa técnica comporta alguns requisitos como a existência de
dúvida relevante sobre o recurso que comportaria e até mesmo divergência
doutrinária ou jurisprudencial sobre qual recurso interpor em determinado caso.
Para isso é necessário que o recurso (inadequado) tenha sido apresentado no
prazo legal para interpor o recurso que seria adequado.353
Na essência, esses dispositivos remetem à ideia de conceder ao juiz o
poder de adequação da melhor técnica ao direito material. Constitui-se num
método importante porque não seria possível ao legislador prever todas técnicas
possíveis adequadas a cada caso.354
Outra
alteração
significativa
que
indica
rompimento
do
modelo
tradicional de processo, se relaciona a tutela antecipada (art.273 do CPC) esse instituto tornou-se universal no sistema processual porque antes da
351
352
353
354
SILVA, 2005-b, passim.
MARTINS, Fernanda; OLIVEIRA, Flávio Luis de. Processo Civil II: recursos. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 13: “Recurso é o meio processual do qual se vale a parte lesada, terceiros
prejudicados ou o Ministério Público para se insurgir contra uma decisão judicial que lhe seja
desfavorável, no todo ou em parte. É o recurso, assim, o instrumento que submeterá a
decisão impugnada à reapreciação, a fim de que seja melhorada a situação do recorrente”.
Ibidem, p. 30: Neste viés, “a doutrina mais atualizada, mas ainda minoritária, entende ser
requisito necessário à aplicação da fungibilidade a existência apenas de ‘dúvida objetiva’.
Pode-se afirmar, ainda, que a fungibilidade se justifica também à luz do princípio da
instrumentalidade das formas (arts. 244, 249, § 1º, 250, todos do CPC). Configura-se a
‘dúvida objetiva’ em razão da existência de divergência doutrinaria e jurisprudencial acerca do
cabimento de um ou outro recurso, não bastando a simples existência de dúvida subjetiva,
íntima, do recorrente”.
LOPES, João Batista. Tutela Antecipada no Processo Civil Brasileiro. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003, passim.
167
reforma, a tutela antecipada não era permitida em todos os tipos de
procedimento, apenas naqueles considerados especiais, como o caso das
ações possessórias. Hoje é possível o uso da tutela antecipada em qualquer
procedimento, desde que atenda certos requisitos.
Quanto ao conceito de tutela antecipada pode se afirmar que representa
antecipar os efeitos executivos, que poderão decorrer da futura sentença de
procedência. Mediante a verossimilhança (ou seja, a força da existência do direito
à tutela jurisdicional), o juízo pode antecipar a tutela buscada pela parte.355
Defende-se que o instituto se mostra fundamental para o acesso ao
direito e à justiça de forma justa:
O reformador de 1994 introduziu no
avanços traduzidos pelo art. 273
antecipação da tutela, meio apto a
material, diante da verossimilhança,
356
perseguido.
sistema um dos mais importantes
do CPC, mais precisamente a
possibilitar ao detentor do direito
o imediato gozo do bem da vida
O art. 273, § 7º, do Código de Processo Civil ampliou o uso da técnica
processual com a redação:
Art. 273: [...].
[...]
§ 7º: Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providências
de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos
pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do
processo ajuizado.
Entende-se que o enunciado, ao possibilitar o juiz definir medida
cautelar de natureza incidental, amplia os horizontes para a aplicação da
melhor técnica processual adequada ao litígio. O juiz não fica restrito a
questões formais e pode, através da técnica cognitiva (ato de inteligência),
eleger o melhor meio e o mais apropriado para solucionar o conflito.357
355
356
357
ZAVASCKI, 2006, p. 25.
CIANCI, Mirna. O Acesso à justiça e as reformas do CPC. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 97.
WATANABE, Kazuo. Tutela Antecipatória e Tutela Específica das Obrigações de Fazer e
Não Fazer (Arts. 273 e 461 do CPC): reforma do Código de Processo Civil. São Paulo:
Saraiva, 1996, p. 27-29.
168
A própria tutela antecipada é uma técnica que objetiva a proteção do
jurisdicionado, que recebe a tutela de direito antes do fim do processo. Essa
modalidade de provimento judicial depende de alguns requisitos como a
demonstração da urgência e a verossimilhança do direito (quase certeza do
direito, autenticidade do direito). Em alguns casos a simples prática de
protelação dos atos processuais, o abuso do direito, ausência de defesa ou a
incontrovérsia dos fatos pode ser motivo para o juiz antecipar os efeitos da
tutela. Isso que dizer antecipar a própria pretensão do autor.358
Foi descrito, no curso desse trabalho, que a base teórica da formação de
nosso direito processual civil tem forte assentimento em institutos do direito
privado, portanto, até que se crie um sistema processual apropriado aos
direitos sociais fundamentais, essas mudanças abrem caminhos a outro
modelo de processo e conferem maiores poderes ao julgador, no uso da
técnica cognitiva.
Acredito que a reflexão sobre a finalidade e a razão do processo deva
fazer parte do raciocínio do jurista, que almeja encontrar soluções para a
realização de inúmeros direitos sociais positivados na Constituição e leis
infraconstitucionais que muitas vezes deixam de ser aplicadas por ausência de
instrumentos processuais.
6.6 A Cognição como Técnica Processual
A nova dimensão constitucional sobre o processo é que permite avançar o
debate e compreender as aberturas do sistema para a criação de novas técnicas
processuais com o fim de realizar o direito.
Uma das técnicas processuais de importância, na nova dinâmica
processual, trata-se da cognição. A cognição consiste no ato de inteligência do
358
CIANCI, 2009, p. 98-101.
169
Juiz para a valoração das alegações, das provas, das questões de fato e de
direito, ou seja, de todos os aspectos que se discutem no processo. O objetivo
dessa técnica é permitir ao julgador eleger a melhor técnica, de acordo com a
natureza do direito.359
Com a técnica da cognição o julgador não fica restrito a um rol taxativo
de instrumentos processuais e pode eleger o meio adequado ao direito
material, cuja finalidade do uso é prestar a tutela jurisdicional, da melhor forma
possível.
No debate teórico existem duas linhas de pensamento sobre as inovações
do processo civil. A primeira delas defende o instrumentalismo que se denomina
substancial e a outra teoriza no sentido do instrumentalismo meramente nominal
ou formal do processo.
A primeira dimensão (substancial) prioriza o estudo do direito material no
campo dos direitos subjetivos, da pretensão, do direito material e do direito de
ação. Em resumo, essa linha de pensamento considera que para cada ação de
direito material existe uma pretensão, na esfera processual.360
Um dos adeptos dessa concepção é Pontes de Miranda que tem como
seguidores Celso Neves e Ovídio Baptista da Silva.361
359
360
361
WATANABE, Kazuo. Da Cognição no Processo Civil. São Paulo: Perfil, 2005, p. 67: “A
Cognição é prevalentemente um ato de inteligência, consistente em considerar, analisar e
valorar as alegações e as provas produzidas pela partes, vale dizer, as questões de fato e as
de direito que são deduzidas no processo e cujo resultado é o alicerce, o fundamento do
judicium, do julgamento do objeto litigioso do processo”.
Ibidem, p. 24: “Uma dessas perspectivas é a de direito material. Os processualistas dessa
tendência procuram desenvolver o estudo do direito subjetivo, da pretensão de direito
material e da ação de direito material, conduzindo à conclusão de que, no plano processual, a
cada ação de direito material corresponde, de ordinário, “a ação” de direito processual e uma
pretensão processual. A parte teria pretensão (e também ação) à declaração, ou à
condenação, ou à constituição, ou à execução, ou ainda ao mandamento (para os que
sustentam, como nós, a admissibilidade da ação e sentença mandamental), já no plano do
direito material, e sua processualização se dá através da demanda, que constitui exigência da
promessa estatal de tutela jurídica, nascendo a pretensão processual como o pedido
(petitum). Dentro desse enfoque, o processo seria bem aderente ao direito material, pois a
pretensão processual estaria perfeitamente ajustada à peculiaridade e à exigência da
pretensão material.
Ibidem, p. 23-25.
170
Para Pontes de Miranda o direito da ação não pode ser confundido com a
pretensão, pois, a pretensão é a tensão, para algum ato ou omissão, dirigida a
alguém.362
É a partir dessa concepção que Pontes de Miranda classifica as ações de
acordo com a carga de eficácia. Ou seja, desenvolveu a classificação quinária
nomeando as ações em declaratórias, constitutivas, condenatórias, executivas e
mandamentais.363
Já os seguidores da linha de pensamento baseado na dimensão nominal
ou formal do processo tiveram influência nas ideias de Chiovenda. Sendo que a
teoria nominal ou formal é voltada para o sentido processual e busca aprofundar o
estudo sobre os institutos e técnicas processuais e colocam a cognição como
uma das técnicas processuais de relevância no momento de aplicação do direito.
Aqui a discussão surge em torno dos modelos procedimentais, dos procedimentos
especiais, da aceleração e simplificação das formas dos processos, da facilitação
da prova. Defendem uma visão social do processo. Isso quer dizer, objetivam
facilitar o acesso ao direito e à justiça, pela via processual.364
No Capítulo anterior fizemos algumas notas sobre a importância da teoria
da ação criada por Chiovenda365 – a teoria da ação como direito potestativo – de
acordo com essa teoria a ação não se dirige contra o Estado, mas, a ação é um
direito que a parte interessada tem para provocar a atividade jurisdicional contra
362
363
364
365
MIRANDA, Pontes de. Tratado das Ações. Campinas: Bookseller, 1988, p. 69: “Pretensão é,
pois, a tensão, para algum ato ou omissão, dirigida a alguém. O pré está, aí, por ‘diante de si’.
O direito é dentro de si mesmo, tem extensão e intensidade; a pretensão lança-se. Não é o
direito nem a ação, nem, a fortiori, a ação (sentido processual); há direitos que perderam, ou
não têm pretensão; há ações, sem que o autor delas seja o titular da pretensão; e pretensão,
sem a ‘ação’ ou sem a ação e a ‘ação’. Na pretensão, o direito tende para diante de si,
dirigindo-se para que alguém cumpra o dever jurídico”.
MIRANDA, 1988, p. 28: “[...] temos de partir de que há cinco classes de ações e de
sentenças, e em todas elas se revelam as que se hão de considerar típicas. Há as que
preponderantemente declaram, as que preponderamente constituem, positiva ou
negativamente, as que preponderantemente condenam, as que preponderantemente
mandam e as que preponderantemente executam. Todas têm os outros quatros elementos,
em diferentes pesos. Mas, entre elas, ressaltam as que se podem considerar típicas, isto é,
as que, com os seus pesos, de certo modo se põem em primeiro lugar, dentre as outras da
mesma classe”.
WATANABE, 2005, p. 23-25.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. 3. ed. Traduzido por J.
Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1969, 1 vol., passim.
171
seu adversário. A ação se revela como poder jurídico, pré-requisito para a
aplicação do direito. De forma que a ação tem natureza pública ou privada.366
Importa dizer que ambas as teorias, tanto a dimensão material quanto a
dimensão nominal ou formal são significativas no estudo do processo, além de
terem ponto de confluência, principalmente, em relação à dimensão constitucional
do processo civil.367
No último tópico deste capítulo será feito comentários sobre o uso dessa
técnica, nos julgados sobre as cotas raciais.
6.7 Modalidades de Tutela
O objetivo desse tópico é discorrer sobre algumas modalidades de tutela,
porque no decorrer de todo o trabalho mencionamos que a adequação da tutela
processual em relação ao direito material é, fundamentalmente, decisiva para
uma jurisdição justa e efetiva.368
366
367
368
SANTOS, 1980, p. 152.
WATANABE, 2005, p. 26-28: “Ambas as perspectivas são igualmente relevantes. Devem
mesmo constituir-se num método de pensamento unitário, de modo que se atinja, pelos
esforços concêntricos partidos de ambos os pólos, o objetivo comum, que é o de tutela efetiva
de todos os direitos. Se de um lado há existência próprias do direito material por uma
adequada tutela, há outro as técnicas e soluções específicas do direito processual, não
somente quanto à natureza do provimento (aqui o ponto maior de aderência ao reclamo do
direito material), como também no tocante à duração do processo, à eventual antecipação da
tutela, à intensidade e amplitude da cognição, e a muitos outros aspectos. Necessário é, bem
por isso, que as “águas” se misturam de todo, aceitando os defensores de uma tendência os
resultados mais significativos alcançados pela outra, sem os preconceitos que os distanciam”.
ARENHART, Sérgio Cruz. A Tutela Inibitória da Vida Privada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, 2 vol., p. 29-30: “II processo deve dare per quanto è possibile praticamente a
chi há um diritto tutto quello e próprio quello ch`egli há diritto di conseguire”. Com estas
palavras – usadas hoje em qualquer monografia que se preocupe com a efetividade do
processo –, Chiovenda definia aquela que viria a ser a máxima regra do processo civil
moderno. De fato, se o Estado concede a alguém algum direito, mas veda ao cidadão a tutela
autônoma e própria destes, é então necessária que o aparato estatal confira àquela pessoa
mecanismos suficientes e adequados para garantir a efetivação do direito outorgado. Solução
diversa desta acarretaria a conseqüência de que os direitos assegurados pela legislação
estatal não passariam de mera garantia formal, retórica e existente apenas como um
simbolismo. Sem a proteção adequada aos direitos conferidos, o direito estatal perde sua
legitimidade – na medida em que não consegue ser imposto –, ruindo, com isso, todo o
sistema jurídico posto e abrindo espaço para que novas ordens jurídicas (paraestatais) surjam
e se desenvolvam.
172
Também porque o objeto de nossa pesquisa consiste na análise da tutela
processual como mecanismo de efetividade da política de cotas nas
universidades públicas, assim, será discutido, com mais especificidade, as
modalidades de ressarcitória, tutela preventiva e específica.
Conforme foi descrito no item anterior, a flexibilização dos modelos de
tutelas processuais começou a surgir com as inovações realizadas no sistema
processual, muito embora o assunto sempre foi discutido por processualistas
visionários e comprometidos com a finalidade social do processo.
Galeno Lacerda em 1972, portanto, bem antes da reforma processual fazia
questionamentos sobre o modelo fechado de nosso sistema processual e dá
exemplo do modelo de tutela como os interditos que tiveram origem no direito
romano e não tutelava apenas ações de natureza possessória, mas outros
materiais de direito, tais como os lugares sagrados, a liberdade pessoal e da
família. Seria um modelo útil a ser seguido pelo ordenamento brasileiro já que o
processo civil tem seus fundamentos naquela fonte.369
Flávio Luis de Oliveira, com pensamento similar, acresce que a tutela
interdital no direito romano era uma espécie de tutela específica e defende que
a origem da antecipação da tutela foi nos interditos romanos. Os interditos
romanos eram classificados interditos proibitórios, restitutórios e exibitórios.
Por isso, acredita-se que o atual procedimento previsto no Código de Processo
Civil brasileiro – arts. 273 e 461 – mostra que a tutela antecipada e a tutela
específica têm certa ligação como a tutela interdital romana. Mas existem
diferenças entre tais institutos, por exemplo, na hipótese de pretensão
meramente obrigacional, a antecipação da tutela possui uma limitação sendo
que no Código Civil brasileiro a tutela antecipada se aproxima dos interditos
apenas na hipótese de a lide cuidar de um direito, mas pode possuir objetos e
características diferentes.370
369
370
LACERDA, Galeno. Mandados e Sentenças Liminares: contribuição para a reforma
processual. Uberlândia: Jurídica, 1972, passim.
OLIVEIRA, Flávio Luis de. A Garantia Constitucional à Tutela Interdital: a especificidade da
tutela especifica. In: Revista Novos Estudos Jurídicos, nº 12, p. 10-12. São Paulo, jan.
2007.
173
É interessante notar que os interditos eram uma forma de tutela
especifica com possibilidade de liminar, mas nem toda tutela
especifica e ou antecipada, na atual sistemática, pode ser
371
considerada interdital.
Mas qual é a forma mais apropriada de classificar as modalidades de
tutelas? O fato mais importante, talvez, consista em não existir uma fórmula, pois
o que se discute é justamente o desenquadramento da fórmula mágica e dos
modelos taxativos de tutelas processuais, que foram construídos no curso da
historia do processo civil. Portanto existem diversas formas de classificar as
tutelas, o que não deve ser aceito é restringir um rol e apresentá-lo como modelo
taxativo:
O cuidado primordial que se deve ter com a classificação das tutelas
jurisdicionais é a de que, como regra, esta sistematização não pode
servir como um modelo absoluto. Quer dizer que não é porque uma
forma de tutela não está previamente catalogada, que
necessariamente não poderá ser utilizado pelo juiz para proporcionar
a efetividade do processo na consecução dos comandos do direito
372
material.
A primeira classificação das tutelas surgiu no período clássico onde se reduzia
as tutelas na classificação trinária: tutela constitutiva, condenatória e declaratória.
Com passar do tempo, Pontes de Miranda acrescentou muito para a
evolução da classificação das tutelas porque tipificou as ações em cinco modelos
(executiva, condenatória, declaratória, constitutiva e mandamental).373
Importante ressaltar as inovações criadas por Pontes de Miranda da
classificação quinária das ações. Ele aponta para a flexibilidade de técnicas
porque, em seu pensamento, cada modalidade de tutela tem carga de eficácia
uma das outras, não há um modelo só condenatório ou declarativo, cada qual
apresenta peso maior ou menor de acordo com sua tipificação – os elementos de
cada uma compõem os elementos das outras:
371
372
373
Ibidem, p. 11.
GARCIA, Thiago Munaro. As Tutelas de Urgência no Âmbito dos Juizados Especiais
Civis como Garantia de Acesso à Justiça. Dissertação de Mestrado apresentada à
Instituição Toledo de Ensino – Centro de Pós-Graduação. Bauru, 2009, p. 111.
MIRANDA, 1988, passim.
174
[...] temos de partir de que há cinco classes de ações e de sentenças, e
em todas elas se revelam as que se hão de considerar típicas. Há as que
preponderantemente declaram, as que preponderantemente constituem,
positiva ou negativamente, as que preponderantemente condenam, as
que preponderantemente mandam e as que preponderantemente
executam. Todas têm os outros quatros elementos, em diferentes pesos.
Mas, entre elas, ressaltam as que se podem considerar típicas, isto é, as
que, com os seus pesos, de certo modo se põem em primeiro lugar,
374
dentre as outras da mesma classe.
O pensamento de que o modelo de tutela tinha que ser taxativo nasce no
direito liberal onde não se fazia diferenciações entre os bens e pessoas, fato que
teve reflexo direto na forma de classificação das sentenças e onde as categorias
da ilicitude e da responsabilidade eram confundidas.
A forma de relacionar a sentença condenatória diretamente com a ação de
execução era o bastante para resolver as várias hipóteses de direito material, que
demandavam a tutela processual.
A crítica a essa concepção liberal se relaciona com o aspecto pecuniário em
que foram estabelecidas as modalidades de tutelas, porque não se vislumbravam
uma forma específica de tutela para proteger interesses não patrimoniais.375
Sempre que o ordenamento jurídico garantir um direito material há de
prever o instrumento processual apto a realizar esse direito. Pouco adianta uma
legislação farta em direitos materiais sem o veículo para conseguir realizar tais
direitos.
A ausência de tutela para um determinado direito vale pouco mais do
que o seu não reconhecimento pelo ordenamento. É como a dívida
prescrita, ou a resultante de jogo: não há modo de atuar-se a pretensão
em caso de conflito de interesses. De que vale, então, um direito que
não se pode exigir do Estado? Vale tudo para sustentar o discurso
376
neoliberal da falência do Estado, que tudo promete, mas nada cumpre.
Isso nos mostra que o direito de ação é um direito material e não se
confunde com o direito à tutela processual (ação processual). Porque a ação
374
375
376
Ibidem, p. 28.
MARINONI, 2001, p. 13-14.
ARENHART, 2000, 2 vol., p. 32.
175
processual é o meio – nos dizeres de Marinoni é o veículo – que proporciona a
concretização do direito material.
Por isso se discute a importância do processo como meio para realizar a
justiça social e a adequação dos procedimentos, das técnicas processuais,
enfim de uma política processual sistematizada e integrada com o sistema de
direitos e garantias fundamentais sociais que possibilitam a promoção da justiça
social.377
Nessa linha de pensamento que a proteção dos direitos mediante a tutela
processual pode ocorrer de diferentes modos: pela tutela de conhecimento ou
cognitiva; tutela executiva; tutela cautelar; tutela declaratória; constitutiva;
mandamental; tutela preventiva, inibitória, tutela específica, tutela diferenciada,
tutela de urgência, tutela repressiva, ressarcitória, entre outras.378
Há autores que classificam as tutelas em duas modalidades básicas: a
tutela repressiva e a tutela preventiva que englobam todas as demais
modalidades e afirma que no modelo tradicional quase todas as modalidades de
tutelas ficam no campo repressivo.379
O objetivo da tutela repressiva é restabelecer a situação anterior ao
acontecimento da lesão ao direito (seja pela devolução das coisas ao seu estado
anterior, seja pelo ressarcimento pecuniário ou por meios equivalentes, dos
prejuízos causados).380
No período clássico a tutela repressiva estava vinculada à ideia tradicional
de jurisdição, surgiu para resguardar interesses individuais (subjetivos) de cunho
meramente patrimonial, como nas relações contratuais.381
377
378
379
380
381
Ibidem, 2 vol., p. 41-42.
GARCIA, 2009, p. 178.
ARENHART, 2000, 2 vol., p. 41-42.
Ibidem, 2 vol., p. 98-99.
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela de Direitos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 17: “Há, com maior nitidez, uma visível correlação entre a figura do
contrato, a igualdade formal dos sujeitos contratantes e a tutela ressarcitória, como sanção
expressiva da realidade da economia de mercado”.
176
A sentença era classificada de forma trinária: declarativa, condenatória e
constitutiva, razão que não contribuía para que o Juiz interpretasse os fatos além
da lei formal.382
O Estado era considerado inimigo do cidadão e isso impossibilitava uma
atuação no sentido de resguardar os direitos imateriais das pessoas, somente os
bens materiais tinham amparo da tutela ressarcitória.383 Tal modelo previa a
igualdade apenas no plano formal porque não era de interesse do sistema jurídico
e político uma igualdade real. Nenhuma intenção havia quanto à preservação de
mecanismo processual para as situações e posições sociais diferenciadas. Essa
ideologia teve seus reflexos sobre o Poder Judiciário que mantinha as decisões
apegadas à lei.384
O entendimento de que a sanção estava relacionada a perdas e danos não
gerava abertura para se pensar em outras formas de tutela diferenciadas.385
O conteúdo não patrimonial, ou preponderantemente não-patrimonial, de
alguns direitos torna completamente inefetiva à tutela de ressarcimento
382
383
384
385
Ibidem, p. 37-40: “Essas sentenças como atos integrantes do processo de conhecimento
clássico, não permitem ao juiz atuar a não ser no plano normativo, e assim apenas
objetivariam afirmar a vontade da lei e a autoridade do Estado-legislador. Note-se que falar
em atuação no plano normativo não é apenas identificar o julgamento com a lei, pois no
direito liberal a atividade de julgar não era limitada somente pela legislação, mas também pela
atividade executiva.Esta, objetivando a segurança pública e, sobretudo, a limitação dos
poderes do juiz, concentrava a atividade de execução material das decisões judiciais”.
GARCIA, 2009, p. 186: “A tutela ressarcitória é a tutela prestada à parte litigante que busca o
Poder Judiciário após a verificação do dano. Visa, nesta esteira de raciocínio, que o processo
proporcione ao demandante, nos exatos termos do direito moral, a reparação do dano
ilicitamente sofrido”.
MARINONI, 2004, p. 35-36: “Como se sabe, o Estado liberal clássico, diante de sua finalidade
principal de garantir a liberdade dos cidadãos, foi marcado por uma rígida delimitação dos
seus poderes de intervenção na esfera jurídica privada. A lei não deveria tomar em
consideração as diferentes posições sociais, pois o fim era dar tratamento igual às pessoas
apenas no sentido formal. A lei deveria ser, ao mesmo tempo, ‘clarividente e cega’. Esse
tratamento igualitário é que garantiria a liberdade dos indivíduos. É claro que essa intenção
teve repercussão sobre o Estado-Juiz, uma vez que de nada adiantaria ‘formatar’ a atividade
do legislador e permitir ao juiz interpretar a lei em face da realidade social. Dizia Montesquieu,
então, que o julgamento deveria ser apenas um ‘texto exato da lei’, pois de outra maneira
construiria ‘uma opinião particular do juiz’ e, dessa forma, ‘viver-se-ia na sociedade sem saber
precisamente os compromissos nela assumidos’”.
Ibidem, p. 60: “Sendo o princípio da igualdade formal imprescindível para a manutenção da
liberdade e do bom funcionamento do mercado, não há como pensar em uma forma de tutela
que tome em consideração determinados interesses socialmente relevantes, ou em uma
forma de ‘tutela jurisdicional diferenciada’, a revelar a necessidade de conferir ‘tratamento
diferenciado’ a situações e posições sociais diversas”.
177
pelo equivalente. Apenas no caos em que o dano pode ser reparado na
386
forma específica é que a tutela ressarcitória mostra-se efetiva.
A tutela tinha natureza ressarcitória e de sanção, o objetivo das perdas e
danos ou a tutela pelo equivalente era necessário para manter o Poder Judiciário
neutro sem vinculação com o sujeito de direito e também manter os objetivos
mercadológicos. Sua vinculação era com valores da economia liberal e tal modelo
veio do art.1.142 do Código Napoleão onde a obrigação de fazer e não-fazer era
pelo código de perdas e danos.387
O modo errôneo neste período foi o pensamento em relação às
categorias da ilicitude e da responsabilidade civil, ambas foram unificadas, o
que impedia desvincular o ilícito civil da questão do ressarcimento
pecuniário.388 Ou seja, não se concebia o ilícito civil em outras situações
senão após ocorrido o dano e existir em tese o direito ao ressarcimento em
dinheiro.
A unificação das categorias da ilicitude e da responsabilidade civil, fruto
de uma postura civilista fincada nas relações do final do século XIX, é
que impede o processualista de identificar uma tutela preocupada
exclusivamente com o ilícito, ainda que ela seja fundamental para a
389
efetividade da tutela dos novos direitos.
A lógica era considerar as pessoas iguais na lei e com isso não
existiria razão para dispor tratamento diferenciado, nem criar mecanismos
processuais específicos para atender categorias sociais, em posições
desfavoráveis. 390
386
387
388
389
390
MARINONI, 2001, p. 15-16.
Idem, 2004, p. 58-61: “A sanção pecuniária teria a função de ‘igualizar’ os bens e as
necessidades, pois, se tudo é igual, inclusive os bens – os quais podem ser
transformados em dinheiro –, não existiria motivo para pensar em tutela específica. No
direito liberal, os limites impostos pelo ordenamento à autonomia privada são de
conteúdo negativo, gozando dessa mesma natureza as tutelas pelo equivalente e
ressarcitória”.
BOBBIO, 2007, p. 01: “Grande parte da teoria geral do direito europeu é prisioneira de um
conceito de direito que pressupõe a imagem simplista do Estado como organismo que
estabelece as regras do jogo e institui um árbitro. A predominância dada ao conceito de
obrigação e à explicação da obrigação em termos de sanção e de coação seria o principal, e
não o mais desejável, efeito daquela imagem”.
MARINONI, 2001, p. 17.
Idem, 2004, p. 61.
178
Assim a tutela ressarcitória, nos moldes que foi estabelecido no sistema
processual, não tem muita utilidade e não permite a aplicação da tutela
diferenciada para proteger direitos difusos e coletivos, como no caso das cotas
raciais onde está em jogo o direito à educação, cuja dimensão é social e coletiva.
O pleito pelas cotas objetiva o impedimento da prática discriminatória no ensino
superior, visa interromper a repetição de um ilícito civil que é a desigualdade
resultante do racismo. Nesse caso, em princípio, o ordenamento jurídico brasileiro
não admite a natureza ressarcitória desse direito. Isso é ajuizar uma ação com o
objetivo de requerer um valor pecuniário em virtude de não ser incluído no ensino
superior público por causa da discriminação racial. É nesse sentido que, por hora,
a tutela ressarcitória não tem utilidade no caso específico das cotas raciais e sim
uma modalidade de tutela preventiva, como a inibitória.
Os novos direitos, como os direitos difusos e coletivos por dificilmente se
conciliarem com a tutela ressarcitória, na verdade não podem ser
lesadas, sendo necessária, portanto, uma tutela capaz de impedir a
pratica, a repetição ou a continuação do ilícito continuado, para que
danos não ocorram, não se multipliquem ou não sejam
391
potencializados.
Uma hipótese de aplicação da tutela ressarcitória, no caso das cotas
raciais (em tese), seria no caso do Supremo Tribunal Federal julgar procedente as
cotas às universidades que editaram normas contendo a política de cotas e foram
suspensas por decisão do Poder Judiciário em primeira instância, àqueles
alunos(as) aprovados(as) pelo regime de cotas e não puderam ingressar no
ensino superior poderão ajuizar ação indenizatória (danos morais e materiais)
contra o Estado, tendo em vista o prejuízo moral e econômico (perdas e danos)
em razão de retardar a qualificação profissional, para entrarem no mercado de
trabalho.
Se
por
outro
lado
o
Supremo
Tribunal
Federal
julgar
pela
inconstitucionalidade das cotas raciais, os candidatos que não concorreram pelo
sistema de cotas e foram aprovados, mas, preteridos em razão das cotas,
também poderão propor ação de natureza ressarcitória (danos morais e materiais)
391
MARINONI, 2001, p. 16.
179
contra o Estado. São duas hipóteses em tese que ocorre o dano e a tutela
ressarcitória seria útil no caso da política de cotas.
Cabe observar que esse raciocínio diz respeito à lógica jurídica –
processual porque na concepção sociológica, os adeptos das cotas raciais
defendem que a finalidade das cotas raciais é para compensar as desigualdades
resultantes de processo político de exclusão. Por isso tem natureza de remoção
das desigualdades presentes e visa prevenir contra futuras desigualdades raciais.
Essa tese sociológica foi acolhida pelo Judiciário, em muitas decisões sobre as
cotas.
Conforme dito, na ótica processual este tipo de tutela não é útil, em
princípio, no caso da cotas raciais porque o objetivo não é pecuniário e sim social,
além do ordenamento jurídico não existe previsão.
Portanto não seria absurdo defender que as cotas raciais, se confirmadas
pelo Judiciário, ganham uma dimensão jurídica reparatória ou compensatória em
decorrência do passado de exploração e omissão do Estado que ratificaria o
conteúdo ressarcitório (pecuniário) de tal política.
Mas outro significado precisa ser atribuído ao termo ressarcimento em
razão da natureza imaterial do direito à educação, que se reveste de valores mais
elevados e ganha a dimensão social.
Em tese fosse admitido o ressarcimento pecuniário a favor da
população negra em relação à inclusão tardia no ensino superior, por
omissão do Estado, não seria lógico defender valor pecuniário (individual ou
coletivo) porque a luta pela igualdade substancial tem como principal
finalidade quebrar uma lógica mercadológica (matemática) desenvolvida no
período clássico.
Assim a dimensão ressarcitória seria social e os valores pecuniários não
seriam distribuídos em ações isoladas em favor de indivíduos ou grupos, mas
destinados a uma proposta sistêmica e ampla de política pública, em favor da
180
igualdade étnico-racial, o que permite ampliar o conceito de tutela (proteção) para
a promoção social.392
A tutela preventiva pode ser considerada muito útil à efetividade da
política de cotas nas universidades públicas porque tem muita afinidade com
o direito coletivo, o que motivou contemplar o assunto de forma mais
precisa.
Bedaque assegura que, a realidade social na medida em que se reconhece
as necessidades de o instrumento se adequar ao objeto, o processo e seus
institutos fundamentais devem ser moldados à luz das necessidades sociais, que
fazem surgir novas relações jurídicas.393
A tutela preventiva não tinha muito sentido numa ótica de direito privado
onde o objetivo do Estado era a proteção de interesse meramente patrimonial,
apesar de existir o modelo preventivo, ele era visto apenas num sentido
administrativo (vinculado à ideia de repressão) e jamais na ótica jurídica à
prevenção de direitos.394
Também difere da tutela ressarcitória porque pode ser utilizada antes de
acontecer o dano, enquanto que a ressarcitória é um instrumento que objetiva a
instrumentalidade do processo. Ao passo que a tutela preventiva pode ser usada
antes (preventivamente) ou durante a ocorrência do ilícito com o objetivo de inibir
o ilícito civil (tutela inibitória).395
Fator determinante para que a tutela preventiva receba patamar superior
entre as modalidades de tutelas e, de tal forma, rompe com o modelo tradicional
392
393
394
395
BOBBIO, 2007, p. 02: “Refiro-me, em particular, à teoria que considera o direito
exclusivamente do ponto de vista de sua função protetora e àquela que o considera
exclusivamente do ponto de vista da sua função repressiva. É desnecessário acrescentar
que, com freqüência, as duas teorias encontram-se sobrepostas: o direito desenvolve a
função de proteção em relação aos atos lícitos (que podem ser tanto atos permitidos quanto
obrigatórios) mediante a repressão dos atos ilícitos”.
BEDAQUE, 2001, p.54.
ARENHART, 2000, 2 vol., p. 99.
Ibidem, 2 vol., p. 101: “As ações preventivas são, nas palavras de Grossen, aquelas que se
fundam em uma iminente ameaça ao direito (Rechtsgefährdung), em antítese àquelas que se
fundam na violação de um direito (Rechtsverletzung)”.
181
que privilegiava a sanção (pela restituição, reparação ou ressarcimento do dano),
porque através da tutela preventiva é possível englobar direitos de personalidade,
direitos difusos e coletivos, diferentemente da ressarcitória.396
A base legal para utilizar a tutela preventiva é o art. 5º, inc. XXXV, da
Constituição Federal, que define: “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Do mesmo artigo se extrai o direito de
acesso à jurisdição e o acesso à ação processual.
A tutela preventiva é muito utilizada no sistema jurídico francês e italiano.
No Brasil o uso ainda é muito pequeno em relação aos catálogos de direitos
difusos e coletivos garantidos no sistema constitucional e infraconstitucional.
Temos no nosso sistema ações de natureza preventiva como o habeas corpus, o
mandado de segurança, a ação popular (instrumentos restritos ao âmbito público)
e na esfera privada são exemplos de tutela preventiva os interditos proibitórios, a
nunciação de obra nova – ligado a direitos patrimoniais para tutelar a posse e a
propriedade.397
Atualmente, essa modalidade de tutela, representa instrumento processual
dinâmico e eficiente para a proteção dos direitos fundamentais sociais, cuja
denominação doutrinária é a tutela inibitória.
[...] a tutela inibitória é aquela em que o escopo do processo relaciona-se
a uma atuação jurisdicional que iniba ou previna a perpetuação do
evento danoso. Pede-se que a decisão judicial impeça a ocorrência do
dano, seja impedindo a conduta ilícita, seja determinando medidas que a
398
remova.
396
397
398
Ibidem, 2 vol., p. 102: “[...] classificou-se as tutelas, aderente em ressarcitória, reintegratória,
do adimplemento e inibitória. A primeira é, na visão do autor, ‘a simples tutela que responde a
um direito pecuniário equivalente ao valor do dano sofrido, ou ainda a tutela alternativa à
tutela específica, vale dizer, a tutela que visa a ressarcir o autor em pecúnia pela
impossibilidade da tutela na forma específica’. A tutela reintegratória é aquela que tem por
função a ‘supressão do ilícito’ já ocorrido; trata-se aqui do ilícito, e não mais se cogita do dano
causado, como ocorre em relação à tutela ressarcitória, já a tutela do adimplemento volta-se
para a realização positiva da obrigação contratual assumida. Por derradeiro, tem-se a tutela
inibitória, que busca evitar que se consume a lesão ao direito, com cunho nitidamente
preventivo e dirigida para o futuro”.
Ibidem, 2 vol., mesma página.
GARCIA, 2009, p. 186.
182
Ressalta que a tutela inibitória se distingue da tutela cautelar. A tutela
cautelar tem por objetivo garantir a eficácia de uma decisão futura, é uma medida
de natureza instrumental que possibilita a tutela jurisdicional requerida.399
Enquanto que na tutela inibitória, a tutela de direito pode ser conferida ao
interessado, não apenas uma medida assecuratória, como na cautelar.
Em relação às cotas raciais a tutela inibitória pode ser utilizada
processualmente em duas situações, antes ou durante a ocorrência do ilícito civil.
Antes da ocorrência do ilícito porque pode ser ajuizada ação em busca da
efetivação das cotas como instrumento preventivo contra a desigualdade no
ensino superior. Por exemplo, se os fatos (dados estatísticos ou estudos
acadêmicos) evidenciam que a discriminação constitui obstáculo à inclusão da
população negra no ensino superior e o Estado não adota medidas para sanar o
quadro, razão disso a situação será agravada – tal fato é uma hipótese em que o
cidadão será atingido e poderá propor ação com base no art. 5º, inc. XXXV, da
Constituição Federal de 1988 – com a finalidade de prevenir o ilícito civil, trata-se
da tutela inibitória preventiva.
Outra hipótese do uso da tutela inibitória, no caso das cotas raciais, diz
respeito à remoção das desigualdades raciais, ou seja, os fatos estão
acontecendo. Aí, a desigualdade racial é permanente, está ocorrendo e precisa
ser removida. Hipótese que caberá proposição da tutela inibitória para a remoção
e não de prevenção do ilícito.400
Posições mais atualizadas defendem que para a defesa dos direitos sociais
fundamentais, qualquer modalidade de tutela poderá ser ajuizada não se
399
400
MAZZILLI, 2006, passim.
ARENHART, 2000, 2 vol., p. 41: “Parta-se da premissa de que a proteção de um direito
subjetivo pode dar-se de diferentes formas: é possível uma proteção preventiva, uma
proteção a posteriori, uma proteção específica, uma composição patrimonial, é possível o
interesse na sua mera declaração etc. Resulta daí que, de um direito subjetivo, inúmeros
interesses (ou inúmeras formas de tutela) poderão ser imaginados – todos podendo ser
adequados, conforme os interesses do sujeito do direito, ou as peculiaridades da situação
concreta”.
183
importando o meio, mas o fim que se deseja atingir, isto resguarda o bem maior
que é a dignidade humana.401
6.8 Os Direitos Sociais e a Dimensão Processual
Muito se discutiu sobre os mecanismos processuais e sua importância para
efetivar as cotas raciais. Porém, importante ressaltar que as inovações que o
processo civil brasileiro vem operando têm relação direta com a dupla dimensão
dos direitos fundamentais: a dimensão subjetiva e a dimensão objetiva.
A dimensão subjetiva, no período clássico, era ligada a interesses individuais
com o objetivo de proteção das liberdades públicas e os direitos patrimoniais. Ao
passo que a dimensão objetiva dos direitos fundamentais tinha finalidade de
proteger certas instituições públicas e institutos de direito privado contra a ação do
Estado, principalmente, no aspecto legislativo. Essa teoria originou das ideias de
Carl Schmitt, na época foi objeto de críticas porque se limitava a conferir uma
proteção meramente objetiva a bens jurídicos, reputados fundamentais.
Segundo Zollinger, com a evolução dos direitos fundamentais a teoria
extrapolou a concepção originária e provocou novo pensamento sobre a dimensão
objetiva dos direitos, então a proteção dos direitos dos cidadãos contra violações e
ameaças passou a ser dever do Estado e não mais contra o Estado.402
No mesmo sentido Krell firma:
Depois da revolução industrial do século XIX e das primeiras conquistas
dos movimentos sindicais em vários países, os Direitos da ‘segunda
geração’ surgiram, em nível constitucional, somente no século XX, com as
Constituições do México (1917), da República Alemã (1919) e também do
Brasil (1934), passando por ciclo de baixa normatividade e eficácia
duvidosa. Seus pressupostos físicos devem ser criados pelo Estado como
agente para que eles se concretizem. Os Direitos Fundamentais Sociais
401
402
AUGUSTO, Silma Maria. Tutela Processual e Inclusão Social. In: Anais do XVIII Encontro
Nacional do CONPEDI – Maringá/PR. 2009. Disponível em: <http://www.conpedi.org>.
Acesso em: 12 jan. 2010.
ZOLLINGER, 2006, passim.
184
não são direitos contra o Estado, mas sim direitos através do Estado,
403
exigindo do Poder Público certas prestações materiais.
A partir desse fato a proteção dos direitos sociais passou a ser dever do
Estado, ai surgiu o dever do Poder Público em criar um sistema de garantia de
direitos em favor do cidadão e essa proteção se vincula a todos os poderes da
Federação (Executivo, Legislativo e Judiciário).404
Outro fator importante, gerado pela dimensão objetiva, consiste na
dimensão organizatória e procedimental. Ou seja, os direitos materiais exigem
um sistema estruturado dos procedimentos e técnicas para o provimento
judicial.405
A dimensão processual dos direitos revela como um dos pontos centrais no
debate e na produção de juristas, que defendem a efetivação dos direitos
sociais.406
Enfim, o assunto parece ganhar força quando coloca em xeque o
julgamento de ações de conteúdo social, como as cotas raciais.
6.9
A Tutela Processual como Mecanismo de Inclusão Social: Análise
Jurisprudencial Sobre as Cotas Raciais e a Efetividade da Constituição
Federal
No decorrer do trabalho foi apresentado análise de decisões judiciais,
porém neste tópico traz-se uma análise ilustrativa cuja finalidade consiste mostrar
a tendência do Judiciário em relação ao modelo de processo que foi inaugurado
403
404
405
406
KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha:
os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2002, p.19.
PAULA, 2002, passim.
ZOLLINGER, 2006, passim.
PIOVESAN, Flávia. Justiciabilidade dos Direitos Sociais e Econômicos no Brasil: desafios e
perspectivas. In: Revista de Direito do Estado, nº 09, p. 55-69. Rio de Janeiro: s.e.,
jan./mar. 2008.
185
pela Constituição Federal de 1988, as mudanças que foram introduzidas no
sistema processual e o impacto disso nos julgados sobre as cotas raciais.
Foram analisadas, principalmente, jurisprudências dos Tribunais Regionais
Federais e despacho de Ministro do Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo de
comentar algumas decisões de outras esferas do Poder Judiciário.
Diante de tudo o que foi dito neste trabalho, percebe-se que a concepção
clássica do direito processual civil, que tinha por objetivo a proteção de relações
eminentemente privadas, vem perdendo espaço em nosso sistema jurídico. No
debate sobre as cotas raciais nota-se que existe tendência a romper com o
modelo tradicional de processo em face da natureza processual do direito à
jurisdição estampado na Constituição Federal de 1988.
Duas ações que tramitam no Supremo Tribunal Federal (ADPF nº 186 e
Recurso Extraordinário nº 597.285/RS) litigam sobre a constitucionalidade do
sistema de cotas. Nessas ações o reconhecimento do direito à jurisdição ficou
marcado pelo despacho do Ricardo Lewandowski, além do viés preventivo que foi
incorporado à ação. Ao convocar audiência pública para ouvir a população, o
Executivo, o Legislativo e as Universidades, o Ministro do STF profere:
A questão constitucional apresenta relevância do ponto de vista jurídico,
uma vez que a interpretação a ser firmada por esta Corte poderá autorizar,
ou não, o uso de critérios raciais nos programas de admissão das
universidades brasileiras. Além disso, evidencia-se a repercussão social,
porquanto a solução da controvérsia em análise poderá ensejar relevante
impacto sobre políticas que objetivam, por meio de ações afirmativas, a
407
redução de desigualdades para acesso ao ensino superior.
O Ministro neste despacho indica que as ações afirmativas, se
confirmadas, podem gerar impacto no acesso à educação dos negros e resultar
na redução da desigualdade. De certa forma este pronunciamento do Ministro,
407
PAULA, 2002, p. 82: “Deve a atividade jurisdicional ter em conta o seu conceito e a sua
missão no terceiro milênio; deve a atividade jurisdicional levar em conta que o
descumprimento de um programa social ou a ausência de lei infra-constitucional [sic] que
regulamente um direito constitucional são lesões/ameaças ao direito material e que ela está
apta a reparar a lesão/ameaça em face ao princípio do acesso da justiça (CF, art. 5º, inc.
XXXV).
186
ainda que a ação encontra-se em curso, lembra a tutela inibitória, instrumento
processual que objetiva remoção de ilícito civil. No caso específico a política de
cotas consistirá na remoção do ilícito civil que é a desigualdade racial no Brasil.
Ao dizer que a decisão do STF tem relevância jurídica e pode causar
impacto nas políticas públicas, creio que o Ministro convoca o Executivo a
assumir o papel de garantidor da política pública. Ou seja, conclama a obrigação
de fazer do Estado Executivo408 principal responsável pela execução das políticas
públicas no sentido de remoção das desigualdades. Por isso, o Executivo também
foi convocado pelo Judiciário a compor a audiência pública.
Numa análise voltada para a teoria processual, percebe-se neste despacho
que a via processual se coloca como importante instrumento de participação
popular tanto no controle e fiscalização como também no respaldo para um
provimento judicial equitativo. Eis uma nova visão sobre o processo, o aspecto
social do processo. A atitude do STF indica rompimento com o modelo clássico de
processo onde normalmente somente as partes envolvidas diretamente no caso
são ouvidas. Quero dizer, se o STF tivesse seguido o modelo tradicional de
processo somente as Universidades e os autores das ações teriam voz no
processo. Mas a natureza social do direito à educação superior suplantou a ideia
do interesse unicamente individual, que está em jogo.
A técnica da cognição marca também este despacho do Ministro que
elegeu outro caminho mais apropriado e que pode auxiliar melhor a formação do
convencimento dos Ministros. Em outras palavras, através da cognição o Ministro
conclui que a audiência pública seria um meio útil para se conhecer posições de
estudiosos das ações afirmativas de ambas as correntes.
CONVOCA: Audiência Pública para ouvir o depoimento de pessoas com
experiência e autoridade em matéria de políticas de ação afirmativa no
409
ensino superior (RE nº 597.285 – Recurso Extraordinário).
408
409
AUGUSTO, Silma Maria. Tutela Processual e Inclusão Social. In: Anais do XVIII Encontro
Nacional do CONPEDI – Maringá/PR. 2009. Disponível em: <http://www.conpedi.org>.
Acesso em: 12 jan. 2010.
Conforme site do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso
em: 12 jan. 2010.
187
Posição no mesmo sentido ocorreu no julgamento do recurso extraordinário
em sede do Agravo de Instrumento nº 2009.04.00.027971-0/ RS – TRF4, houve
sobrestamento do recurso porque a matéria já se encontra em debate no RE nº
597.285 junto ao Supremo Tribunal Federal. Para fundamentar a decisão a
relatora cita o art. 543-B do CPC e faz menção à repercussão geral sobre a
política de cotas no ensino superior.
Trata-se de recurso extraordinário versando sobre a constitucionalidade
do sistema de reserva de vagas, baseado em critérios raciais e sociais,
como forma de ação afirmativa de inclusão no ensino superior. A
controvérsia em foco está sob análise do Supremo Tribunal Federal nos
autos do RE nº 597.285/RS (Origem: AC/200871000022540) conforme
previsto no art. 328 de seu Regimento Interno, já tendo o Pretório
Excelso reconhecido a existência de repercussão geral, na sessão
plenária de 18 de setembro de 2009. Portanto, até que o STF se
manifeste sobre o mérito, impõe-se a aplicação da sistemática
estabelecida no art. 543-B do Código de Processo Civil. Diante do
exposto, determino o sobrestamento do recurso e a remessa dos autos à
410
Secretaria de Recursos. Intimem-se.
Também em outras decisões sobre as cotas raciais, muitos relatores
adotaram posições semelhantes a do Ministro do STF no que tange à visão das
cotas, enquanto medidas aptas à remoção do ilícito civil, que são as
desigualdades raciais no ensino superior público. No Agravo de Instrumento nº
2007.01.00.013134-0/BA – TRF1 – a relatora utiliza-se de uma concepção
processual de cunho inibitório porque defende as cotas como uma ação de
enfrentamento das desigualdades, ou seja, uma medida apta à remoção do ilícito
civil:
Está a política adotada, portanto, em conformidade com o que preconiza
o texto constitucional, constituindo a ação um enfrentamento do grave
problema social que acomete a sociedade como um todo, repercutindo,
ainda que timidamente sobre uma parcela da população e permitindo
que em um futuro seja efetivamente possível a observância e
concretização das disposições inscritas no caput do artigo 5º e 6º da
411
CF.
Constato que a orientação mais atual da doutrina inclina-se pela adoção
de medidas efetivas para a remoção de diferenças seculares
estabelecidas em relação às oportunidades oferecidas aos brasileiros
410
411
STF, RE em AI nº 2009.04.00.027971-0/RS.
TRF 1ª Região, AI nº 2007.01.00.013134-0/BA.
188
como forma de erradicação da história diferenciação entre raças e
412
classes sociais.
No mesmo sentido os julgados – TRF4 – Agravo de Instrumento nº
2008.04.00.003151-2/SC;
AC
nº
2005.70.00.003167-7/PR;
AC
nº
2005.70.00.005658-3/PR; entretanto, os relatores que se utilizam da medida não
declinam o nome da técnica processual, nota-se que foi usada a cognição, pelas
suas argumentações.
A Ação Inibitória (Ação Ordinário – Procedimento Comum Ordinário nº
2007.72.00.013905-2/SC
–
TRF4)
foi
ajuizada
pelo
Sindicato
dos
Estabelecimentos de Ensino do Estado de Santa Catarina – SINEPE/SC contra
a Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, questionando a política de
cotas raciais e sociais. O argumento apresentado na ação inibitória foi no
sentido de impedir que a Universidade continuasse a distribuir vagas para
estudantes negros e de escolas públicas. Defendia que a Resolução Normativa
nº 08, do Conselho Universitário da UFSC, de 10 de julho de 2007, era
inconstitucional porque afronta diversos princípios constitucionais como o da
igualdade, legalidade e outros. Neste caso, o Sindicato alegou como ilícito civil a
reserva de vagas oferecidas para estudantes negros e de escolas públicas, ou
seja, o fato estava ocorrendo e precisava ser removido. Contudo esta ação foi
julgada parcialmente procedente, porém o Julgador não acatou a tese das cotas
como ilícito e sim como medida de inclusão social implantada para remover as
desigualdades raciais e sociais.
Já em relação à tutela ressarcitória (pecuniária) praticamente não aparece
nenhuma ação pleiteando restituição pecuniária em razão de prejuízo sofrido pela
exclusão da população negra no ensino superior público. Porém, grande maioria
das decisões favoráveis às cotas utiliza a expressão reparação ou compensação.
Assim a palavra ressarcitória ganhou outro significado, ou seja, o argumento de
que tal política tem natureza reparatória ou compensatória, em decorrência de um
passado de exclusão racial no ensino superior, assumiu a dimensão jurídica
sociológica com base no conteúdo social das cotas raciais.
412
TRF 1ª Região, Apelação Cível nº 2006.33.00.002973-2/BA.
189
O modelo de tutela processual, que ainda existe no direito brasileiro, é
muito restrito e foi formado, como já mencionado várias vezes nesse estudo, a
partir de uma visão do direito privado. A matéria para ser discutida em uma ação
processual era preciso ser transformada em pecúnia.
Acredito que a busca pela tutela jurisdicional, no caso das cotas raciais, vai
além da busca por qualificação e sucesso profissional-econômico. A simbologia
de romper com a linha divisória imposta pelo racismo e o reconhecimento da
capacidade e potencialidade dos negros/as talvez seja o maior ganho, que é o
social. Por isso a ressarcitória, se não aplicável, também não seria útil ao fim que
se pretende.
Questão relevante que aparece frequentemente nos julgados sobre as
cotas raciais é a defesa da utilidade do processo. Razão do deferimento de
medidas urgentes como a antecipação da tutela e liminares para assegurar o
direito à educação superior dos cotistas:
Em primeiro momento, em razão da complexidade da matéria e em face
da premência de uma solução, da qual dependia a própria utilidade do
processo, mantive a medida liminar deferida pelo ilustre Julgador a quo.
No entanto, debruçando-me de modo mais profundo no estudo das
políticas públicas de inclusão social, conclui pela licitude e necessidade
de medidas eficazes para que se alcance a sociedade justa e solidária
413
que a Constituição apregou.
Num caso do TRF1 Medida Cautelar nº 2006.01.00.036205-4/BA foi
deferido antecipação de tutela a favor de uma estudante que alegou cursar o
ensino médio em escola pública e a Universidade Federal da Bahia havia
indeferido sua participação no vestibular pelo sistema de cotas sociais, razão que
levou propor ação contra a Universidade, para garantir seu direito.
Posta a questão nestes termos e não obstante as razões em que se
amparou a decisão agravada, vejo presente, na espécie, os
pressupostos do art. 558 do Código de Processo Civil, a autorizar a
concessão da almejada antecipação da tutela mandamental, ante os
documentos carreados para os autos, os quais demonstram, numa
primeira análise, que o impetrante, ora agravante, cursou, efetivamente ,
413
TRF 4ª Região, Agravo de Instrumento nº 2005.04.01.00006358-2/PR.
190
o ensino médio na rede pública, conforme se vê da peça de fls. 24, em
414
fotocópia.
No
mesmo
sentido
decisão
TRF1,
Agravo
de
Instrumento
nº
2006.01.00.032117-9/BA; Apelação Cível nº 2005.33.00.006515-6/BA e nº
2005.33.00.004321-9/BA. Observa-se na jurisprudência sobre as cotas raciais
que a antecipação de tutela tem sido uma técnica processual muito utilizada, tanto
em decisões favoráveis para resguardar o direito ao princípio da autonomia
universitária, quanto naquelas contrárias ao sistema de cotas para assegurar a
matrícula de vestibulandos, que alegraram prejuízo em razão das cotas raciais.
Também o Agravo de Instrumento nº 0012442-46.2005.4.05.0000 – TRF5
– discute o sistema de cotas raciais na Universidade Federal de Alagoas onde um
candidato, ao curso de direito, alegou prejuízo em razão do sistema de cotas buscou reformar a decisão que havia indeferido a tutela antecipada para efetuar a
matrícula. Tal pedido foi indeferido também em segunda instância, ao qual o
relator decidiu favoravelmente ao sistema de cotas, sob o argumento de que a
política de cotas visa oferecer oportunidade de acesso aos bancos universitários
públicos àqueles “histórica e economicamente hipossuficientes”.415
Sobre as inovações do art. 461 do Código de Processo Civil
consideradas pela doutrina importante abertura para adequação da melhor
414
415
TRF 1ª Região, Medida Cautelar nº 2006.01.00.036205-4.
TRF 5ª Região, AGTR nº 61937-AL, Processo nº 0012442-46.2005.4.05.0000, Rel. Des. Fed.
Petrúcio Ferreira: “EMENTA: ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ENSINO
SUPERIOR. SISTEMA DE COTAS. RESOLUÇÃO Nº 09/2004 – CEPE. RESERVA DE 20%
(VINTE POR CENTO) DAS VAGAS PARA ALUNOS NEGROS E PARDOS. AUTONOMIA
DAS UNIVERSIDADES. Hipótese em que o agravante busca reformar decisão singular que
lhe indeferira tutela antecipada por meio da qual pretendia obter matrícula em Curso de
Direito da Universidade Federal de Alagoas, ora agravante;- Implantação do sistema de cotas
através da Resolução nº 09/2004 – CEPE por meio da qual dá-se a reserva de 20% (vinte por
cento) das vagas oferecidas nas universidade públicas a alunos negros e pardos. Medida que
visa a oferecer oportunidade de acesso aos bancos universitários públicos àqueles
historicamente economicamente hipossuficientes;- Por outro lado, considerando o enfoque
administrativo, observa-se que as normas internas que regem a vida acadêmica são inerentes
à autonomia das universidades, assegurada pela Constituição, não se aferindo, por
conseguinte, qualquer ilegitimidade no agir da agravada que, fazendo uso de sua autonomia
universitária, definiu através da Resolução nº 09/2004 – CEPE o sistema de cotas para
negros e pardos. Ausência de motivos a ensejar a reforma pretendida. Agravo de instrumento
improvido. ACÓRDÃO Vistos, etc. Decide a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da
5ª Região, à unanimidade, negar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do voto
do relator, na forma do relatório e notas taquigráficas constantes dos autos, que ficam
fazendo parte integrante do presente julgado. Recife, 03 de outubro de 2006.
191
técnica processual parece ausente do discurso dos relatores. O dito princípio
da concretização dos poderes de execução nas mãos do juiz ainda é pouco
discutido.
Em relação às ações impetradas nos Tribunais Regionais Federais os
meios processuais mais utilizados para discutir o sistema de cotas foram o
Mandado de Segurança e a Ação Civil Pública. Parece que a tutela individual
ainda prevalece em relação à tutela coletiva. O Mandado de Segurança individual
foi a principal arma dos estudantes que demandaram contra o sistema de cotas.
Sendo que a maioria dos vestibulandos que ingressaram ações reclamava o
direito à matrícula nas universidades em cursos de medicina, medicina
veterinária, psicologia, comunicação/jornalismo, direito, administração, artes
plásticas e outros cursos de prestígio social.
A ação civil pública é destacada como veículo processual expressivo e
determinante para ampliar o debate sobre os fundamentos da política de ações
afirmativas no país. Registra que houve propositura de ações civis públicas nos
dois sentidos; em defesa e contrária às cotas raciais.416 Entre os autores
destacam-se o Ministério Público; as Universidades e as Associações Civis,
legitimadas para tal fim.417
Constata-se que o papel do julgador418 tem muita relevância para a
aplicabilidade do conteúdo material da Constituição Federal. Quando existe uma
visão mais atualizada sobre a natureza social do direito e a finalidade da
Jurisdição, por certo que as decisões favorecem a promoção da justiça.
416
417
418
TRF 4ª Região, Ação Civil Pública nº 2008.72.00.000331-6/SC.
Conforme exemplificamos no Capítulo 4 deste trabalho.
TARUFFO, Michele. Senso Comum, Experiência e Ciência no Raciocínio do Juiz.
Curitiba: IBEJ, 2001, passim.
192
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso estudo teve como principal objetivo analisar se a jurisdição constitui
instrumento de efetivação das cotas raciais. Ou seja, se a jurisdição mediante os
meios processuais contribui, ou não, para a inclusão dos negros no ensino
superior.
Buscou compreender o debate do Judiciário em torno do direito formal, dos
princípios Constitucionais, das inovações processuais e sua aplicação no caso
concreto. Ou seja, se a tutela processual constitui veículo de realização das cotas
raciais e pode ser considerada, ou não, mecanismo de inclusão social.
Em termos gerais buscou também conhecer posições do Judiciário sobre a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade da política de cotas raciais no direito
brasileiro.
Nos cinco capítulos da dissertação foram abordados temas importantes
como
o
princípio
da
igualdade
perante
a
lei;
ações
afirmativas;
constitucionalidade das cotas raciais; acesso ao direito e à justiça; tutela
processual.
Contudo, a dimensão do tema não permite fazer conclusões definitivas, até
porque a compatibilidade das cotas raciais com o sistema constitucional aguarda
pronunciamento final do STF e os estudos do processo civil estão em permanente
evolução.
Tanto as cotas raciais quanto a matéria processual estão entre os assuntos
mais significativos no discurso da ciência jurídica e social. Razão que nos levaram
a ser cauteloso quanto a conclusões precipitadas sobre assuntos complexos e
carregados de significados históricos, jurídicos e sociais.
Entretanto, cumpre destacar nossas notas conclusivas e os pontos que
consideramos relevantes à ampliação do estudo deste tema.
193
Percebe-se que desde a antiguidade o princípio da igualdade perante a lei
constitui-se um dos institutos jurídicos mais discutidos, na religião, na política, na
ciência jurídica e social. A igualdade se confunde com a noção de justiça e aquilo
que remete à ideia de justiça tem signo de igualdade. No plano filosófico a
igualdade continua sendo causa de belas lições, postulados e inúmeras teorias.
Porém a dificuldade se mostra com muita evidência quando a igualdade
jurídica é cotejada para além das teorias, lições e postulados.
Isso pode ser facilmente percebível no discurso do Judiciário, em matéria
das cotas raciais no direito brasileiro. A maior controvérsia em adotar ou não a
política de cotas raciais se esbarra no princípio da igualdade (formal) e sua
dimensão material. Parte dos julgadores defende apenas uma dimensão da
igualdade – a dimensão formal – enquanto outros defendem as duas vertentes da
igualdade; a formal e a material.
Aquela igualdade do período clássico, a igualdade que era mantida no
texto da lei apenas para legitimar uma ordem econômica, ainda continua viva no
pensamento de muitos julgadores. Mostramos este fato no capítulo III onde
dissertamos sobre a constitucionalidade das cotas raciais.
Os movimentos políticos que surgiram no século XVIII impulsionaram a
edição de novos direitos (sociais, políticos e econômicos) contribuíram para
despertar uma concepção de igualdade substancial, mas não foram suficientes
para minimizar a forte carga ideológica do período clássico, porque não houve
total ruptura com a igualdade formal e abstrata.
No discurso do Judiciário sobre as cotas raciais no ensino superior
observa-se que ainda existe muita defesa da igualdade formal, embora, verificase muitas decisões bastante seguras da dimensão material desse princípio.
Entretanto parece nítida a divisão entre Julgadores na leitura e
interpretação do princípio da igualdade, em relação às cotas raciais. Há tendência
em se formar duas correntes de pensamentos no Poder Judiciário.
194
A primeira corrente argumenta que o princípio da igualdade deve ser
compreendido como algo simbólico. Digo simbólico porque em muitas decisões
que fizemos a análise há posições em defesa da igualdade na lei, ou seja, não se
admite discutir a igualdade numa situação de fato. A adoção do critério racial
consiste no principal argumento de violação do princípio da igualdade.
Para adeptos dessa linha de pensamento a igualdade na Constituição não
permite diferenciação, no caso das cotas raciais. Alegam que o Estado teria que
buscar alternativas para garantir o acesso de negros no ensino superior sem que
houvesse violação da igualdade na Constituição.
Nota-se que partidários desta concepção consideram a política de cotas
raciais um retrocesso na evolução da igualdade jurídica. Sendo que tal pensamento
enaltece a igualdade formal em contraposição à igualdade substancial, assim, a
igualdade permanece estática e sem finalidade, no mundo real.
Percebe-se que tais julgadores acolheram a mesma linha de pensamento
de acadêmicos da ciência jurídica e social que contestam o sistema de cotas
raciais.
Já, a outra corrente afirma que o sistema de cotas raciais e sociais é
compatível como a Constituição Federal e não quebra a igualdade, razão disso
que foi criado um verdadeiro sistema para a promoção da igualdade racial.
Argumentam que existe a desigualdade social e racial no país e
debruçaram sobre o estudo do sentido histórico, político, jurídico e social do
princípio da igualdade e concluíram que a razão de ser da igualdade na Carta
Republicana está relacionada com a sua dimensão substancial. Fator que reforça
a edição de medidas positivas de promoção de segmentos como os negros, as
mulheres, os deficientes, os indígenas e outros, marcados pela discriminação.
A autonomia da Universidade foi defendida e a implantação das cotas
propagada como responsabilidade do Estado na promoção da justiça social eleita
pela Constituição.
195
A ênfase dessa corrente é no sentido de que as cotas raciais contribuem
para compensar um passado de omissão do Estado que causou a exclusão dos
negros do acesso aos direitos sociais, principalmente, à educação. Afirmam
também que o objetivo da política de cotas vai além de compensar o passado,
deve ser vista como forma de assegurar a justiça social, no presente.
Outro dado importante diz respeito ao movimento político em torno da
política de cotas. Por certo contagiou o Judiciário. O movimento provocou certa
proximidade do julgador em relação aos fatos da realidade social, também do
discurso acadêmico que vem contribuindo, de forma decisiva, na formação do
convencimento dos julgadores em matéria das cotas. A própria convocação da
audiência pública pelo STF afirma este fato.
O movimento político sobre cotas raciais foi importante para a aproximação
do Judiciário a segmentos historicamente distantes do aceso à justiça como
acontece com grande parte da população negra. Citamos estudos na área
sociológica e teses recentes que relatam a falta de acesso da população negra ao
direito e à justiça no país. Entretanto, o debate das cotas, de alguma forma,
parece quebrar esse ciclo e sinaliza para novos tempos.
No decorrer do trabalho citamos estudos realizados pelo Observatório
Permanente da Justiça Portuguesa onde foi constatado que o envolvimento
de todos segmentos sociais na resolução dos conflitos se coloca, na
atualidade, como uma das questões fundamentais na democratização do
acesso à justiça.
Dessa forma a audiência pública realizada pelo Supremo Tribunal Federal
sobre a política de cotas pode ser considerada exemplo de participação da
população negra e da sociedade, como um todo, na busca por uma decisão mais
justa sobre a política de cotas.
Também houve ações propostas por entidades sociais discutindo a política
de cotas de forma mais coletiva, além da participação de várias associações do
movimento negro como Amicus Curiae. Ainda ações civis públicas impetradas
196
pelo Ministério Público que revelam a tutela processual como instrumento de
acesso ao direito e à justiça, portanto, de inclusão social.
Merecem destaque nessa conclusão os estudos realizados sobre o acesso
ao direito e à justiça. Ficou evidente que o conceito de acesso ao direito e à
justiça permanece em transformação, desde a investigação iniciada por Mauro
Cappelletti e Bryant Garth até estudos mais recentes como os realizados por
Boaventura Sousa Santos e outros pesquisadores no contexto brasileiro.
A inclusão do diagnóstico sociológico pode ser considerado avanço e a
realização da análise, a partir do monitoramento permanente da vida real dos
tribunais, permitiu a ampliação do conceito do acesso ao direito e à justiça além
de causar impacto na atuação prática. Porque conseguiu atingir outras causas
que afetam o sistema de direito e justiça como a cultura jurídica dos operadores, o
distanciamento da população, o impacto de processos históricos, sociais e
econômicos sobre a forma de apropriação da justiça.
O principal ator dessas inovações é Boaventura de Sousa Santos, que
inaugurou a nova forma de fazer pesquisa na ciência jurídica utilizando-se do
diagnóstico sociológico.
Tal forma está sendo transportada para outros países, inclusive o Brasil,
onde está em processo de implantação o Observatório Permanente da Justiça
Brasileira, sob a consultoria do Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra.
A principal finalidade desse observatório será analisar o acesso ao direito e
à justiça e buscar soluções para aproximar a população do sistema. A proposta
de contar com um Observatório se revela inovadora no sistema jurídico brasileiro
e pode ser instrumento de ampliação dos estudos, no contexto brasileiro.
No debate interno na área constitucional e processual civil o acesso à
justiça tem recebido outro olhar, especialmente no sentido de mudança das
modalidades de tutelas e técnicas processuais adequadas à realização do direito
197
material. Esses elementos são considerados determinantes para facilitar o acesso
e o provimento judicial justo.
Conforme foi descrito, as raízes históricas de nosso sistema processual civil
encontram-se no direito romano-germânico e, posteriormente, no direito português.
Portanto o modelo de processo que ainda vigora no Brasil surgiu numa concepção
advinda de relações jurídicas de direito privado, do modelo rígido do processo
nomeado de legis actiones e do processo das fórmulas (agere per formulas).
Muitos institutos processuais transpuseram a época e ainda permanecem
no ordenamento jurídico e no pensamento de parte de nossos julgadores. Isso foi
demonstrado em julgados sobre as cotas raciais onde a concepção de igualdade
abstrata ainda persiste.
Por outro lado, a denominada constitucionalização do processo trouxe
alguns avanços como o discurso sobre a tutela jurisdicional efetiva, o processo útil
e a busca pela realização da Constituição. São temas que foram arguidos por
muitos Relatores em defesa das cotas raciais e por um Ministro do STF.
Porém, inovações processuais importantes, como as efetuadas nos artigos
461, 461- A do Código de Processo Civil, permitem maior amplitude para o
julgador adequar a técnica processual está ausente do discurso nas decisões
sobre as cotas.
As técnicas continuam pouco propagadas entre os operadores do direito e
o desconhecimento do alcance de tais medidas pode ser a causa do não uso das
mesmas; por isso o impacto de tais mudanças não surtiu tanto efeito.
Isso reforça a importância da criação do Observatório Permanente da
Justiça Brasileira que poderá analisar melhor os impactos de uma reforma
realizada no sistema jurídico.
Nas análises das decisões judiciais sobre as cotas raciais pouco se vê
julgadores ou autores das demandas utilizarem o art. 5º, inc. XXXV (“a lei
198
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”)
como
fundamento para
defender a
modalidade
de
tutela
inibitória,
preventiva. O discurso dos relatores, conforme dito na análise, versa sobre
o
conteúdo
material
da
Constituição,
não
existe
um
discurso
academicamente elaborado quanto a importância da jurisdição e da tutela
processual.
Do ponto de vista doutrinário ficou acentuado que as inovações
trazidas pela Constituição Federal e pelo sistema processual civil são
aberturas importantes para criar uma política processual adequada a realizar
os direitos sociais e gerar o acesso ao direito e à justiça, de forma mais
efetiva.
Mas ainda não temos um sistema processual totalmente harmônico com a
Constituição, apenas inovações isoladas. Em outras palavras, nosso Código de
Processo Civil, em vigor, ainda é a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, que
não foi totalmente alterada, segundo o mandamento constitucional, e isso oferece
margem para leituras equivocadas e desatualizadas sobre a organização dos
instrumentos processuais.
A forma desvinculada do direito material do direito processual acaba
funcionando como obstáculo à aplicação dos direitos sociais e, até mesmo, serve
de controle político por parte do Executivo e Legislativo.
Muitas leis e estatutos sociais são editados e o discurso político será no
sentido de assegurar a política pública na lei sem ao menos se importar com a
estrutura para a implementação. O direito do cidadão ficará no campo das
expectativas, encerrará com simples edição da lei e a justificativa pela falta de
efetividade das novas leis forma o ciclo vicioso de criação de leis sem
aplicabilidade prática.
Nesse jogo o Poder Executivo pode alegar falta de recursos no orçamento
(princípio da reserva do possível) e não cumprir com inúmeros direitos sociais
editados a favor da população negra.
199
Caso falhe os demais Poderes, o Judiciário pode ser acionado pelo
cidadão e não ter meios processuais adequados para realizar esses direitos, de
forma plena.
O veículo processual de acesso ao judiciário pode ser obstáculo à
materialização e assim o direito não ser efetivado. Ou seja, o processo deixa de
ser meio e tem um fim em si mesmo.
Chamamos a atenção para os novos diplomas legais que prometem
inúmeros direitos para a população negra. Nota-se sua importância na evolução
da emancipação social deste segmento, mas cabe lembrar que o direito não se
realiza somente na lei, o direito efetivo é aquele que faz a diferença na vida
individual e coletiva das pessoas.
Note-se que a maioria dos direitos previstos no Plano Nacional de
Promoção da Igualdade Racial PLANAPIR (Decreto nº 6.872, de 04 de junho de
2009) e no Programa Nacional de Direitos Humanos (Decreto nº 7.037, de 21 de
dezembro de 2009) pouco de novo exprime além dos direitos previstos na
Constituição Federal.
Sem descaracterizar o significado na evolução histórica de leis ligadas à
promoção da igualdade étnico-racial em nosso país e a importância enquanto
estratégia política à afirmação dos segmentos considerados discriminados, esses
novos documentos, do ponto de vista jurídico, pouco acresce, apenas ratifica
vários direitos já consagrados pela Constituição, há mais de vinte anos e que não
foram concretizados.
Creio que constitui avanço o fato do PLANAPIR prever um sistema de
avaliação e monitoramento das políticas a serem implantadas. Tal previsão vai de
encontro às recomendações da Conferência Mundial Sobre o Racismo, em
Durban e a última que aconteceu em Genebra, na Suíça.
Corre-se o risco de editar infinidades de leis e garantias para a população
negra gerando um quadro de expectativas que poderão ser frustradas em todas
200
as esferas do Poder Público, inclusive do Judiciário, por falta de uma política
processual integrada com a Constituição.
Se os demais Poderes falham na execução dos direitos sociais,
normalmente, ao Judiciário compete determinar a sua efetividade. Para isso
existe o processo, como via de acesso ao direito e à justiça.
Veja que o debate jurídico, em torno das cotas raciais, acontece
principalmente por meio do processo judicial. A tutela processual é uma via
determinante e pode causar tanto uma posição relevante no ordenamento jurídico
e social, como tem acontecido em relação às cotas, como também pode gerar
entrave à realização do direito social.
Pode-se dizer que ainda existem julgadores atrelados a valores de direito
clássico e à velha concepção de jurisdição (declarar a Lei), mesmo assim é
possível perceber em muitas decisões sobre as cotas, que a jurisdição caminha
num sentido de assumir um novo significado e a velha concepção de jurisdição
parece começar a ser abolida de nosso sistema jurídico.
Entretanto, as decisões sobre as cotas raciais, mesmo que suscetíveis a
controvérsias, no âmbito do judiciário, vêm afirmando a via processual como
instrumento de inclusão social da população negra no ensino superior público e
representa avanço num sentido de ressignificar o sentido da jurisdição em nosso
país. Ou seja, a jurisdição tem sido instrumento de efetivação das cotas raciais no
ensino superior público.
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