A lei de improbidade administrativa e o artigo 52 do estatuto da
cidade
Andrea Teichmann Vizzotto1
Resumo: O texto analisa o artigo 52 da Lei Federal n.10.257, de 5-7-2001 frente à Lei Federal n.
8.429, de 02-6-1992 no que diz respeito à improbidade administrativa. Uma reflexão sobre a
necessidade de efetiva aplicação da disposições legais com responsabilização dos administradores
e planejadores urbanos no que tange à gestão da cidade fora dos parâmetros o interesse público.
Palavras-chave: planejamento urbano, improbidade administrativa.
Abstract: The paper discusses the article 52 of the Federal Law n. 10.257, 5-7-2011 regarding the
Federal Law n. 8.429, 02-6-1992 about administrative impropriety. A reflection on the need
for effective implementation of laws with accountability of managers and planners with regard to
the management of the city outside the parameters of the public interest.
Keywords: Urban planning, administrative impropriety.
Introdução
Mais da metade da população mundial vive em meios urbanos. A vivência nesses
espaços de aglomeração e a interferência do homem no meio ambiente não são
temas inéditos. Todavia, surpreendentes são os desastres urbano-ambientais
ocorridos no Planeta. No Brasil refere-se a tragédia do Morro do Bumba em Niterói
no Estado do Rio de Janeiro2, os efeitos das chuvas na serra carioca no início de
20113 e a desvastação sofrida pela cidade gaúcha de São Lourenço do Sul 4 também
no início desse ano. Muitos imputam esses desastres às mudanças climáticas e ao
aquecimento global. Seguramente a falta de planejamento e gestão do espaço
1
Procuradora do Município de Porto Alegre.Especialista em Direito Municipal pela Faculdade Ritter
dos Reis e Fundação Escola Superior de Direito Municipal.Especialista em Revitalização de
Patrimônio Histórico em Centros Urbanos pelo Departamento de Urbanismo da Faculdade de
Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Mestre em Planejamento Urbano e
Regional Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Professora da
disciplina Direito Administrativo I e II e Direito Municipal-Urbanístico do curso de Direito da Faculdade
Cenecista de Osório, Rio Grande do Sul.
2
A força das chuvas varreu o Morro do Bumba em 2-4-2010, construído sobre um antigo lixão.
Nesse acidente faleceram 56 pessoas e dezenas de pessoas ficaram desalojadas.
3
Mais de 500 pessoas morreram e milhares de outras ficaram desalojadas. Os efeitos dessa tragédia
estão registrados nas ruas das cidades atingidas, já que até o momento, os Municípios não
conseguiram recuperar os estragos ocorridos. Estima-se que a recuperação das cidades atingidas
ocorrerá em 10 anos.
4
A cidade é uma península, rodeada pelo arroio São Lourenço e Lagoa dos Patos. O arroio que
corta a cidade uniu-se, pela força das águas, com a Lagoa dos Patos, alagando mais da metade do
espaço urbano.Dezenas de pessoas ficaram desalojadas e metade da área urbana foi atingida.
Disponível
em
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2011/03/10/chuva-forte-e-enxurrada-no-rsdesabrigam-20-mil-em-sao-lourenco-do-sul.jhtm. Acesso em 13-5-2011.
32
urbano contribuiu, e muito, para esses infortúnios. Entretanto curioso é que não se
aborda a eventual responsabilização dos administradores e gestores públicos no
trato do espaço urbano. Seria por falta de legislação para tanto? Como será
demonstrado não apenas há legislação específica como se poderia utilizar o
exemplo de outros países na responsabilização dos seus gestores urbanos. Assim
que o presente texto analisa o artigo 52 do Estatuto da Cidade e sua interface com a
Lei de Improbidade Administrativa. Esse tema de vital importância para a
efetividade, eficácia do planejamento e da gestão, assim como da eficiência da
execução da política urbana, encontra-se, ainda, pouco explorado pela doutrina e
jurisprudência brasileira. Em razão disso, por meio de narração de situação de fato
ocorrida na cidade espanhola de Marbella, Espanha, se buscou lançar o tema ao
debate para chamar a atenção sobre a necessidade de aplicação efetiva das
disposições contidas no artigo 52 do Estatuto da Cidade, como um dos caminhos
para a realização de uma eficiente política urbana. Somente assim, pelo que se
defende no trabalho, será garantido o direito à cidade, hoje alçado à dimensão
constitucional.
1. O direito à cidade e a política urbana:
A cidade é um cenário de vida. Dinâmica e mutante é formada pela sobreposição de
vivências cuja soma resulta o ambiente urbano. Costuma-se afirmar, para ratificar a
noção dessa dinâmica, que a cidade que adormece não é a mesma que desperta.
Além disso, a rapidez com que se deterioram os recursos urbano-ambientais, levou
à tomada de consciência sobre o papel das cidades e o que a civilização dela
deseja. Assim, esse palco de vida mereceu atenção especial na Constituição de
1988, seguindo a mesma direção adotada por outros países, especialmente os do
continente europeu. A partir de então, no caso brasileiro, a cidade foi alçada à
dimensão constitucional5, aglutinando no seu âmbito outros direitos fundamentais,
entre os quais, o direito à moradia, ao planejamento e à gestão do território e a uma
efetiva, eficaz e eficiente política urbano-ambiental. Essa cidade constitucionalizada
pressupõe ordenamento sustentável para a presente e futuras gerações.
5
PRESTES, Vanesca Buzelato. Dimensão Constitucional do Direito à Cidade e Formas de
Densificação no Brasil. 195f. Dissertação de Mestrado.Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre, 2008.
33
O capítulo referente à política urbana, constante nos artigos 182 e seguintes da
Constituição Federal, foi regulado pela Lei Federal n. 10.257, de 10-7-2001: o
saudado Estatuto da Cidade. Referido diploma legal, além de estabelecer diretrizes
vinculativas para a execução da política urbana6, previu a responsabilização dos
prefeitos, pelo cometimento de improbidade administrativa, com aplicação da Lei
Federal n. 8.429, de 02-6-92, nos casos que exaustivamente elencou. A partir daí
surgiu uma questão: a da necessária compatibilização teórica e interpretativa da
aplicação das disposições do artigo 52 do estatuto da Cidade e da Lei Federal n.
8.429, a denominada Lei da Improbidade Administrativa.Não fossem os fatores
arrolados, muito pouco se sabe sobre resultados efetivos decorrentes da aplicação
desses dispositivos legais no âmbito brasileiro.
Na Espanha a questão urbano-ambiental também é objeto de preocupação atual das
autoridades públicas. Isso se deve, primordialmente, à forma de ocupação intensa,
acelerada e sem fiscalização da Costa del Sol, da Costa Blanca e da Costa del
Azahar, que compreende, respectivamente o sul da Espanha até o Norte, em
direção à Barcelona. Ali é possível encontrar, e a prensa española tem noticiado
esses fatos, o resultado da ocupação desordenada do território, com privilégios à
especulação imobiliária da costa litorânea espanhola. Inclusive, recentemente, foram
executadas medidas de fiscalização, com a demolição de inúmeras obras irregulares
construídas em áreas de preservação junto ao litoral, como decorrência de uma
nova política urbano-ambiental que começa a ser delineada naquele país7.
Essa nova orientação administrativa e política adotada pelo país ibérico acarretou
efeitos na esfera da responsabilização das autoridades públicas. Essa postura é
abordada no presente trabalho como modo de discutir o tema e chamar a atenção
para esse aspecto de responsabilização das autoridades públicas, que também está
inserida na execução da política urbana. Assim, tendo por base a proposta do
presente Congresso de Direito Municipal, o Mundo da cidade e a cidade no Mundo,
6
VIZZOTTO, Andrea; PRESTES. Vanesca. Direito Urbanístico. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009.
Esse tema também desperta curiosidade pela gama de pessoas e de interesses ilegalmente
constituídos e que foram desconstituídos. A dimensão dos fatos e do direito aplicado foge à proposta
do presente trabalho neste momento.
7
34
o presente texto pretende lançar algumas considerações específicas sobre o artigo
52 do Estatuto da Cidade e sua relação com a Lei da Improbidade Administrativa.
Para tanto, além da análise teórica, utilizar-se-á, como ilustração, a Operación
Malaya, que resultou na condenação e prisão de várias autoridades municipais da
cidade de Marbella, incluindo ex-prefeitos, pelo cometimento de vários crimes
administrativos, entre os quais a concessão de mais de 200 licenças urbanísticas
irregulares. Essas licenças foram anuladas em juízo. Além delas, foram embargados
250 projetos urbanísticos que se encontravam em plena execução, em razão de
suspeita de concessão de licenças de modo irregular.
O episódio serve para mostrar esse novo pensamento que se esboça em âmbito
mundial e que começa a surtir os efeitos esperados, ao menos, tendo por base o
caso narrado.
O assunto não é novo e a legislação existente não é inédita na previsão desses tipos
legais de responsabilização das autoridades públicas. Todavia, a sensação que se
tem é que a aplicação desses dispositivos de âmbito administrativo e criminal. É
como se o artigo 52 do Estatuto da Cidade não estivesse expressamente arrolado
como regra jurídica no texto legal. Isso se deve, ao que se pensa, à limitação do
objeto da política urbana, até então adstrito à garantia do direito à cidade na sua
dimensão urbano-ambiental propriamente dita. Ou seja, a responsabilização das
autoridades públicas responsáveis pela execução da política urbana no âmbito dos
territórios municipais não tem surtido os efeitos esperados e legalmente autorizados
por meio do artigo 52 do Estatuto da Cidade. Nesse ponto o papel das próprias
autoridades
públicas,
dos
servidores
públicos,
dos
assessores
jurídicos,
procuradores municipais e do órgão do Ministério Público é fundamental. Quer na
ação preventiva ou repressiva é necessário maior efetividade quanto ao tema que
aqui se permitiu denominar de improbidade urbanística ou, como se queira, crimes
urbanísticos.
2. A lei de improbidade administrativa e o estatuto da cidade: uma natural
compatibilização
35
A moralidade e a improbidade administrativa são temas que, por demais que tenham
sido abordados, sempre apresentam novas faces e novas análises como é exemplo
aquela que aqui se analisa.
No campo da política urbana, onde o embate clássico se dá entre a defesa do
cumprimento do principio constitucional da função social da propriedade, existente
no nosso ordenamento constitucional desde a Carta Federal de 19378 (por incrível
que possa parecer!) e o pensamento privatista, do direito absoluto à exploração da
propriedade urbana9. Nessa seara, a defesa dos interesses privados, o
entendimento adotado sobre o uso e titularidade da terra urbana, o direito à cidade e
o papel de cada indivíduo na garantia da ordem urbanística como direito difuso
assumiu relevância.
Esses pontos, por comportarem pontos de vista e de
procedimento tão diversos (embora o Estado Democrático de Direito Brasileiro seja
tão claro ao evidenciar os valores adotados neste país, especialmente no que diz
respeito à função social da propriedade urbana) dão margem à proteção de
interesses dos mais diversos. Interesses esses, nem sempre protegidos pelos
planos diretores municipais, instrumentos básicos de execução da política urbana.
Nesse sentido convém referir:
...não se pode ignorar que o planejamento sabiamente manejado pelo
Poder Público municipal se encontra vinculado a um espaço de luta, onde
8
Artigo. 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à
liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XIV- o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante
indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o
exercício.
Artigo 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade,
nos termos seguintes:
[...]
§ 16 - É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou
utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso
de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da
propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a
indenização ulterior.
Artigo. 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com
observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual
oportunidade para todos.
9
VIZZOTTO, Andrea. O solo criado em Porto Alegre: a adoção e a aplicação do instrumento jurídicourbanístico. 181f. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Porto Alegre.
2008.
36
diferentes indivíduos se posicionam numa tentativa de expressar e de
impor sua idéia de cidade. Em outras palavras, há várias cidades em uma
só, na medida em que a cidade é fragmentada e que cada fragmento
expressa as diferenças espaciais e os interesses em jogo. A formação e a
organização do território revelam uma contínua luta de dominação e de
insubordinação. Nessa perspectiva, o espaço urbano aparece como um
verdadeiro campo de forças diversas e antagônicas, que a todo instante se
10
encontram em conflito.
Além disso, apenas para ilustrar, deve ser lembrado que a terra urbana vale não
pelo que pode produzir, mas pelo seu maior ou menor grau de acessibilidade 11. A
conseqüência é o direcionamento da aplicação dos investimentos públicos e a
valorização imobiliária diferenciada dos terrenos.
Ocorre, ainda, nesse processo, e em razão dele, o exercício diferenciado do direito
de propriedade, pois variada a acessibilidade e o aporte de infra-estrutura, variável
também será a valorização do imóvel. A partir dessas hipóteses alinhadas é possível
visualizar a pessoalização de interesses que poderá ocorrer, em total desarmonia
com os princípios que regem a Administração Pública e, especialmente, o trato e a
execução da política urbana.
O que se deseja é que tais práticas sejam cada vez menos exercidas e noticiadas.
Caso contrário, possibilitar-se-ia, em tese, o favorecimento de interesse privados e
privatizados em total dissonância com o princípio constitucional da função social da
propriedade e da garantia do desenvolvimento sustentável que é diretriz vinculativa
do artigo 2º do Estatuto da Cidade, apenas para mencionar os principais.
Nesse sentido e aí o objetivo da presente análise, de chamar a atenção para o artigo
52 do Estatuto da Cidade que configuraria hipóteses de improbidade urbanística que
merece luzes na execução da política urbana local, por meio dos canais
competentes.
Não é novidade que a denominada Lei da Improbidade Administrativa foi editada
para a garantia de preservação da legalidade e da moralidade no âmbito da
10
SHIRAISHI NETO, Joaquim; LIMA, Rosirene. Idealismo Jurídico como obstáculo ao direito à
cidade: a noção de planejamento urbano e o discurso jurídico ambiental. Revista Magister de Direito
Ambiental e Urbanístico, São Paulo, volume 22, 2009, página 57.
11
GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 72.
37
administração pública no seu sentido mais amplo. Em realidade se pode afirmar que
a Lei teve por escopo fazer valer, mediante a aplicação de sanções expressamente
previstas, os princípios basilares da Administração Pública, entre os quais aqueles
que estão consagrados no caput do artigo 37 da Constituição Federal12. Mais que
isso a Lei de Improbidade buscou regrar, por meio de sanções, as condutas que
importarem em prejuízo ao patrimônio público e aqueles atos ilícitos que importarem
em enriquecimento ilícito.
Assim, que os atos de improbidade classificam-se em três espécies: aqueles que
importam em enriquecimento ilícito, conforme artigo 9º da Lei Federal nº 8429;
aqueles que causarem prejuízo ao erário público, de acordo com o artigo 10 da
mesma Lei e, por fim, os que atentarem contra os princípios da Administração
Pública, conforme o artigo 11 da Lei.
Portanto, com a edição do Estatuto da Cidade no ano de 2001 não foi alterada a
classificação da Lei da Improbidade do ano de 1992, mas foram acrescidas novas
hipóteses de incidência à classificação tripartida já existente. Ou seja, as hipóteses
previstas pelo artigo 52 do Estatuto da Cidade ajustar-se-ão ao caso de
enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário público ou atitude atentatória aos princípios
que regem a administração pública, conforme o caso13.
Deve ser lembrado que em se tratando de conduta ímproba, não bastará a simples
constatação do dano. A identificação de um ato como de improbidade requer seja
percorrido um “iter”, o qual tem início com a comprovação da incompatibilidade da
conduta com os princípios regentes da atividade estatal, dentre os quais se
destacam os princípios da legalidade e da moralidade.14 Também merece ser
salientado que a combinação das disposições da Lei da Improbidade Administrativa
com as regras do Estatuto da Cidade leva à conclusão de que não apenas o Chefe
12
A par de outros princípios jurídicos explícitos e implícitos que estão espalhados no texto
constitucional.
13
Seria equivocado defender posicionamento diverso. Isso porque admitir a criação de uma nova
classificação de atos de improbidade alteraria de forma tal a estrutura da lei que restaria inviabilizada
a sua classificação.
14
GENZ, Karin. Improbidade no Estatuto da Cidade. Ministério Público do Estado do Rio Grande do
Sul,
Porto
Alegre,
2007.
Disponível
em
http://www.mp.rs.gov.br/areas/urbanistico/arquivos/improbidade.pdf Acesso em 27-11-2008.
38
do Poder Executivo local, mas todo aquele que exerça, ainda que transitoriamente
ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer
outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função de
qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, Território, de
empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou
custeio o erário concorra com mais de 50% do patrimônio ou da receita anual e os
terceiros que não se incluem na definição de agente público, masque concorram
para a prática do ato ou dele se beneficiem.15
Vista rapidamente a legislação referente à improbidade administrativa, nos limites
permitidos pelo presente trabalho, deve se trazer à tona, novamente, o disposto pelo
artigo 182 e seguintes da Constituição Federal e sua regulamentação pela Lei
Federal n. 10.257, de 10-7-2001. Há ali toda uma vinculação sistêmica dos
instrumentos e de sua utilização, bem como sanções por descumprimento das
regras ali contidas que demandam condutas responsáveis, planejadas, gestionadas
e geridas para que se alcance de modo efetivo as diretrizes gerais vinculativas do
artigo 2º do Estatuto da Cidade. É justamente porque a política urbana está
embasada em atos de planejamento e de gestão, e por isso o plano diretor é o
instrumento básico de promoção dessa política, de nada adiantaria o planejamento e
a gestão se não houvesse imputação de sanções para o caso de desatendimento
dos princípios, diretrizes e normas do Estatuto da Cidade. Nesse sentido o artigo 52
do Estatuto da Cidade dispôs:
Art. 52. Sem prejuízo da punição de outros agentes públicos envolvidos e
da aplicação de outras sanções cabíveis, o Prefeito incorre em improbidade
administrativa, nos termos da Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, quando:
I – (VETADO)
II – deixar de proceder, no prazo de cinco anos, o adequado
aproveitamento do imóvel incorporado ao patrimônio público, conforme o
o
o
disposto no § 4 do art. 8 desta Lei;
III – utilizar áreas obtidas por meio do direito de preempção em desacordo
com o disposto no art. 26 desta Lei;
IV – aplicar os recursos auferidos com a outorga onerosa do direito de
construir e de alteração de uso em desacordo com o previsto no art. 31
desta Lei;
V – aplicar os recursos auferidos com operações consorciadas em
o
desacordo com o previsto no § 1 do art. 33 desta Lei;
VI – impedir ou deixar de garantir os requisitos contidos nos incisos I a III
o
do § 4 do art. 40 desta Lei;
15
Artigo 2º e 3º da Lei Federal n. 8429.
39
VII – deixar de tomar as providências necessárias para garantir a
o
observância do disposto no § 3 do art. 40 e no art. 50 desta Lei;
VIII – adquirir imóvel objeto de direito de preempção, nos termos dos arts.
25 a 27 desta Lei, pelo valor da proposta apresentada, se este for,
comprovadamente, superior ao de mercado.
Foi claro o artigo 52 ao imputar do chefe do Poder Executivo municipal a
responsabilidade por ato caracterizado como de improbidade administrativa quando
deixar de proceder, no prazo de cinco anos, o adequado aproveitamento do imóvel
incorporado ao patrimônio público, conforme o disposto no § 4 o do art. 8o desta Lei;
utilizar áreas obtidas por meio do direito de preempção em desacordo com o
disposto no art. 26 desta Lei; aplicar os recursos auferidos com a outorga onerosa
do direito de construir e de alteração de uso em desacordo com o previsto no art. 31
desta Lei; aplicar os recursos auferidos com operações consorciadas em desacordo
com o previsto no § 1o do art. 33 desta Lei; impedir ou deixar de garantir os
requisitos contidos nos incisos I a III do § 4o do art. 40 desta Lei; deixar de tomar as
providências necessárias para garantir a observância do disposto no § 3 o do art. 40 e
no art. 50 desta Lei ou adquirir imóvel objeto de direito de preempção, nos termos
dos arts. 25 a 27 desta Lei, pelo valor da proposta apresentada, se este for,
comprovadamente, superior ao de mercado.
Como se pode perceber, pela mera leitura das hipóteses do artigo 52, todas
denotam ato que pressupõe vontade e consciência do administrador público e
daqueles arrolados no artigo 2º e 3º. da Lei de Improbidade Administrativa como
passíveis de serem responsabilizados por atos previstos nesta Lei.
Rapidamente, salutar que se examine as hipóteses do artigo 52 a fim de que se
compreenda a extensão e a importância deste dispositivo na sistemática da
execução da política urbana.
Na primeira hipótese, por exemplo, o proprietário foi compelido a parcelar, edificar
ou dar o adequado uso ao imóvel, sofrendo imputação de alíquotas progressivas e,
posteriormente, pelo não atendimento, a desapropriação-sanção. É certo que o ato
administrativo que desencadeou tal procedimento constitui ato administrativo
vinculado às normas do plano diretor e do planejamento municipal. Vinculado a essa
normatização, não seria crível que a administração pública tenha compelido o
40
proprietário desapropriado ao cumprimento de obrigação que, agora, como titular da
propriedade do imóvel, não cumpre. Neste caso se pode deduzir duas situações: ou
o procedimento administrativo desencadeado não atendeu à normativa municipal e
buscou atingir pessoalmente o proprietário por motivos outros que não urbanísticos,
ou chegou-se à desapropriação para o fim de alienação de imóvel a terceiro,
também com objetivos outros que não os decorrentes da política urbana.
Se o ato que motivou a desapropriação-sanção foi a não utilização adequada no
imóvel inserido em área urbana, não se pode admitir que aplicada a sanção, a
administração pública incorra no mesmo erro sem ferir os princípios da
administração pública e o erário público, incidindo, assim, as disposições da Lei de
Improbidade.
Igualmente, o exercício do direito de preempção para utilização do imóvel em
situações outras que não as elencadas pelo artigo 26 poderá enquadrar o
administrador público em hipótese de improbidade administrativa. Isso ocorre porque
o exercício do direito de preempção está vinculado aos motivos elencados no artigo
26 do Estatuto da Cidade, desde que a área preferida esteja previamente delimitada
e indicada pelo plano diretor. Pelos mesmos motivos acima arrolados, não se pode
conceber que o administrador incida sobre a disposição da propriedade do
particular, vinculando-se à transação de compra e venda onerosa do imóvel se não
houver uma motivação legítima e legal para tanto. Caso contrário, poderá restar
caracterizada a pessoalização do ato, em desrespeito à necessária impessoalidade
da conduta administrativa.
Do mesmo modo a Lei prevê a punição do administrador público que adquirir imóvel,
por meio do direito de preferência, por preço superior aos do mercado. Aqui o que se
pretende evitar é o conluio entre as partes com prejuízo à administração e ao erário
público.
No caso da outorga onerosa do direito de construir e das operações urbanas
consorciadas, cujo um dos pressupostos teóricos é a vinculação da receita oriunda
da venda de solo, o desvio dos valores a outras finalidades compromete e inviabiliza
41
o mecanismo jurídico-urbanístico. Esses valores, no caso do solo criado, servem
para compensar o adensamento decorrente da construção acima do coeficiente
básico de aproveitamento, na forma prevista pelo artigo 26. Da mesma forma,
simples seria a prova de não aplicação dos recursos advindos com a venda de solo
ou das operações urbanas consorciadas para hipóteses não previstas na lei. Isso
porque a lei municipal reguladora desses instrumentos deverá prever rubricas
específicas no orçamento municipal, ou fundos específicos para o depósito e
posterior utilização desses valores. Trata-se de receita vinculada a uma determinada
finalidade e o desvio da verba para outras finalidades-lícitas ou não-importa em ato
de improbidade.
A participação popular e a gestão democrática da cidade são pilares da política
urbana. Assim que, impedir ou não garantir, por qualquer forma, que tais diretrizes
sejam cumpridas, objetivamente, o administrador incorrerá em conduta ímproba,
imoral e desonesta.
De referir ainda, que o legislador foi bastante claro ao afirmar que a par das sanções
previstas na Lei de Improbidade, outras poderão ser aplicadas conforme o caso.
Portanto, além do enquadramento na Lei 8.429 poderão restar configuradas as
hipóteses de desvio de finalidade, ensejando a aplicação da Lei n. 4717, 29-6-1965,
Lei da Ação Popular.
É o caso concreto que irá indicar o caminho a ser seguido.
As hipóteses previstas no artigo 52 são objetivas o suficiente para tornar a prova da
conduta ímproba de fácil constatação, muito embora, como se disse, necessária a
comprovação da vontade e consciência do agente público ou dos demais imputados
pelo artigo 2º e 3º da Lei de Improbidade Administrativa.Justifica-se tal medida em
razão da natureza jurídica desses instrumentos de planejamento e de gestão,
executores da política urbana. Novamente, é bom lembrar que a política urbana
deve ser conduzida pelos princípios do artigo 182 da Constituição Federal e pelas
diretrizes gerais, buscando, especial, a efetivação da função social da cidade e da
42
propriedade, a sustentabilidade do espaço urbano para a presente e futuras
gerações, garantidas a participação popular e a gestão democrática da cidade.
Qualquer conduta que possa macular, impedir, alterar ou prejudicar a execução da
política urbana que tem o plano diretor como instrumento básico, mas não único,
poderá ser caracterizada como ato de improbidade administrativa.
3. O caso espanhol
Posta a legislação existente, no Brasil, uma das situações de irregularidades que
repercutiu na imprensa e no meio jurídico foi a ocorrida no ano de 2007, no Estado
de Santa Catarina, mais precisamente na cidade de Florianópolis, na praia de Jurerê
Internacional, a denominada Operação Moeda Verde que culminou com a
descoberta de condutas contrárias à legislação urbano-ambiental, passiveis de
penalização administrativa, civil e criminal; Todavia, ao que se sabe, não ocorreu o
julgamento final do caso, razão pela qual não pode ser, ao que se entende, objeto
da análise aqui pretendida. Por isso, e pelo melhor conhecimento dos fatos, elegeuse a Operación Malaya, realizada em Marbella, praia turística localizada no sul da
Espanha, também conhecida pelas inúmeras ocupações irregulares no litoral.
Esse caso inicia-se em meados da década de 1990 com a expedição de licenças
urbanísticas falsificadas e malversação do dinheiro público. Segundo o jornal El
país, desde aquela época até meados do ano de 2007, mais de 460 milhões de
euros foram desviados dos cofres públicos.O esquema de corrupção envolveu mais
de 120 pessoas entre servidores municipais, membros da Câmara de Vereadores de
Marbella, presidentes de empresas construtoras, empreendedores imobiliários,
secretários de urbanismo e os ex-prefeitos de Marbella, todos devidamente julgados
e condenados pelo Poder Judiciário espanhol. O caso teve repercussão
internacional, não apenas em razão do tema urbano-ambiental estar na pauta do
dia, mas também pelo fato de que os alcaldes de Marbella eram, até então, mais
conhecidos do público espanhol em razão das freqüentes aparições em eventos e
colunas sociais daquele país. Seja por um motivo ou por outro, o efeito dessa
43
repercussão foi o da discussão do amplo poder concedido aos administradores
locais, segundo o sistema jurídico ibérico, em matéria urbano-ambiental16.
Maria Teresa Goulão expressa em números a aceleração do crescimento imobiliário
na região do sul da Espanha, dando a dimensão real os danos decorrentes das
operações ilegais realizadas:
...o ritmo de crescimento da artificialização do solo em Espanha foi muito
superior ao crescimento demográfico. Estamos a falar de um ritmo de
expansão de 2 ha/hora, ou seja, em cada hora que passa impermeabilizase uma superfície equivalente a dois campos de futebol.
O desenvolvimento económico espanhol tem estado extremamente
dependente do sector imobiliário e da construção e os primeiros sinais de
crise detectados no ano passado já são mais do que isso, ou seja,
representam uma verdadeira crise. De facto, Espanha consome mais
cimento do que a Alemanha e a França juntas, duas economias que,
somadas, têm cerca de três vezes e meia mais do que o PIB espanhol. Só
em 2006, foram construídas 700 000 habitações.
O financiamento municipal, excessivamente dependente da transformação
do uso do solo, associado à falta de escrúpulos dos agentes públicos,
saturou a paciência dos juízes. Os Serviços Fiscais reconheceram que o
urbanismo «constitui uma crescente fonte de criminalidade», tendo sido
abertos 1600 processos-crime por violação das normas de ordenamento do
território.
A nova Lei do Solo contém mecanismos de luta contra a corrupção
urbanística, a par de tentar contribuir para minimizar a escalada imparável
do preço das casas e da especulação imobiliária, consagrando um novo
sistema de valorização de solos, a criação de uma bolsa de solo público e
a obrigação da reserva de 30% de solo nos projectos urbanísticos
destinados a habitação a preços controlados. Também foi aprovado o
Código Técnico de Edificação, que exige maior sustentabilidade urbana e
qualidade construtiva e também mecanismos de transparência para
combate contra os delitos urbanísticos.17
Esses dados, as investigações e condenações decretadas levam à conclusão da
necessidade de um maior controle sobre as operações urbanísticas advinda de
todos os atores do palco da cidade. Todos nós como titulares do direito à cidade
sustentável, somos responsáveis pela fiscalização da execução da política urbana.
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Segundo o juiz Miguel Angel Torres, titular do 5º Juizado Penal da cidade de Granada, ao proferir a
conferencia sobre a corrupção urbanística na Costa do Sul, no 2º Congresso de Estudos penais
realizado na cidade de Granada, em abril de 2009: Marbella no es la "oveja negra" del litoral
malagueño y asegura que habrá casos similares si se mantiene el modelo basado en la construcción
y los alcaldes conservan su "inmenso poder" sobre el urbanismo. "Las administraciones han
permitido, e incluso fomentado, que muchos hagan lo que quieran". El juez sostiene que si la
investigación no se hizo antes fue "porque a nadie le interesaba que saliera". Disponível em:<
http://www.elpais.com/articulo/espana/juez/Torres/dice/crisis/acabando/corrupcion/urbanistica/elpepie
sp/20090412elpepinac_10/Tes> Acesso em: 14-5-2009.
17
Urbanismo: Câmara dos horrores.Disponível em< https://mail.uevora.pt/pipermail/ambio/2008April/010126.html>. Acesso em 23-5-2009.
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4. A expectiva de aplicação do artigo 52 do estatuto da cidade:
Como se disse ao inicio, o trabalho não tina por pretensão o esgotamento do tema
até agora tão pouco explorado pela doutrina jurídica. O objetivo foi sim o de chamar
a atenção, por meio da discussão, da necessidade de trazer o artigo 52 do Estatuto
da Cidade a lume como ponto essencial a uma efetiva política urbana. Ou seja, a
execução da política urbana possui sim essa interface com a Improbidade
Administrativa, como efetivação real do direito constitucional à cidade.
Comparado ao caso espanhol relatado, as hipóteses configuradoras de improbidade
urbanística são muito mais específicas e detalhadas, demandando uma maior
cautela na execução da política urbana, por meio de ações de planejamento e
gestão, objetivando transformar a cidade real na cidade desejada por todos e para
todos.
A expectativa é, portanto, a de que os operadores do direito entendam a aplicação
do artigo 52 do Estatuto da Cidade como um viés essencial à concretização da
execução da política urbana e não apenas como mais um dispositivo legal
condenado a permanecer apenas como mais uma regra jurídica não cumprida.
5. Conclusões:
a)
O artigo 52 do Estatuto da Cidade merece maior atenção dos Operadores de
Direito, especialmente dos Assessores Jurídicos, Procuradores Municipais e
integrantes do Ministério Público, quer na ação preventiva ou repressiva no que
tange ao cometimento de improbidade urbanística como forma de integração e
efetiva e ampla execução da política urbana;
b)
Até o momento pouco se sabe sobre a aplicação concreta do artigo 52 do
Estatuto da Cidade, como se se tratasse de dispositivo inexistente no ordenamento
jurídico brasileiro;
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c)
Às hipóteses da Lei de Improbidade Administrativa foram adicionadas aquelas
previstas no artigo 52 do Estatuto da Cidade, não havendo qualquer conflito para a
imediata aplicação das hipóteses de improbidade urbanística, quando ocorridas;
d)
O caso de Marbella, no litoral do sul da Espanha foi relatado neste trabalho
como forma de chamar a atenção para o tema, que começa a tornar contornos, dada
a questão urbano-ambiental, em diversos países e com resultados práticos.
e)
O princípio da função social da propriedade e da cidade, bem como a diretriz
do direito à cidade sustentável exigem que o artigo 52 do Estatuto da Cidade esteja
na pauta da execução da política urbana, tal como as outras disposições elencadas
pela Lei Federal n. 10.257. Somente assim é que se poderá afirmar a efetiva e eficaz
política urbana.
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A lei de improbidade administrativa e o artigo 52 do estatuto