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A fundação Ford, a
FINEP e as ciências sociais
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Mario Brockmann Machado
O RELATO DA HISTÓRIA DENSA E BEM-SUCEDIDA DA Fundação Ford no Brasil, apresentado de
forma competente e sensível por Sergio Miceli, e os depoimentos sobre as trajetórias difíceis e
admiráveis do CEBRAP, CEDEC, IDESP e CPDOC não poderiam ser adequadamente analisados
por um debatedor no curto espaço de 15 minutos. Há informações e emoções demais em tudo
o que aqui foi dito. Além disso, entendo que nosso encontro, pelo menos neste início, deva ser
mais de celebração do que de avaliação. E é dentro desta percepção que darei um breve
depoimento.
Miceli começou seu estudo com a transcrição de um trecho da entrevista de Peter Bell, que
trabalhou no escritório da Ford no Brasil entre 1964 e 1969. A lembrança de Peter Bell fezme viajar ao passado, aos idos de 1966. Advogado formado há pouco mais de um ano,
tinha eu então, conforme me diziam, uma promissora carreira pela frente. É que, tendo
concluído o curso de Direito na PUC como primeiro aluno da turma, havia sido convidado a
trabalhar em um dos melhores escritórios de advocacia de empresa do Rio. Mas sentia-me
intelectualmente insatisfeito com o que fazia. Não me conformava em ficar lidando com
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"A Fundação Ford, a FINEP e as Ciências Sociais". In: Sergio Miceli, org. A Fundação Ford no Brasil. São
Paulo: FAPESP/Editora Sumaré, 1993, p. 99-105.
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processos judiciais individuais, enquanto o país enfrentava problemas políticos coletivos tão
agudos. Essa razão, acrescida de questões de natureza pessoal, finalmente convenceu-me
de que queria voltar a estudar e viajar ao exterior.
Buscando informações sobre o assunto, soube da existência da Fundação Ford, em cujo
escritório um dia "desembarquei" para uma entrevista com Peter Bell. Disse-lhe que queria
uma bolsa para estudar Ciência Política, não importava onde: New York, Boston, Chicago,
Los Angeles, ou mesmo Londres ou Paris. O primeiro mundo! Mas Peter Bell, demonstrando
uma extraordinária capacidade para vender idéias difíceis, acabou me convencendo antes
viajar - imaginem! - para Belo Horizonte. Foi assim que me tornei aluno da primeira turma
do Departamento de Ciência Política da UFMG, praticamente o primeiro programa criado
pela Ford no Brasil, no âmbito das Ciências Sociais.
Tive, ali, o privilégio de ser aluno de Fábio Wanderley Reis e Antônio Octávio Cintra,
pioneiros da renovação da Ciência Política no Brasil e de consolidar minha amizade com
Bolivar Lamounier, Amaury de Souza e tantos outros mineiros ilustres. E dali finalmente
parti, alguns meses depois, para a Universidade de Chicago, onde fiz o mestrado e o
doutorado. Uma experiência intelectual e emocional inesquecível, e ainda por cima
realizada nos gloriosos anos do final da década de 60. (Apesar de meus cinqüenta anos, I'm
a child of the 60's). Eventualmente, retornei a Belo Horizonte, em cumprimento a
compromisso assumido quando do recebimento da bolsa, para lecionar durante dois anos,
tendo ao final sido nomeado chefe do DCP.
O início de minha atividade profissional está, portanto, intimamente ligado à Fundação
Ford, e esta me parece uma boa ocasião para registrar meu agradecimento.
Ao vir para o Rio de Janeiro, em 1975, e sentindo as deficiências das condições materiais de
trabalho acadêmico, acabei ingressando na FINEP, onde passei a participar diretamente do
processo de construção institucional das Ciências Sociais no Brasil., iniciado pela Fundação
Ford. Desde então, e por muitos anos, minha vida integrou-se, em graus variados, aos
problemas, aos desafios e aos ideais do CEBRAP, do CEDEC, do IDESP, do CPDOC, do
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IUPERJ, do Museu Nacional e de tantas e tantas outras instituições de pesquisa e pósgraduação.
Vejo muita semelhança entre os comentários de Sergio Miceli sobre os obstáculos
enfrentados pela Fundação Ford e os problemas que eu mesmo encontrei na FINEP. De um
lado, a enorme desconfiança política dos possíveis beneficiários, justamente céticos do
papel do Estado nessa área; de outro, as resistências internas à própria FINEP e a
necessidade de recrutar e treinar técnicos para gerenciar a nova área de atuação.
Semelhante, também, era a necessidade de "camuflar" os projetos de Ciências Sociais.
Lembro-me que o primeiro pedido de apoio institucional para o IUPERJ, em 1977, foi por
mim incluído, na documentação que seguia para a Seplan em Brasília, entre os projetos do
Instituto Militar de Engenharia e da Embraer. Lembro-me, também, que o apoio inicial ao
CEBRAP teve de ser intermediado pela FUNDAP de São Paulo, para burlar os censores de
plantão, em 1978.
Não havia, no entanto, uma divisão de trabalho entre a Ford e a FINEP, no sentido de que a
Ford apoiasse alguns pouco centros de excelência, enquanto que as principais agências
nacionais de fomento, como a FINEP, cuidassem de inúmeras instituições e entidades
menos prestigiosas. O apoio preferencial dessas agências era também para os mesmos
centros de excelência: o que ocorria era que, àquela época (meados de 70 a meados de
80), a abundância de recursos permitia o financiamento de muitas outras instituições, além
daquelas prioritárias. A Ford foi sem dúvida pioneira, mas o trabalho de institucionalização
das Ciências Sociais foi coletivo.
Também não se deve esquecer que a criação da ANPOCS não é tão caudatária da atuação,
sem dúvida importante e marcante, de Kalman Silvert. Lembro-me que a idéia de criação de
uma associação surgiu, pela primeira vez, durante o Seminário sobre Indicadores Sociais do
Desenvolvimento Nacional na América Latina, organizado por Cândido Mendes, em maio
de 1972, no Rio de Janeiro. Durante esse encontro, conversas informais de cientistas sociais
brasileiros começaram a esboçar o assunto, e fui então encarregado de redigir um texto e a
minuta do estatuto da futura associação, o que fiz no segundo semestre do mesmo ano.
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Esse material foi distribuído, tendo também sido por mim apresentado aos participantes do
1º Encontro Nacional de Coordenadores de Programas de Pós-graduação em Ciências
Sociais, realizado em Fortaleza, em janeiro de 1973, recebendo forte apoio e algumas
sugestões. Reformulados, os textos foram novamente distribuídos para muitos colegas.
Tendo nessa época viajado outra vez ao exterior, perdi contato com o assunto. Ao regressar
em 1975, constatei que o projeto original, ainda que modificado, havia prosperado com
novas lideranças, que nos conduziram à reunião de constituição da ANPOCS, realizada no
IUPERJ em 1977. Como diretor da FINEP, logo assinei com a nova associação, em fevereiro
de 78, o seu primeiro convênio, repassando recursos para que ela pudesse, de fato,
começar a operar.
Ora, a história da Fundação Ford é digna de nossos louvores, e o trabalho das Instituições
aqui representadas é merecedor de nosso respeito. Tudo isso foi feito, e muito bem feito,
com esforço e alguns sacrifícios. Mas, se a Ford está bem e, com seu apoio, as Instituições
também, como está a Ciência Social propriamente dita?
Infelizmente, há muito desapareceram o entusiasmo e o otimismo, quase evangélicos, dos
primeiros anos. A crise da tradição marxista, o enfraquecimento das escolas angloamericanas, os desastres das políticas econômicas salvacionistas de origem acadêmica, o
fracasso dos paradigmas alternativos de vida curta, o virtual desaparecimento da pesquisa
quantitativa, a generalização do ensaísmo: tudo nos levaria a "crer em nada". E isso sem
falar na rápida e assustadora barbarização de vários setores da sociedade brasileira,
especialmente o educacional.
E no entanto, apesar disso tudo, navegar é preciso...
Talvez, quem sabe, parte da desesperança que sentimos enquanto cientistas sociais - não
enquanto cidadãos, pois esta é uma outra questão - resulte da necessidade de uma
identificação mais cautelosa do nosso próprio objeto de análise. Um diagnóstico sumário,
sujeito a chuvas e trovoadas, apontaria para a modesta penetração da Filosofia Analítica
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anglo-americana nas Ciências Sociais brasileiras, e a pouca importância por nós atribuída às
questões e aos desafios colocados pela Filosofia da Linguagem em geral, por exemplo.
Pessoalmente, estou convencido de que muitos dos problemas com os quais lidamos são na
verdade de natureza lingüística, resultantes do uso indevido e pouco rigoroso de nosso
instrumento de trabalho - o português (ou o inglês, etc., conforme o caso). Questões,
portanto, que precisam ser esclarecidas, e não explicadas; questões que precisam ser
dissolvidas, e não resolvidas; questões que devem desaparecer não com o descobrimento
de respostas, mas com o reconhecimento de sua falta de sentido, de seus nonsense. Os
problemas surgem, dizia Wittgenstein, quando a linguagem entra de férias.
Esse tipo de problemática, no entanto, não se aprende, salvo raras exceções, com uma
dessas bolsas, ditas "sanduíche", do CNPq, com um doutorado tipo fast food. Ela requer
uma "refeição completa", degustada com calma numa boa Universidade, como permitiam
as bolsas de antigamente.
Minhas dúvidas e frustrações quanto ao estado atual das Ciências Sociais, portanto, não
resultam de uma simpatia irracionalista, tão em voga no baixo clero, nem de um
anarquismo epicurista, veladamente vivenciado por alguns de nossos melhores cardeais. No
fundo, faute de mieux, continuo um rabugento positivista. Também não sou um cético
renitente, até porque "crer em nada" é, para mim, um exercício mental que supera minhas
possibilidades cognitivas. E me faz lembrar um apropriado diálogo de Lewis Carrol entre
Alice e o Rei, em Através do Espelho. Olhando o horizonte, o Rei pergunta se Alice vê os
mensageiros, e ela responde: I see nobody on the road. O Rei, agastado, declara: Quem me
dera ter olhos assim. Capazes de ver Ninguém! E a tanta distância! Ora, o máximo que eu
consigo ver, com esta luz, é ver alguém de verdade. Quem me dera, acrescento eu, ser
capaz de "crer em nada", e poder descansar. Não sendo possível, quem sabe o apoio ao
estudo sistemático dessas armadilhas lingüísticas poderia constituir-se em mais um desafio
para o belo currículo da Fundação Ford?
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