finanças/opinião O capitalismo sairá fortalecido da crise A Por Maílson da Nóbrega* 92 pesar da forte névoa causada pela crise internacional, que dificulta previsões, uma afirmação pode ser feita com segurança: o pior já passou. A ação dos governos dos países desenvolvidos e de seus bancos centrais evitou a quebra do sistema financeiro mundial, o que nos faria retornar para a época das trevas. Seria o colapso. As medidas foram orientadas para controlar riscos e salvar os bancos, chegando ao limite da estatização temporária. Graças a isso tudo, há sinais inequívocos de que nos livramos de uma crise sistêmica derivada do problema surgido das hipotecas subprime americanas. Agora estamos na fase de rescaldo da crise, em que se busca normalizar o funcionamento do mercado interbancário e daí promover a estabilidade do sistema financeiro. A interrupção dos negócios entre os bancos, por falta de confiança entre eles, foi um fato assustador. Deu-se a paralisia nos mercados monetários. Boa notícia, que sinaliza a normalização desses mercados, é a redução da taxa interbancária no mercado londrino, a Libor, por um lado, e a diminuição do spread entre a própria Libor e a taxa de juros do mercado americano. Outras fases virão até a normalização definitiva. Até que os bancos reduzam sua aversão ao risco e se alcance a normalidade na oferta de crédito, a economia não voltará aos trilhos. Nesse período, haverá uma longa recessão nos países desenvolvidos. Trata-se de uma espécie de ressaca, que pode durar no mínimo um e não mais do que quatro anos. A economia mundial está sendo afetada pelo pânico que tem grassado algumas vezes nos mercados de ações e de moedas, mas há pouca dúvida de que essa anormalidade será contida. Não se trata da crise terminal do capitalismo. Os que acreditam nisso vão errar de novo. O capitalismo sairá fortalecido dessa crise. Enquanto o ajuste acontece e se tem de pagar um preço por isso, ao mesmo tempo abre-se um grande debate sobre a regulação do mercado financeiro. A esquerda dá pulos de alegria, mas pode decepcionar- se, pois a regulação dificilmente irá pelo caminho que eles querem. Muitos dizem que a crise aconteceu porque os mercados foram desregulados em razão das políticas ortodoxas. Isso tem muito pouco a ver com a realidade. Os mercados são altamente regulados, em especial a partir do século passado. Não existe livre mercado, mas boa regulação. Graças a isso, o sistema financeiro é menos sujeito a crises, embora elas ocorram em média a cada dez anos. Entre uma e outra, o sistema melhora e se torna mais útil no financiamento das inovações tecnológicas, dos investimentos produtivos e do consumo. Quem pensar um pouco verá que o sistema é muito regulado. No Brasil, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), por exemplo, tem regras bastante rígidas e claras para aprovar a abertura de capital das empresas. O Banco Central regula o sistema financeiro de forma ampla. Há, ainda, auto-regulação na Bolsa de Valores. O mercado não é livre para agir como quiser. O desastre atual derivou em grande parte da contribuição de dois fatores. O primeiro foi a disseminação das hipotecas subprimes nos Estados Unidos. O segundo foi a forte alavancagem dos bancos de investimento no mundo todo. Ambos decorreram de má regulação, e não de não-regulação. Nos anos 1930, a lei conhecida como “Glass-Steagal Act”, nos Estados Unidos, separou os bancos comerciais dos bancos de investimento. Com isso, os bancos de investimento saíram da fiscalização do Fed (Federal Reserve) e assim ficaram livres para alavancar irresponsavelmente suas operações, particularmente via derivativos. Não foi a falta de fiscalização das hipotecas subprime que causou a sua expansão, mas sim uma medida tomada pelo Congresso dos Estados Unidos que levou as agências semi-estatais Fannie Mae e Fannie Mac a financiar imóveis para as famílias de baixa renda. Com isso, elas passaram a ser as grandes compradoras dessas hipotecas, originadas pelos bancos privados, Só não quebraram porque contaram com ajuda estatal direta. Houve ausência de regulação, sim, em relação aos derivativos. Um desses derivativos, o CDO (Colateralized Debt Obligation), foi o mais tóxico. Ele empacotava num mesmo instrumento as hipotecas subprime e os papéis de empresas americanas. Foi vendido no mundo inteiro e contaminou o sistema. Houve forte resistência do então presidente do Fed, Alan Greenspan, a regular os derivativos, porque acreditava que eles dispersariam os riscos do sistema financeiro e sua regulação poderia inibir essa contribuição (recentemente, Greenspan reviu essa opinião). No Brasil, porém, esse fenômeno nocivo não ocorreu, porque os derivativos são transacionados por intermédio da BM&F e sua liquidação, segura, é feita em uma câmara de compensação daquela Bolsa, que exige garantias das partes envolvidas. A CVM regula o mercado de balcão. O estrago, assim, entre nós, limita-se às empresas que especularam com derivativos. A lição que se tira desta crise é que será preciso rever a regulação com o objetivo de evitar que o sistema padeça de situação semelhante no futuro. Nos últimos 300 anos, o sistema financeiro mundial passou por 320 crises, umas mais, outras menos graves, mas, apesar disso, o mundo está mais rico. O sistema mais sólido contribuiu para o desenvolvimento. Há sempre o risco de a nova regulação vir a ser malfeita, mas parece que não será o caso. O processo terá forte influência dos Estados Unidos e do Reino Unido. A França poderá defender um controle estatal mais forte, mas não acho que essa virá a ser a posição majoritária. Neste momento, muitas medidas de regulação devem estar em exame pelos técnicos dos bancos centrais, por organizações multilaterais e por outras agências oficiais. Haverá testes e provas. Nada vai ser feito do dia para a noite. Essa nova regulação não sairá das reuniões de chefes de Estado, mas é bom que elas aconteçam, para mostrar a preocupação com a superação do problema. Nos últimos 300 anos, o sistema financeiro mundial passou por 320 crises, mas, apesar disso, o mundo está mais rico 93 finanças/opinião Algumas medidas podem ter dado a impressão de que estamos diante do risco de alguns bancos quebrarem. Isso não vai acontecer no Brasil O Brasil, por seu lado, nunca esteve tão bem preparado para enfrentar uma crise dessas proporções. Ao contrário do que parecem sugerir membros do governo, essa preparação não é obra desta administração. Os avanços que nos legaram essa situação invejável decorreram de medidas adotadas ao longo de anos por equipes diferentes que souberam proceder na mesma direção. O grande mérito do presidente Lula é ter jogado fora as idéias do PT sobre a política econômica. Nesse campo, governou com o que havia sido legado para ele. Ele deve, porém, parar de falar tanto sobre a crise. Em nenhum lugar do mundo, autoridades desse nível dão entrevistas todos os dias sobre o mesmo assunto, menos ainda quando há situação de crise. Felizmente, o comando da crise está 94 nas mãos do Banco Central, que vem agindo com grande competência e determinação. Medidas como a permissão para o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal estão corretas, apesar de terem assustado o mercado, uma vez que passou a impressão de que estamos diante do risco de alguns bancos quebrarem. Isso dificilmente acontecerá. O sistema é sólido e continuará assim. Os boatos são típicos dessa fase. Vale registrar, ainda, que as medidas adotadas pelo atual governo se assemelham, emn seus objetivos, às do Proer, um programa muito mal compreendido até hoje e que recebeu pesados ataques do PT à época. Seria justo que os membros do Banco Central, acusados e processados pelo Ministério Público por terem implantado o Proer, recebessem o reconhecimento por terem feito, em 1996, o que todo o mundo faz agora. Ainda há muito a resolver. A volatilidade será a marca dos mercados nas próximas semanas, mas tudo indica que o pior foi evitado. A economia brasileira vai desacelerar. Dependendo de como evoluir o processo de restabelecimento do crédito, o custo não deverá ser alto. Não será surpresa se o PIB crescer em torno de 3% em 2009, o que seria um resultado muito favorável diante das atuais circunstâncias e muito melhor do que será o desempenho desse indicador nos Estados Unidos e na Europa. Superará a média de crescimento anual da economia brasileira nos últimos 20 anos, de 2,4%. n Maílson da Nóbrega é economista e foi ministro da Fazenda (1988-1990) Anúncio Fort Knox