UNIVERSIDADE PARANAENSE - UNIPAR
DELMAR MARINO HOFFMANN
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO FATO LIMITADOR
DA PRISÃO PREVENTIVA
UMUARAMA - PR
2008
DELMAR MARINO HOFFMANN
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO FATO LIMITADOR
DA PRISÃO PREVENTIVA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Universidade Paranaense – UNIPAR –
Programa de Mestrado em Direito Processual e
Cidadania, como exigência para obter o título
de Mestre em Direito, sob orientação do Prof.
Dr.: José Laurindo de Souza Netto
UMUARAMA - PR
2008
TERMO DE APROVAÇÃO
DELMAR MARINO HOFFMANN
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO FATO LIMITADOR DA PRISÃO
PREVENTIVA
Trabalho de conclusão aprovado como requisito para obtenção de Grau de Mestre pela
Universidade Paranaense - UNIPAR, pela seguinte banca examinadora
__________________________________________________
Dr. José Laurindo de Souza Netto
___________________________________________________
Dr. Gilson Bonato
_____________________________________________________
Dr. Fábio Caldas de Araújo
DEDICATÓRIA
À minha namorada Anna Paula, pelo que
representa na minha vida, e por estar ter sido
determinante para a conclusão deste trabalho.
À minha filha Bárbara, que me ensina pela
sabedoria de sua pureza.
Ao meu irmão Dércio, que foi o motivo desse
estudo.
A Deus...
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Orientador José Laurindo de Souza
Netto.
A todos os meus familiares.
Ao amigo João Carlos Poletto, companheiro das
viagens, nas quais me saciei com sua sabedoria.
HOFFMANN, Delmar Marino. Os Direitos Fundamentais como Fato Limitador da Prisão
Preventiva. Umuarama, 2008. 214 f. Dissertação (Mestrado em Direito Processual e
Cidadania) – UNIPAR.
RESUMO
A pesquisa dissertativa busca estudar a prisão preventiva, instituto processual de privação da
liberdade, sob a ótica de defesa do cidadão, segundo a ordem constitucional vigente, de forma
a reservar a restrição de liberdade a casos efetivamente necessários. A partir da aplicação de
princípios constitucionais que operam a favor da liberdade, e que, ao mesmo tempo, se
apresentam como permissivos à prisão processual, é feita uma passagem pela tutela cautelar
do processo penal, já que o objeto do estudo apresenta, ou deveria apresentar, natureza
jurídica eminentemente cautelar. Para melhor entender a prisão preventiva é feita exposição
das várias espécies de prisões cautelares previstas no ordenamento processual penal brasileiro,
a saber: prisão em flagrante, prisão decorrente de pronúncia, prisão decorrente de sentença
penal recorrível e prisão temporária. A prisão preventiva é abordada em seus fundamentos
para a garantia da ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal e
aplicação da lei penal. Também são estudadas algumas questões polêmicas relativas a prisão
preventiva, procurando apresentar alternativas à medida extrema, sempre em favor da
finalidade do processo penal, garantindo-se, assim, a plena efetividade do processo.
PALAVRAS-CHAVE: prisão preventiva, processo penal.
HOFFMANN, Delmar Marino. The Fundamental Rights Fact limiter as pre-trial
detention. Umuarama, 2008. 214 f. Dissertação (Mestrado em Direito Processual e
Cidadania) – UNIPAR.
ABSTRACT
The dissertative research aims to study the pretrial detention., liberty institute action
disfranchisement, in the view of the citizen defense, according to the constitutional order in
legality, in the way to reserve the liberty restriction to cases really necessary. Using the
constitutions principle application that operates at the favour of the liberty, and that in the
same way, presents themselves as allowed to the processual detention, is proceed a
guardianship caution through the penal process, as the object of the study presents, or may
present, juridical sole character of caution. To better understand the preventive arrestment is
exposed several modus of caution arrestments foreseen in the brazilian penal process, as
written: snapshot (flagrant) arrestment, arrestment through enunciation, arrestment due penal
sentence able to recourse and temporary arrestment. The preventive arrestment is discussed
in its own fundaments to the public order guarantee, economical order, criminal instruction
convenience and penal law application, as well as the late innovation represented by the
preventive detetion foreseen in the Law 11.340/2006 - Law Maria da Penha. Also are under
the study some controversy questions that are around on the preventive arrestment, which aim
is to present alternatives to extreme dimensions, allways in favour of the penal process object,
giving so the guarantee to the plane process fulfillment.
KEY-WORDS: pretrial detention, penal process.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10
1 A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A PRISÃO PREVENTIVA ................. 13
1.1 A Problemática da Prisão Preventiva............................................................................ 13
1.2 A Hermenêutica Jurídica Necessária para Consolidar o Estado Democrático de
Direito ........................................................................................................................... 16
1.3 Um Breve Delineamento dos Direitos Fundamentais................................................... 21
1.4 A Eficácia e Aplicação da Jurisdição Constitucional dos Direitos Fundamentais ... 27
2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE GARANTIA DO CIDADÃO ....................... 32
2.1 Princípio da Liberdade ................................................................................................... 32
2.2 Princípio da Presunção de Inocência e Prisão Preventiva........................................... 37
2.3 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana .................................................................. 44
2.4 O Princípio do Devido Processo Legal........................................................................... 48
2.5. Princípio da Proporcionalidade .................................................................................... 58
2.6 Princípio da Razoabilidade............................................................................................. 62
2.7 Princípio da Fundamentação das Decisões Judiciais ................................................... 65
3 TUTELA CAUTELAR NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO ................................ 71
3.1 Noções Gerais................................................................................................................... 71
3.2 Características da Tutela Cautelar ................................................................................ 74
3.3 Requisitos e Fundamentos Gerais das Medidas Cautelares ........................................ 80
3.4 Cautelares do Processo Penal Brasileiro ....................................................................... 82
4 PRISÕES DE NATUREZA PROCESSUAL NO DIREITO PROCESSUAL PENAL
BRASILEIRO ...................................................................................................................... 88
4.1 Conceito de Prisão ........................................................................................................... 88
4.2 Prisão em Flagrante ........................................................................................................ 90
4.3 A Prisão Decorrente de Pronúncia ................................................................................ 96
4.4 Prisão Decorrente de Sentença Penal Condenatória Recorrível................................. 98
4.5 Prisão Temporária......................................................................................................... 103
5 A PRISÃO PREVENTIVA............................................................................................. 112
5.1 Conceituação .................................................................................................................. 112
5.2 Aspectos Históricos da Prisão Preventiva ................................................................... 116
5.3 Natureza Jurídica da Prisão Preventiva...................................................................... 121
5.4 Pressupostos Necessários à Decretação da Prisão Preventiva................................... 123
5.4.1 Prova da existência do crime ..................................................................................... 123
5.4.2 Indício suficiente da autoria ...................................................................................... 125
5.4.3 Necessidade de ordem escrita e fundamentação do decreto de prisão preventiva 128
5.5 Requisitos Autorizadores à Decretação da Prisão Preventiva .................................. 129
5.5.1 Prisão preventiva decretada como garantia da ordem pública.............................. 130
5.5.1.1 Da inconstitucionalidade da decretação da prisão preventiva para a garantia da
ordem pública .......................................................................................................... 138
5.5.1.2 Ordem pública em face do clamor público causado pelo fato criminoso ........... 139
5.5.1.3 Ordem pública em face da gravidade do crime .................................................... 142
5.5.1.4 Ordem pública e periculosidade do agente ........................................................... 144
5.5.2 Prisão preventiva decretada para a garantia da ordem econômica ...................... 146
5.5.2.1 Prisão preventiva decretada pela magnitude da lesão ao sistema financeiro
artigo 30 Lei 7.492/86 ............................................................................................. 154
5.5.3 Prisão preventiva decretada por conveniência da instrução criminal................... 157
5.5.4 Prisão preventiva decretada para a aplicação da lei penal..................................... 163
5.5.5 Prisão preventiva com a finalidade de aplicação de medidas protetivas de
urgência nos casos de violência doméstica contra a mulher................................... 168
5.6 Condições de Admissibilidade da Prisão Preventiva ................................................. 174
5.7 Revogação da Prisão Preventiva .................................................................................. 176
6 QUESTÕES POLÊMICAS SOBRE A PRISÃO PREVENTIVA ............................... 178
6.1 Medidas Alternativas à Prisão Preventiva .................................................................. 178
6.2 Prazo de Duração da Prisão Preventiva...................................................................... 182
6.3 Proposta de Contagem de Prazo da Prisão Preventiva.............................................. 192
6.4 Inexistência de Prisão Preventiva no Juizado Especial.............................................. 194
6.5 Prisão Preventiva Diante dos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos
Humanos......................................................................................................................... 199
CONCLUSÃO...................................................................................................................... 210
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 213
10
INTRODUÇÃO
Diariamente são noticiados casos de decretação de prisão preventiva por
juízes e de revogação de prisão preventiva por Tribunais Superiores, sem que qualquer fato
novo ocorra no processo, o que já bastaria para justificar a escolha do tema, entretanto, tal
escolha resultou de experiência pessoal, não como operador do Direito, mas do sentimento de
impotência diante da negativa de várias instâncias do Judiciário em atender a pedido de
liberdade de pessoa próxima, após ter a prisão preventiva decretada em fundamentos
genéricos e abstratos1, em casos que se multiplicam, mas que, quando enfrentados sob a ótica
de operador do Direito, não levam a reflexão profunda e intensa sendo, muitas vezes, tratadas
de forma displicente, afinal, o que significa mais uma noite na cadeia para quem cometeu um
1
Nos Autos nº 165/99, de ação penal da 1ª Vara Criminal da Comarca de Toledo, Dércio Fernandes Hoffmann,
teve a prisão preventiva decretada nos seguintes termos: “[...] 3. A Autoridade Policial, no relatório de conclusão
do inquérito, representou pela prisão preventiva do réu, para garantia de ordem pública, o que foi secundado pelo
parecer ministerial em fls. 119-IP. Imputa-se ao réu a prática de homicídio qualificado em concurso com
tentativa de homicídio simples, o primeiro classificado como crime hediondo. A materialidade deletiva encontrase demonstrada através de laudo de necropsia de fls. 49 e verso. Há indícios suficientes de que o réu tenha
praticado o fato delituoso descrito na denuncia, conforme se verifica dos depoimentos prestados perante a
autoridade policial. No que diz respeito aos requisitos intrínsecos relativos a necessidade da custódia cautelar, a
medida se impõe para conveniência da instrução criminal e garantia da ordem pública. Pois, pelo que se verifica
das provas apuradas, o réu possui fortes vínculos com outro País, a Bolívia, onde é proprietário de terras, o que
traz fundadas suspeitas que pesando sobre o mesmo tão grave acusação poderá evadir-se do distrito da culpa para
outro País, frustrando-se, assim, a instrução criminal e conseqüente aplicação da Lei Penal. E, ainda, a natureza
do crime praticado contra uma jovem trabalhadora e honesta, conforme apurado no inquérito, por si só gera
clamor público numa cidade como Toledo, indicando presente o pericullum in libertatis, tornando-se aquela
pressuposto ensejador da segregação provisória do acusado. Quando de acordo com a jurisprudência: “A prisão
preventiva tem como um de seus pressupostos a ordem pública, ou seja a preservação da sociedade contra
eventual repetição do delito pelo mesmo agente. Também quando o bem jurídico é afetado por conduta que
ocasione impacto social, por sua extensão ou outra circunstância relevante. Constitui resposta à vilania do
comportamento do agente. No caso em concreto, ademais, realçada a necessidade decorrente da fuga de
Pacientes. (STJ, 6ª Turma. Rel. Min. Vicente Cernichiaro, DJU 02.08.93, p. 14272) – in Jurisprudência Criminal
do STF e do STJ, Juruá, 1994, p. 151. (grifo nosso). Ante o exposto, acolhendo o requerimento do Dr. Promotor
de Justiça, com fundamento no artigo 312 do Código de Processo Penal, decreto a prisão preventiva de
DFH...”
11
delito?
Seguindo a proposta do curso, no estudo, o assunto será abordado no
contexto da Teoria Crítica do Direito, que permite conduzir a pesquisa através de união
dialetizada entre a teoria e a experiência2. Usando-se a hermenêutica jurídica como forma de
aplicar o direito ao caso concreto, busca-se não apenas os motivos e as intenções do legislador
na elaboração da lei, mas, considera-se a vontade expressa no texto, ultrapassando a
interpretação gramatical, lógica, sistemática e histórica para buscar o significado oculto do
texto, operando o direito como o lócus de refúgio das reivindicações sociais, o lugar da
consolidação das conquistas dos fracos, oprimidos e socialmente excluídos de todo tipo3, que
possibilite a verdadeira efetividade do processo, de acordo com os fundamentos do Estado
Democrático de Direito, afirmados no artigo 3° da Constituição Federal.
A importância do tema ocorre atentando ao fato de que a prisão preventiva
representa a restrição da liberdade física do cidadão antes mesmo de qualquer julgamento, em
detrimento do princípio da presunção de inocência, razão pela qual deve ser tratada como
medida realmente excepcional e não apenas como forma de satisfação de alguns poucos
interessados, como meio de combate à criminalidade, ou, então, para representar falsa
operatividade do Poder Judiciário, que decreta a prisão preventiva de forma rápida, mas que,
posteriormente, ultrapassa os prazos processuais sob o argumento da razoabilidade, ou ainda,
para justificar rompantes eleitoreiros de políticos que buscam, num discurso do Direito Penal
do terror4, os argumentos da eleição e da reeleição, resguardando a própria imunidade,
esquecendo-se da causa da criminalidade representada pela exclusão social no seu sentido
lato.
A prisão preventiva, bem como as demais prisões cautelares, é medida
2
COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rei, 2003.
p. 13.
3
id.
4
RAMOS, João Gualberto. A inconstitucionalidade do direito penal do terror. Curitiba: Juruá, 1991.
12
drástica, reservada a casos extremos, pois contraria o direito mais sagrado do cidadão, a
liberdade. Qualquer erro em relação à decretação destas medidas pode ter seqüelas
irreversíveis, conforme assegura Francesco Carnelutti: o encarcerado saído do cárcere, crê
não mais ser encarcerado; mas as pessoas, não. Para as pessoas ele é sempre encarcerado,
quando muito se diz ex-encarcerado; nesta fórmula está a crueldade do engano5.
A Jurisdição Constitucional dos Direitos Fundamentais, que tem entre seus
corolários os direitos de liberdades, é o instrumento que assegura ao cidadão, através do
Direito Processual Constitucional, materializado pelo Princípio do Devido Processo Legal, e
dos remédios processuais, a restrição de liberdade como uma ultima ratio.
O estudo hermenêutico jurídico da prisão preventiva sob a ótica da
cidadania, e, de acordo com os fundamentos da Teoria Crítica do Direito, apresenta
peculiaridade importantíssima que permite interpretar o ordenamento jurídico processual
penal não como forma de dominação, de libertação, libertação que não significa liberdade
física, mas libertação das amarras positivista e formal.
5
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio Cardinalli. São Paulo: Conan,
1995. p. 75.
13
1 A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A PRISÃO PREVENTIVA
1.1 A Problemática da Prisão Preventiva
Entre as diversas categorias6 que na prática processual penal, suscitam a
maior crítica epistemológica e por isso mesmo, descortinam um paradoxo (aparente
contradição), surge a prisão preventiva que uma vez decretada pela autoridade judicial, pode
estar eivada de vícios e avessa aos fundamentos e maiores necessidades de observância
constitucional.
Segundo palavras do Ministro Gilmar Mendes7, ao ser sabatinado pelo
Senado com a finalidade de aprovar a sua indicação para a presidência do Conselho Federal
de Justiça, o Supremo Tribunal Federal, tem concedido a ordem de Habeas Corpus em cerca
de sessenta por cento dos recursos apreciados contra prisão preventiva, o que demonstra que
algo está errado, chamando os juízes à responsabilidade pelas prisões mal feitas.
A dimensão do problema causado pela prisão processual, pode ser medida
pelas palavras de Luigi Ferrajoli
6
Categoria é, pois, o conceito, a representação intelectual do objeto, enquanto integrado na dialética do
conhecimento que une o sujeito com seu objeto gnósico. COELHO, Luis Fernando. Teoria crítica do direito. 3.
ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 47.
7
CONSULTOR JURIDICO. Direção da Justiça: Gilmar Mendes toma posse da presidência do CNJ.
Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/64955>. Acesso em: 01 abr. 2008.
14
É verdade que o encarceramento preventivo é o momento do processo
ordinário e é ordenando por um juiz. Todavia, por causa dos seus
pressupostos, da sua modalidade e de sua dimensão assumida, tornou-se o
sinal mais vistoso da crise da jurisdição, da tendência de tornar mais
administrativo o processo penal e, sobretudo, da sua degeneração no
sentido diretamente punitivo.8
A Constituição é a "norma das normas"; a lei (em sentido amplo) que
fundamenta todo o funcionamento do Estado, seus poderes institucionais e por óbvio as
decisões provenientes da "livre convicção do magistrado".
Sucede que estas categorias formais (investigação, inquérito, lavratura de
termo em flagrante, indiciamento, até a efetiva processualização do fato motivador da
medida) vez por outra não respondem ao clamor constitucional garantista.
Estas normas, estas decisões formalizadas, deveriam sempre resultar e
corroborar ao mesmo tempo, uma validade e observância complexa, mas objetiva, que espelhe
a regra superior vinculante ao Poder Público. Ocorre que em relação ao valor normativo desta
própria Constituição, a hierarquia que deveria ser pressuposto irretocável, não é ponderada.
Existem sem dúvida algumas questões desafiadoras no trato com uma
sociedade Democrática num Estado Democrático de Direito. Sua concepção jurídico-política,
ou seja, como condutora do sistema judicial, faz com que a vislumbremos como algo
inalcançável, a serviço de todos, dos iguais, só que numa sociedade capitalista, alguns são
mais iguais e outros menos iguais.
Esta tensão decorre fundamentalmente da vinculação histórica do sistema
judiciário aos poderes econômico e político, levando a situação em que os conceitos de Estado
8
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2006, p. 711.
15
de Direito e democracia são invocados como forma de legitimar o poder dominante9, que vem
desde há muito se consolidando e caracterizando-se como dependentes e subordinadas.
O Poder Judiciário ou de forma direta e objetiva, os magistrados, em tese
são encarregados no "sistema", de administrar o julgamento das contendas havidas entre os
"comuns”. As leis no mais das vezes, inclusive a lei penal e as medidas judiciais fundadas
nelas são apresentadas como espelho de privilégios de dominantes ou manifestação de
vontades de uma classe social mais aquinhoada em detrimento da classe dos que nada tem10,
sendo que os primeiros, por sua vez, não sobrevivem sem seus representantes no estamento do
Estado, quer seja na esfera municipal, estadual e/ou federal.
José Laurindo de Souza Netto observa que o que se verifica é que o sistema
criminal dramaticamente vai buscar legitimidade sobretudo nos pobres, fazendo com que o
direito penal desate sua fúria preponderantemente sobre eles.11
Sidnei Eloy Dalabrida, também manifesta sua preocupação com a
intervenção punitiva do Sistema Penal
A positivação constitucional de Direitos Fundamentais da Pessoa Humana,
com a consagração de garantias penais e processos penais, tem sido
insuficiente para a efetiva proteção dos Direitos Humanos no âmbito do
Sistema Penal. A realidade operativa do Sistema Punitivo demonstra que
freqüentemente a intervenção punitiva se realiza de forma perversa e
irracional, com absoluta subversão aos valores que fundamentam um
Estado Democrático de Direito, muito embora o discurso jurídico-penal seja
capaz de criar a ilusão de que naquele quadrante os Direitos Humanos são
de fato respeitados.12
9
PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. A jurisdição como elemento de inclusão social. Barueri: Manole, 2002, p.
27.
10
COELHO, Luis Fernando. Teoria crítica do direito. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003,
p. 547.
11
SOUZA NETTO, José Laurindo de. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 16.
12
DALABRIDA, Sidnei Eloy. Prisão preventiva: uma análise à luz do garantismo penal. Curitiba: Juruá, 2005,
p. 19/20.
16
Quer pela proposta de Luigi Ferrajoli13, através da Teoria da Garantismo
Penal, que prevê um direito penal mínimo com respeito aos Direitos Fundamentais e
acentuadamente no respeito à dignidade da pessoa humana, modelo que embora utópico14,
quer pela proposta de J.J. Gomes Canotilho15 que analisa os Direitos Fundamentais como uma
categoria dogmática, nos é permitido vislumbrar um processo penal justo como requer um
Estado Democrático de Direito, reservando qualquer das formas de prisão processual como
verdadeiras medidas de exceção.
1.2 A Hermenêutica Jurídica Necessária para Consolidar o Estado Democrático de
Direito
Instrumento indispensável ao aplicador da lei, a hermenêutica jurídica
possibilita uma adequação do texto constitucional ao real, à conjuntura da sociedade, visto
que a interpretação é a sombra que segue o corpo. Da mesma maneira que nenhum corpo
pode livrar-se da sua sombra, o Direito tampouco pode livrar-se da interpretação.16
Busca os princípios da constitucionalidade das leis, uma vez que o Direito
nem sempre está disposto ou incluído nas leis, ou seja, a hermenêutica busca efetivar os
princípios constitucionais, interpretando as leis de forma a demonstrar a proporcionalidade, a
adequação e a unidade da Constituição. É tarefa complexa e não deve ser exercida de forma
"mecânica" e descontextualizada, sob pena de aprofundar com este julgamento (latu sensu)
13
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2006.
14
Ibid, p. 317/318.
15
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 1213.
16
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 532.
17
uma cegueira incompatível com a Constituição Federal.
Lênio Luiz Streck17, identifica vários problemas que colaboram para a
(in)efetividade dos diretos, e apresenta justamente a hermenêutica jurídica como forma de
solução do problema e dar efetividade à norma Constitucional.
Com o condão de denunciar o excessivo positivismo18, a hermenêutica
consubstancia-se como ferramenta indispensável à libertação das gentes. Entre a libertação e
as liberdades, entretanto, vagueia o "monstro autoritário" no qual pode se tornar o Estado, o
agente público insensível e avesso a interpretações mais abrandadora, obstinado em resolver
as questões pelo uso "nu e cru" da ressalva legal, punidora, restritiva, aprisionadora, etc.
Contra este Estado hobbesiano19, a única ação eficaz é a criação de atores
sociais libertários e crentes numa efetiva alternância no estado de coisas. Não só os
movimentos sociais - fortes e autônomos - que lamentavelmente por vezes arrastam
igualmente dirigentes e dirigidos, mas sobretudo pela formação mais contextualizada e
responsável dos egressos dos cursos jurídicos e operadores do Direito em geral (advogados,
juízes e promotores de justiça).
A resistência ao Estado autoritário passa pela modernização de meios,
global e universal capaz de negociar com os - no mínimo - dois mundos existentes na
sociedade um oficial e outro oficioso, um letrado e outro iletrado, um includente e outro
excludente,etc.
A percepção democrática do Estado de Direito surgiu como resposta às
imprecisões e insuficiências do Estado Social. Se bem observarmos o que se convencionou
denominar de "Estado Providência" não deu conta de todos os papéis que lhe foram
atribuídos. A democracia possível, passa necessariamente pela reformulação radical de
17
STRECK, Lênio Luiz, Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002.
18
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 115.
19
STRECK, op. cit., p. 38.
18
algumas instituições, entidades e departamentos estatais por assim dizer.
O Estado Democrático de Direito, fundamento da República Federativa do
Brasil, é a síntese histórica de duas idéias originariamente antagônicas: democracia e
constitucionalismo. Com efeito, enquanto a idéia de democracia se funda na soberania
popular, o constitucionalismo tem sua origem ligada à noção de limitação de poder.20
J.J. Gomes Canotilho explica a afirmação acima:
A articulação das dimensões de Estado de direito e de Estado democrático
no moderno Estado constitucional democrático de direito permite-nos
concluir que, no fundo, a proclamada tensão entre “constitucionalistas” e
“democratas” entre o Estado de direito e democracia, é um dos “mitos” do
pensamento político moderno. Saber se o “governo de leis” é melhor que o
“governo de homens” ou vice-versa é, pois, uma questão mal posta: o
governo dos homens é sempre um governo sob leis e através de leis. É,
basicamente, um governo de homens segundo a lei constitucional, ela
própria imperativamente informada pelos princípios jurídicos radicados na
consciência jurídica geral.21
E distingue o Estado de direito, onde a liberdade é vista como uma liberdade
negativa, ou uma liberdade de defesa, do Estado democrático, onde a liberdade é uma
liberdade positiva, baseada no exercício democrático do poder, legitimando o próprio poder22,
o que Luigi Ferrajoli chama de democracia substancial23.
Segundo Luigi Ferrajoli24, tanto no governo per leges como no governo per
leges, o “garantismo” é a principal conotação funcional de uma específica formação
20
BINENBOJN, Gustavo. A nova jurisdição constitucional: legitimidade democrática e instrumentos de
realização. 2. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 246.
21
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 231.
22
Ibid., p. 99.
23
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2006, p. 797.
24
Ibid., p. 789.
19
moderna que é o Estado de Direito, e faz uma conceituação considerando a ascendência
histórica, remontando a Platão e Aristóteles que defendiam um “governo de leis” em
contraponto ao “governo dos homens”, segundo orientação de Norberto Bobbio o governo per
leges mediante leis gerais e abstratas e o governo sub leges submetido às leis, o “Estado de
Direito” no campo do direito penal designa ambas coisas, na medida que:
O poder judicial de apurar e punir os crimes e, por certo, sub lege tanto
quanto o poder legislativo de defini-los é exercitado per leges; e o poder
legislativo é exercitado per leges enquanto, por seu turno, está sub leges,
isto é, está prescrita pela lei constitucional a reserva geral e abstrata em
matéria penal. 25
Luigi Ferrajoli26 explica que o poder sub lege, pode ser concebido em dois
sentidos, no sentido formal ou substancial. No sentido formal, o poder deve ser conferido pela
lei, e exercido na forma e de acordo com os procedimentos por ela previstos, sendo
considerado Estado de direitos os ordenamentos mesmo que autoritários ou totalitários,
enquanto no sentido substancial, o poder é limitado pela lei, característica dos Estados
Constitucionais de Constituição rígida, que condicionam a forma e conteúdo, impondo limites
formais e principalmente substanciais ao poder, sendo que neste segundo sentido o termo
Estado de Direito é empregado como sinônimo de garantismo:
Designa, por esse motivo, não simplesmente um “Estado legal” ou
“regulado pelas leis”, mas um modelo de Estado nascido com as modernas
25
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais. 2006, p. 789.
26
Ibid., p. 790.
20
Constituições e caracterizado: a) no plano formal, pelo princípio da
legalidade, por força do qual todo poder público – legislativo, judiciário e
administrativo – está subordinado às leis gerais e abstratas que lhes
disciplinam as formas de exercício e cuja observância é submetida ao
controle por parte dos juizes delas separados independentes (a Corte
Constitucional para as leis, os juízes ordinários para as sentenças, os
tribunais administrativos para os provimentos); b) no plano substancial da
funcionalização de todos os poderes do Estado às garantias dos direitos
fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em sua
Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações
legais de lesão aos direitos de liberdade e de obrigações de satisfações dos
direitos sociais, bem como dos correlativos poderes do cidadão de ativarem
a tutela judiciária.27
As regras do Estado Democrático de Direito, garantem os direitos
fundamentais dos cidadãos, estabelecendo “quem” pode e “como” se deve decidir; “o que”
se deve e “o que não” se deve decidir28, o que pode ser verificado pelas condições formais e
substancias de legitimação do poder.
O Estado de Direito, não pode ser concebido somente no seu sentido formal,
ou como um “governo de leis”, mas como “ordenação integral e livre da comunidade
política”29, concepção que reconhece não somente a garantia de determinadas formas e
procedimentos relativos à organização do poder, como também as metas, parâmetros e limites
da atividade estatal, certos valores, direitos e liberdades fundamentais, que infere numa
ligação umbilical da idéia de Estado de Direito com a legitimidade da ordem constitucional e
do Estado30, assumindo os direitos fundamentais, uma função além da simples limitação do
poder, mas de legitimação do poder estatal em função da ordem constitucional, que pode ser
explicada pela afirmação de Ingo Wolfgang Sarlet
27
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais. 2006, p. 790.
28
Ibid., p. 791.
29
SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 70.
30
Id.
21
Existe um estreito nexo de interdependência genético e funcional entre
Estado de Direito e os direitos fundamentais, uma vez que o Estado de
Direito exige e implica, para sê-lo, a garantia dos direitos fundamentais, ao
que estes exigem e implicam, para a sua realização, o reconhecimento e a
garantia do Estado de Direito31.
E conclui que, no sistema constitucional positivo brasileiro, considerando a
imbricação entre as noções de Estado de Direito, Constituição e direitos fundamentais, sob o
aspecto de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos
valores da igualdade liberdade e justiça, constituem condições de existência e medida da
legitimidade de um autêntico Estado Democrático e Social de Direito32.
O desafio, segundo Lênio Luiz Streck, é o triunfo do novo, representado
pelo modelo proposto pela Constituição Federal que consagra o Estado Democrático de
Direito, em face da tradição (inanêutica) do direito, forjada no velho/ultrapassado modelo
neo-liberal-individualista-normativista?33
1.3 Um Breve Delineamento dos Direitos Fundamentais
Considerando que o estudo tem por escopo demonstrar que a observância
dos Direitos Fundamentais, mesmo que só os positivados no texto Constitucional, servem
31
SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 71.
32
Ibid., p. 74.
33
STRECK, Lenio Luiz. A crise da hermenêutica e a hermenêutica da crise: a necessidade de uma nova crítica
do direito (NCD). In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos
fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 110.
22
como um limitador das prisões processuais, o uso do termo – Direitos Fundamentais – embora
a profusão de termos (direitos humanos, direitos dos homens, direitos públicos subjetivos,
liberdades públicas, direitos individuais, liberdades fundamentais, direitos humanos
fundamentais, etc)34, justifica-se pela terminologia usado na epígrafe do Título II do texto
Constitucional que se refere aos Direitos e Garantias Fundamentais, termo usado também pela
Doutrina Constitucional moderna.35
Interessante apresentar a classificação feita por Ingo Wolfgang Sarlet36, que
faz uma distinção entre a definição de direitos fundamentais – termo aplicado para os direitos
do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional - e de direitos
humanos locução que guarda relação com os documentos de ordem internacional, portanto
positivados, que reconhecem os direitos humanos, sem porém estarem vinculados a qualquer
ordem constitucional, assumindo assim um caráter supranacional, concepção destacada
também por J.J. Gomes Canotilho
As expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais” são
freqüentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e
significado poderíamos distinguí-las da seguinte maneira: direitos do
homem são direitos válidos para todos os povos em todos os tempos
(dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os
direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados
espacio-temporalmente. Os direitos do homem arrancaria da própria
natureza humana e daí o caráter inviolável, intemporal e universal; os
direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa
37
ordem jurídica concreta.
34
SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 33.
35
Ibid., p. 34.
36
Ibid., p. 35
37
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 387.
23
Interessa ao presente estudo a dimensão nacional dos direitos humanos
reconhecidos e positivados na Constituição Federal como Direitos Fundamentais.
Para resolver a problemática representada pela da conceituação dos Direitos
Fundamentais, invocamos de forma objetiva a definição trazida à tona por Marcelo Campos
Galuppo38, que através da Teoria Discursiva do Direito, busca superar a incongruência entre
uma definição denotativa e conotativa, ao afirmar que Direitos Fundamentais são os direitos
que os cidadãos precisam reciprocamente reconhecer uns aos outros, em dado momento
histórico, se quiserem que o direito por eles produzidos seja legítimo, ou seja, democrático39.
E explica a afirmação de que os cidadãos precisam reconhecer os direitos
uns dos outros, e não que o Estado precisa lhes atribuir, representa a essência do Estado
Democrático de Direito, já que nesta não há uma regra pronta e acabada para a legitimidade
das normas, não sendo a democracia um estado, mas um processo que ocorre pela
interpenetração entre a autonomia privada, a autonomia pública que se manifesta na
sociedade civil, guardiã de sua legitimidade.40
A conceituação de direitos fundamentais apresentada, é explicada pela
afirmação de Luigi Ferrajoli:
Pode-se tranqüilamente afirmar que não houve nenhum direito fundamental,
na história do homem, que tivesse caído do céu ou nascido de uma
escrivaninha, já escrito e confeccionado nas cartas constitucionais. Todos
são frutos de conflitos, às vezes seculares e foram conquistados com
revoluções e rupturas, a preço de transgressões, repressões, sacrifícios e
sofrimentos: primeiro, os direitos à vida e a garantia do habeas corpus,
depois a liberdade de consciência e de culto, sucessivamente a liberdade de
opinião e de imprensa, mais recentemente a liberdade de associação e
reunião, e por fim o direito de greve e os direitos sociais. Há um sentido no
qual os direitos fundamentais não são “universais”: eles não são
38
GALUPPO, Marcelo Campos. O que são direitos fundamentais? In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.).
Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 213/238.
39
Ibid., p. 236.
40
Ibid., p. 237.
24
reconhecidos e nem reivindicados nem em todos os tempos nem em todos os
lugares. Ao contrário, são o fruto de opções e expressões de carências
historicamente determinadas e, sobretudo, o resultado de lutas e processos
longos, disputados e exaustivos.41
Por sua vez, José Alfredo de Oliveira Baracho, sintetiza o modelo garantista
de democracia constitucional, apresentado por Luigi Ferrajoli, ao afirmar que no momento
que propõe uma definição teórica, puramente formal ou estrutural dos direitos fundamentais.
Considera direitos fundamentais todos aqueles direitos subjetivos que corresponderem
universalmente a todos os seres humanos, como dotados de status de pessoas ou cidadãos.42
J.J. Gomes Canotilho, faz uma análise sob uma ótica dogmática no sentido
analítico, empírico e normativo, dos direitos fundamentais
A perspectiva analítica-dogmática, preocupada com a construção
sistemático-conceitual do direito positivo, é indispensável ao
aprofundamento e análise de conceitos fundamentais (exs: direito
subjectivo, dever fundamental, norma) à iluminação das construções
jurídico-constitucionais (exs: âmbito de proteção e limites dos direitos
fundamentais) e à investação da estrutura do sistema jurídico e de suas
relações com os direitos fundamentais (ex: eficácia objetiva dos direitos
fundamentais)passando pela própria ponderação de bens jurídicos, sob a
perspectiva dos direitos fundamentais (ex: conflito de direitos). A
perspectiva empírico-dogmática interessar-nos-á porque os direitos
fundamentais para terem verdadeira força normativa, obrigam a tomar em
conta as suas condições de eficácia e o modo como o legislador, juizes e
administração os observam e aplicam nos vários contextos práticos. A
perspectiva normativa-dogmática é importante sobretudo em sede de
aplicação dos direitos fundamentais, dado que esta pressupõe, sempre, a
fundamentação racional e jurídico-normativa dos juízos de valor (ex: na
interpretação e concretização).43
41
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2006, p. 870.
42
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Jurisdição constitucional da liberdade. In: SAMPAIO, José Adércio
Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 33.
43
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 1214.
25
Importante ressaltar a distinção entre os direitos fundamentais no sentido
formal e material, sendo que no primeiro sentido pode ser entendido como aquelas posições
jurídicas das pessoas – na sua dimensão individual, coletiva ou social – que, por decisão
expressa do Legislador-Constituinte foram consagrados no catálogo dos direitos
fundamentais44, já no sentido formal, são os direitos não catalogados, mas que pela sua
importância podem ser a estes equiparados.
Uma análise histórica da evolução dos Direitos Fundamentais, que pode ser
confundida com a história da própria limitação do poder estatal45, está inevitavelmente ligada
a uma análise das diversas dimensões (usando o termo sugerido por Ingo Wolfgang Sarlet) de
direitos fundamentais, o que poder ser inferido da conceituação apresentada, já que se
baseiam na ordem cronológica em que passaram a ser constitucionalmente reconhecidos.46
A primeira dimensão dos direitos fundamentais, reconhecido nas primeiras
Constituições escritas, são produto do pensamento liberal-burguês do Século XVIII, é
marcada pela afirmação dos direitos de defesa frente ao Estado, portanto, direitos de cunho
negativo, uma vez que visam uma abstenção do Estado, assumindo importância os direitos à
vida, à liberdade (complementados posteriormente por uma variada gama de liberdades como
liberdade de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação etc...), à propriedade e
igualdade perante a lei (igualdade formal e algumas garantias processuais como devido
processo legal, habeas corpus, direito de petição). Chamados de direitos civis e políticos que
continuam a integrar as Constituições atuais.47
A afirmação dos direitos econômicos, sociais e culturais, denominados de
44
SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 95.
45
Ibid., p. 43.
46
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 26.
47
SARLET, ob. cit., p. 56.
26
direitos de segunda dimensão, resultado de movimentos reivindicatórios do século XIX, frente
aos graves problemas sociais e econômicos gerados pela industrialização e a constatação de
que afirmação formal de liberdade e igualdade não resultavam em seu efetivo gozo, marcado
pela dimensão positiva, a segunda dimensão dos direitos fundamentais, são entendidos numa
perspectiva material, onde a liberdade, por exemplo, é exercida por intermédio do Estado,
conferindo aos indivíduos o direito a prestações sociais como assistência social, saúde,
educação, trabalho, etc.. Nesta dimensão de direitos fundamentais são reconhecidas as
liberdades denominadas sociais como a liberdade de sindicalização, direito de greve e também
os direitos fundamentais dos trabalhadores como direito de férias, repouso semanal
remunerado, salário mínimo, limitação da jornada de trabalho citando os mais significativos.48
Os direitos fundamentais de terceira geração, identificados como direitos de
fraternidade e ou de solidariedade, se distinguem pela titularidade, sendo esta coletiva ou
difusa, resultado das reivindicações fundamentais do ser humano frente ao impacto
tecnológico, estado crônico de beligerância e pelo processo de descolonização do pós-guerra,
sendo considerados uma resposta ao fenômeno denominado por Perez Luño como “poluição
das liberdades”.49 Os direitos fundamentais de terceira dimensão encontra-se em fase de
consagração no direito internacional através de tratados e documentos transnacionais.
Assumem importância nesta dimensão dos direitos fundamentais o direito ao meio-ambiente,
à qualidade de vida, direito e liberdade de informática, direito a intimidade individual perante
bancos de dados pessoais, meios de comunicação, direito de morrer com dignidade, garantia
contra manipulação genética, direito a mudança de sexo, etc...50
Paulo Bonavides tem defendido o reconhecimento de uma quarta dimensão
dos direitos fundamentais resultado da globalização dos direitos fundamentais, no sentido de
48
SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 57.
49
Ibid., p. 59.
50
Id.
27
uma universalização no plano institucional, que corresponde na sua opinião á derradeira
fase de institucionalização do Estado Social51. Dimensão que seria composta pelos direitos à
democracia, à informação e ao pluralismo. , direitos que para a sua consagração, exigem para
sua legitimação a liberdade de todos os povos.52
Certamente, no futuro novas dimensões de direitos fundamentais serão
objeto de discussão, dimensões estas que advirão das novas relações entre as pessoas e entre
os povos.
1.4 A Eficácia e Aplicação da Jurisdição Constitucional dos Direitos Fundamentais
A jurisdição constitucional se apresenta como o principal instrumento de
defesa dos direitos e liberdades fundamentais e afirmação, por conseqüência, do próprio
Estado Democrático de Direito, tendo como fonte no plano nacional o texto Constitucional
sem prejuízo dos princípios.
De acordo com o texto Constitucional, as normas definidoras dos direitos e
garantias fundamentais tem aplicação imediata53, explica Ingo Wolfgang Sarlet54, que embora
a localização no texto, às várias formas de interpretação da Lei Maior, levam à conclusão que
o comando se aplica a todos direitos fundamentais, mesmo que situadas em outras partes da
Constituição, a exemplo dos Direitos Sociais, o que significa, de acordo com afirmação de
Flávia Piovesan uma imposição aos órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos
51
SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 60.
52
Ibid., p. 61.
53
BRASIL. Constituição federal. Art. 5º. 1§.
54
SARLET, ob. cit., p. 275.
28
direitos fundamentais55, maximização que deve ganhar maior relevância quando se tratar dos
direitos fundamentais de defesa, não apenas autorizando, mas impondo aos juizes e tribunais
que apliquem as normas aos casos concretos, viabilizando, de tal sorte, o pleno exercício
destes direitos.56
J.J. Gomes Canotilho57 explica que a aplicabilidade direta das normas de
direitos, liberdades e garantias, portanto normas assecuratórias de direitos fundamentais,
implica em que as mesmas se aplicam independentemente de qualquer intervenção
legislativa, tem aplicabilidade diretamente contra a lei quando esta estiver em
desconformidade com o norma Constitucional, e implica em inconstitucionalidade de todas a
leis pré-constitucionais contrária às normas ou na inconstitucionalidade superveniente das
normas pré-constitucionais.
De acordo com Daniel Sarmento, sequer seria necessária a previsão legal da
eficácia e aplicabilidade dos direitos fundamentais, o que se daria pela eficácia irradiante dos
direitos fundamentais:
Esta significa que os valores que dão lastro aos direitos fundamentais
penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação
das normas legais e atuando como impulso e diretrizes para o legislador, a
administração e o judiciário. A eficácia irradiante, nesse sentido, enseja a
“humanização” da ordem jurídica, ao exigir que todas as normas sejam, no
momento de aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com novas
lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e
da justiça social, impressas no tecido constitucional.58
55
PIOVEZAN. Flavia. In : RPGESP nº 37 (1992. p. 73). apud SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos
fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 282.
56
SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 296.
57
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 1142.
58
SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte:
Del Rey. 2003, p. 279.
29
A jurisdição constitucional dos direitos fundamentais, é exercida através de
vários instrumentos postos à disposição dos cidadãos, como forma de torná-los efetivos e
eficazes.
Salutar
fazer
a
diferenciação
das
expressões
Direito
Processual
Constitucional e Direito Constitucional Processual, como forma de definir as relações
existentes entre relação e processo.
O Direito Constitucional Processual, de acordo com diferenciação
apresentada por Ivo Dantas, abrangeria o conjunto de normas processuais existentes na
Constituição, tais como Direito da Ação e as Garantias Constitucionais referentes ao
Processo e ao Procedimento59, enquanto o Direito Processual Constitucional usando aqui a
definição apresentada por J.J. Gomes Canotilho é o conjunto de regras constitutivas de um
procedimento juridicamente ordenado através do qual se fiscaliza jurisdicionalmente a
conformidade constitucional de actos normativos.60
O Direito Processual Constitucional, por sua vez, poder ser analisado sob
dois enfoques:
a) preocupa-se com a denominada Jurisdição Constitucional e com as
ações que visam á integridade e defesa da própria Constituição, ou seja,
aquelas que hoje formam o controle de Constitucionalidade;
b) consagração de ações tipificamente constitucionais e que dizem respeito
à Jurisdição constitucional das liberdades – denominadas de Remédios
Constitucionais - exatamente, aqueles que visam tornar efetivos os
Direitos constitucionalmente assegurados.61
59
DANTAS, Ivo. Jurisdição constitucional e a promoção dos direitos sociais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite
(Coord). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 436.
60
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 939.
61
DANTAS, op. cit., p. 437.
30
O controle de constitucionalidade como forma de dar efetividade aos
Direitos Fundamentais, em sede de Jurisdição Constitucional, é explicado por Ivo Dantas
No Brasil, o Controle de Constitucionalidade – objeto da Jurisdição
Constitucional – assume diversas formas, quais sejam, o Controle
Concentrado, englobando a Ação Direta de Inconstitucionalidade, a Ação
Declaratória de Constitucionalidade, a Ação de Descumprimento de
Preceito Fundamental, ao lado das quais o sistema brasileiro consagra o
Controle Difuso, compreendido como dever que tem todas as instâncias do
Poder Judiciário – inclusive de ofício -, de observar o respeito à
Constituição, tanto por parta das leis como dos atos que se ponham à sua
apreciação.62
Note-se, que pelo sistema difuso de controle de constitucionalidade, não
somente é permito que todos julgadores, como toma caráter de imposição, o respeito à
Constituição, até porque todas as autoridades do Poder Judiciário juram cumprir e fazer
cumprir a Constituição.63
O principal instrumento garantidor de efetivação dos Direitos Fundamentais,
em se tratando da Jurisdição Constitucional das Liberdades, são os denominados Remédios
Constitucionais, como exemplos históricos, o Habeas Corpus e o Mandado de Segurança, ao
lado dos quais, e especialmente no caso brasileiro, acrescentem-se os institutos do Habeas
Data, Mandado de Injunção, Ação Civil Pública...64
Seguramente, o Habeas Corpus, se apresenta como a principal modalidade
de garantia de efetivação dos Direitos Fundamentais em sede de Jurisdição Constitucional das
liberdades, assumindo maior relevo no campo processual penal, pela possibilidade de
62
DANTAS, Ivo. Jurisdição constitucional e a promoção dos direitos sociais. In: SAMPAIO, José Adércio
Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 437.
63
ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Editoria Revista
dos Tribunais. 2001, p. 13.
64
DANTAS, loc. cit.
31
reexaminar qualquer provimento e de apreciar qualquer matéria e principalmente pela sua
simplicidade e celeridade, possibilitando a reação do cidadão como forma de manter ou
recuperar a liberdade ilegal ou abusivamente ameaçada.
32
2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE GARANTIA DO CIDADÃO
2.1 Princípio da Liberdade
O texto constitucional, no preâmbulo, ao tratar dos direitos e garantias
fundamentais das pessoas, aborda, de forma privilegiada, o direito à liberdade, posicionandoa, textualmente, somente depois dos direito relativos à vida. Do mesmo modo também pode
ser interpretada quanto a sua importância:
Direitos ‘concernentes à liberdade’, depois dos ‘direitos concernentes à
vida’ são, a seguir, os que incluem entre os assegurados pela Constituição
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País. Está a ‘liberdade’, ao
lado da ‘igualdade’, figurando, em segundo plano, conforme os idealistas da
Revolução Francesa, a ‘fraternidade’ tendo, por sua vez, a ‘sociedade
fraterna’ sido, em nossa Constituição de 1988, como afirmam os
constituintes no ‘Preâmbulo’, incluída entre as metas que o Estado
democrático ou Estado de direito visa alcançar.65
Várias são as liberdades asseguradas no artigo 5º da Constituição,
65
CRETELA JR, José. Elementos de direito constitucional. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, p. 204.
33
desdobrando-se em várias vertentes a serem estudadas, que podem ser classificadas em cinco
grandes grupos:
liberdade da pessoa física (liberdade de locomoção, de circulação);
liberdade de pensamento, com todas as suas liberdades (opinião, religião,
informação artística, comunicação do conhecimento);
liberdade de expressão coletiva em suas várias formas (de reunião, de
associação);
liberdade de ação profissional (livre escolha e de exercício de trabalho,
oficio e profissão);
liberdade de conteúdo econômico e social (liberdade econômica, livre
iniciativa, liberdade de comércio, liberdade ou autonomia contratual,
liberdade de ensino e liberdade de trabalho) [...].66
Além das liberdades expressas no texto constitucional, outras são
asseguradas ao cidadão, já que o rol previsto de liberdades é apenas exemplificativo67.
As liberdades podem ser classificadas como positivas e negativas, embora,
de acordo com José Afonso da Silva68, ambas as concepções apresentam defeitos de
conceituação em função de se fundarem em oposição ao autoritarismo e não à autoridade
legítima.
J.J. Gomes Canotilho esclarece as duas vertentes:
66
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p.
238.
67
“Contudo a enumeração das liberdades públicas feita pela Constituição é meramente exemplificativa, pois não
exclui outros direitos e garantias (art. 5º LXXVIII, § 2º). A interpretação de alcance e conteúdo de tias direitos
fica sujeira aos princípios da hermenêutica de modo geral, mas com alguns particularismos.” FERREIRA, Pinto.
Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989, v. 1, p. 61.
68
SILVA, loc. cit., p. 235.
34
Respondem alguns que Estado de direito e democracia correspondem a dois
modos de ver a liberdade. No Estado de direito concebe-se a liberdade como
liberdade negativa, ou seja, ‘uma liberdade de defesa’ ou de ‘distanciação’
perante o Estado. É uma liberdade liberal que ‘curva’ o poder. Ao Estado
democrático estaria inerente a liberdade positiva, isto é, a liberdade assente
no exercício democrático do poder. É a liberdade democrática que legitima
o poder.[...]69
O autor destaca, porém, a importância da liberdade negativa, ao afirmar que
A idéia de que a liberdade negativa tem precedência sobre a participação
política (liberdade positiva) é um dos princípios básicos do liberalismo
político clássico. As liberdades políticas teriam uma importância intrínseca
menor que a liberdade pessoal e de consciência. Não admirará, pois – como
salienta um influente cultor actual da filosofia política – que ‘se alguém for
forçado a escolher entre as liberdades políticas e os restantes das
liberdades, o governo do bom soberano que reconhecesse estas últimas e
que garantisse o domínio da lei seria preferível’’70. A segurança da
propriedade e dos direitos liberais representaria neste contexto a essência
do constitucionalismo. O ‘homem civil’ precederia o ‘homem político’, o
burguês estaria antes do cidadão. O ‘Bürger’ que preza a sua liberdade em
face do poder terá mais liberdade do que o ‘Burgeois’ que cultiva a
liberdade política.71
José Afonso da Silva propõe novo conceito, que diz que liberdade consiste
na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade
pessoal72.
A liberdade física, na forma mais visível, é explicada por Jorge Henrique
Schaefer Martins: “qual seja, a de ir e vir, de livre escolha para deslocamentos ou paradas,
69
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 99.
70
Assim precisamente, RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Lisboa, 1993, p. 187; Political Liberalism, p..
294. Cf., também, ZIPPELIUS. Allgemeine Staatslebre, cit. 331 ss. apud CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito
constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 99.
71
CANOTILHO, op. cit., p. 99.
72
SILVA, Jose Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 263.
35
exercício de atividade ou ócio, enfim, tudo quanto fique a critério do ser humano, sem a
interferência do ente estatal, ou em resumo, a liberdade física, ou da pessoa física”73.
É válido dizer que a forma de liberdade descrita é manifestada de modo
mais claro no direito de liberdade de locomoção e de circulação, expresso no inciso XV do
artigo 5º da Constituição Federal, já que se trata de liberdade que decorre da própria natureza
humana74.
A liberdade consiste na oposição à detenção, prisão ou a qualquer
impedimento à locomoção da pessoa. Por isto, é correta a definição que diz que é a
possibilidade jurídica que se reconhece a todas as pessoas de serem senhoras de sua própria
vontade e de locomoverem-se desembaraçadamente dentro do território nacional.75
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, explicando que as liberdades identificamse com os direitos fundamentais, no sentido que correspondem a um dever de abstenção do
Estado, apresenta a visão de liberdade dos modernos e dos antigos, imortalizadas nas palavras
de Constant de Louzane ao afirmar que os antigos – os romanos, os gregos – se consideravam
livres quando tinham igual participação nas tomadas de decisões sobre os negócios públicos,
mas que os modernos, nós, só nos consideramos livres quando temos a autonomia da conduta
individual, ou seja, quando somos os senhores – numa colocação vulgar, mas expressiva – do
nosso nariz.”76
73
MARTINS, Jorge Henrique Schaefer. Prisão provisória: medida de exceção no direito criminal brasileiro.
Curitiba: Juruá, 2005, p. 43.
74
“Posto que o homem seja membro de uma nacionalidade, ele não renuncia por isso suas condições de
liberdade, nem os meios racionais de satisfazer a suas necessidades ou gozos. Não se obriga ou reduz à vida
vegetativa, não tem raízes, nem se prende à terra como escravo do solo. A faculdade de levar consigo seus bens é
um respeito devido ao direito de propriedade.” BUENO, Pimenta. Direito público brasileiro e analise da
constituição do império. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1958. p. 388 apud
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 112.
75
Em sentido semelhante, BURDEAU, Georges. Les libertes publiques. p. 111 apud SILVA, Jose Afonso da.
Curso de direito constitucional positivo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 240.
76
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A cultura dos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio
Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 247.
36
Destas definições, optamos pela que acentua que o direito de liberdade não é
absoluto, encontrando o limite no direito de outrem, estabelecido por lei. Alexandre de
Moraes garante que
Trata-se, porém, de norma constitucional de eficácia contida, cuja lei
ordinária pode delimitar a amplitude, por meio de requisitos de forma e
fundo, nunca, obviamente, de previsões arbitrárias. Assim, poderá o
legislador ordinário estabelecer restrições referentes a ingresso, saída,
circulação interna de pessoas e patrimônio.77
Os limites ao direito da liberdade física, representados pela oposição à
detenção e à prisão, encontram-se delineados na própria Constituição, que estabelece no
inciso LXI, do artigo 5º, as exceções ao estado de liberdade, representadas pela possibilidade
da prisão em flagrante delito, por ordem escrita e fundamentada de autoridade competente,
ou, ainda, nos casos de prisões por crimes ou transgressões militares, devidamente previstos
em lei.
A importância da lei que restringe o direito à liberdade pode ser medida pela
afirmação de Pinto Ferreira, que assegura que no direito constitucional comparado, na lei
retroativa da liberdade, presume-se a inconstitucionalidade, devendo ser declarada a
constitucionalidade78.
77
78
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 113.
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989, v.1, p. 61-62.
37
2.2 Princípio da Presunção de Inocência e Prisão Preventiva
Embora, numa primeira análise, o princípio da presunção de inocência ser
frontalmente atingido pelo simples fato da existência da possibilidade de prisão preventiva, ou
mesmo, de quaisquer das demais modalidades de prisões processuais, pela ausência de uma
decisão com trânsito em julgado, José Laurindo de Souza Netto79, observa que, o princípio
não é atingido em razão de que a prisão cautelar, pois, fundado no fumus bonis iuris e
periculun in mora.
Inicialmente, existe a necessidade de se atentar para a discussão levantada
por Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho ao tratar sobre a diferença entre a
presunção de inocência e a não-culpabilidade:
Parte da doutrina entende existir uma diferença entre a presunção de
inocência e a da não-culpabilidade. Sustenta que não se pode presumir a
inocência do réu se contra ele tiver sido instaurada ação penal, pois, no
caso, haverá um suporte probatório mínimo. O que se poderia presumir é a
sua não-culpabilidade, até que assim seja declarado judicialmente. Se existe
uma diferença no plano teórico em termos práticos, importa interpretar
corretamente o dispositivo constitucional que a abriga...80
A presunção de inocência com raízes na Roma antiga81 teve na Declaração
Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em 26/8/1789, a sua afirmação,
resultado da Revolução Liberal. A presunção juris tantum, da presunção de inocência exige,
79
SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 161.
Ibid., 2005, p. 71.
81
“Pode-se falar do principio da presunção de inocência desde a Roma Antiga, com a expressão innocens
praesumitur cujus nocentia non probatur; vindo este principio, porém, a aparecer efetivamente, mais tarde,
como principio do in dúbio pro reo e do favor rei. SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e
princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 155.
80
38
para ser afastada, decisão condenatória, fundamentada, prolatada em processo que obedeceu a
todos os princípios informadores do processo penal, ou, pelo devido processo legal,
garantindo-se, especialmente, o direito ao contraditório e ampla defesa82.
O princípio de presunção de inocência somente foi incorporado ao texto
constitucional brasileiro em 1988. Está expresso no inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição
Federal: LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória83. Representa inovação no Direito pátrio, já que não havia sido
contemplado em qualquer das Cartas anteriores.
Pela primeira vez em nossa história, a presunção de inocência passa a ter
“status constitucional”. Uma vez consagrada constitucionalmente, a presunção de inocência
converte-se num direito fundamental que, no direito brasileiro, é de aplicação imediata.
A importância é tamanha que, para seu reconhecimento, prescinde de
previsão legal84.
José Laurindo de Souza Netto observa a existência de duas formas de
interpretação do princípio de presunção de inocência, o formal que diz respeito à qualidade de
direito constitucional fundamental, assegurado como cláusula pétrea pelo constituinte e o no
aspecto substancial, a presunção de inocência é definida como direito de caráter processual
que repercute no campo da prova e no tratamento do acusado85.
É visível a importância de ambos aspectos, porém, em se tratando da
privação de liberdade, antes da sentença condenatória, portanto no seu sentido substancial, o
princípio de presunção de inocência toma dimensão maior
82
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas,
2002, p. 385.
83
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005.
84
SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 156.
85
Ibid., p. 157.
39
No caso da prisão cautelar, essas exigências se tornam ainda mais
rigorosas, diante do preceito constitucional segundo o qual ‘ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória’, art. 5º, inc. LVII, CF); em face do estado de inocência do
acusado, a antecipação do resultado do processo representa providência
excepcional, que não pode ser confundida com a punição, somente
justificada em situações de extrema necessidade.86
Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho interpreta o princípio
constitucional esclarecendo que
A Constituição proibiu terminantemente que o acusado fosse considerado
culpado antes da sentença judicial transitada em julgado. De outro lado,
previu e manteve as medidas cautelares de prisão, como o flagrante e a
prisão preventiva. Não previu a Constituição qualquer outro fundamento
para a prisão que estes: a prisão cautelar e a prisão penal. Ora, se o
acusado não pode ser considerado culpado antes de ser declarado
judicialmente, com que título se justifica encarcerá-lo antes da prolação da
sentença final? Trata-se de prisão cautelar? Não, pois não estão presentes o
fumus boni iuris e o periculum in mora. Trata-se de pena? Não, pois não há
pena sem o trânsito em julgado da sentença. Então, esta prisão não é
constitucionalmente admitida; não se enquadra nas modalidades de prisão
aceitas pela constituição como exceções necessárias ao direito natural de
liberdade. 87
Os questionamentos foram respondidos de forma objetiva pelo próprio
autor:
Assim, só pode existir prisão, além das hipóteses de flagrante expressamente
86
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As
nulidades no processo penal. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 343.
87
CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição. Rio de
Janeiro: Forense, 1992, p. 72.
40
admitidas pela Constituição, naqueles casos em que o juiz, para decretá-la,
tenha de buscar o fundamento no fumus boni iuris e no periculum in mora,
residentes no nosso código no art. 312. Afora esses casos, a Constituição
não admite prisão.
Essa interpretação é lógica e sistemática, pois está plenamente de acordo
com outros princípios adotados pela Carta, cujo espírito está claramente
preocupado com os direitos e garantias individuais. E, também, uma
interpretação histórica, uma vez que a Constituição, em todos momentos,
reafirma o compromisso de romper com as fórmulas deterioradas do
período autoritário experenciado no País. E é literal a interpretação,
porque decorre de seus exatos termos: ninguém pode ser considerado
culpado antes do trânsito em julgado da decisão.88
O princípio foi alvo de farta discussão nos tribunais. Como forma de
unificar e pacificar posição sobre a matéria, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº
9, que dispõe claramente que as espécies de prisão provisória previstas no Código de Processo
Penal não ofendem o princípio de presunção de inocência: a exigência da prisão provisória,
para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência89.
João Gualberto Garcez Ramos90 justifica que o princípio de presunção de
inocência, deve ser aplicado como regra de distribuição de ônus processuais, em todas as
medidas de urgência, enquanto Afrânio Silva Jardim, citado por Luiz Gustavo Grandinetti
Castanho de Carvalho91, afirma que agora, a expressa presunção de inocência faz com que o
ônus probatório seja todo da acusação.
Não obstante a clara posição do Superior Tribunal de Justiça, determinando
que a presunção de inocência não é maculada pelas prisões cautelares, elas não podem ser
aplicadas indiscriminadamente, conforme justifica Fernando Capez:
88
CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição. Rio de
Janeiro: Forense, 1992, p. 72.
89
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula 09.
90
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 133.
91
CARVALHO, op. cit., p. 75-76.
41
No entanto, a prisão provisória somente se justifica, e se acomoda dentro do
ordenamento pátrio, quando decretada com base no poder geral de cautela
do juiz, ou seja, desde que necessária para uma eficiente prestação
jurisdicional. Sem preencher os requisitos gerais da tutela cautelar (fumus
boni iuris e periculum in mora), sem necessidade para o processo, sem
caráter instrumental, a prisão provisória, da qual a prisão preventiva é
espécie, não seria nada mais que uma execução da pena privativa de
liberdade antes da condenação transitada em julgado, e, isto violaria o
princípio da presunção de inocência. Sim, porque se o sujeito está preso sem
que haja necessidade cautelar, na verdade estará apenas cumprindo
antecipadamente a futura e possível pena privativa de liberdade. 92
O princípio da presunção de inocência não inviabiliza as espécies prisões
processuais, mas merece uma observação mais aprofundada, a ser feita no decorrer do
presente estudo, com a análise de cada espécie de prisão, enfocando que a regra é quebrada
pela decretação da prisão preventiva com o fundamento na garantia da ordem pública e da
ordem econômica, para execução de medidas protetivas de urgência prevista na Lei Maria da
Penha, prisão decorrente de sentença de pronúncia e, também, da prisão decorrente de
sentença condenatória recorrível.
No Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, é possível
encontrar decisões em ambos sentidos. Acata o princípio de presunção de inocência,
conforme HC 79.817:
Prisão preventiva fundada na efetividade da aplicação da lei penal, tendo
por base outra custódia cautelar decretada em ação penal diversa, face à
circunstância de estar a paciente foragida à época do julgamento. Posterior
deferimento de habeas-corpus pelo Superior Tribunal de Justiça para cessar
a medida. 2. Princípio da presunção de inocência. Aplicação de medidas
coercitivas à liberdade antes de decisão transitada em julgado.
Possibilidade, desde que preenchido o requisito da necessidade. 3. Paciente
reconhecidamente primária e sem maus antecedentes. Supressão do
fundamento para a prisão preventiva. Configuração do direito subjetivo de
aguardar em liberdade o julgamento de sua apelação. Habeas-corpus
92
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 242.
42
deferido.93
Entendendo que o princípio de presunção de inocência não invalida a
decretação da prisão preventiva, HC 31.323:
Paciente condenado por tráfico de entorpecentes. Recebimento do recurso
de apelação condicionado ao seu recolhimento à prisão. Regra estabelecida
no artigo 2º, §2º da Lei 8.072/90. Entendimento harmônico com a
jurisprudência desta Corte. 2. Prisão sem decisão transitada em julgado.
Ausência de violação ao princípio da presunção de inocência (CF, artigo 5º,
LVII)94.
O princípio da presunção de inocência ou do estado de inocência está
contemplado em vários tratados internacionais. Está incorporado a ordenamentos jurídicos de
vários países, independentemente de estar contemplado nas constituições ou mesmo no
ordenamento infraconstitucional pela incorporação dos tratados, em certos casos e, pela forma
de recepção dos tratados, com força normativa de princípio constitucional, em outros.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 11, contempla o
princípio de presunção de inocência.
1. Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido
inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei,
em julgamento público, no qual tenham sido asseguradas todas as garantias
93
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. HC 80830/RJ - Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgamento 05 mar.
2002 – 2ª Turma. Diário da Justiça, p. 142, 28 jun. 2002.
94
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. HC 81323/RS - Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgamento 30
out. 2001 – 2ª Turma. Diário da Justiça, p. 31, 01 mar. 2002.
43
necessárias e a sua defesa.95
O artigo 14 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos enumera
série de garantias processuais:
Art. 14.
1. Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça.
Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas
garantias por um tribunal competente, independente e imparcial,
estabelecido por Lei, na apuração de qualquer acusação de caráter pena
formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de
caráter civil. A imprensa e o público poder são excluídos de parte ou da
totalidade de um julgamento quer por motivo de moral pública, ordem
pública ou segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando
o interesse da vida privada das partes o exija, quer na medida em que isso
seja estritamente necessário na opinião da justiça, em circunstancias
específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da
justiça; entretanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil
deverá tornar-se pública, a menos que o interesse de menores exija
procedimento oposto, ou o processo diga a respeito a controvérsias
matrimoniais ou à tutela de menores.
2. Toda a pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua
inocência enquanto não for legalmente comprovada a sua culpa.96
A importância da citação do item 01 do artigo 14, do Pacto de Direitos Civis
e Políticos, ocorre à medida que muitas prisões preventivas são acompanhadas de ampla
publicidade, podendo ser considerada como turbação à ordem pública, causada pela
95
Declaração Universal dos Diretos Humanos: aprovada pelas Assembléia Geral das Nações Unidas em
10.12.1948. In: RANGEL, Vicente Marotta (Org.). Direito e relações internacionais. 6. ed. rev. e atual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 647.
96
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Adotado pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em
16.12.1966. Entrou em vigor a 23.03.1976, em conformidade com o artigo 49 do mesmo Pacto, após haver a
Tcheco-Eslováquia (35º Estado) depositado seu instrumento de ratificação a 23.12.1975. o Brasil ratificou o
Tratado, tendo-o promulgado pelo Decreto 592, de 06.12.1992 (DO de 07 do mesmo e ano). Aprovação do
Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo 226, de 12.12.1991. In: RANGEL, Vicente Marotta (Org.).
Direito e relações internacionais. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 687-688.
44
divulgação do fato, posteriormente usado como fundamento da prisão por garantia da ordem
pública. O importante, todavia, é a reafirmação do princípio de presunção de inocência,
previsto no referido pacto.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto
de São José de Costa Rica, igualmente trata das garantias judiciais do cidadão. O artigo 8º
prevê, expressamente, o princípio da presunção de inocência:
Art. 8º. Garantias judiciais.
§2º. Toda a pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua
inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa [...].97
Embora o princípio de presunção de inocência, ou estado de inocência,
implique em que o acusado não seja considerado culpado antes do trânsito em julgado da
sentença, não implica em proibição irrestrita das prisões cautelares, desde que estejam
presentes os requisitos, pressupostos e fundamentos da tutela cautelar, obedecendo-se aos
demais princípios norteadores da liberdade do cidadão.
2.3 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
A dignidade da pessoa humana, predicativo inerente à condição do homem,
97
Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Aprovada na Conferencia de São Jose de Costa Rica em
22.11.1969. o Brasil aderiu 25.09.1992 (Decreto de Promulgação 678, de 06 de novembro do mesmo ano).
RANGEL, Vicente Marotta (Org.). Direito e relações internacionais. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000, p. 708.
45
essencial à auto-estima, ao respeito por parte de outrem, é qualidade absolutamente
fundamental ao gozo pleno da vida98, tem a importância medida pela afirmação:
O valor da dignidade do ser humano, postulado supralegal que decorre da
própria natureza das coisas, daquilo que é ínsito à nossa existência e
pertence ao direito natural, se encontra amalgamado com a solidariedade e
com o que há de melhor no ser humano que é a busca pela compreensão
(que não significa aprovação e, tampouco, tolerância com o que por vezes é
intolerável) dos acertos e erros de nossos pares.99
A dignidade da pessoa humana apresenta-se como fundamento do sistema
republicano, explicado por J.J. Gomes Canotilho.
Perante as experiências históricas da aniquilação do ser humano (inquisição,
escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa
humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o
reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do
domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização política que
serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos políticos-organizatórios.
A dignidade da pessoa humana exprime a abertura da República à idéia de
comunidade constitucional inclusiva pautada pelo multi-culturalismo
mundivicencial, religioso ou filosófico. O expresso reconhecimento da
dignidade da pessoa humana como núcleo essencial da República significa,
assim, o contrário de ‘verdade’ ou ‘fixismos’ políticos, religiosos ou
filosóficos. O republicanismo clássico exprimia esta idéia através dos
princípios da não identificação e da neutralidade, pois a República só
98
MARTINS, Jorge Henrique Schaefer. Prisão provisória: medida de exceção no direito criminal brasileiro.
Curitiba: Juruá. 2005, p. 38-39.
99
DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio Machado de Almeida. A dignidade da pessoa humana
e o tratamento dispensado aos acusados no processo penal. Revista dos Tribunais, a. 94, v. 835, p. 444, maio
2005.
46
poderia conceber-se como ordem livre à medida que não se identificasse
com qualquer ‘tese’, ‘dogma’, ‘religião’, ou ‘verdade’ de compreensão do
mundo e da vida. O republicanismo não pressupõe qualquer doutrina
religiosa, filosófica ou moral abrangente (J. Rawls).100
A República Federativa do Brasil tem como fundamentos a soberania, a
cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa101.
O fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana é explicado
por Alexandre de Moraes, em comentário à Constituição:
A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias
fundamentais, sendo inerentes às personalidades humanas. Esse fundamento
afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas do Estado e
Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor
espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na
autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz
consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindose um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de
modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao
exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a estima
que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.102
Como elemento da esfera constitutiva da República Portuguesa103, a
100
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 225-226.
101
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, Artigo 1º.
102
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 16.
103
“República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de
expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades
fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia econômica,
social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.” PORTUGAL. Constituição da República
Portuguesa. Disponível em: <http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Portugal/Sistema_Politico/Constituicao/
constituicao_p01.htm>. Acesso em: 20 jan. 2005.
47
dignidade da pessoa humana é principio antrópico que acolhe a idéia do indivíduo
conformador de si próprio e de sua vida segundo o seu projeto espiritual104.
A importância do princípio da dignidade da pessoa humana no Direito
Processual Penal fica evidenciada nas palavras da Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de
Carvalho à medida que fundamenta a volta do sistema acusatório com a afirmação do acusado
como titular de direitos processuais:
Do Direito Penal, esse sentimento de respeito à dignidade humana dirige-se
ao Direito Processual Penal, e vai acabar por fundamentar a transmutação
do sistema inquisitivo para o sistema acusatório, no mesmo século XVII,
voltando à cena as características deste, ou seja, fundamentalmente, a
tripartição das funções de acusar, defender e julgar e a garantia do
contraditório.
[...]
Mas a evolução não parou por aí. Não bastava reconhecer ao réu o direito à
dignidade se não lhe dotasse de mecanismos processuais ensejadores do
exercício eficaz de defesa. O sistema acusatório, conforme era concebido no
século XVIII, ainda não contemplava o acusado como titular de direitos
processuais, e sem essa concepção dificilmente poderia ele se opor ao
arbítrio ainda remanescente. Somente no século XIX, a partir da obras de
Wach e, principalmente Bülow, é que se inicia a teorização da concepção
jurídica em que o acusado, tanto quanto o autor da ação, passa a ser
reconhecido como sujeito de direitos, deveres, faculdades e ônus
processuais. A importância desta teorização consiste, em outras palavras,
no reconhecimento de que o acusado deixou definitivamente de ser objeto do
processo para ser sujeito da relação processual, titular de direitos
processuais e apto a exercê-los em igualdade de condições em relação ao
autor da demanda.
[...]
Em síntese, está assegurado constitucionalmente, pelo princípio da
dignidade humana, um Direito Processual que confira ao acusado o direito
de ser julgado de forma legal e justa, um direito a provar, contraprovar,
alegar e defender-se de forma ampla, em processo público, com igualdade
de tratamento a outra parte da relação processual.105
104
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 225.
105
CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição. Rio de
Janeiro: Forense, 1992, p. 7-8.
48
A aplicação do princípio da dignidade humana, portanto, implica na
observância das regras processuais previstas na Constituição pelo princípio do devido
processo legal.
Do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, ao colocar o
homem como centro da atividade estatal, decorre a aplicação de todos os demais princípios e
direitos e garantias individuais constitucionalmente previstos.
2.4 O Princípio do Devido Processo Legal
A prestação Jurisdição Constitucional no processo penal, basicamente é
representada pela aplicação correta e impositiva do devido processo legal que engloba
praticamente todos os demais princípios informadores do processo, (quando se fala em
processo entende-se o processo judicial em suas várias áreas de atuação como também o
processo administrativo), foi assim expresso no inciso LIV do artigo 5º da Constituição:
ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
A garantia do devido processo constitucional implica na imparcialidade e
adequabilidade traduzindo-no exercício da autonomia jurídica do cidadão:
Nessa perspectiva, a jurisdição constitucional deve garantir, de forma
constitucionalmente adequada, a participação ou a representação, nos
processos ordinários cíveis, penais e nos processos e nos processos
especiais de garantias de direitos constitucionais e de controle jurisdicional
de constitucionalidade, dos possíveis afetados por cada decisão, por meio de
uma interpretação construtiva que compreenda o próprio processo
jurisdicional como garantia das condições para o exercício da autonomia
49
jurídica dos cidadãos.106
O princípio do devido processo legal, com indícios nas primeiras
codificações, quer seja no Código de Hamurabi, ao possibilitar às pessoas conhecerem quais
eram as leis, ou, mesmo na China antiga, que previa procedimentos mínimos para a
notificação dos acusados, mas principalmente na Lei das XII Tábuas, ao prever os primeiros
esboços de direito processual estabelcendo, por exemplo, a determinação das horas das
audiências e citação dos réus, foi efetivamente positivado na Inglaterra em 1215, no artigo 39
da Carta Magna, fruto de imposição dos senhores feudais ao réu João Sem-Terra, como forma
de limitar a sua autoridade107 que, de forma clara, centralizou o princípio: Art. 39 nenhum
homem livre deve ser tomado, ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou exilado, ou
prejudicado de qualquer maneira, salvo pelo julgamento legal pelos seus semelhantes.
O devido processo legal, incorporado na Constituição dos Estados Unidos
da América pela 5ª Emenda, destaca:
Ninguém será detido para responder por crime capital ou outro crime
infame, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em
se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram
nas forças de terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém
poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde;
nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha
conta si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo
legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público,
sem justa indenização.108
106
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Devido processo legislativo e controle jurisdicional de
constitucionalidade no Brasil. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos
fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 190.
107
CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição. Rio de
Janeiro: Forense, 1992, p. 41.
108
RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p. 265.
50
É possível observar que foi garantida a proteção formal do indivíduo,
porém, com o texto da XIV Emenda:
Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à
sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver
residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os
privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá
privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal,
ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis.109
João Gualberto Ramos Garcez110, assevera que o devido processo legal, no
sistema processual penal, e a própria quintessência do processo, em todas as suas
manifestações, e age como um limitador dos poderes Executivo e Legislativo.
A emenda constitucional, além de tornar obrigatória a aplicação nos
Estados, (anteriormente, a garantia se dava apenas aos processos federais), possibilitou
interpretação jurisprudencial extensiva, saindo do campo estritamente processual para
alcançar concepção substantiva. Com isto, os tribunais americanos passaram a analisar a
razoabilidade e a proporcionalidade da norma e não somente a aplicação correta dela. A
aplicação do devido processo legal substantivo na Suprema Corte Americana acabou
definindo-o, de forma precisa, como sendo a garantia positiva de direito natural das pessoas
a um processo judicial inspirado por princípio de justiça, ou garantia concreta de justiça
substancial e não só formal111.
A influência norte-americana foi notada em vários textos constitucionais
109
RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p. 269.
110
Ibid., p. 156.
111
CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição. Rio de
Janeiro: Forense, 1992, p. 52.
51
europeus, integrando o devido processo legal ao rol de garantias na Itália, Portugal, Espanha,
Alemanha e Bélgica112, culminando com a inserção no texto da Declaração Universal dos
Direitos do Homem.
No Brasil, a evolução até o atual texto, passou por regras estritamente
processuais, como o artigo 159 da Constituição Política do Império do Brasil de 1824, que
previa que nas Causas crimes, a inquirição das Testemunhas e de todos os demais actos do
Processo, depois da pronuncia, serão públicos desde já113, com avanço significativo na
Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, que teve
como principal idealizador Rui Barbosa, influenciado pela Bill of Rigths americana,
consagrou seção específica para a declaração de direitos, entre eles, regras processuais quanto
à impossibilidade da prisão sem ordem escrita e fundamentada, salvo em flagrante; a
obrigatoriedade da liberdade sob fiança nos casos previstos em lei e nos parágrafos 15 e 16 do
artigo 72; regras basilares do devido processo legal, consistentes no princípio do juiz natural e
ampla defesa, respectivamente114, texto seguido pela Constituição 1934.
A Carta Constitucional de 1937 mantém as referidas garantias processuais,
acrescentando inovação, representada pelo sistema acusatório na instrução criminal:
Art. 122.[...]
11. À exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão
depois de pronúncia do indiciado, salvo casos determinados em lei, e
mediante ordem escrita de autoridade competente. Ninguém poderá ser
conservado em prisão sem culpa formada, senão pela autoridade
competente, em virtude da lei e na forma por ela regulada; a instrução
criminal será contraditória, asseguradas, antes e depois da formação de
112
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000, p. 44.
113
BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, jurada à 25 de março de 1824. In: SILVA, Helio. As
Constituições do Brasil. Rio de Janeiro: Globo, 1986, p. 23.
114
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891.
In: SILVA, Helio. As Constituições do Brasil. Rio de Janeiro: Globo, 1986, p. 41.
52
culpa, as necessárias garantias de defesa. 115
As demais Cartas se limitaram a reproduzir as garantias genéricas, já
citadas. Somente com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 é que aconteceu a afirmação do devido processo legal de forma expressa, com nítidas
influências da V e XIV Emenda Constitucional dos Estados Unidos da América do Norte. O
fato fica mais evidente no artigo 5º, da constituição brasileira, que aborda os direitos e as
garantias fundamentais.
A cláusula do devido processo legal foi formalmente inserida no
ordenamento jurídico brasileiro após 200 anos de incorporação no ordenamento jurídico
norte-americano. No inciso LIV, do artigo 5º, da Carta de 1988, está expresso: ninguém será
privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
O devido processo legal se consubstancia numa garantia constitucional que
visa a consecução das tutelas dos direitos fundamentais essenciais aos membros da
coletividade na vida comunitária, a saber: a) direito à integridade física e moral e à vida; b)
direito à liberdade; c) direito à igualdade; d) direito à segurança; e) direito à propriedade; f)
direitos relativos à personalidade (relacionados ao direito ao processo)116.
O devido processo legal pode ser interpretado em duas faces: formal e
material ou substancial. São assim entendidas por Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
O aspecto formal consiste na sujeição de qualquer questão que fira a
liberdade ou os bens de um ser humano ao crivo do judiciário, por meio do
115
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, Decretada em 10 de novembro de 1937. In: SILVA,
Helio. As Constituições do Brasil. Rio de Janeiro: Globo, 1986, p. 104.
116
TUCCI, Rogério Lauria. Constituição de 1988 e processo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 17.
53
juiz natural, num processo contraditório, em que se assegure ao interessado
a ampla defesa. O substancial importa em que as normas aplicadas quanto
ao objeto do litígio não sejam desarrazoadas, portanto intrinsecamente
injustas.117
A cláusula do devido processo legal pode ser vista como princípio
informativo dos atos dos poderes públicos, sendo, por tanto, princípio jurídico fundamental
conforme exposição de J.J. Gomes Canotilho118:
Os princípios historicamente objectivados e progressivamente introduzidos
na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou
implícita no texto constitucional, pertencem à ordem jurídica positiva e
constituem um importante fundamento para a interpretação, integração,
conhecimento e aplicação do direito positivo. Mais rigorosamente, dir-se-á,
em primeiro lugar, que os princípios tem uma função negativa
particularmente relevante nos ‘casos limites’ (‘Estado de Direito e de Não
Direito’, ‘Estado Democrático e Ditadura’). A função negativa dos
princípios é, ainda, importante em outros casos onde não está em causa a
negação do Estado de Direito e da legalidade democrática, mas emerge
com perigo o ‘excesso de poder’. Isso acontece, por ex., com o princípio da
proibição do excesso.
O constituinte brasileiro organizou de forma lógica os princípios
constitucionais, classificando no Título II, os direitos e as garantias fundamentais, e, no artigo
5°, os direitos e os deveres individuais e coletivos, criando os princípios e as garantias.
Conforme Canotilho119, por sua força de autêntica norma jurídica vincula estreitamente o
legislador, possibilitando interpretação substancial da norma pelo judiciário. Quando está em
jogo a liberdade do cidadão, vale contra a lei quando ela estabelece restrições em
117
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo:
Saraiva, 1990, p. 67.
118
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 1128.
119
Ibid., p. 1131.
54
desconformidade com o texto constitucional120.
Por se tratar de direitos e garantias fundamentais do cidadão, estabelecidas
no artigo 5° da carta constitucional, a cláusula do devido processo legal tem aplicação
imediata, conforme a disposição expressa no § 1°, podendo ser invocada na plenitude121, já
que, segundo José Cretella Jr.122, o dispositivo que integra a Constituição tem supremacia
sobre toda e qualquer outra norma jurídica – lei ou ato normativo – do sistema jurídico de
que faz parte.
O constituinte brasileiro, ao elaborar a Carta de 1988, com doutrina de
Direito Constitucional à disposição, optou por positivar os princípios constitucionais como
garantias fundamentais. Isto é destacado por Paulo Bonavides123:
O ponto central da grande transformação por que passam os princípios
reside, em rigor, no caráter e no lugar de sua normatividade depois que
esta, inconcussamente proclamada e reconhecida pela doutrina mais
moderna, salta dos Códigos, onde os princípios eram fontes de mero teor
supletório, para as Constituições, onde em nossos dias se convertem em
fonte de toda a ordem jurídica, na qualidade de princípios constitucionais.
O devido processo legal substantivo, face mais abrangente do princípio,
prevê a possibilidade de análise pelo judiciário, de atos de quaisquer dos poderes que
importem em limitação dos diretos de liberdade, propriedade e demais direitos da pessoa
humana.
120
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 1142.
121
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 25.
122
CRETELA JUNIOR, Jose. Elementos de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000, p. 100.
123
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 260.
55
A cláusula, aceita no direito constitucional norte-americano124, também
encontra por aqui, defensores. É o caso de Uadi Lammêgo Bulos125, que vê a importância do
devido processo legal na proteção dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, como um
instrumento contra os arbítrios das autoridades legislativas, judiciárias e administrativas,
pois, possibilita o controle sobre leis com a aplicação do princípio da razoabilidade,
integrando o direito constitucional brasileiro, atuando em todos os campos, seja no direito
administrativo, seja no direito civil, seja no direito comercial, seja no direito tributário e, mais
especificamente, seja no campo do direito penal, no qual atua como inesgotável manancial de
inspiração para interpretar direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição.
A cláusula do devido processo legal material encontra-se expressa nos
seguintes dispositivos constitucionais
presunção de inocência, até que sobrevenha condenação definitiva,
transitada em julgado, reconhecendo a autoria e a materialidade do delito
(art. 5°, LVII);
não-identificação datiloscópica de quem já o seja civilmente identificado
(art. 5°, LVIII);
exigência que a prisão do cidadão seja em flagrante delito, observadas as
prescrições constitucionais e legais (art. 5°, LXI);
respeito ao principio da comunicabilidade imediata ao juiz competente e à
família do preso, ou à pessoa por ele indicada, do fato em si, da prisão e do
local onde o mesmo se encontra (art. 5°, LXII);
direito de o preso ser informado de seus direitos, entre os quais o de
permanecer calado, além de lhe ser garantida a assistência da família e de
advogado (art. 5°, LXIV);
direito do preso à identificação dos responsáveis por sua prisão ou
interrogatório policial (art. 5°, LXIV);
124
RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo. Revista dos
Tribunais, 2006, p. 171-175.
125
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p.
238.
56
obrigação de o juiz relaxar imediatamente a prisão ilegal (art. 5°, LXV);
- direito do cidadão não ser levado à prisão ou nela mantido, quando a
lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança (art.5º, LXVI);
impossibilidade de ocorrer prisão civil por dívida, exceto a do responsável
pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a
do depositário infiel (art. 5°, LXVII).126
O Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 345845, não acata
a idéia de devido processo legal substancial com a análise da razoabilidade da norma, mas,
deixa clara a posição de interpretar o devido processo legal formal, conforme relato do
Ministro Carlos Veloso:
Ao Judiciário cabe, no conflito de interesses, fazer valer a vontade concreta
da lei, interpretando-a. Se, em tal operação, interpreta razoavelmente ou
desarrazoadamente a lei, a questão fica no campo da legalidade, incorrendo
o contencioso constitucional. II. - Decisão contrária ao interesse da parte
não configura negativa de prestação jurisdicional (C.F., art. 5º, XXXV). III.Alegação de ofensa ao devido processo legal: C. F. , art. 5º, LV: se ofensa
tivesse havido, seria ela indireta, reflexa, dado que a ofensa direta seria a
normas processuais. E a ofensa a preceito constitucional que autoriza a
admissão do recurso extraordinário é a ofensa direta, frontal.127
Observa-se que, de acordo com este julgado, o Supremo Tribunal Federal
não admite a interpretação, em sede de recurso extraordinário, da razoabilidade da lei, mas da
ofensa direta às normas processuais.
O doutrinador Feu Rosa, ao abordar o tema referente às garantias
constitucionais, ensina que
126
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p.
240.
127
SÃO PAULO. RE 345845 AgR / SP - Relator(a): Min. Carlos Velloso. Publicação: DJ -11-10-2002 PP00043 EMENT VOL-02086-04 PP-00764. Julgamento: 17/09/2002 - Segunda Turma.
57
Assim, faz parte do direito constitucional moderno, de todos os países cultos
e civilizados, a afirmação peremptória que diz: ‘os direitos fundamentais
garantidos pela Constituição não podem, em princípio, restringir-se. As
limitações desses direitos pela lei só serão admitidas quando a segurança, a
moral, a saúde e a assistência pública o exijam imperiosamente. Não serão
admitidas mais limitações que nas condições previstas na própria
Constituição. O tribunal de conflitos constitucionais está obrigado a
declarar nulas as leis que restringem, contra a Constituição, qualquer dos
direitos fundamentais’.128
Pode-se perceber que, de acordo com a afirmação, implica na incorporação
pela Constituição Federal do devido processo substancial, e, não apenas formal,
contrariamente ao julgado do Supremo Tribunal Federal.
Para Nelson Nery Júnior há até um exagero na afirmação do princípio
Bastaria à Constituição Federal de 1988 ter enunciado o princípio do
devido processo legal e o caput e a maioria dos incisos do art. 5° seriam
absolutamente dispiciendos. De todo modo, a explicação das garantias
fundamentais derivadas do devido processo legal, como preceitos
desdobrados nos incisos do art. 5°, CF, é uma forma de enfatizar a
importância dessas garantias, norteando a administração pública, o
Legislativo e o Judiciário para que possam aplicar a cláusula sem maiores
indagações.129
A exemplo do devido processo legal substancial, o devido processo legal em
seu sentido processual, com raízes no sistema norte americano, de acordo com Uadi
Lammêgo Bulos, é representado pelas seguintes garantias:
128
ROSA, Antonio Jose Miguel Feu. Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 171.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000, p. 41.
129
58
a) direito à citação e ao conhecimento do teor da acusação; b) direito a um
rápido e público julgamento; c) direito ao arrolamento de testemunhas e à
notificação das mesmas para comparecer perante os tribunais; d) direito ao
procedimento contraditório; e) direito de não ser processado, julgado ou
condenado por alegada infração às leis ex post facto; f) direito à plena
igualdade entre acusação e defesa; g) direito contra medidas ilegais de
busca e apreensão; h) direito de não ser acusado nem condenado com base
em provas ilegalmente obtidas; i) direito à assistência judiciária, inclusive
gratuita; j) privilégio contra a auto-incriminação.130
O devido processo legal nada mais é do que o direito do cidadão a processo
justo, com a possibilidade efetiva de ter acesso à justiça, com direito à ampla defesa e ao
contraditório.
2.5. Princípio da Proporcionalidade
Do termo proporcionalidade se extrai a idéia de proporção, correspondência,
correlação ou relatividade. José Laurindo de Souza Netto ensina que a proporcionalidade se
revela numa igualdade relativa, conseqüente da relação das diferentes partes de um todo,
comparadas entre si131.
O elemento jurídico da proporcionalidade, teria sido identificado por
Aristóteles, que afirmava “o proporcional é um meio termo e o justo é o proporcional”132, foi
inicialmente usado no campo do Direito Administrativo, mas dada a sua importância, foi,
posteriormente, incorporado por praticamente todos os ramos do Direito. José Laurindo de
130
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000, p. 40.
131
SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 63.
132
D’URSO, Flávia. Princípio constitucional da proporcionalidade no processo penal. São Paulo: Atlas,
2007, p. 50.
59
Souza Netto observa
Dizia, primitivamente, respeito ao problema da limitação do poder
executivo, sendo considerado como medida para as limitações
administrativas da liberdade individual. É com este sentido que a teoria do
estado o considera, já no séc. XVIII, como máxima suprapositiv, é que ele
foi introduzido, no séc. XIX, no direito administrativo como princípio geral
do direito de polícia. Posteriormente, o principio da proporcionalidade em
sentido amplo, também conhecido por princípio da proibição de excesso
(Übermassverbot), foi erigido à dignidade de princípio constitucional na
Alemanha.133
J.J. Gomes Canotilho, explica o princípio da proporcionalidade no sentido
estrito, ao afirmar que,
Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação da medida
coectiva do poder público para alcançar determinado fim, mesmo nestes
casos deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é
proporcional à ‘carga coactiva’ da mesma. Está aqui em causa o princípio
da proporcionalidade em sentido restrito, entendido como princípio da
‘justa medida’. Meio e fim são colocados em equação mediante um juízo de
ponderação, com objectivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não
desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de
‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim: pesar as desvantagens
dos meios em relação às vantagens do fim.134
O princípio da proporcionalidade tem vinculação com a Jurisdição
Constitucional, já que atua na esfera dos direitos fundamentais, servindo como instrumento de
proteção à liberdade, protegendo o cidadão contra os excessos e as intervenções estatais
133
SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 64.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 269.
134
60
desnecessárias, ao difundir os demais princípios e garantias básicas135.
Há casos em que, inevitavelmente, possa ocorrer a colisão de direitos
fundamentais. A equação da situação fática se dá pelo princípio da proporcionalidade.
É certo que o princípio da proporcionalidade tem como finalidade
salvaguardar a dignidade da pessoa humana. Contudo, definir com precisão
o que é dignidade da pessoa humana não é tarefa simples. O conceito é
altamente abstrato e nem sempre é possível identificar, a priori, os supostos
fáticos específicos da infração da dignidade humana. A rigor, a noção
menos vaga sobre a dignidade apenas é possível in concreto,
principalmente, na hipótese de colisão de direitos fundamentais, direitos
portadores do conteúdo ‘dignidade humana’, mas que, no caso concreto,
dado ao caráter principal das normas conferidoras de direitos
fundamentais, tem pesos relativos. Portanto, na hipótese de colisão, o que é
a dignidade humana – e sua violação ou não violação – resulta da aplicação
do princípio da proporcionalidade. Nesse sentido, as considerações sobre o
princípio da proteção do conteúdo essencial como via de fundamentação do
princípio da proporcionalidade valem, ao menos em parte, para a via do
princípio da dignidade humana.136
Tomando-se como exemplo o direito à liberdade, regra constitucional da
maior importância versus a possibilidade da decretação da prisão preventiva devidamente
fundamentada, autorizada igualmente pela Constituição, há de se aplicar o princípio da
proporcionalidade com base no fundamento da dignidade da pessoa humana.
Levando-se em conta a proposta deste trabalho, que defende o uso da prisão
cautelar como medida realmente excepcional, a aplicação do princípio da proporcionalidade
possibilita a adoção de medidas substitutivas à prisão preventiva, visto inexistirem no
processo penal brasileiro, medidas intermediárias entre a liberdade e a prisão, previstas nos
códigos processuais penais modernos, reservando a prisão como última alternativa, aplicada
135
SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 65-66.
STEINMETZ, Wilson Antonio. Colisão de direitos fundamentais e principio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 165.
136
61
aos casos de extrema necessidade137.
A importância do princípio da proporcionalidade, no Direito Comparado,
pode ser medida pela sua aplicação no Direito Alemão, que, por exemplo, ao restringir o
princípio da culpa (Schuldprinzip), ao exigir que haja correspondência entre a culpa e o grau
de ofensa do crime, como medida da pena aplicada ou aplicável138, caso em que o princípio
da proporcionalidade é posto como limite ao legislador penal.
Já no processo penal, a proporcionalidade exige que a sanção ou pena seja
adequada:
O princípio da proporcionalidade no processo penal reclama sobretudo que
a medida seja indispensável, que haja uma relação adequada com a
gravidade do crime e que seja justificada pela intensidade [..]}[{A]
Constituição pode impor uma determinada gestão do processo em que os
aspectos de oportunidade de per se respeitáveis para o andamento do
processo devem ceder à tutela dos direitos fundamentais. Nesse sentido, o
Bundesverfassungsgeritc está autorizado também a gestão concreta do
processo.139
Na falta da previsão legal, embora a invocação do princípio da legalidade
seja forma de obstar a adoção de outras medidas que não a prisão preventiva, existem
alternativas, já que é possível defender a possibilidade dos juízes aplicarem medidas outras
que não a prisão cautelar, atendendo ao princípio da proporcionalidade e da interpretação das
normas no sentido mais favorável à efetividade dos direitos fundamentais140.
137
SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 77.
SAMPAIO, José Adércio Leite. Retorno às tradições: a razoabilidade como parâmetro constitucional.. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003, p. 78.
139
ALEMANHA, Corte Constitucional federal. BVerf|GE 17,108. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.).
Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 79.
140
SOUZA NETTO, op. cit., p. 77.
138
62
2.6 Princípio da Razoabilidade
Dificuldade surge ao se estabelecer a diferenciação entre a conceituação do
princípio da razoabilidade e o princípio da proporcionalidade. Isto ocorre porque o princípio
da razoabilidade se apresenta como um dos critérios para a aplicação do princípio da
proporcionalidade141, porém, a distinção de acordo com José Laurindo de Souza Netto142 pode
ser notada no sentido que a razoabilidade protege o cidadão contra os excessos muitas vezes
praticados pelo Estado, e serve como meio de defesa de dos direitos e das liberdades
constitucionais enquanto a proporcionalidade atua no âmbito dos direitos fundamentais,
enquanto critério valorativo constitucional determinante das restrições impostas aos
cidadãos.
Willis Santiago Guerra Filho, citado por Wilson Antônio Steinmetz,
identifica as finalidades de cada princípio:
a desobediência ao princípio da razoabilidade significa ultrapassar,
irremediavelmente, os limites do que as pessoas em geral, de plano,
consideram aceitável, em termos jurídicos. É um princípio de função
negativa. Já o princípio da proporcionalidade tem uma função positiva a
exercer, na medida em que pretende demarcar aqueles limites, indicando
como nos mantermos dentro deles – mesmo quando não pareça, a {sic}
primeira vista, ‘irrazoável’ ir além.143
141
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo:
Atlas, 2002, p. 368.
142
SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p . 65.
143
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo e principio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1997. p. 25-26. Apud STEINMETZ, Wilson Antonio. Colisão de
direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 186.
63
Outra diferenciação entre o princípio da proporcionalidade e o da
razoabilidade é apresentada por Wilson Antônio Steinmetz:
Argumentos mais desenvolvidos a favor da tese da diferença oferece Ávila,
tendo como referências formulações recentes do pensamento constitucional
alemão (doutrinário e jurisprudencial). Aplica-se o postulado normativo da
proporcionalidade nos casos em que se estrutura uma relação meio-fim, na
qual um meio x pretende alcançar um fim constitucionalmente legítimo y
(ou, se preferir, um direito fundamental y, um bem jurídico
constitucionalmente protegido y (restringindo um princípio constitucional z
(ou direito fundamental z, y bem jurídico constitucionalmente protegido z).
Nessas hipóteses, ‘a pergunta a ser feita é: a medida adotada e adequada e
necessária em relação ao fim não implica a não realização substancial do
bem jurídico correlato?’ Há um dever de proporcionalidade?
Já o dever de razoabilidade não pressupõe uma relação meio-fim, mas, a
situação pessoal do sujeito envolvido na aplicação da medida que se quer
controlar. A pergunta a ser feita é outra: ‘a concretização da medida
abstratamente prevista implica a não realização substancial do bem jurídico
correlato para determinado sujeito?’. Segundo Ávila, ‘trata-se de um exame
concreto-individual dos bens jurídicos envolvidos, não em função da medida
em relação a um fim, mas em razão da particularidade ou excepcionalidade
do caso individual’. Em outros termos, ‘não se analisa a intensidade da
medida para a realização de um fim, mas a intensidade da medida
relativamente ao um bem jurídico de determinada pessoa’. Objetiva-se
verificar se a resultante da aplicação da norma geral (que é uma norma
constitucionalmente válida) ao caso individual é razoável e não arbitrária.
Ávila conclui afirmando que há uma diferença de métodos na aplicação de
princípios da proporcionalidade e da razoabilidade: ‘enquanto o primeiro
consiste num juízo com referência a bens jurídicos ligados a fins, o segundo
traduz um juízo com referência a pessoa jurídica atingida’.144
O princípio da razoabilidade, invocado na literatura publicista brasileira,
deriva da concepção substantiva do princípio do devido processo penal norte-americano.145
O princípio da razoabilidade tem o condão de proteger os direitos
144
STEINMETZ, Wilson Antonio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 186-187.
145
Ibid., p. 188.
64
fundamentais contra condutas arbitrárias das várias esferas do poder público146, e sua
aplicação no processo penal deverá seguir a seguinte orientação:
A chamada lógica do razoável, que, como visto, traduz-se em um método de
abordagem hermenêutica, com vistas à adaptação do ordenamento à
realidade do momento histórico de sua aplicação, diverso daquele em que
foi elaborada, com escopo de permitir que o juiz prolate a decisão mais
justa possível, deverá se limitar, sempre, aos valores em que a própria
norma se embasa..147
A cláusula do princípio do devido processo legal, prevista no inciso LIV, do
artigo 5º da Constituição Brasileira, contempla o princípio da razoabilidade, dando-lhe status
de princípio constitucional.
O Supremo Tribunal Federal interpreta a regra de forma a impedir o
privilégio para o Estado
A igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law;
quando uma das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com
alguns favores legais que, além de vetustez, tem sido reputados nãoarbitrários por visarem a compensar dificuldades da defesa em juízo das
entidades públicas; se, ao contrário, desafiam a medida da razoabilidade e
da proporcionalidade, caracterizam privilégios inconstitucionais: [...]
(ADIN 1.753-DF – Medida Cautelar – RTJ 172/32).148
146
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo:
Atlas, 2002, p. 369.
147
DELMATO JUNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. Rio de
Janeiro: Renovar, 1998, p. 282, apud PENTEADO, Jaques de Camargo. Tempo da prisão: breves apontamentos.
Revista dos Tribunais, a. 92, v. 814, p. 447, ago. 2003.
148
BRASIL. Constituição (1988). Constituição federal interpretada pelo STF. Antonio Joaquim Ferreira
Custódio (Org.). 8. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 21.
65
Situando a questão no plano do processo penal, a defesa tem prazos
estabelecidos, e, não exercida a faculdade processual dentro dos limites temporais previstos,
terá o direito de defesa precluso, enquanto os prazos processuais concedidos ao Estado, são,
via de regra, dilatados, sendo a razoabilidade um dos fundamentos invocados, quando esta
conjugada com o “devido processo penal” implicaria no desfecho processual em tempo
“razoável” e com a razoabilidade das medidas constritivas adotadas.149
2.7 Princípio da Fundamentação das Decisões Judiciais
O inciso IX, do artigo 93, da Constituição Federal, prevê, expressamente,
que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas
todas as decisões, sob pena de nulidade”150.
Considerando que a regra é a liberdade enquanto a prisão representa medida
excepcional, o presente trabalho vai se ater à fundamentação da decisão para decretar a prisão
preventiva e aplicar a cláusula do devido processo legal no seu aspecto formal, em
conformidade com as disposições do inciso LXI do art. 5°, da Carta Constitucional, embora o
Supremo Tribunal Federal tenha feito interpretação no sentido de que o princípio da
fundamentação da decisão é a que legitima as prisões cautelares, representadas pelas prisões
preventiva ou temporária:
149
SAMPAIO, José Adércio Leite. Retorno às tradições: a razoabilidade como parâmetro constitucional.. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.) Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003, p. 79.
150
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p.
861.
66
Já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que a prisão
cautelar não viola o princípio constitucional da presunção de inocência,
conclusão essa que decorre da conjugação dos incisos LVII, LXI e LXVI, do
artigo 5º da Constituição Federal (HC nº 71.169-SP).151
Permitido, pois, é partir do pressuposto de que a prisão preventiva é medida
cabível, fundada no fumus bonis iuris (prova da existência do crime e indícios suficientes de
autoria) e periculum in mora ou periculum libertatis (garantia da ordem pública, da ordem
econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal),
desde que esteja escrita e fundamentada.
O inciso IX, do artigo 93, da Constituição Federal, é consectário lógico da
cláusula do devido processo legal. Representa a garantia de um Estado Democrático de
Direito que não admite que os atos do poder público sejam expedidos sem que sejam
obedecidas as garantias constitucionais, entre outras, caso da imparcialidade e da livre
convicção do magistrado, pois, através de sentenças fundamentadas e descomprometidas de
qualquer interesse, e, também sendo pública, é que a parte e a comunidade destinatária da
motivação da sentença poderão verificar a lisura da atividade jurisdicional.
Alexandre de Moraes, ao comentar a Constituição da República, mostra que
a fundamentação das decisões foi alvo de evolução:
Para garantir o respeito a seus julgados e, conseqüentemente, reafirmação
de sua legitimidade, historicamente o estilo das decisões de diversos
tribunais foi alterado, visando um maior detalhamento de sua motivação e
propiciando maior acesso popular aos elementos básicos de sua
fundamentação, por meio de publicidade de seus acórdãos.152
151
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 79920. 2ª Turma. Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgamento: 11
abr. 2000. Diário da Justiça, p. 77, 01 jun. 2001.
152
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo:
Atlas, 2002, p. 1294.
67
O constituinte, ao positivar o princípio da motivação da decisão judicial,
confirmou regra já alcançada pela cláusula do devido processo legal substancial, obrigando o
magistrado a apresentar as razões de fato e de direito que o levaram a uma determinada
convicção, não se considerando substancialmente fundamentadas as decisões, afirmando que
segundo os documentos e testemunhas ouvidas no processo, o autor tem razão, motivo por
que julgo procedente o pedido. Esta decisão é nula por que lhe falta fundamentação153.
J.J. Gomes Canotilho explica de forma objetiva a exigência da motivação
das decisões judiciais:
[...] radica em três razões fundamentais: (1) controle da administração da
justiça; (2) exclusão do caráter voluntarístico e subjectivo do exercício da
atividade jurisdicional e abertura do conhecimento da racionalidade e
coerência argumentativa dos juízes; (3) melhor estruturação dos eventuais
recursos, permitindo às partes em juízo um recorte mais preciso e rigoroso
dos vícios das decisões judiciais recorridas.154
A importância da fundamentação das decisões judiciais pode ser avaliada
pela afirmação de João Gualberto Garcez Ramos:
Tão relevante é o princípio da motivação dos provimentos jurisdicionais
que, mesmo nos casos de decretação tida pela lei como obrigatória, a
decisão judicial neste sentido deve ser fundamentada. Eduardo Espínola
Filho, escrevendo sobre a hoje extinta prisão preventiva obrigatória¸
lembrava os Juízes de seu dever imperioso de fundamentarem as
decretações dessa medida. E contemplava que, mesmo quando os Tribunais
Superiores não concedessem habeas corpus anulando decisões não
153
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000, p. 176.
154
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 651.
68
fundamentadas, os Juízes deveriam saber que haviam faltado gravemente
com seus deveres.155
Em se tratando de decisão tomada em sede de cognição sumária e com base
no inquérito policial, a fundamentação assume importância ainda maior:
Dita providência, aliada a tal critério, feria a fundo o status libertatis do
indivíduo, máxime se considerarmos que é regra geral ser ela decretada
com apoio apenas no inquérito policial. Tem este, entre nos, caráter
inquisitivo, gozando por isso a autoridade de discrição, que, se não é
arbítrio, confere-lhe, entretanto, largos poderes, freqüentemente, lesivos aos
interesses individuais. Assim, é comum que se desfaçam, na instrução, os
elementos obtidos no inquérito, pela amplitude de defesa que nossas
Constituições sempre asseguram aos acusados.156
Nelson Nery Júnior também se expressa a respeito:
A menção pura e simples aos documentos da causa ou testemunhas, como
circunstâncias autorizadoras do decreto judicial, sem qualquer análise
concreta dos referidos documentos e demais provas dos autos, não preenche
o requisito constitucional da motivação como fator da higidez das decisões
judiciais.157
Antonio Scarance Fernandes atenta para o conteúdo mínimo essencial à
garantia da motivação:
155
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 112.
156
NORONHA, E. Magalhães. Curso de processo penal. 25. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 224-225.
157
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000, p. 177.
69
1. O enunciado da escolha do juiz, com relação à a) individuação das
normas aplicáveis; b) análise dos fatos; c) à sua qualificação jurídica: d) às
conseqüências jurídicas desta decorrentes. 2. Nexos de implicação e
coerência entre os referidos enunciados.158
Ada
Pellegrine
Grinover,
igualmente,
admite
a
necessidade
da
fundamentação:
É através da fundamentação, com efeito, que se expressam os aspectos mais
importantes considerados pelo julgador ao longo do caminho percorrido até
a conclusão última, representando, por isso, o ponto de referência para a
verificação da justiça, imparcialidade, atendimento às prescrições legais e
efetivo exame das questões suscitadas pelos interessados do pronunciamento
judicial.
No caso da prisão preventiva (e isso se aplica às demais formas de prisão de
natureza cautelar) é indispensável, ao fumus boni iuris, que o juiz demonstre
a tipicidade do fato e sua real existência, apontando as provas em que apóia
sua convicção, sendo imprescindível o laudo de exame de corpo de delito
quando a infração deixar vestígios (art. 158, CPP); por outro lado, deve,
igualmente, o magistrado, sopesar os indícios de autoria esclarecendo as
razões de seu convencimento.
[...]
Ainda é preciso observar que a justificação sobre a presença das apontadas
exigências cautelares deve ser individualizada, sempre que houver mais de
um acusado no mesmo processo, levando-se em conta as condições pessoais
de cada um deles na constatação do periculum libertatis. Seria de todo
arbitrário, caracterizando absoluta falta de motivação, indicar globalmente
uma situação que autorize a prisão de vários acusados, sem consignar os
dados individuais que indicam a necessidade da segregação.159
Muito mais do que qualquer outra, a decisão de decretar a prisão preventiva
deve ser fundamentada, quer seja pela regra do inciso LXI, do art. 5°, quer seja do inciso IX,
158
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.,
2000, p. 120.
159
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As
nulidades no processo penal. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 357-359.
70
do art. 93, da Constituição Federal, regras que não necessitam de interpretação substantiva,
bastando-lhe apenas a formal ou a processual, ou, então, a disposição do artigo 315 do Código
de Processo Penal. São normas imperativas também à decretação da prisão temporária,
prisão decorrente de pronúncia ou de sentença penal recorrível visto que a regra é a
liberdade, sob pena da nulidade da decisão que decreta a segregação cautelar160. A nulidade
será absoluta, já que viola regra estabelecida na Constituição161.
160
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As
nulidades no processo penal. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 356-365.
161
Ibid., p.359.
71
3 TUTELA CAUTELAR NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
3.1 Noções Gerais
O Direito Processual Penal, a exemplo dos demais ramos do Direito,
contempla cautelaridade específica com o fim de garantir a efetividade ao processo
consubstanciado em medidas e ações cautelares de matéria penal.
Ao fazer um estudo aprofundado, João Gualberto Garcez Ramos162 aponta
duas realidades decepcionantes no estudo da tutela de urgência no processo penal brasileiro.
A primeira é a dificuldade de se obter conceituação da tutela cautelar em matéria processual
penal, uma vez que a doutrina se baseia integralmente na doutrina do processo civil, sendo
esta insegura e incorreta, o outro ponto é que a doutrina brasileira do processo penal, não de
aprofundou com o desenvolvimento de conceitos que não se mostravam inteiramente corretos.
Mesmo que o Processo Penal Brasileiro, desde os seus albores, contemple
série de providências de caráter cautelar, somente após o advento do Código de Processo
Penal de 1941 é que a doutrina começou a tratar a matéria de forma sistemática:
162
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 79.
72
À parte das críticas, procedentes ou não, às medidas de urgência, os autores
do processo penal de antanho, embora conscientes da nota diferenciadora
de determinadas medidas urgentes em face de outras não-urgentes, ou delas
entre si, não trouxeram contribuição definitiva para a sua sistematização,
que acabou por vir aparentemente por influência de dois fatores: o primeiro
deles, o fato do Código de Processo Penal de 1941 ter tratado no mesmo
título IX, do livro I, de diversas formas de prisão e de liberdade vinculada e,
no capítulo VI, do título VI, do livro I, que denominou de medidas
assecuratórias, agrupando o que lhe parecia semelhante; o segundo fator, o
onipresente influxo da doutrina processual civil, já na época mais avançada
a respeito desse e de outros temas do processo.163
João Gualberto Garcez Ramos observa, nos escritos de João Mendes de
Almeida Júnior, os primeiros traços sobre as medidas de caráter cautelar no Processo Penal
Brasileiro. Relacionam-se, justamente, em relação à prisão preventiva:
O delito supõe o delinqüente. O espírito do juiz, frente ao fato do delito,
passa por todos os estados da mente: em primeiro lugar, a ignorância; em
segundo, a dúvida; em terceiro, a suspeita; em quarto, a opinião; em quinto,
a certeza. A queixa, a denúncia e o corpo delito transformam a ignorância
em dúvida; o flagrante delito, a confissão extrajudicial ou os depoimentos
de duas testemunhas transformam a dúvida em suspeita; a reiteração
judicial dos depoimentos, a confissão judicial e outros veementes indícios
transformam a suspeita em opinião; a prova plena transforma a opinião em
certeza. Enquanto o estado de dúvida permanece, o juiz está indeciso, não se
manifesta; mas no momento em que surge a suspeita, há uma adesão do
espírito, para colocar o acusado em estado de prevenção. E, se esta suspeita
produz o assentimento da mente, há uma opinião, manifesta-se um grau
mais forte na decisão, pelo qual o juiz se inclina a crer ou não na acusação.
A prisão preventiva não é uma pena, porque a pena não pode ser imposta
sem certeza do delito e de quem seja o delinqüente, isto é, sem uma decisão
final, que produza firmeza do juízo. Por isso, no processo criminal há actos
decisórios de prevenção, de acusação e de julgamento.164
163
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, 38.
164
ALMEIDA JUNIOR, João de Almeida. O processo criminal brasileiro. Rio de Janeiro: Laemmert, 1901,
v. 1. p. 338, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 1998, p. 370.
73
O marco inicial de um tratamento sistemático do procedimento cautelar
pode ser identificado na obra de José Frederico Marques, datada de 1965, que, pela primeira
vez fala em processo penal cautelar.
Na obra Elementos de Direito Processual Penal, José Frederico Marques
dedica o capítulo XXVI, do volume IV, ao estudo do Processo Penal Cautelar, denominando
o parágrafo 156 da obra, de Teoria Geral das Medidas Cautelares165, afirmando que elas
possuem caráter instrumental, constituindo meio e modo de se garantir o resultado da tutela
jurisdicional, destinada a impedir que a demora do processo torne inócua a prestação
jurisdicional buscada pelas partes.
José Frederico Marques aponta a finalidade das medidas cautelares no
processo:
Com as providências cautelares – como salienta VITTORIO DENTI –buscase garantir ao processo a consecução integral de seu escopo, para que os
meios dos quais deve servir-se ou a situação sobre a qual irá incidir, se
modifiquem ou se tornem inúteis antes ou durante o desenrolar do
procedimento, frustrando-se, em conseqüência, a atuação da vontade da lei
material. Com a medida cautelar antecipa-se, no todo ou em parte, a
situação jurídica que advirá do resultado final do processo; e, com isso,
afasta-se o periculum in mora, neutralizando-se os efeitos lesivos que dele
poderiam surgir e garante-se, dentro do possível, a realização efetiva da
tutela jurisdicional do Estado.166
No processo penal, a medida cautelar, em regra não pode antecipar o
resultado jurídico, pois pode significar a antecipação da pena, o que é totalmente contrário aos
165
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 31-
37.
166
DENTI, Vittorio. Sul concetto di funcione cautelare. Studi Giuridici. In: Memória de Pietro Capiessoni,
1948, p. 24, apud MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller,
1997, p. 31.
74
princípios de um Estado Democrático de Direito.
3.2 Características da Tutela Cautelar
As principais características das providências cautelares apontadas por José
Frederico Marques são a provisoriedade, a interinidade, acessoriedade e a instrumentalidade.
João Gualberto167, todavia, no estudo sobre o tema, afirma que a tutela cautelar é informada
pelas seguintes características: urgência, sumariedade procidemental, sumariedade material,
aparência, temporariedade, incapacidade de gerar coisa julgada material, referibilidade e a
instrumentalidade, demonstrando cada uma das características.
A urgência significa dizer que a tutela cautelar está preordenada para
conjurar, imediatamente, uma situação de perigo atual e concreto para um direito168,
interessando ao processo penal somente a situação de perigo concreto, assim definido por
Heleno Cláudio Fragoso:
[...] reconhece a doutrina moderna que o perigo é constituído por um
elemento objetivo e um elemento subjetivo. Objetivamente constitui perigo o
conjunto das circunstâncias e condições em que se verifica o fato de que
pode surgir o dano; subjetivamente, integra-o o juízo sobre o perigo, ou
seja, o juízo estabelece, com base na experiência, a probabilidade de
superveniência de um dano. O perigo é, assim, uma realidade, uma
abstração. O juízo deve ser feito de acordo com a chamada prognose
póstuma, avaliando o sujeito ante as possibilidades do resultado temido. É
167
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 86-95.
168
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela cautelar e tutela antecipatória. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1992. p. 17-21 e 75-79, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal
brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 86.
75
evidente que o juízo deve ser feito pelo julgador, provindo da experiência
comum e válida para todos.169
A sumariedade da tutela cautelar, é a essência da tutela cautelare se
subdivide em procedimental e material.
A importância da sumariedade procidemental na tutela cautelar é atestada
pelas palavras de João Gualberto Garcez Ramos:
A tutela cautelar, porque voltada à tarefa de eliminar, o tão rapidamente
possível a situações de perigo real, está sempre inserida em procedimento
formalmente sumário. De fato, o procedimento construído para a inserção
do provimento cautelar é sumário, o que atende a um imperativo de lógica
pragmática.170
Há que se atentar para o fato de que nem todo o processo sumário é
cautelar171. Além disto, também é preciso observar que a sumariedade não significa a mera
redução de prazos ou, então, a simplificação dos termos, ou, ainda, a adoção da oralidade,
entre outras providências. A sumariedade procedimental se caracteriza in casu pela
atenuação efetiva ou postergação do direito de defesa por parte do requerido. Essa operação
é legítima, sobretudo se proporcional ao caso penal e às penas do crime que se trate172.
Na sumariedade material ocorre a redução da amplitude de defesa, embora
169
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: a nova parte geral. 10. ed. rev. por Fernando Fragoso.
Rio de Janeiro, 1986. p. 173-174, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo
penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 86-87.
170
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 88.
171
“Haverá procedimentos sumários outros que, nem por isso, tornam-se cautelares, como é o caso do mandado
de segurança, exemplo este também fornecido por Luiz Guilherme Marinoni”. RAMOS, João Gualberto Garcez.
A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 88.
172
RAMOS, op. cit., p. 88.
76
seja possível pressupor a aceleração e a agilização do procedimento. A sumariedade material
é inserida no campo da atividade instrutória, decisória ou cognitiva, podendo ser tanto a
cognição no plano vertical quanto no plano horizontal. Luiz Guilherme Marinoni explica que
a cognição pode ser referida a dois planos distintos: horizontal, que diz
respeito à amplitude de conhecimento do juiz; e, vertical, pertinente à
profundidade da cognição do magistrado acerca da afirmação dos fatos.
No plano horizontal, portanto, a cognição vincula-se à lide carneluttiana, ou
ao conflito de interesses. O processo terá cognição plena ou parcial,
segundo se permita, ou não, o conhecimento de todo o conflito de interesses.
[...] A cognição no plano vertical diz respeito à intensidade de relação entre
o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, ou seja, ao grau de cognição
do objeto. Nessa perspectiva, a cognição pode ser exauriante, sumária e
superficial.173
A sumarização no sentido material consiste na redução do campo de
cognição do juiz, seja no plano horizontal, seja no vertical.
A aparência, no procedimento cautelar, significa que a tutela cautelar não
necessita de certeza, contentando-se apenas com a aparência.
Luiz Roberto Cicogna Faggioni, ao se referir à aparência, declara que
Havendo a soma da sumariedade de procedimento e superficialidade de
conhecimento, tudo em benefício da máxima agilidade razoável, o efeito é
que a causa só pode ser decidida através do critério de similitude. Havendo
aparência do direito material e do risco a ele, o provimento cautelar é o de
ser prestado; do contrário não. Basta, portanto, que haja similitude.174
173
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela cautelar e tutela antecipatória. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1992. p. 21-22, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro.
Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 89.
174
FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível
e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 128,
jan./mar. 2003.
77
Para João Gualberto Garcez Ramos a aparência é o que a doutrina
convencionou chamar de fumus bonis iuris.
A importância da temporariedade pode ser medida pelas palavras de José
Frederico Marques ao afirmar que a medida cautelar tem caráter provisório e interino, uma
vez que é de duração limitada: os efeitos da medida cautelar persistem enquanto não emana
do Judiciário a providência jurisdicional que ela procura garantir e tutelar175.
Embora a assertiva de José Frederico Marques faça uso do termo
“provisório”, João Gualberto Garcez Ramos vê distinção entre temporariedade e
provisoriedade. Ele afirma, textualmente, que a temporariedade é traço característico da tutela
cautelar, enquanto que a provisoriedade não é.176
Temporariedade é a característica da tutela cautelar que representa a idéia de
que ela deve durar por certo tempo, ou enquanto permanecer o risco à efetividade do processo
e à sua capacitação plena para obtenção de tutela eficiente do direito material177, ou, ainda,
quando for substituída por medida definitiva178.
No processo penal a demorada duração de uma medida cautelar representa a
imposição de pena sem o respectivo processo, fato vedado em face ao princípio processo
legal179.
A tutela cautelar tem a característica de não gerar coisa julgada material.
Isto significa dizer que a tutela emanada de procedimento cautelar não é definitiva, já que,
deixando de existir o mal prenunciado, deve deixar de existir a cautela180.
Alcides Alberto Munhoz da Cunha esclarece que
175
MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 32.
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 90.
177
FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível
e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 128,
jan./mar. 2003.
178
RAMOS, op. cit., p. 91.
179
FAGGIONI, op. cit., p. 128.
180
Ibid., p. 129.
176
78
a lide cautelar pode existir sem que a pretensão principal ou ideal de situe
no estado de lide. Embora conexas, pelo vínculo de assessoriedade, tais
pretensões têm objetos diferentes [...]
O objeto da lide cautelar será sempre o bem jurídico da segurança da
pretensão principal, enquanto se entenda que subsiste o estado de perigo
(periculum) e de idealidade (fumus), em torno da pretensão que se quer
preservar.181
É impossível conceber a idéia de coisa julgada material num juízo cognitivo
formado pela aparência.
A referibilidade é apontada por João Gualberto Garcez Ramos como a
característica mais importante da tutela cautelar e tida como uma das mais úteis ao processo
cautelar penal,
dá a idéia de ligação estrita entre a situação de perigo e a proteção jurídica
que se pede. Há referibilidade no sentido de que a tutela cautelar se refere,
exclusivamente, à situação de perigo que se pretende remediar, não indo
jamais para além, para alcançar e dizer algo sobre a existência ou
inexistência do direito que fundamentou a ação de conhecimento.182
Em conformidade com a definição de Luiz Guilherme Marinoni, a
referibilidade é a nota destintiva entre as tutelas cautelar e antecipatória.
Na tutela cautelar há sempre a referibilidade a um direito acautelado. O
direito referido é que é protegido (assegurado) cautelarmente. Se inexiste
181
CUNHA, Alcidez Alberto Munhoz. A lide no processo civil. Curitiba: Juruá, 1992. p. 121, apud RAMOS,
João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998,
p. 91.
182
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 93.
79
referibilidade, ou direito referido, não há direito acautelado. Ocorre neste
caso, satisfatividade; nunca cautelaridade.183
A assertiva, porém, não pode ser aplicada ao processo penal, uma vez que
há casos em que, embora ocorra a tutela cautelar, o mesmo não acontece com referibilidade.
Nem por isto, contudo, existe a figura da tutela antecipatória, verificando-se um tertus genus,
que se situa entre duas formas de tutela e com nenhuma se identifica184.
No plano processo penal a referibilidade assume importância maior em
razão do princípio constitucional da presunção de inocência, que veda que indivíduo seja
considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, observados,
rigorosamente, os procedimentos processuais previstos, atentando para o princípio do devido
processo legal185.
Mesmo que no presente estudo tenham sido adotadas, pela lógica, as
características da tutela cautelar apontada por João Gualberto Garcez Ramos, há que se
considerar a importância da instrumentalidade. Para José Frederico Marques ela é o meio e o
modo de se garantir a efetividade e providências definitivas que constituem o objeto do
processo principal186.
Ligada à idéia da referibilidade, a instrumentalidade objetiva assegurar que
o provimento almejado para a tutela do direito substancial discutido ocorra e opere com
eficácia, em sua plenitude, ao término dos debates187.
183
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela cautelar e tutela antecipatória. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1992, p. 79, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 1998, p. 93.
184
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 94.
185
Id.
186
MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 32.
187
FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível
e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 129,
jan./mar. 2003.
80
3.3 Requisitos e Fundamentos Gerais das Medidas Cautelares
Tanto as medidas cautelares quanto as ações cautelares previstas no Código
de Processo Penal têm como pressupostos, segundo José Frederico Marques188, a existência
do periculum in mora e o fumus bonis iuris inerentes a todo o procedimento cautelar.
O periculum in mora é apresentado como o pressuposto fundamental do
processo cautelar, na medida que o ato decisório que determina a providência cautelar deve
eliminar o perigo.189
A necessidade do periculum in mora é acentuada por José Frederico
Marques:
Se a providência acauteladora não se torna imprescindível, porquanto os
efeitos dilatórios do processo não colocam em perigo a proteção ao bem
jurídico, que nele se procura assegurar, não há o periculum in mora e a
medida cautelar não deve ser concedida.190
A presença do fumus boni iuris é representada pela probabilidade de
resultado favorável do processo principal àquele a quem a medida acautelatória irá
beneficiar191.
Aury Celso Lima Lopes Júnior avalia como inaplicável o pressuposto da
tutela cautelar importada do processo civil, consistente no fumus boni iuris, ao processo
cautelar penal, quando se tratar de privação de liberdade. Ele afirma que a aplicação se
188
MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 33.
Id.
190
Id.
191
Id.
189
81
configura numa impropriedade jurídica:
Como se pode afirmar que um delito é uma ‘fumaça de bom direito’? No
processo penal, o requisito para a decretação de uma medida coercitiva não
é a probabilidade da existência do direito de acusação alegado. O objeto do
processo, nesse momento, não é um direito, mas um delito. Logo, o correto é
afirmar que o requisito para a decretação de uma medida cautelar em
matéria penal é a existência do fumus delicti, ou seja, a probabilidade da
ocorrência de um delito, mas, nunca de um direito.192
O mesmo Aury Celso Lima Lopes Júnior destaca que a confusão vai além
da simples questão terminológica, pois, leva a uma equivocada valoração do perigo
decorrente da demora, em se tratando de tutela cautelar penal, já que o perigo apresenta-se
como fundamento e não como requisito das medidas cautelares, e aponta elementos
necessários à existência do fumus delicti ao expor que
o fumus delicti exige a existência de sinais externos, com suporte fático real,
extraídos dos atos de investigação levados a cabo, e que, por meio de um
raciocínio lógico, sério e desapaixonado, permita deduzir com maior ou
menor veemência a comissão de um delito, cuja realização e conseqüências
apresentem como responsável, um sujeito concreto.193
Considerando as cinco hipóteses que dão fundamento à prisão preventiva194,
o presente trabalho atentará, em cada uma delas, para os respectivos pressupostos, que serão
192
LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Fundamento, requisitos e princípios gerais das prisões cautelares.
Revista dos Tribunais, a. 87, n. 748, p. 452, fev. 1998.
193
LOPES JUNIOR, loc. cit..
194
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 129.
82
identificados e analisados de modo mais aprofundado.
3.4 Cautelares do Processo Penal Brasileiro
As medidas e ações cautelares podem ser adotadas tanto contra o status
libertatis da pessoa do acusado (consubstanciadas em variadas formas de prisões processuais)
quanto a favor do status libertatis, representado por medidas, caso, por exemplo, da liberdade
provisória com ou sem fiança, bem como o habeas corpus195, que podem visar a fatos
relacionados com o ato delituoso, cujas providências se concretizam pela busca e apreensão,
por medidas assecuratórias (seqüestro, hipoteca legal e arresto), previstas nos artigos 125, 134
e 136 do Código de Processo Penal.
De semelhante maneira, há medidas cautelares que visam a garantia da
instrução probatória, como é o caso de depoimentos antecipados (artigos 225 e 366, do
CPP(3), bem como o exame de corpo de delito e perícias em geral (artigos 158 e seguintes, do
CPP).
Para José Frederico Marques,
as medidas cautelares, no Direito Processual Penal Brasileiro, ou se
destinam a garantir a indenização do dano advindo do crime ou então,
atuam no campo estritamento da persecutio criminis. Na última hipótese, ou
são providências coercitivas contra o status libertatis do réu, e se destinam
a tutelar o interesse punitivo do Estado consubstanciado na provável
condenação do réu, ou, então, visam a impedir danos à liberdade do réu,
como providências de contracautela, com o escopo de garantir o status
libertatis em face do poder coercitivo-cautelar do Estado.196
195
196
MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 36.
Id.
83
João Gualberto Garcez Ramos, na marcante obra da doutrina processual
penal brasileira, (A Tutela de Urgência no Processo Penal), tratou sobre as medidas de
urgência previstas no Processo Penal Brasileiro, deixando, justificadamente, de tratar sobre a
restituição de coisas apreendidas, tidas, por outros autores, como medidas de caráter cautelar:
José Frederico Marques inclui a restituição das coisas apreendidas entre as
medidas cautelares, com o que obteve apoio de Romeu Pires de Campos Barros.
Entretanto, não haverá qualquer preocupação neste trabalho com a
restituição de coisas apreendidas. Em primeiro lugar, porque essa
restituição é claramente satisfativa e jamais cautelar, já que o legítimo dono
de uma coisa apreendida durante a investigação policial ou durante o
processo penal condenatório, não a tem de volta dada uma situação de
perigo, mas simplesmente porque ela lhe pertence. Inexplicável que os
autores citados, tenham-na classificado como medida cautelar.
Em segundo lugar, porque à restituição de coisas apreendidas não é
essencial o requisito de urgência. A não ser acidentalmente, o bem
apreendido precisa ser, com urgência, devolvido ao legítimo dono.
O presente trabalho se preocupa com a tutela de urgência no processo
penal. Daí porque a restituição de coisas apreendidas não será sequer
objeto de estudo.197
João Gualberto classifica as medidas privativas de liberdade do imputado,
compostas pelas formas de prisões processuais, em prisão preventiva, prisão em flagrante,
prisão decorrente de pronúncia, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão
temporária.
Nas medidas protetivas de liberdade do imputado estão inseridas a
liberdade, independente de fiança; a liberdade vinculada com fiança e, também, a liberdade
197
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 40.
84
vinculada sem fiança.
As medidas instrutórias de urgência, que objetivam garantir o conjunto
probatório a ser analisado pela autoridade judiciária, consistem no inquérito policial, no auto
de prisão em flagrante e na produção antecipada de provas.
Existe, igualmente, a busca e apreensão.
As medidas patrimoniais de urgência, que têm a finalidade de garantir o
princípio da responsabilidade patrimonial, são caracterizadas pelo seqüestro dos proventos de
crime, pela especialização da hipoteca legal e pelos arrestos prévio ou subsidiário de bens
móveis.
A Lei 10.455/2002 acrescentou o parágrafo único, no artigo 69, da lei
9.099/95, estabelecendo uma situação de tutela de urgência, consistente no afastamento
cautelar do autor de violência doméstica, previsão que, embora, representando um avanço em
relação às cautelares do processo penal, recebeu pesadas críticas, pois a cautelar foi vista
como um pena não prevista no ordenamento jurídico e visava garantir a não ocorrência
possível de futuros crimes198, porém a medida justificava-se,visto que
a providência, consistente no afastamento do local de convívio de apontado
autor de infração penal de menor potencial ofensivo, alegadamente
praticada com violência doméstica, destina-se apenas, como qualquer tutela
cautelar, a assegurar, como tradicionalmente se expõe nesta matéria, os
meios e fins de processo em que se busca ou se irá buscar a realização da
pretensão punitiva fundada em alegada prática de uma tal infração penal.199
A Lei 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, inovou ao estabelecer
198
KARAM, Maria Lucia. Juizados especiais criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 227.
199
Id.
85
uma série de providências de natureza cautelar, nos casos de violência doméstica contra a
mulher.
O artigo 20 da Lei Maria da Penha, prevê a possibilidade da prisão
preventiva, o que representa uma inovação no sentido de que a mesma pode ser decretada
mesmo em crimes punidos com detenção, e independentemente das condições pessoais do
agente.
No artigo 22 estão enumeradas as medidas de urgência que obrigam o
agressor.
As medidas que obrigam o agressor, previstas nos incisos I, II e III (“a”, “b”
e “c”), vinculam-se a ação penal, portanto, cautelar de natureza penal, e, em razão de estarem
vinculadas à infração penal, somente podem ser requeridas pelo Ministério Público que é o
titular da ação, enquanto as medidas previstas nos incisos IV e V, são cautelares típicas do
Direito de Família, o que legitima a vítima a requerer as providências.200
O artigo 23, enumera as medidas de urgência que visam a proteção da
ofendida.
Os incisos I e II, são medidas administrativas, podendo ser requerida pela
ofendida enquanto os incisos III e IV, contemplam medidas tipicamente cautelares do Direito
de Família, sendo necessário a assistência de advogado pela requerê-las.
O artigo 24 enumera uma série de medidas cautelares de natureza
patrimonial, portanto extrapenal.
A Lei Maria da Penha atribui competência para processar e julgar os casos
de violência doméstica contra a mulher, aos Juizados Especiais de Violência Domésticas, que
deverão ser criados, e, enquanto tal não ocorrer, será da competência do juízo criminal,
200
LESSA, Marcelo Bastos. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria da Penha” – alguns
comentários.p. 137. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord). Estudo sobre as novas leis de
violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
86
mesmo as providências de natureza cível, como separação de corpos, suspensão de visitas e
ainda as medidas de proteção patrimonial previstas no artigo 24.
As medidas protetivas de urgência, justificam-se, porque
No caso de Direito Penal, em uma visão tradicional, talvez se pudesse
objetar que o objeto da lide é a definição da culpa latu sensu com
conseqüente aplicação da sanção penal, daí porque a prisão preventiva
desponta como nítida medida cautelar penal. Entretanto, inegável que a
proteção de bem jurídico ameaçado é também um dos propósitos do Direito
Penal, donde ser lícito concluir que cautelarmente se pode também na
esfera penal, adotar-se providências capazes de acautelar o bem jurídico
ameaçado – vida, saúde, integridade física, sexual e moral da mulher –
antes ou durante o curso do processo penal.201
As medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, embora
reconhecidamente de caráter cautelar, tem algumas peculiaridades como a satisfatividade,
portanto, não dispõe de caráter temporário, característico das cautelares, com exceção das
medidas de proteção patrimonial previstas no artigo 24, que dependerão da propositura de
ação principal no prazo de trinta dias.202
Importante salientar que as medidas previstas não são as únicas a serem
aplicadas, visto que o rol não é taxativo, podendo o juiz aplicar outras medidas protetivas que
obrigam o agressor como forma de garantir a integral proteção à mulher vítima de violência
doméstica.
A importância das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da
Penha, podem ser medidas pelas palavras de Guilherme de Souza Nucci que afirma que são
201
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica contra a mulher: Lei 11.340/06 análise crítica e
sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 88.
202
LESSA, Marcelo Bastos. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria da Penha” – alguns
comentários. p. 139. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord). Estudo sobre as novas leis de
violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
87
positivas e mereceriam, inclusive, extensão ao processo penal comum, cuja vítima não fosse
somente a mulher.203
203
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 879. Apud DIAS, Maria
Berenice. A lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência familiar
contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 78.
88
4 PRISÕES DE NATUREZA PROCESSUAL NO DIREITO PROCESSUAL PENAL
BRASILEIRO
Como forma de melhor situar o tema objeto do estudo, inicialmente é feita
uma abordagem das demais formas de prisões processuais previstas no ordenamento
processual vigente, visto que, embora apresentem peculariedades comuns a todas as espécies
de prisão, cada qual guarda características próprias.
4.1 Conceito de Prisão
A regra é a liberdade, e as suas exceções representadas pela privação dela,
devem ser devidamente disciplinadas pela carta constitucional e pela legislação, em face do
princípio da reserva legal, o que garante que ninguém será privado de sua liberdade sem que
haja previsão expressa, sob pena da prisão ser declarada ilegal.
A forma clássica de privação de liberdade é representada pela prisão.
Fernando Capez a conceitua, garantindo que é a privação da liberdade de locomoção
determinada por ordem escrita da autoridade competente ou em caso de flagrante delito204.
A conceituação se apresenta como necessária e suficiente, sendo, por isto
204
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 228.
89
mesmo, completa.
A completitude ocorre porque o conceito abrange a privação do direito de ir
e vir, direito consagrado do cidadão, considerado como direito natural garantido pela
Constituição. De igual modo, por contemplar a legalidade da constrição do direito, seja em
flagrante delito, seja por ordem fundamentada da autoridade competente, uma vez que fora
destas situações não é possível decretar a prisão.
A Constituição Federal, no caput do artigo 5º, justamente, sacramenta os
direitos e as garantias fundamentais do cidadão, consagrando a regra geral da liberdade, tendo
a privação dela como medida excepcional, somente possível em caso de flagrante delito ou
por decisão fundamentada da autoridade competente (inciso LXI), respeitado o devido
processo legal (inciso LIV), o contraditório e ampla defesa (inciso LV), a presunção de
inocência (inciso LVII), o direito à liberdade provisória (inciso LXVI) e a proibição de prisão
por dívida, salvo do infiel depositário e do devedor voluntário e inescusável de alimentos
(LXVIII).
Fernando Capez classifica a reclusão em prisão pena ou prisão penal decorrente da sentença penal condenatória (transitado em julgado); prisão processual ou
provisória – no curso do processo, podendo ser em flagrante delito; prisão preventiva, prisão
resultante de sentença de pronúncia; prisão temporária; prisão de sentença penal condenatória
que não transitou em julgado; prisão cível - atingindo o depositário infiel ou o alimentante;
prisão disciplinar – somente cabível a militares e em crimes militares. Também relaciona as
extintas prisões administrativas e de averiguação205.
Este estudo tem por objeto a prisão preventiva, revestida de todos os
elementos do processo cautelar. Para se alcançar maior aprofundamento do assunto, será feita
abordagem das demais prisões processuais, igualmente de natureza cautelar.
205
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 228-229.
90
4.2 Prisão em Flagrante
Autorizada pelo inciso LXI, do artigo 5º, da Constituição, a prisão em
flagrante pode ser feita por qualquer cidadão, ou, por autoridade policial, surpreendendo o
indivíduo no instante da infração (art. 301).
Conforme afirmação de José Frederico Marques, citada por João Gualberto
Ramos Garcez, a prisão em flagrante é destacado aspecto de medida cautelar. Com a
captura[...] do réu [...] garantida fica a imediata colheita de provas e elementos de convicção
da prática do crime206.
No mesmo sentido se manifesta Guilherme de Souza Nucci, ao afirmar que
a prisão em flagrante é a modalidade de prisão cautelar, de natureza administrativa,
realizada no instante em que se desenvolve ou termina de se concluir a infração penal207.
O termo flagrante tem origem no latim, flagrans, flagrantis, que traduz a
idéia de algo que ainda está em chamas.208
O estado de flagrância é aquele em que o sujeito é encontrado praticando o
ato.
Walter P. Acosta209 salienta que, a certeza visual do crime, obriga a
efetivação da prisão sem qualquer escrúpulo,
sendo obrigado a autoridade a fazê-lo e
autorizado a qualquer do povo, caso em que o particular exercerá uma função pública.
A prisão em flagrante é ato administrativo, independentemente de quem a
206
MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 1965, v. 4, p.
62, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte:
Del Rey, 1998, p. 46.
207
NUCCI, Guilherme de. Código de processo penal comentado. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2005, p. 560.
208
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 419.
209
Id.
91
execute. É medida cautelar de segregação provisória, de natureza processual210, exigindo
assim, o periculum in mora et fumus boni juris, sendo que os requisitos serão analisados
primeiramente pela autoridade policial. O periculum in mora, traduzido no processo penal
como o periculum libertatis, estará preenchido caso esteja o agente cometendo violação, e
efetivada a prisão, lavrado o respectivo termo, será analisado com maior profundidade o
segundo requisito, qual seja, o fumus boni juris, presente caso o fato cometido for típico, e
dentro daqueles que se exige a manutenção do infrator preso, obedecidos todos os
procedimentos previstos no Código de Processo Penal, sob pena de nulidade do flagrante.
A justificativa da prisão em flagrante, embora medida de natureza
processual, justifica-se primeiramente em razão da reação social imediata à prática de uma
infração, e, igualmente, por ser meio de colheita de provas211 revestida de robustez, dado às
circunstâncias do crime estarem na situação em que se encontravam no momento da
perpetuação do fato.
A natureza jurídica da manutenção da prisão em flagrante, assume natureza
cautelar, visto que vinculada a um criterioso juízo de necessidade.212
Ada Pellegrini Grinover, Geraldo Batista Siqueira, Weber Martins Batista,
Paulo Lúcio Nogueira, Antônio Magalhães Gomes Filho, Sérgio de Oliveira Médici e
Fernando da Costa Tourinho Filho, de acordo com estudos de João Gualberto Garcez
Ramos213, também interpretam como cautelar a decisão que, após o controle jurisdicional de
sua legalidade formal e substancial resultar positivo, manter a prisão em flagrante.
210
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 560.
211
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 267.
212
JARDIM, Afrânio da Silva. Visão sistemática da prisão provisória no Código de Processo Penal. In:
JARDIM, Afrânio da Silva. Direito processual penal: estudos e pareceres. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995,
p. 366-367, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 1998, p. 48.
213
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 48-49.
92
O Código de Processo Penal define a situação de flagrante, no momento do
crime (art. 302, I), denominado de flagrante próprio, ou logo após o cometimento do crime
(art. 302, II). O flagrante impróprio consiste na perseguição do infrator pela autoridade, pelo
ofendido ou por qualquer pessoa (art. 302, III). O flagrante presumido ocorre quando o autor
da infração é encontrado com instrumentos, armas, objetos ou papéis que indiquem ser ele o
autor da infração (art. 302, IV).
A doutrina italiana, de acordo com João Gualberto Garcez Ramos, classifica
a prisão em flagrante de forma diferenciada da doutrina brasileira:
Entre os autores italianos, é comum definição do arresto in flagranza
(prisão em flagrante) como algo menos que uma medida cautelar. Arturo
Santoro, por exemplo, define a prisão realizada pela polícia como uma
medida cautelar provisória, enquanto a manutenção do imputado no
cárcere, após sua prisão pela polícia, seria uma medida cautelar
propriamente dita.214
Franco Cordero, por sua vez, aponta a prisão em flagrante e o fermo di
indiziato in reato (instituto equivalente à prisão temporária) como uma subcautela:
Arresto in flagranza e fermo [...] preludono a eventuali misure coattive sula
persona, delle queli garatiscono l’esecuzione: sono dunque cautele mediate;
ed essendovi svolti poteri non giurisdiconali, hanno effetti labili, misurati a
ore; convalidati o no, decadono, eventualmente sommersi nella misura
disposta dal giudice a richiesta del pubblico ministero.215
214
SANTORO, Arturo. Manuale de diritto processuale penale. Turim: UFET, 1954, p. 487, apud RAMOS,
João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p.
47.
215
“Prisão em flagrante e fermo preludiam eventuais medidas coativas sobre a pessoa, cujas execuções
garantem: são, portanto, cautelas mediatas; sendo produtos de poderes não-juridicionais, tem efeitos frágeis,
limitados a horas; convalidados ou não, decaem, eventualmente submersos na medida determinada pelo Juiz a
requerimento do Ministério Público”. (Tradução livre). CORDERO, Franco. Procedura penale. Milão: Giuffrè,
1991, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 1998, p. 48.
93
A causa da diferenciação é apontada por João Gualberto Garcez Ramos:
A explicação desse entendimento é que na Itália, a prisão em flagrante não
se prolonga no tempo. Para que o imputado continue encarcerado, muda o
título da prisão. Malgrado essa diferença normativa, outro autor italiano,
Leonardo Filippi, concede ao arresto in flagranza, a natureza de medida
cautelar.216
No Direito Alemão, a prisão em flagrante denominada Festnahme auf
friescher Tat, embora a similitude com o instituto brasileiro, é limitada de acordo com estudos
de Sidnei Agostinho Beneti, às hipóteses de o agente ser surpreendido a praticar o crime ou
ser perseguido em seguida a ele e de haver suspeita de fuga ou não se poder constatar
imediatamente sua identidade217.
O procedimento alemão tem a previsão de espécie de prisão em flagrante,
autorizada, sem ordem judicial à polícia e ao ministério público,
no caso de perigo de retardamento, se presentes os pressupostos para a
ordem de prisão ou ordem de internamento. Não se trata, nesse caso, de
prisão auf frischer Tat, pois o agente não terá sido preso cometendo ou
acabando de cometer a infração penal. O dispositivo abre caminho à
atuação dos órgãos de persecução penal, superando a amplitude da lei
brasileira, carente, esta, de dispositivo semelhante, especialmente para, com
o oferecimento do caminho legal, ensejar controle mais eficiente das já
mencionadas ‘prisões para a averiguação’.218
216
FILIPPI, Leonardo. L’arresto in flagranza nell’evolucione normativa. Milão: Giuffrè, 1990, p. 54-64,
apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte:
Del Rey, 1998, p. 48.
217
BENETI, Sidnei Agostinho. Prisão provisória: direito alemão e brasileiro. Revista dos Tribunais, a. 80, p.
269, jul. 1991.
218
Id.
94
Em qualquer dos casos, a prisão sem ordem judicial, em flagrante ou a
forma acima exposta, terá a duração de um dia, prazo máximo para o preso ser apresentado ao
juiz, que analisará os motivos da prisão, e constatada sua ilegalidade, colocará imediatamente
em liberdade, podendo o fato também acontecer de outra forma, por requerimento do
Ministério Público ou de ofício, expedindo ordem de prisão ou de internamento219.
O sistema alemão oferece melhor garantia ao cidadão, já que no sistema
brasileiro, somente com base no auto de prisão em flagrante, a duração da prisão poderá se
estender por prazo maior.
A prisão em flagrante desdobra-se em flagrante próprio, flagrante impróprio
e flagrante presumido.
O flagrante próprio, real ou flagrante propriamente dito é o que se realiza no
ato da infração, quando o crime está sendo cometido, como o caso de quem é apanhado
agredindo a vítima ou subtraindo-lhe bem, ou, ainda, com a característica de imediatidade,
com o autor sendo encontrado quando “está cometendo a infração penal” (art. 302, I, CPP),
ou “acaba de cometê-la”. (art. 302, II, CPP).
O flagrante impróprio pode ser definido igualmente como “quase flagrante”.
Ocorre quando o infrator é perseguido “logo após” cometer o fato. A expressão “logo após”,
de acordo com Fernando Capez, compreende todo o espaço de tempo necessário para a
polícia chegar ao local, colher as provas elucidadoras da ocorrência do delito e dar início à
perseguição do autor220.
O flagrante impróprio ou quase flagrante ocorre, de acordo com
ensinamento de Walter P. Acosta, quando
219
BENETI, Sidnei Agostinho. Prisão provisória: direito alemão e brasileiro. Revista dos Tribunais, a. 80, p.
269, jul. 1991.
220
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 234.
95
[...] o agente é perseguido, logo após o delito, pela autoridade, pelo
ofendido, ou por qualquer pessoa, em situação que se faça presumir ser o
autor da infração. [...] Exige-se para a caracterização deste tipo de
flagrância, que o autor do crime seja perseguido sem solução de
continuidade (não importa por quanto tempo) desde o momento do fato até o
da prisão. Em acórdão (in’Arquivo Judiciário’ vol. 13. p. 272) o Des.
CESÁRIO PEREIRA afirma:’o que a lei vai requerer, de um modo geral, é
uma acusação viva, oral, movida contra o delinqüente desde o momento do
crime e em seu seguimento, no percurso da fuga’.221
Não há qualquer fundamento no mito popular que, para não existir o estado
de flagrância, basta passarem 24 horas, podendo, assim, ocorrer a prisão em flagrante após
este interregno temporal. Para que se caracterize o estado de flagrância, é obrigatoriamente
necessária a perseguição ininterrupta do acusado. Há a possibilidade de deixar de existir o
estado de flagrância antes deste espaço de tempo. Acontece, por exemplo, quando não ocorre
perseguição policial ou qualquer movimento da autoridade policial neste sentido.
O flagrante presumido ocorre quando, em razão das circunstâncias, o
infrator é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam
presumir ser ele o autor da infração (art. 302, IV, CPP), não sendo necessária, neste caso, a
imediatidade222, bastando, para tanto, que ele seja encontrado com instrumentos, armas,
objetos ou papéis que o liguem de maneira inquestionável ao crime.
A locução “logo depois”, expressada na redação do inciso IV do artigo 302
do Código de Processo Penal, trata de uma situação de imediatidade, que não comporta mais
de algumas horas para findar-se, ficando ao arbítrio, inicialmente da autoridade policial e
posteriormente à autoridade judiciária definir a situação de flagrância.223
221
ACOSTA, Walter P. O processo penal: teoria – pratica – jurisprudências – organogramas. 18. ed. Rio de
Janeiro: Editora do Autor, 1989, p. 37.
222
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 267.
223
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 4. ed. rev. atual e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 664.
96
Walter P. Acosta, entendendo que a expressão “logo depois” não fica
circunscrita ao sentido literal, admite prazo compatível à circunstância de cada caso224.
Em todos as hipóteses de prisão em flagrante, caso a natureza da infração e
as condições do infrator facultarem a liberdade provisória, com ou sem fiança, o infrator
deverá ser imediatamente posto em liberdade.
4.3 A Prisão Decorrente de Pronúncia
A prisão decorrente de sentença de pronúncia está prevista no §1º do artigo
408 do Código de Processo Penal, quando o juiz, após se convencer da existência do crime e
de indícios de que o réu seja o seu autor, recomendá-lo-á prisão em que se achar, ou expedirá
as ordens necessárias para a sua captura.225
A pronúncia é definida por Walter P. Acosta como
uma apreciação preliminar da prova, feita pelo juiz presidente, para
proporcionar ao júri o julgamento final. Efetiva-se por meio de uma
sentença, baseada num elemento concreto – a realidade material do crime –
e numa suposição fundada sobre seu autor. Mais do que uma sentença é o
epílogo de uma fase processual, do qual a pronúncia é o resultado positivo,
enquanto as outras decisões que, então, podem ser proferidas (a
impronúncia, a absolvição in limine e a desclassificação) são os resultados
negativos.226
224
ACOSTA, Walter P. O processo penal: teoria – prática – jurisprudências – organogramas. 18. ed. Rio de
Janeiro: Editora do Autor, 1989, p. 38.
225
BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Código de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004a. Art. 408, §1º.
226
ACOSTA, ob. cit., p. 85.
97
Existe divisão doutrinária sobre a natureza jurídica da prisão decorrente de
pronúncia. De acordo com estudos de João Gualberto Garcez Ramos,227 defendem a natureza
cautelar desta forma de prisão, José Frederico Marques, Júlio Fabbrini Mirabete e Antônio
Magalhães Gomes Filho. Sintetizada, na afirmação de José Frederico Marques,
A prisão em virtude de pronúncia também se filia a prisão cautelar [...]. No
entanto, sua duração é permitida num espaço de tempo bem dilatado pelas
normas processuais em vigor, sendo que antigamente, quando o assunto
vinha focalizado, de modo imediato e direto, por mandamentos
constitucionais, o próprio texto de tais normas admitia a legalidade da
permanência sob custódia quando houvesse culpa formada.
A sentença penal de pronúncia – como todas as decisões cautelares -, se
assenta no fumus bonis iuris. Por ser provável a condenação do indiciado, é
que o juiz pronuncia a sentença.
[...] Mas a pronúncia não resulta da apreciação sumária e de plano, com
base em elementos muitas vezes até extrajudiciais (como ocorre, v. gratia,
na prisão preventiva), e sim, de todo um procedimento especial para o
exame da imputação contida na denúncia, e que se denomina de formação
de culpa, ou de instrução preliminar [...].
Essa a razão pela qual o réu pode ficar legitimamente detido, embora não
haja, ainda, sentença condenatória que o declare infrator da lei penal.228
Em sentido contrário, a corrente à qual se filiam Vicente Greco Filho,
Romeu Pires de Campos Barros, Weber Martins Batista, Hermínio Alberto Marques Porto,
Afrânio Silva Jardim e Fernando da Costa Tourinho Filho, não dá à prisão decorrente de
sentença de pronúncia a natureza cautelar, uma vez que a prisão pode ser uma conseqüência
da pronúncia, mas não exclusivamente; para ser legítima, é mister que com ela ocorram
227
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 50-51.
228
MARQUES, Jose Frederico. Estudos de direito processual penal: Faculdade Paulista de Direito. São Paulo:
Saraiva, 1958, v. 2, p. 113, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal
brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 50.
98
quaisquer dos requisitos necessários à decretação da prisão preventiva.229
Como regra, há a possibilidade da decretação da prisão por pronúncia, mas
deve ser reservada para casos extremamente necessários.
4.4 Prisão Decorrente de Sentença Penal Condenatória Recorrível
Interpretando-se o artigo 594 do Código de Processo Penal, pode-se
observar, a princípio, a obrigatoriedade do réu, que não for primário, ou tiver bons
antecedentes, e, ainda, se o crime não for passível de fiança, recolher-se à prisão para usufruir
do direito subjetivo de apelar.
Novamente não se encontra unidade doutrinária sobre a natureza jurídica da
prisão decorrente de sentença penal recorrível. Parcela da doutrina sustenta que somente a
prisão determinada na sentença penal condenatória, como condição para interposição do
recurso do réu primário e com bons antecedentes230 é que teria natureza cautelar. Outra
corrente, contudo, sustenta que a prisão decorrente da condenação é, sempre, cautelar.231
As duas teses podem ser sintetizadas na exposição do professor Luiz Flávio
Gomes:
229
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 51-52.
230
. A idéia pode ser sintetizada na expressão de Julio Fabbrini Mirabete: “[...] não obstante o reconhecimento da
primariedade e dos bons antecedentes do réu condenado, pode o juiz negar a liberdade provisória desde que
demonstre base segura para tal decisão, como reconhecendo que está caracterizada v.g., a periculosidade do
agente e evidenciadas as graves conseqüências do crime [...]ou que exista qualquer das hipóteses que autorizem a
decretação da prisão preventiva.” (RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal
brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 54-55.)
231
“Já Rogério Lauria Tucci, Leonidas Ribeiro Scholz, Odone Sanguiné e Jose Antonio Paganella Boschi,
sustentam que a prisão decorrente da condenação é sempre cautelar, segundo esse entendimento, quando está
invariavelmente submetida à ocorrência de qualquer das hipóteses autorizadoras da prisão preventiva” (RAMOS,
João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p.
55).
99
No nosso livro Direito de Apelar em Liberdade (2 ed. Revista dos Tribunais.
1997. p.34 e ss), sustentávamos basicamente duas grandes teses: a primeira
no sentido de que a prisão prevista no art. 594 do CPP (‘o réu não poderá
apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e
de bons antecedentes, assim reconhecidos na sentença condenatória, ou
condenado por crime de que se livre solto’) possui natureza cautelar – logo,
somente quando presentes os requisitos do art. 312 é que se justifica o
encarceramento provisório do acusado; a segunda, mais ousada, no sentido
de que devemos definitivamente separar prisão cautelar do direito de
apelar. A conseqüência natural dessa última postura consiste na perda da
eficácia do art. 594, pois a apelação seria direito constitucional
impostergável, enquanto a prisão será decretada, quando o caso tiver
fundamento no citado art. 312.
A primeira tese é amplamente aceita nos tribunais (v. direito de apelar, op
cit. p. 235 e ss). A segunda, de fundamental relevância e de efeito prático
incomensurável, agora foi reconhecido, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro,
v.u., j. de18.02.1997.) 232
Na citada decisão, o Superior Tribunal de Justiça deu provimento a recurso
de habeas corpus para determinar o processamento e julgamento de apelação,
independentemente de prisão do réu condenado, decisão fundamentada no princípio do devido
processo legal (art. 5º, LIV, CF), princípio do contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes (art. 5º, LV in fine, CF), além do princípio da presunção de inocência
(art. 5º, LVII, CF), conforme é possível observar na ementa da decisão:
RHC – Processual penal – Sentença condenatória – Réu foragido –
Apelação – Processamento – Devido processo legal – Presunção de
inocência – Cautelas processuais penais. O princípio da presunção de
inocência, hoje, está literalmente consagrado na Constituição da República
(art. 5º, LVII). Não pode haver, assim, antes deste termo final, cumprimento
da sanção penal. As cautelas processuais buscam, no correr do processo,
prevenir o interesse público. A Carta Política, outrossim, registra o devido
processo legal: compreende o ‘contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes’. Não se pode condicionar o exercício de um direito
constitucional – ampla defesa e duplo grau de jurisdição – ao cumprimento
232
GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processual penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999,
p. 243.
100
da cautela processual. Impossibilidade de não receber a apelação, ou
declará-la deserta porque o réu está foragido. Releitura do art. 594 do CPP,
face à Constituição. Processe o recurso, sem sacrifício do mandado de
prisão.233
É preciso atentar para o fato de que o decreto prisional foi mantido, de
acordo com o voto do relator234, por ser aceitável à decretação da prisão preventiva do
acusado, não em razão da disposição do artigo 594 do CPP.
Luiz Flávio Gomes235 afirma que a prisão cautelar pode ser decretada em
qualquer fase do processo, como forma de garantir o resultado, presentes os requisitos e
fundamentos necessários a sua decretação, porém, não pode ser imposta como condição, para
que o réu exerça um direito subjetivo, consistente no duplo grau de jurisdição, expressamente
previsto na Constituição, até por que, é inerente ao sistema o recurso ser recebido no efeito
suspensivo.236
De acordo com estudos de João Gualberto Garcez Ramos, outrora, logo
após, e, principalmente anteriormente à Carta Constitucional de 1988, havia certa
unanimidade em considerar legítima esta espécie de prisão, bem como aceitar o recebimento
da apelação no efeito suspensivo, sem que se suspendessem os principais efeitos da sentença,
e aponta como a mais coerente a solução proposta por Afrânio da Silva Jardim, que frisa que
233
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RHC 6.110. Sexta Turma. Relator: Min. Vicente Cernicchiaro.
Diário da Justiça, 18 fev. 1997, apud GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processual penal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 243-244.
234
“Não se esta discutindo sobre a eventual conveniência ou não da prisão preventiva do acusado, perfeitamente
cabível nos estritos casos previstos na lei processual.” (extraído do voto do relator SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA. RHC 6.110. Sexta Turma. Relator: Min. Vicente Cernicchiaro. Diário da Justiça, 18 fev. 1997, apud
GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processual penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999,
p. 243-244)
235
GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processual penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999, p. 247.
236
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 53.
101
a) a prisão em decorrência de sentença penal condenatória recorrível não
apresenta características essenciais às medidas cautelares;
b) tal prisão, sendo efeito da sentença penal condenatória que aprecia o
mérito da pretensão punitiva, tem a indisfarçável natureza de tutela
satisfativa, ainda que submetida à condição resolutiva.237
Luiz Grandineti Castanho de Carvalho238 traça questionamento, sem contar
com a flagrante quebra do princípio da presunção de inocência, considerando o direito de
recorrer uma faculdade da parte, que, se ela apelar, não haverá a reformatio in pejus, que
busca, exatamente, preservar a possibilidade do condenado recorrer sem qualquer tipo de fator
inibitório. Sendo assim, a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível seria
antinomia jurídica inaceitável, além de contrariar o princípio da fundamentação da prisão
contida no inciso LXI, artigo 5 º da Constituição, já que esta espécie de prisão, de acordo com
o artigo 594, não exige qualquer fundamentação, significando procedimento inconstitucional.
Não há lugar, segundo o autor retro citado, para interpretações restritivas
aos princípios constitucionais:
Como dissemos, são respeitáveis os entendimentos contrários. Não se pode,
contudo, reduzir o significado do princípio constitucional à sua origem
histórica, pois isto seria coatar a evolução. Se todo princípio ficasse preso à
sua origem, o devido processo legal, por exemplo, não poderia nunca ter a
dimensão que a jurisprudência alemã e norte-americana lhe têm dado.
Tampouco, é permitido restringir a disposição constitucional quando o
constituinte não previu qualquer restrição. Como assinalou o professor
Weber, a liberdade é um indivíduo natural e as normas que o restringem são
excepcionais, devendo ser interpretadas restritivamente – as restrições, não
o princípio constitucional.239
237
JARDIM, Afrânio da Silva. Visão sistemática da prisão provisória no Código de Processo Penal. In: Direito
processual penal: estudos e pareceres. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 353-388, apud RAMOS, João
Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 56.
238
CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição. Rio de
Janeiro: Forense, 1992, p. 72.
239
Ibid., p. 76-77.
102
A prisão decorrente de sentença condenatória somente poderia ser executada
quando do trânsito em julgado da sentença, sob pena de violação do princípio da presunção de
inocência.
Não obstante, a respeito da previsão expressa na Carta Maior, firmando o
princípio da presunção de inocência, a resposta da jurisprudência inclinou-se no sentido de
que todas as formas de prisão provisória240 se coadunam com o texto constitucional, levando a
doutrina a se ajustar à produção jurisprudencial, dando às prisões provisórias idéia de
cautelaridade como forma de justificar a legitimidade delas. Luiz Roberto Cigogna Faggioni
mantém firme a posição de que o §2º do artigo 408 e o artigo 594 do Código de Processo
Penal não têm finalidade cautelar, esposando entendimento ainda no sentido de que a prisão
decorrente de sentença penal condenatória recorrível não assume o caráter de execução
provisória241.
A título de conclusão, ele expõe que
III) A prisão que seja decretada no momento da prolação da sentença
condenatória ou na ocasião em que for proferida a decisão de pronúncia
pode ou não ter finalidade e natureza cautelares. Mas, certo é que a
determinação de prisão nesses momentos processuais não há de ser
decorrência pura e simples da edição de tais atos decisórios, mas sim, tutela
prestada à efetividade do processo à vista de necessidade cautelar, para
cuja determinação não basta, como critério, a simples presença de maus
antecedentes ou reincidência, pois que essas circunstâncias não são
isoladamente elementos hábeis a tanto.242
240
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Sumula 9. “A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende
a garantia constitucional da presunção de inocência”.
241
FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível
e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 128,
jan./mar. 2003, p. 145-148.
242
Ibid., p. 149.
103
De regra, a sentença mantém a prisão de quem estiver preso, e garante-se a
quem estiver em liberdade, o direito de apelar em liberdade, visto que até esta fase processual,
a legalidade da prisão já ter sido discutida, através dos vários institutos processuais, passiveis
de se atacar a legalidade da prisão.
4.5 Prisão Temporária
A prisão temporária tal como foi implantada no Brasil tem inspiração na
legislação de diversos países. Serviram de base, Portugal, Inglaterra, França, Itália, Espanha,
Argentina, Estados Unidos e Alemanha. Apesar de ter sido instituída há poucos anos (1989),
teve a redação prevista como providência de natureza cautelar, na proposta de reforma do
Código de Processo Penal constante do projeto de lei 1.655/83, com base no anteprojeto
elaborado pelo professor José Frederico Marques em 1970, e arquivado em 1990. Segundo as
explicações do Ministro da Justiça da época, Ibraim Abi-Akel, o objetivo era o de, justamente,
evitar prisões preventivas desnecessárias, visto ser instrumento existente para efetuar a prisão
não decorrente de situação de flagrância243.
A lei 7.960, de 21 de dezembro de 1989, derivada da Medida Provisória n.
11, de 24 de novembro de 1989, instituiu a prisão temporária, também chamada prisão para
investigação. É possível decretá-la quando há a necessidade da investigação policial, quando
o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento
de sua identidade, ou, ainda, quando houver razões fundadas de autoria em crimes, caso de
homicídios simples ou qualificado desde que doloso, seqüestro e cárcere privado, roubo,
243
RIBEIRO, Diaulas Costa. Prisão temporária (Lei 7.960 de 21.12.89) um breve estudo sistemático e
comparado. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 709, p. 272 -275, 1994.
104
extorsão ou extorsão mediante seqüestro, estupro, atentado violento ao pudor, rapto violento,
epidemia com resultado de mortes, envenenamento de água potável ou substância alimentícia
ou medicinal qualificada pela morte, quadrilha ou bando, genocídio, tráfico de drogas e
crimes contra o sistema financeiro.
O pedido de prisão temporária pode ser requerido pela autoridade policial
ou pelo Ministério Público. Será decretado pelo prazo de cinco dias, ou nos casos definidos
como crimes hediondos, de acordo com a lei 8.072, de 11 de setembro de 1990, por 30 (trinta)
dias, sendo prorrogáveis por igual período, conforme o caso, desde que evidenciada a real e
extrema necessidade.
Decorrido o prazo da decretação, o preso será imediatamente posto em
liberdade, independentemente de mandado ou alvará. O não cumprimento imediato da
disposição representa crime de abuso da autoridade que deixou de colocar o preso em
liberdade.
A prisão temporária e a investigação de crimes graves, durante a fase de
inquérito policial, são medidas que podem ser decretadas a qualquer tempo, ou, igualmente,
por razões de necessidade ou de conveniência.
De acordo com a exposição de motivos da lei 7.960, de 21 de dezembro de
1989, o clima de pânico que estabelece a certeza da impunidade que campeia célere na
consciência do povo, formando novos criminosos, exige medidas firmes e decididas, entre as
quais figura a prisão temporária.
A doutrina inclina-se no sentido de considerar a prisão temporária como
medida de natureza cautelar244. A posição pode ser observada na afirmação de Fernando da
Costa Tourinho Filho, ao assegurar que
244
“Nas obras da doutrina do processo penal brasileiro, pesquisadas para o presente estudo, a maior parte das
manifestações foi de natureza cautelar da prisão temporária”. RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de
urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 58.
105
ao lado da prisão em flagrante, da prisão preventiva, da prisão resultante
de pronúncia e da prisão resultante de sentença penal condenatória
recorrível, institui-se, após o advento da liberal Constituição de 1988, outra
modalidade de prisão: a prisão temporária. Como se trata de prisão
decretada antes da sentença penal condenatória, ela se inscreve na
modalidade de ‘prisão cautelar’, mesmo sem o fumus bonis júris e até
mesmo o periculum in mora.245
A natureza jurídica da prisão temporária é questionada por vários autores.
Um deles é Luiz Roberto da Silva Passos, que afirma que a prisão temporária não apresenta,
apenas, natureza cautelar, pois o que norteou o espírito do legislador foi o caráter inibitório
satisfativo que tal encarceramento provoca.246
Maria Lúcia Karan247 manifesta posição no sentido de que a prisão
temporária não apresenta as características fundamentais das medidas cautelares, necessárias
às prisões processuais, porque em regra visa as investigações no inquérito policial, ausente
assim um dos requisitos básicos das medidas cautelares a assessoriedade.
Ao afirmar que, para o deferimento da prisão temporária se faz necessária a
presença de, pelo menos, um dos requisitos da prisão preventiva, previstos no artigo 312 do
Código de Processo Penal, Rui Cascaldi248, embora defendendo a inconstitucionalidade desta
espécie de prisão, atribui natureza cautelar à prisão temporária.
A despeito de outros posicionamentos, João Gualberto Garcez Ramos
mostra firmeza ao afirmar que a natureza jurídica da prisão temporária é eminentemente
cautelar. Justifica a assertiva de forma incisiva:
245
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 390.
246
PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e
jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 42-43.
247
KARAM, Maria Lúcia. Prisão e liberdade processuais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 1, n. 2,
p. 89, abr./jun. 1993.
248
CASCALDI, Rui. Prisão temporária: inconstitucionalidade. Revista dos Tribunais, a. 80, n. 667, p. 259-261,
maio 1991.
106
Essa conclusão é autorizada por um silogismo do tipo aristotélico. Sua
premissa maior: o inquérito policial é uma medida cautelar complexa. Sua
premissa menor: a prisão temporária é uma medida destinada
exclusivamente a garantir a otimização do inquérito policial. Conclusão: a
prisão temporária é uma medida cautelar.
A premissa maior será desenvolvida adiante. Por ora, basta afirmar que as
investigações em sede de inquérito policial são preventivas, isto é, somente
se justificam à medida que acautelam diversas situações, desde a prova em
si, até a versão que a corporifica. Conforme escreve Walter Fanganiello
Maierovitch, a prisão provisória assegura, imediatamente, o bom êxito da
persecução. Imediatamente, constitui instrumento que garantirá o
provimento jurisdicional a ser lançado no rol de conhecimento.
A prisão temporária, que exclusivamente serve ao inquérito policial é, como
ele, medida cautelar. Somente se justifica porque as investigações precisam
se realizar antes do desvanecimento dos elementos de convicção, sob pena
de sua completa inutilidade. Se imprescindível ou útil às investigações, a
prisão temporária tem natureza cautelar, porque urgente – e, portanto,
sumária, formal e materialmente – baseada na aparência. Além disso, é
temporária e incapaz de gerar a coisa julgada material. É, por fim, referível
à pretensão do direito material que arrima o processo penal
condenatório.249
A idéia construída por João Gualberto Garcez Ramos é mais completa e
estruturada, uma vez que considera todas as características do procedimento cautelar. Maria
Lúcia Karam considera, basicamente, a vinculação ao resultado do processo principal.
Além do vício de origem, e, como principal argumento de justificar a
inconstitucionalidade da prisão temporária, é apontada a violação ao princípio de presunção
de inocência.
Vários são os doutrinadores que defendem, inclusive de forma veemente, a
inconstitucionalidade da prisão temporária. De igual forma, vários também são os motivos
alegados para justificar a afronta à Carta Constitucional.
Rui Cascaldi250 defende a idéia que enfoca a inconstitucionalidade da prisão
249
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 202-203.
250
CASCALDI, Rui. Prisão temporária: inconstitucionalidade. Revista dos Tribunais, a. 80, n. 667, p. 259260, maio 1991.
107
temporária sob três aspectos. Primeiro, por violar o inciso LXI do artigo 5º da Constituição;
segundo, por apresentar outro prisma com fundamento na violação do princípio da presunção
de inocência (art. 5º, LVII, CF), e, por fim, por não garantir ao cidadão a previsão expressa no
inciso LXVI do artigo 5º da Constituição Federal.
No primeiro caso, considerando o inciso I, artigo 1º da lei 7.960, de 21 de
dezembro de 1989, que prevê que a prisão preventiva pode ser decretada quando for
imprescindível para as investigações do inquérito policial, entende que foi atribuída à
autoridade policial a possibilidade de concluir pela imprescindibilidade da prisão temporária,
ferindo, assim, o princípio da fundamentação que decreta a prisão:
Como deverá um juiz se portar diante de um requerimento de delegado que
diz necessária a prisão por ser ela imprescindível às investigações (inc. I)?
Deferir a prisão com base exclusivamente nessa afirmação seria delegar à
autoridade policial a análise desses elementos de prova que levaram
concluir pela imprescindibilidade da prisão em face das investigações do
inquérito, o que feriria o §2º, do art. 1º, comentando que impõe ao juiz
fundamentar o seu decreto de prisão, o mesmo ocorrendo com a
Constituição Federal, que, igualmente, impõe ao juiz o mesmo dever (art. 5º,
LXI). Feriria, portanto, a Constituição o juiz que decretasse a prisão
temporária sem ter examinado a causa da ‘imprescindibilidade’ a que se
refere o mencionado inc. I.251
Maria Lúcia Karam aponta, inicialmente, o vício de origem que, por si só,
basta para justificar a inconstitucionalidade da medida.
Tal instituto já veio contaminado por um vício original, pois criado através
251
CASCALDI, Rui. Prisão temporária: inconstitucionalidade. Revista dos Tribunais, a. 80, n. 667, p. 260,
maio 1991.
108
de medida provisória baixada pelo Presidente da República, que se
converteu na Lei 7.960/89, de manifesta inconstitucionalidade.
Tratando-se de instrumento de coerção pessoal a atingir o direito de
liberdade, não poderia a prisão temporária ser objeto de medida provisória,
mas tão somente de lei em sentido estrito (ou seja, ato normativo procedente
do Poder Legislativo e elaborado segundo a forma e o processo
constitucionalmente estabelecidos): tem-se aqui decorrência básica do
princípio da legalidade, que naturalmente, limita o poder do Estado, não só
em matéria penal substantiva, mas também no que diz respeito ao direito
processual penal, notadamente neste, com a da liberdade.252
Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior igualmente aponta o vício decorrente da
conversão de medida provisória em lei.
A prisão temporária não está prevista no Código de Processo Penal. Foi
introduzida pela Lei 7.960/89, originária de medida provisória.
Por isto, desde logo é de se ressaltar que aquele diploma tem sido apontado
inconstitucional por invasão da reserva feita pela Constituição da República
quanto à edição de mecanismos de coerção pessoal. Só através de lei em
sentido estrito, não de medida provisória, poderia a matéria ser
disciplinada. E a lei de conversão não apaga o vício de origem.253
Sob outra ótica, a decretação da prisão temporária, com fundamento no
inciso III do artigo 1º da lei em questão, decorreria de presunção absoluta de periculosidade,
totalmente contrária ao princípio da presunção de inocência:
252
KARAM, Maria Lúcia. Prisão e liberdade processuais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 1, n. 2,
p. 89, abr./jun. 1993, p. 88.
253
CINTRA JUNIOR, Dirceu Aguiar Dias. Prisões cautelares: uso e abuso. Revista dos Tribunais, São Paulo,
v. 703, p. 267, maio 1994.
109
Entendendo que a presunção absoluta de periculosidade pelo fato de se
responder a certos crimes fere o art. 5º, LVII, da CF, pois equipara a
situação do processado à do condenado em definitivo, para efeito de
presumi-los culpados e vai além, pois o culpado pode não ser perigoso,
estando-se, então, a presumir a periculosidade sem peias.254
Aponta também a inconstitucionalidade da prisão temporária nos casos
passíveis de liberdade provisória:
Mas tudo que se disse até aqui é nada perto da inconstitucionalidade que
tisna a lei em estudo face ao art. 5º., LXVI da CF, in verbis: ‘Ninguém será
levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade
provisória, com ou sem fiança’. Portanto, em sendo caso de liberdade
provisória não cabe qualquer forma de prisão. Mas, o que vem a ser a
liberdade provisória? A resposta nos é dada pelo parágrafo único do art.
310 do CPP. A resposta consiste em afirmar que a liberdade provisória é o
reverso da medalha da prisão preventiva. Em outras palavras, segundo o
Código de Processo Penal, o juiz deve conceder liberdade provisória
quando não ocorrem as hipóteses que autorizam a prisão preventiva. Logo,
as hipóteses autorizadas de prisão preventiva, em face do que veio dispor a
Constituição no inc. LXVI do art.5º, passaram a constituir a garantia
mínima do cidadão em matéria de liberdade: só perderá este se presentes
pelo menos as hipóteses da prisão preventiva e não outras com menos
requisitos de deferimento.255
Assim, sempre que cabível a liberdade provisória, não há, de acordo com a
abordagem apresentada, como se decretar a prisão temporária, face à inconstitucionalidade da
medida.
Dyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior também vê inconstitucionalidade pela
impossibilidade da fundamentação do decreto da prisão temporária:
254
CASCALDI, Rui. Prisão temporária: inconstitucionalidade. Revista dos Tribunais, a. 80, n. 667, p. 261,
maio 1991.
255
Id.
110
[...] Agora, aumentando a gravidade atentatória do Estado Democrático de
Direito, o Poder Judiciário as tem deferido, de regra, com base exclusiva na
afirmação de imprescindibilidade feita pela autoridade policial.
Com efeito, a inconstitucionalidade de tais decretações advém de uma
simples realidade. A Constituição da República garante que o Judiciário
aprecie qualquer lesão ou ameaça de direito (art. 5º, XXXV), devendo o juiz
decidir, outrossim, fundamentadamente (art. 5º. LXI e 92, IX). E tal
fundamentação, um dos limites da legalidade do constrangimento, não é
possível, nos casos para os quais tem sido utilizado aquele instituto.256
Defendendo não somente a necessidade da prisão temporária, como também
a sua constitucionalidade, além de defini-la como especialização das providências cautelares
previstas no Processo Penal, Walter Fanganiello Maierovitch defende o instituto:
Na realidade, a Lei 7.960/89 não afronta a Constituição da República. Ao
contrário, apoiou-se nela. Encontrou permissivo no artigo LXI, que admitiu
a prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária
competente.
[...]
Apesar da insistência de alguns, a Constituição da República não acolheu o
princípio da presunção de inocência, nascido com a Revolução Francesa e
expresso, em 1791, na Declaração dos Direitos do Cidadão. A nossa
Constituição da República, seguindo o modelo da italiana em 1948,
consagrou a presunção de não culpabilidade [...].257
Respondendo questionamento feito pelo Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais, o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro concilia o princípio da presunção de
inocência com a possibilidade da decretação da prisão temporária, prevista na lei 7.960, de 21
256
CINTRA JUNIOR, Dirceu Aguiar Dias. Prisões cautelares: uso e abuso. Revista dos Tribunais, São Paulo,
v. 703, p. 268, maio 1994, p. 268.
257
MAIEROVITCH, Walter Fangianello. Prisão temporária. Revista dos Tribunais, a. 81, n. 680, p. 325, jul.
1992.
111
de dezembro de 1989:
Em face da Constituição há de se fazer uma conciliação entre o princípio da
presunção de inocência, que significa que ninguém pode sofrer restrição no
exercício do direito de liberdade antes de sentença penal condenatória
transitado em julgado, e o interesse público. Há de se conciliar porque a
sociedade não pode ficar a mercê de determinadas condutas que afrontem
valores, princípios que ela mesma está procurando defender. Nesse meio
termo é que me parece ser necessário haver fundamentação da sua
necessidade. Não há necessidade de se encerrar o inquérito policial para a
decretação dessa prisão. Há a necessidade de se considerar o direito à
liberdade para esse fim como regra geral. Só porque o delegado deseja
ouvir alguém no inquérito policial, contrariaria a Constituição, trazê-lo
preso à Delegacia. Há a necessidade de ser o único meio de colher o
depoimento que se faz necessário.258
Apesar de ser criticada quanto à legalidade e à constitucionalidade, certo é
que a prisão temporária continua sendo usada, em alguns casos, como instrumento processual,
sendo, também empregada com caráter nitidamente intimidatório e satisfativo.
258
CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Entrevista. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 3, n. 12, p. 9,
out./dez. 1995.
112
5 A PRISÃO PREVENTIVA
5.1 Conceituação
A prisão preventiva, medida cautelar de constrição de liberdade, no curso do
processo penal, pode ser analisada sob duas óticas, a prisão preventiva no sentido restrito ou
stricto sensu e no sentido lato ou latu sensu, sendo a diferenciação estabelecida por
Magalhães Noronha:
A expressão prisão ou custódia preventiva oferece duas acepções: uma lata
e outra restrita. No primeiro sentido é que se verifica antes do julgamento
irrecorrível. É qualquer detenção ou custódia sofrida pelo imputado, antes
ou depois da pronúncia e em qualquer estado da causa, antes de julgada
definitivamente.
Nessa acepção, como escreve COSTA MANSO, ela abrange: a) a prisão em
flagrante delito; b) a que resulta da pronúncia; c) a decretada pelo juiz
formador da culpa, antes da pronúncia e fora do flagrante delito. A esta
última espécie, entretanto, é que comumente se aplica a designação, é a ela
que se refere o artigo.
Em sentido restrito e tendo-se em vista nosso Código, ela é a privação da
liberdade decretada pelo juiz no inquérito ou na instrução.259
259
NORONHA, E. Magalhães. Curso de processo penal. 25. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 220.
113
Tourinho Filho estabelece outra diferenciação
Prisão preventiva é espécie do gênero ‘prisão cautelar de natureza
processual’ A rigor, toda a prisão que anteceda a uma condenação
definitiva é preventiva.
A própria prisão em flagrante é uma prisão preventiva lato sensu.
Entretanto, quando se faz uma referência a essa modalidade de prisão
cautelar, tem-se em vista aquela medida restritiva de liberdade determinada
pelo Juiz, em qualquer fase da instrução criminal, seja como medida de
segurança de natureza processual (como dizia Faustin Hélie, Traité, t. 4. p.
606), seja para garantir eventual execução da pena, seja para preservar a
ordem pública, seja por conveniência da instrução criminal.260
A prisão preventiva, do sentido restrito ou stricto sensu, prevista nos artigo
311 a 316 do Código de Processo Penal, interessa ao objetivo desta pesquisa.
Observamos, que como todo o Direito, igualmente a definição da prisão
preventiva é dinâmica, Walter P. Acosta, citando Espínola Filho, destaca que nos idos de
1950, a prisão preventiva era definida como
[...] medida de força, que o interesse social reclama da liberdade individual,
com a tríplice finalidade de permitir que o indiciado se mantenha acessível
à justiça no distrito da culpa, de impedir que ele, por manobras, estorve a
regular produção das provas e de obstar ao prosseguimento de sua
atividade delituosa.261
Tourinho Filho, complementando definição de Arturo Zavaleta, conceitua a
260
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 461.
261
ACOSTA. Walter P. O processo penal: teoria – prática – jurisprudências – organogramas. 18. ed. Rio de
Janeiro: Editora do Autor, 1989, p. 81.
114
prisão preventiva, frisando que
Em excelente monografia, Arturo Zavaleta define-a como uma medida
precautória de índole pessoal, criando para o indivíduo sobre qual recai um
estado mais ou menos permanente de privação de liberdade, suportada em
estabelecimento adequado, e que é decretada pelo Juiz competente no curso
de uma causa, contra o imputado, com o único objetivo de assegurar sua
presença em juízo e garantir a eventual execução da pena (cf. La Prisión,
cit.., p. 74). Podemos acrescentar outros objetivos: a garantia da ordem
pública e a preservação da instrução criminal.262
João Gualberto Garcez Ramos apresenta definição de João Mendes de
Almeida Júnior, para quem
A prisão preventiva é uma cautelar que consiste na detenção do indiciado,
antes do julgamento e logo que se manifesta contra ele a suspeita da
criminalidade; e, como a pronúncia, supondo uma opinião, isto é, um juízo
ou assentamento do intelecto, já é considerada uma sentença, se tem
entendido que a prisão preventiva é juridicamente fundada depois da
pronúncia e pode ser uma necessidade administrativa.
A prisão preventiva é qualquer detenção ou custódia sofrida pelo imputado,
antes ou depois da pronúncia e em qualquer estado da causa, antes de
julgada definitivamente.263
Conceito interessante é defendido por Sergio Marcos de Moraes Pitombo ao
afirmar que
262
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 463.
263
ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro. Rio de Janeiro: Laemmert, 1901, v.
1, p. 338-339, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 1998, p. 129.
115
o cárcere preventivo, em sentido estrito, surge como medida excepcional:
decretável, tão-só nos crimes dolosos, punidos com reclusão e severamente;
limitado às causas legais, que assim permitem, tão só interpretação restrita;
e tangido pela indispensabilidade, com vistas ao processo de conhecimento,
de natureza condenatória, a que serve de instrumento e, sempre,
proporcional ao fato perquirido.264
Baseando-se na exposição de motivos do decreto-lei 3.689, de 3 de outubro
de 1941, que instituiu o Código de Processo Penal, é possível definir, em linhas gerais, do
seguinte modo, a prisão preventiva:
A prisão, por sua vez, desprende-se dos limites estreitos até agora traçados
à sua admissibilidade. Pressuposta a existência de suficientes indícios para
a imputação da autoria do crime, a prisão preventiva poderá ser decretada
toda vez que o reclame o interesse da ordem pública, ou da instrução
criminal, ou da efetiva aplicação da lei penal.265
Não se encontra na doutrina, conceito completo que contemple todas as
características, fundamentos e pressupostos da prisão preventiva. Para João Gualberto Garcez
Ramos existem quatro espécies de prisão preventiva266, e agora recentemente, com o advento
da Lei Maria da Penha, nova modalidade de prisão preventiva foi criada, dificultando, assim,
uma definição única.
264
PITOMBO, Sergio Marques de Mores. Prisão preventiva, em sentido estrito. In: PENTEADO, Jaques de
Camargo (Coord.). Justiça penal, 7: críticas e sugestões: justiça criminal moderna: proteção à vítima e à
testemunha, comissões parlamentares de inquéritos, crimes de informática, trabalho infantil, tv e crime. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 130.
265
BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Código de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004.
266
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 129.
116
5.2 Aspectos Históricos da Prisão Preventiva
A prisão apresenta-se, inicialmente, com nítidas características de prisão
processual, sendo a sua evolução explicada por Aníbal Bruno, na citação de João Gualberto
Garcez Ramos:
A prisão antiga era somente meio de contenção do réu, para mantê-lo
seguro durante o processo ou guardá-lo até a execução da pena que lhe fora
aplicada. Foi assim em Roma e comumente por toda a Idade Média e
período intermediário, quando as penas em uso eram, em geral, a de morte
e as corporais infamantes. Mas, pouco a pouco, o encarceramento foi
tomando o caráter de pena, ou porque os presos fossem sendo deixados
indefinidamente nas prisões, ou porque realmente se viessem estabelecendo
aqui e ali penas detentivas como aconteceu com o Edito de Luiprando, rei
dos Lombardos, em 702, que prescrevia a prisão de dois a três anos por
furto, ou em determinação de Carlos Magno, com penas de prisão por
tempo indeterminado, ou no antigo Direito Penal de Nueremberg, onde se
prescrevia o encarceramento, como punição, para vários crimes. [...]. Nessa
mutação da prisão em pena autônoma a grande influência foi da Igreja, que,
procurando realizar o propósito da regeneração moral do criminoso pela
penitência e o arrependimento, criou, desde a mais alta Idade Média, a
prisão canônica, de regime geralmente celular, maneira do sistema
monástico, mas outras vezes, em comum.267
Michel Foucault ao criticar o sistema carcerário, também define o início da
prisão como cumprimento de pena:
Ora, eis o problema: depois de bem pouco tempo, a detenção se tornou a
forma essencial de castigo. No Código Penal de 1810, entre a morte e as
multas, ela ocupa, sob um certo número de formas, quase todo o campo das
punições possíveis.268
267
BRUNO, Aníbal. Direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 61-62, apud RAMOS, João
Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 128.
268
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 28. ed. Petrópolis:
Vozes, 2004, p. 95.
117
Luigi Ferrajoli269, faz uma analise histórica da prisão preventiva, destacando
que a mesma chegou a ser completamente proibida em Roma, e, voltou com força total na
Idade Média com o desenvolvimento do processo inquisitório, já que o corpo do acusado era
o principal objeto de prova a ser produzido no processo, sendo novamente estigmatizada com
o iluminismo.
No Brasil, ao tempo da descoberta, estavam em vigor em Portugal, as
Ordenações Afonsinas. A legislação, contudo, não chegou a ser aplicada ou a ter influência no
Brasil, já que na época das capitanias, a lei era ditada pelo donatário, a quem, através da carta
de adoção era entregue, inclusive, o exercício da justiça. Mais tarde, no tempo dos
governadores gerais, a administração da justiça tornou-se um pouco mais efetiva à aplicação
da legislação do reino, obedecendo às Ordenações Filipinas, que admitiam a aplicação da
prisão preventiva270, sendo permitido ao magistrado a decretação desta forma de prisão nos
casos mais graves, e, se fosse necessário, para a segurança da instrução criminal ou da
execução da pena Não há, todavia, nenhuma menção da prisão preventiva ser utilizada para
garantir a ordem pública.
A primeira legislação eminentemente brasileira em matéria penal surgiu em
decorrência do comando do artigo 179, §18 da Constituição do Império, que estabeleceu a
elaboração de código criminal fundado nas bases de justiça e eqüidade sob a influência dos
ideais da Revolução Francesa. Trata-se do Código Criminal do Império, sancionado em
1830271. Ele admitia a existência da prisão com natureza preventiva, fato exposto no artigo 37,
sob o texto: Não se considera pena a prisão do indiciado de culpa para prevenir a fugida
[...]272.
269
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2006, p. 509.
270
PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980, p. 7.
271
Ibid., p. 8.
272
PIERANGELLI, op. cit., p. 171.
118
Antes mesmo do Código Criminal do Império ser sancionado, já havia
regulamentação da prisão sem culpa formada:
Muito antes do Código de Processo Criminal de Primeira Instância, do
Império do Brasil – lei de 29 de novembro de 1832 -, Decreto da Assembléia
Geral, mandado observar mediante Carta de Lei, do Imperador, de 30 de
agosto de 1928, assentava que tão-só podiam prender-se, sem culpa
formada, os que se achassem em flagrante delito (art. 1º, §1º); mais os
indiciados em crimes, ‘em que a lei impuser pena de morte natural, prisão
perpétua, ou galés, por toda a vida ou temporariamente’ (art. 1º, §2º) Em tal
último caso, a lei exigia ‘ordem por escrito do juiz competente’, da qual se
deveria dar ciência aos destinatários no ato da prisão.273
A Constituição do Império274 previa no artigo 179, §8º, 9º e 10º, os casos em
que a restrição da liberdade individual era possível. Era, no entanto, medida de arbítrio do
juiz, podendo ser executada somente por ordem escrita da autoridade legítima.
O Código de Processo Criminal do Império – lei de 29 de novembro de
1832 - foi a primeira legislação brasileira de matéria processual penal, seguindo as linhas
traçadas na Carta Constitucional. Disciplinou a possibilidade da decretação da prisão
preventiva:
Art. 175. Poderão também ser presos sem culpa formada os que forem
indiciados em crimes, em que não tem lugar a fiança; porém nestes e em
todos os demais casos, à exceção dos de flagrante delito, a prisão não pode
ser executada, senão por ordem escrita da autoridade legítima275
273
PITOMBO, Sergio Marques de Mores. Prisão preventiva, em sentido estrito. In: PENTEADO, Jaques de
Camargo (Coord.). Justiça penal, 7: críticas e sugestões: justiça criminal moderna: proteção à vítima e à
testemunha, comissões parlamentares de inquéritos, crimes de informática, trabalho infantil, tv e crime. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 125.
274
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 464.
275
BRASIL. Código de Processo Criminal (1832). Código de Processo Criminal do Império. In:
PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980.
119
Depreende-se que era necessária, em qualquer caso, à exceção da prisão em
flagrante, a fundamentação. A lei 2.033 de 20 de setembro de 1871 introduziu importantes
alterações na decretação da prisão:
O art. 13, §2º, estatui: À exceção de flagrante delito, a prisão antes de culpa
formada, só pode ter lugar nos crimes inafiançáveis, por mandado escrito
do juiz competente para a formação da culpa ou para a sua requisição;
neste caso, precederá ao mandado ou à sua requisição, declaração de duas
testemunhas que jurem de ciência própria, ou prova documental, de que
resultem veementes indícios contra o acusado ou declaração deste
confessando o crime. §3º. A falta, porém, do mandado da autoridade
formadora da culpa, na ocasião, não inibirá a autoridade policial ou o juiz
de paz de ordenar a prisão do indiciado em crime inafiançável, quando
encontrado, se para isso houver requisição da autoridade competente, ou se
for notória a expedição de ordem regular para a captura; devendo, porém,
imediatamente ser levado preso à presença da competente autoridade
judiciária para dele dispor. §4º. Não terá lugar a prisão preventiva do
culpado se houver decorrido um ano depois da data do crime.276
A Constituição da República conferiu competência aos Estados Membros
para legislar sobre matéria processual penal, com destaque para a legislação processual do
Estado do Rio Grande do Sul, que instituiu a prisão preventiva obrigatória nos seguintes
casos:
a) no caso de homicídio ou lesão gravíssima, salvo se estes fatos são
justificáveis ou cometidos casualmente; b) nos atentados à propriedade,
quando as pendas excedem a quatro anos de prisão celular; c) se o
indiciado, durante a formação da culpa, pratica novo delito, ameaça a parte
276
PITOMBO, Sergio Marques de Mores. Prisão preventiva, em sentido estrito. In: PENTEADO, Jaques de
Camargo (Coord.). Justiça penal, 7: críticas e sugestões: justiça criminal moderna: proteção à vítima e à
testemunha, comissões parlamentares de inquéritos, crimes de informática, trabalho infantil, tv e crime. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 126.
120
ofendida ou tenta corromper ou intimidar testemunha.277
A medida prevista na legislação gaúcha foi abolida logo por força da
declaração de inconstitucionalidade pelo pretório excelso, visto que sua disposição era
totalmente contrária ao espírito da Carta Constitucional em vigor278, que previa, no artigo 72,
§14, que ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, salvo as exceções
especificadas em lei, nem levado à prisão ou nella detido, si prestar fiança idônea, nos casos
em que a lei admitir279.
O decreto 847, de 11 de outubro de 1890, que institui o Código Penal dos
Estados Unidos do Brazil, igualmente prevê a existência da prisão preventiva no artigo 60,
inovando ao considerar, para o cômputo da pena, o período cumprido na forma de prisão
preventiva, Art. 60. Não se considera pena a suspensão administrativa, nem a prisão
preventiva dos indiciados, a qual, todavia, será computada na pena legal280.
A Consolidação das Leis Penais, aprovada e adotada pelo decreto nº 22.213,
de 14 de dezembro de 1932, não apresenta novidades, mantendo a redação anterior do mesmo
artigo 60.
De semelhante modo, o Código Penal de 1940, não apresenta novidades,
prevendo, apenas, a contagem de tempo cumprido preventivamente no artigo 34.
A lei 5.349, de 03 de novembro de 1967, modificou a redação que
estabeleceu a prisão preventiva obrigatória. Atualmente, em todos os casos, é facultativa, de
acordo com o texto do artigo 312, do Código de Processo Penal.
277
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 465.
278
Ibid., p. 419.
279
BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Globo,
1985.
280
BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brazil. Apud PIERANGELLI, José Henrique. Códigos
penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980.
121
Atualmente, a prisão preventiva está regulamentada no artigo 312 do
Código de Processo Penal. O código vigora desde 1941, sendo que no texto original havia a
previsão expressa da prisão preventiva compulsória para os crimes cominados com pena de
reclusão igual ou maior de 10 anos, e facultativa nos casos de crimes inafiançáveis, aos vadios
ou pessoas sem identificação ou que dificultem a mesma, bem como para os reincidentes em
crimes dolosos, para a garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou
para assegurar a aplicação da pena, e em recente inovação da 11.340/2006 – Lei Maria da
Penha, para assegurar a execução de medidas protetivas de urgência, nos casos de violência
doméstica contra a mulher, presentes a prova da existência do crime e indícios suficientes de
autoria, sendo necessária, entretanto, a fundamentação do decreto segregatório.
5.3 Natureza Jurídica da Prisão Preventiva
Em termos de natureza jurídica, diante da redação do atual Código de
Processo Penal, a prisão preventiva stricto sensu conta, praticamente, com a unanimidade
doutrinária ao considerar a medida como eminentemente cautelar.
João Gualberto Garcez Ramos afirma destacando que
A doutrina no processo penal posterior ao advento da Lei 5.349, de três de
novembro de 1967, que, entre outras providências, deu nova redação ao
artigo 312 do Código de Processo Penal, para eliminar a chamada prisão
preventiva obrigatória, é, majoritariamente, do entendimento de que a
prisão preventiva facultativa, também denominada de prisão preventiva
122
stricto sensu, seja qual for sua motivação, é, sempre cautelar.281
No texto original do Código de Processo Penal, anterior à lei nº 5.349, de 3
de novembro de 1967, havia a figura da prisão preventiva obrigatória, nos crimes aos quais
foi cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez anos282.
Sendo a prisão preventiva obrigatória ou compulsória para os crimes com
pena de reclusão igual ou superior a 10 anos, poderia ocorrer a decretação da prisão
preventiva sem que estivessem presentes os pressupostos gerais da tutela cautelar, conforme
explica João Gualberto Garcez Ramos: [...] por causa da existência, no ordenamento jurídico
de então, da prisão preventiva obrigatória que prescindia dos pressupostos da tutela cautelar
para ser decretada283.
Mesmo que o termo cautelar não fosse consagrado pelo uso284, João
Gualberto Garcez Ramos destaca que, anteriormente ao advento da lei 5.349, de 3 de
novembro de 1967, José Frederico Marques, (sendo exceção entre os pares), identificava a
natureza cautelar da prisão preventiva conceituando-a como a mais genuína das formas de
prisão cautelar285.
Dois são os pressupostos e quatro, são os requisitos ensejadores do decreto
segregatório preventivo. Os pressupostos são a prova da existência do crime e o indício
suficiente de autoria. Os requisitos são a decretação da prisão preventiva para garantir a
ordem pública, a ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para a
281
BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brazil. Apud PIERANGELLI, José Henrique. Códigos
penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980, p. 43.
282
Texto original do Código de Processo Penal apud MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito
processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 63.
283
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 44.
284
Ibid., p. 43.
285
MARQUES, Jose Frederico. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Forense,
1965, v. 4, p. 43. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro.
Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 44.
123
aplicação da lei penal e com o advento da Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006 – foi
introduzido ao Código de Processo Penal, dispositivo que possibilita a decretação de prisão
preventiva para aplicação de medidas protetivas de urgência.. Estes aspectos serão estudados
de forma mais acentuada.
Para a decretação da prisão preventiva devem ocorrer os dois pressupostos
e, pelo menos, uma das hipóteses que lhes dão fundamento.
5.4 Pressuposto Necessários à Decretação da Prisão Preventiva
Apresentam-se como pressupostos comuns a todos os casos de decretação
de prisão preventiva, a prova de existência do crime e indícios suficientes de autoria. A eles,
Hélio Tornagui286 acrescenta o despacho por escrito e a fundamentação.
5.4.1 Prova da existência do crime
A prova da existência do crime é visível quando está demonstrada a prática
de fato típico na sua integralidade287.
É pressuposto fundamental à decretação da prisão preventiva, devendo a
expressão prova da existência do crime ser interpretada como a existência de fato criminoso
em sua materialidade. Hélio Tornagui esclarece que
286
287
TORNAGUI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 90.
MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 60.
124
Ao contrário do que acontece com a queixa é com a denúncia, para cuja
aceitação basta que o fato seja típico, seja um crime em tese, podendo não
ser crime na hipótese (p. ex. por ter sido praticado em legítima defesa), na
prisão preventiva é necessário que esteja provada a existência do fato que
seja um crime em tese (típico, pois ninguém pode ser preso preventivamente
por fato não definido na lei penal como crime) e que seja crime também na
hipótese (pois se houver prova de ter sido praticado em qualquer das
circunstâncias que excluem a ilicitude: CP, art. 23 – o juiz não deve
decretar a prisão: CPP art. 314).288
Qualquer que seja o fundamento, à existência de fato criminoso se faz
necessária a materialidade do crime que demonstre a existência do fato criminoso, conforme
demonstra Guilherme de Souza Nucci:
Prova da existência do crime é a materialidade, isto é, a certeza de que
ocorreu uma infração penal, não se determinando o recolhimento cautelar
de uma pessoa, presumidamente inocente, quando se há séria dúvida quanto
à própria existência do evento típico. Essa prova, no entanto, não precisa
ser feita, mormente na fase probatória, de modo definitivo e fundada em
laudos periciais. Admite-se que haja a certeza da morte de alguém (no caso
de homicídio, por exemplo), porque as testemunhas ouvidas no inquérito
assim afirmaram, bem como houve a juntada de certidão de óbito nos autos.
O laudo necroscópico, posteriormente, pode ser apresentado.289
Apesar de que nesta fase não haja a necessidade de prova mais contundente
quanto aos pormenores do crime, é imperiosa a convicção mais aprofundada certa e
determinada290 quanto à existência do crime.
288
TORNAGUI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 90.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2005, p. 585-586.
290
FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível
e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 128,
jan./mar. 2003, p. 135.
289
125
5.4.2 Indício suficiente da autoria
Há indícios suficientes de autoria quando o réu é o provável autor do
crime291.
O segundo pressuposto para a decretação da prisão preventiva é o indicio
suficiente de autoria, posto que, sem a existência do crime não há como se iniciar qualquer
procedimento processual penal.
Para melhor situar a pesquisa, primeiramente é preciso conceituar o meio de
prova representada pelo indício, que é definido no artigo 239, do Código de Processo Penal:
considerara-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato,
autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias292.
Segundo o entendimento de Walter P. Acosta, indício
[...] é a circunstancia ou antecedente que autoriza a fundar uma opinião
acerca da existência de um determinado fato [...]. Na técnica da prova
indiciária desenvolve-se, pois, um silogismo, em que a premissa menor é um
fato, ou circunstância provada, que é a circunstância indiciante, e a
premissa maior, que se ajusta à outra, é simplesmente problemática ou
abstrata, calcada nos ensinamentos do senso comum.293
A importância da conceituação ocorre quando se observa que “os indícios
têm vários graus de valor”. Na ótica de Nelson Hungria, ao tratar da prisão preventiva, “os
291
MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 60.
BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Código de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004.
293
ACOSTA, Walter P. O processo penal: teoria – pratica – jurisprudências – organogramas. 18. ed. Rio de
Janeiro: Editora do Autor, 1989, p. 255.
292
126
indícios podem ser concludentes e inequívocos” ou, simplesmente, podem “acarretar fundada
suspeita”294.
A doutrina é pacífica no sentido de não ser necessária a certeza absoluta da
autoria. Fernando Capez se manifesta afirmando que
note-se que, nesta fase, não se exige a prova plena, bastando meros indícios,
isto é, que se demonstre a probabilidade do réu ou indiciado ter sido o autor
do fato delituoso. A dúvida, portanto, milita em favor da sociedade, e não do
réu (princípio in dúbio pro societa). Nesse sentido, não se pode exigir para a
prisão preventiva a mesma certeza que se exige para a condenação. O in
dúbio pro reo vale ao ter o juiz que absolver ou condenar o réu. Não,
porém, ao decidir se decreta ou não a custódia provisória (RT, 554/386).295
Hélio Tornagui esclarece a forma pela qual a expressão é usada no artigo
312, do Código de Processo Penal:
A palavra indício está empregada no art. 312, como em vários outros, no
sentido de provas leves, provas fracas. Enquanto relativamente à existência
do crime, o Código exige prova (querendo significar prova cabal). No que
se refere à autoria, ele se contenta com indícios, isto é, meros sinais. Se
houver maiores provas, tanto melhor; mas a lei não as requer.296
Francesco Carnelutti, em comentário ao Código de Processo Penal Italiano,
demonstra a preocupação com a graduação do indício, visto que a maior graduação da culpa
pode ensejar mandado de captura, que é avaliado pelo indício de culpabilidade:
294
ACOSTA, Walter P. O processo penal: teoria – pratica – jurisprudências – organogramas. 18. ed. Rio de
Janeiro: Editora do Autor, 1989, p. 256.
295
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 243.
296
TORNAGUI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 91.
127
O mesmo aspecto do problema emerge do art. 252 do Código de Processo
Penal, onde, sob rubrica de condições gerais para a expedição do mandado
de captura, se diz que ‘para poder expedir um mandado de captura é
necessário que existam indícios suficientes da culpabilidade contra aquele
contra quem a providência foi adotada’; o problema que emerge, dizíamos,
dessa disposição, mas emerge, também da infelicidade, para não dizer
inexistência, de sua solução. Desde um ponto de vista inteiramente lógico,
exatamente, a proposição agora referida não diz nada; certamente, para
emitir um mandado de captura são necessários indícios suficientes, mas
suficientes para quê? Para emitir um mandado de captura? A proposição,
abandonada a si própria, resolve-se numa tautologia. Por outro lado, sem
indícios suficientes, nem sequer uma imputação se poderia formular; qual é,
pois, o valor das provas de culpa exigidas para que a captura possa ser
decretada? Será aquele mesmo que é necessário afim de que possa haver a
imputação?297
O Jurista Italiano equaciona o problema da seguinte forma:
Agora, o problema está resolvido. É claro, com efeito, que, sem um juízo de
possibilidade basta para a imputação. Não pode bastar para a captura, com
a qual o peso do processo se agrava sobre as costas do imputado: nem todo
o imputado, pois nos casos previstos pelos arts. 253 e 254, deve ou pode ser
capturado, mas somente aquele sobre quem, mais que um juízo de
possibilidade, pode-se formular um juízo de probabilidade de que tenha
cometido o delito. Assim, a fórmula do art. 252 se resolve logicamente nesta
outra: não se pode submeter o imputado à captura se não aparece como
provável a sua culpa. De lege data esta é, no meu entender, a solução da
questão, à qual proporciona, se fosse necessário, um argumento ulterior a
exegese do artigo 269, quando prevê que, não obstante a desaparição dos
‘indícios suficientes’ da culpa, subsistem, porém, ‘motivos de suspeita’
contra o imputado; daí resulta claramente que a suficiência dos indícios,
segundo o art. 252, deve-se entender em relação a um juízo de
probabilidade da culpa. De lege ferenda acrescerá a essa formula um
advérbio: se não é seriamente provável que o imputado tenha cometido o
delito, a fim de chamar atenção dos juízes para a gravidade da captura e
estimular-lhe a cautela.298
Não se pode exigir em sede de juízo de cognição sumária, geralmente
297
CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Trad. Francisco Jose Galvão Bueno. Campinas:
Bookseller, 2004, p. 179.
298
Ibid., p. 181.
128
tomado por informações constantes na fase indiciária, grau de certeza do juízo decisório do
processo penal após a instrução normalmente concluída, com as garantias processuais do
contraditório e da ampla defesa sacramentadas na Constituição. Há a necessidade da presença
de indícios que levem à probabilidade de que o imputado seja o autor do fato criminoso.
5.4.3 Necessidade de ordem escrita e fundamentação do decreto de prisão preventiva
Helio Tornagui salienta que, além dos pressupostos consistentes na prova da
existência do crime e dos indícios suficientes de autoria, comuns a todos os casos de prisão
preventiva, outros dois podem ser acrescentados:
Além deles, a lei acrescenta outros dois, meramente formais, destinados a
garantir o réu contra abusos do juiz. São eles:
- o despacho (art. 315) e
- fundamentação (art. 315).299
O despacho escrito garante a formalização do decreto, já que não se concebe
a idéia da decretação da prisão preventiva de outra forma, caso, por exemplo, verbalmente. O
mesmo acontece por qualquer outra forma de comunicação.
A fundamentação do decreto de prisão preventiva, bem como de qualquer
outra forma de prisão que não seja em flagrante, está prevista no Código de Processo Penal e
299
TORNAGHI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 90.
129
na Constituição Federal, conforme anteriormente estudado.
O artigo 315 do Código de Processo Penal impõe, por ocasião da decretação
ou da denegação da prisão preventiva, a devida fundamentação, Helio Tornagui relaciona os
elementos necessários à fundamentação:
A decretação da prisão preventiva tem de ser acompanhada de razões de
fato e de direito em que se baseia. É necessário que o juiz manifeste sempre:
- quais as provas da existência do crime;
- quais as da autoria.
O juiz deve mencionar de maneira clara e precisa os fatos que levam a
considerar necessária a prisão para garantir a ordem pública ou para
assegurar a instrução criminal ou a aplicação da lei penal substantiva. Não
basta, de maneira alguma, não é fundamentação, frauda a finalidade da lei
e ilude as garantias de liberdade o fato de o juiz dizer apenas ‘considerando
que a prisão é necessária para garantia da ordem pública[...]’ ou, então ‘a
prova dos autos revela que a prisão preventiva é conveniente para a
instrução criminal [...]’. Fórmulas como essas são a mais rematada
expressão da prepotência, do arbítrio e da opressão. Revelam displicência,
tirania ou ignorância, pois, além de tudo, envolvem petição de princípio:
com elas, o juiz toma por base exatamente aquilo que deveria demonstrar.300
A falta de fundamentação pode resultar na nulidade do decreto segregatório.
5.5 Requisitos Autorizadores à Decretação da Prisão Preventiva
Há cinco hipóteses autorizadoras da prisão preventiva. Cada qual apresenta
peculiaridades próprias. Não é possível, destarte, se fazer estudo da prisão preventiva levando
300
TORNAGHI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 91-92.
130
em conta apenas as orientações gerais da tutela cautelar do processo penal. Cada uma das
hipóteses, (garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da
instrução criminal, aplicação da lei penal e necessidade de aplicação de medidas protetivas de
urgência nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher), serão apresentadas e
analisadas separadamente.
5.5.1 Prisão preventiva decretada como garantia da ordem pública
É necessário buscar na doutrina a conceituação da expressão. Como a
doutrina é rica em conceituar a ordem púbica, parte-se da definição do dicionarista De Plácido
e Silva pelo fato dela não estar ligada diretamente ao processo penal e ao requisito da prisão
preventiva:
ORDEM PÚBLICA: Entende-se a situação e o estado de legalidade normal
em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as
respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto. Não se confunde com
a ordem jurídica, embora seja uma conseqüência direta desta e tenha a sua
existência formal justamente dela derivada.301
Admitindo-se esta conceituação, há que se considerar, sempre que houver a
quebra do estado normal de legalidade de parte de cidadãos por não respeitarem e acatarem as
atribuições, a autoridade pública competente para tomar medidas visando ao restabelecimento
da normalidade. Em se tratando de fato criminoso, com o tipo penal sendo passível da
301
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Atualizado por Hagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de
Janeiro: Forense, 2003, p. 988.
131
custódia preventiva, ela poderá, em tese, ser decretada, até porque o próprio processo penal
tem, também, finalidade preventiva. João Gualberto Garcez Ramos apresenta definição mais
completa, que atende de forma mais adequada o propósito deste estudo, citando Giuseppe
Vergonttini,
A ordem pública é concebida ao mesmo tempo como uma circunstância de
fato [e] como fim do ordenamento político e estatal e nesse sentido o
encontramos na legislação administrativa, policial e penal como sinônimo
de convivência ordenada, segura, pacífica e equilibrada, isto é, normal e
conveniente aos princípios gerais de ordem, desejados pelas opções de base
que disciplinam a dinâmica de um ordenamento. Nesta hipótese, ordem
pública constitui o objeto de regulamentação pública para fins de tutela
preventiva, contextual e sucessiva ou repressiva, enquanto a jurisprudência
tende a ampliar o conceito material de ordem pública até fazer incluir nele a
execução normal das funções públicas ou o normal funcionamento das
instituições, como a propriedade de importância publicitária (ordem legal
constituída).302
A expressão “garantia de ordem pública” não tem conotação única já que o
fundamento visa a prevenção do cometimento de novos crimes, além de tranqüilizar o meio
social e a credibilidade da Justiça303.
Várias são as formas de violação da ordem pública a ensejar a decretação da
prisão preventiva. Pesquisa efetuada por Paulo Roberto da Silva Passos mostra que a doutrina
brasileira segue os rumos traçados por Frederico Marques:
302
VERGONTINI, Giuseppe. Ordem Pública. In: BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de política. Trad. João Ferreira, Carmem C. Varriale et al. 2. ed. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1986, p. 851. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no
processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 138-139.
303
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 370.
132
Basicamente, quanto à garantia da ‘ordem pública’, os doutrinadores têm
seguido as pegadas de Frederico Marques, que lecionava: desde que a
permanência do réu, livre e solto, possa dar motivo a novos crimes ou cause
repercussão danosa e prejudicial no meio social, cabe ao juiz decretar a
prisão preventiva ‘como garantia da ordem pública’.304
Hélio Tornaghi também admite a decretação da prisão preventiva como
garantia da ordem pública.
A prisão preventiva é medida de segurança processual, tomada nos casos
em que o réu ameaça consumar o crime apenas tentando ou cometer outros.
Observe-se que a ordem pública pode ser posta em risco pela simples lesão
ao particular. Não é necessário que esteja em perigo o Estado, o Governo, a
República ou qualquer semelhante. Da mesma forma que põe em perigo a
paz pública quem faz apologia ao crime, quem incita ao crime, quem se
reúne em quadrilha ou bando, ainda que contra indivíduos (CP. arts. 286,
287 e 288), assim também atenta contra a ordem pública e deve ser preso
preventivamente quem se prepara para cometer crime contra particular. Na
verdade ‘o atentado contra um é ameaça contra todos’ e a ordem pública se
sente convulsionada.305
Júlio Fabbrini Mirabeti justifica a decretação da prisão preventiva como
garantia da ordem pública salientando que
Fundamenta em primeiro lugar a decretação de prisão preventiva a
garantia de ordem pública, evitando-se com a medida que o delinqüente
pratique novos crimes, vitime qualquer outra pessoa, quer porque seja
acentuadamente propenso à prática delituosa, quer, porque, em liberdade,
encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida.
Mas o conceito de ordem pública não se limita a prevenir a produção de
fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria
304
PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e
jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 65.
305
TORNAGUI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 93.
133
credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e da sua
repercussão. A conveniência da medida deve ser regulada pela sensibilidade
do juiz à reação do meio ambiente, à prática delituosa. Embora seja certo
que a gravidade do delito, por si, não basta para a decretação da custódia,
a forma e execução do crime, a conduta do acusado, antes e depois do
ilícito, e outras circunstâncias podem provocar imensa repercussão e
clamor público, abalando a própria garantia da ordem pública, impondo-se
a medida como garantia do próprio prestígio e segurança da atividade
jurisdicional. A simples repercussão do fato, porém, sem outras
conseqüências, não se constitui em motivo suficiente para a decretação da
custódia, mas ela está justificada se o acusado é dotado de periculosidade,
na perseverança da prática delituosa, ou quando denuncia na prática do
crime, perversão, malvadeza, cupidez e insensibilidade moral.306
Vários são os argumentos invocados para a decretação da prisão preventiva
com fundamento na garantia da ordem pública, chamados de fundamentos apócrifos da prisão
preventiva, conforme explica Odone Sanguiné:
[...] como assinala Hassemer, pelo menos desde o início da década de 60,
sabe-se que existem fundamentos apócrifos da prisão preventiva, quando se
argumentou na Alemanha em favor do fundamento do perigo da reiteração,
que na prática era o fundamento da detenção, embora sem base legal,
situando-o apocrifamente no perigo da fuga. Os fundamentos apócrifos da
prisão preventiva – que também podem denominar-se de fundamentos nãoescritos, ocultos ou falsos -, além de supor uma vulneração do princípio
constitucional da legalidade da repressão (nulla coactio sine lege),
permitem que a prisão preventiva cumpra funções encobertas, não
declaradas, mas que desempenham um papel mais importante na práxis
processual do que as funções oficiais propriamente ditas.307
Figuram como fundamentos da prisão preventiva para a garantia da ordem
pública, conforme citação de Júlio Fabbrini Mirabete, as seguintes razões:
306
MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado: referências doutrinárias, indicações
legais, resenha jurisprudencial: atualizado ate julho de 2003. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 803.
307
SANGUINE, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento da prisão preventiva.
Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 9, n. 107, p. 29, 2001, Edição Especial.
134
[...] o clamor público, indicação de delinqüência organizada, participação
em quadrilha armada, autor de crime de roubo, autor de crime de
receptação qualificada, autor de crime gravíssimo, pela credibilidade da
justiça, autor policial militar, para assegurar a integridade da vítima, para
proteger testemunhas de acusação, periculosidade evidenciada no crime,
periculosidade do réu, periculosidade e insensibilidade moral, réu que
cumpria pena em regime aberto, prática de crime hediondo, gravidade do
crime e circunstâncias, repercussão de crime grave, perseverança no
crime.308
Quando se fala em proteção à vida de vítimas ou de testemunhas, os casos
que interessam ao processo têm por objetivo a instrução criminal. Nestes casos, a decretação
tem a finalidade da instrução criminal e não a garantia da ordem pública, enquanto outras são
frutos da interpretação extensiva, vedada, em se tratando de matéria penal, como o clamor
público (objeto de estudo mais aprofundado), gravidade do fato, credibilidade da justiça,
prática de crime hediondo, reincidência e outras, que nada têm a ver com o processo em si e
totalmente alheios à instrumentalidade processual, elemento que, a princípio, é necessário
para a decretação da prisão preventiva.
Fernando Capez expressa a possibilidade da prisão preventiva para “impedir
que agente solto continue a delinqüir, ou, de acautelar o meio social, garantindo a
credibilidade da justiça, em crimes que provoquem grande clamor popular”309:
No primeiro caso há evidente perigo social decorrente da demora em se
aguardar o provimento definitivo, porque até o trânsito em julgado da
decisão condenatória o sujeito já terá cometido inúmeros delitos. Os maus
antecedentes e a reincidência são circunstâncias que evidenciam a provável
prática de novos delitos, e, portanto, autorizam a decretação da prisão
preventiva com base nessa hipótese.
No segundo, a brutalidade do delito provoca comoção no meio social,
308
MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado: referências doutrinárias, indicações
legais, resenha jurisprudencial: atualizado ate julho de 2003. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 804-810.
309
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 243.
135
gerando sensação de impunidade e descrédito pela demora na prestação
jurisdicional, de tal forma que, havendo o ‘fumus boni iuris’, não convém
aguardar-se até o trânsito em julgado para só então prender o indivíduo
[...]
Entendemos que não pode ser decretada a preventiva sem os requisitos da
tutela cautelar; no entanto, tanto no primeiro, quanto no segundo caso,
evidencia-se o ‘periculum in mora’ autorizador da custódia.310
Debates ocorrem acerca da cautelaridade da prisão preventiva decretada
como garantia da ordem pública. Para João Gualberto Garcez Ramos, a prisão preventiva,
embora motivada por situação urgente, seja formal e materialmente sumária, fundada na
aparência, temporária e incapaz de gerar a coisa julgada material, não é cautelar por faltarlhe um requisito essencial: a referibilidade.311
Com base na afirmação, não se pode concordar com Fernando Capez
quando ele assegura que a prisão preventiva por garantia da ordem pública não pode ser
decretada sem os requisitos da tutela cautelar, exemplificando com situação desprovida da
cautelaridade da medida representada pela prisão preventiva, já que nos casos citados, não há
qualquer referência à situação com o processo penal condenatório, pois, no primeiro deles, o
objetivo é impedir que o agente volte a delinqüir, e, no segundo, acautelar o meio social nos
casos de crimes que gerem clamor público.
A ausência da referibilidade, apontada por João Gualberto Garcez Ramos,
refere-se à falta de relação entre a custódia cautelar decretada com fundamento na garantia da
ordem pública com o direito e os fatos discutidos no processo penal condenatório312, já que
não existe relação entre o clamor público, a reiteração de fatos criminosos, a hediondez do
crime e a periculosidade do agente, quando a vítima tem o direito em julgamento.
A segregação cautelar como garantia da ordem pública objetiva, antes de
310
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 244.
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 142.
312
Ibid, p. 141.
311
136
tudo, assegurar os possíveis danos que o réu poderia causar à vida social e aos bens jurídicos
que o Direito Penal protege313. Diante da falta de referibilidade, a coação tem traços de
medida segurança314. Neste sentido também se manifestou Antônio Magalhães Gomes Filho:
Os casos de prisão por garantia da ordem pública ou da ordem econômica
ensejam, na maioria dos casos, uma verdadeira antecipação da punição,
incompatível com a presunção de inocência. Mais do que isso, essas
expressões, longe de representarem conceitos que possam ser claramente
delimitados, constituem, na verdade, artifícios retóricos do legislador, que
possibilitam a superação da rigidez da legalidade estrita, essencial nesta
matéria, autorizando os juízes a utilizarem um amplo poder descricionário
quando apreciam os aspectos da necessidade da prisão cautelar.
Geralmente, a idéia de ordem pública está relacionada às finalidades do
encarceramento provisório, que não se enquadra nas exigências de caráter
cautelar propriamente dita, mas constitui forma de privação antecipada da
liberdade, adotada como medida de defesa social; fala-se, então, em
exemplaridade como imediata reação ao delito, que teria como efeito
satisfazer o sentimento de justiça da sociedade; ou, ainda, em prevenção
especial, assim entendida a necessidade de se evitar novos crimes. Em todas
as situações há, evidentemente, a intenção de fazer prevalecer o interesse da
repressão, em detrimento das garantias individuais.315
Evidencia-se a constatação de que a prisão preventiva como garantia de
ordem pública não tem natureza cautelar. Cabe, então, a indagação: é antecipatória? A
resposta é não. De acordo com o teor do texto do inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição
Federal, ela não pode ter natureza antecipatória. A solução é apontada por João Gualberto
Garcez Ramos.
313
MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 1965, v. 4, p.
49-50. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 1998, p. 141.
314
BATISTA, Weber Martins. Liberdade provisória: modificações da Lei nº 6.416, de 24 de maio de 1977. 2.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 16. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no
processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 141.
315
GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Prisão preventiva e garantias constitucionais: a proporcionalidade
como principio constitucional da prisão cautelar. Questões agrárias, julgados comentados e pareceres.
Organizador Juvelino Jose Strozake. São Paulo: Método, 2002, p. 253.
137
Assim, a conclusão a que se chega é de que a prisão preventiva decretada
por garantia da ordem pública não é cautelar nem antecipatória, mas
medida judiciária de polícia, justificada e legitimada pelos altos valores
sociais em jogo, a magistratura, formada por agentes políticos do Estado,
tem papel suficientemente importante na defesa social que a legitima
politicamente para decretar a medida, não referente, todavia, à atividade
concreta que desenvolve no processo penal condenatório.316
Em posição totalmente antagônica, Luiz Roberto Cigogna Faggioni não
admite que a prisão por garantia da ordem pública, englobando também a ordem econômica,
seja usada como medida de segurança, ou, como medida judiciária de polícia. Ele enumera as
seguintes objeções:
I) Por ela se presume que o réu é o autor do fato de que é suspeito ou
imputado;
II) A prisão preventiva não pode cumprir função de prevenção especial,
função típica da prisão em decorrência de sentença condenatória;
III)Faz-se uma profecia, predição perigosa, para se dizer, no mínimo,
acerca da conduta futura do acusado;
IV) Julga-se a conduta não praticada, nem ao menos iniciada. Julga-se,
portanto, o homem e não o fato (trata-se de verdadeiro direito processual
penal de auto e não de fato);
V) Há que se distinguir entre as atividades de polícia e as medidas
cautelares. Tomar uma por outra é cometer desvio de finalidade. Os
institutos são a sua finalidade. Havendo divergência de finalidades, é
necessário instrumental jurídico divergente;
VI) O processo em que a medida cautelar, com essa finalidade é decretada,
não se destina ao julgamento dos possíveis atos futuros do acusado, mas
sim, ao julgamento de ato determinado que lhe é anterior. Daí, há a
violação do devido processo legal.317
316
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 143.
317
FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível
e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 142-144,
jan./mar. 2003.
138
Há que se salientar que as expressões ordem pública e ordem econômica são
vazias de significado e não passíveis de conceituação, desprovidas dos requisitos da
cautelaridade. Não aceitam, igualmente, a segregação por garantia da ordem pública e ordem
econômica como medida de segurança, Faggioni simplesmente abomina a decretação da
prisão com estes fundamentos318.
5.5.1.1 Da inconstitucionalidade da decretação da prisão preventiva para a garantia da
ordem pública
Defensores da inconstitucionalidade da decretação da prisão preventiva para
garantia da ordem pública invocam, para defender a posição, várias linhas de argumentações,
tendo como origem o princípio de presunção de inocência.
A posição é defendida à luz do Garantismo Penal, idealizado por Luigi
Ferrajoli319, que propõe a intervenção mínima do Estado, já que o indivíduo estaria acima do
Estado, como forma de proteger o indivíduo de abusos e violações de direitos previstos na
Constituição, num sistema de minimização do poder e maximização do saber, assumindo o
processo penal a função de determinar o delito e impor a pena. De outra parte, adota a idéia
como instrumento de preservar as garantias e direitos individuais elencados na Constituição,
contra atos abusivos e arbitrários Aury Lopes Júnior destaca que
318
FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível
e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 142-144,
jan./mar. 2003, p. 149.
319
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2006.
139
instrumentalidade do processo penal é o fundamento de sua existência, mas
com especial característica: é um instrumento de proteção dos indivíduos e
garantias individuais. É uma especial conotação do caráter instrumental
que só se manifesta no processo penal, pois se trata de instrumentalidade
relacionada ao Direito Penal, à pena, às garantias constitucionais e aos fins
políticos e sociais do processo. É o que denominamos de instrumentalidade
garantista.320
Mais uma vez pode-se perceber a ausência da referibilidade alegada por
João Gualberto Garcez Ramos. Por isto, ocorrendo, em conseqüência, a ausência da
cautelaridade da medida representada pela prisão preventiva como garantia da ordem pública.
Sob a ótica garantista, que prima pela intervenção mínima e proteção do indivíduo na forma
das garantias e direitos expressos na Constituição, (entre os está o princípio da presunção de
inocência e da excepcionalidade da prisão processual, mesmo que seja admitida a
possibilidade da prisão preventiva), em hipótese alguma isto se torna possível sob o
fundamento de garantia da ordem pública.
Fernando da Costa Tourinho Filho321 defende a inconstitucionalidade da
prisão preventiva por garantia da ordem pública, de forma veemente, afirmando que a
expressão ordem pública “diz tudo e não diz nada”, e questiona as argumentações do
Ministério Público nas representações pela prisão preventiva, logo do Ministério Público, que
deve aparecer ‘como pilar fundamental do sistema judicial [...]’ Não pode o Ministério
Público afastar-se um palmo sequer da Lei Fundamental.
5.5.1.2 Ordem pública em face do clamor público causado pelo fato criminoso
320
LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2001. p. 13. Apud LIMA, Camile Eltz de. A “garantia da ordem pública” como fundamento da prisão
preventiva: (in)constitucionalidade à luz do garantismo penal. Revista de Estudos Criminais, v. 2, n. 11, p.
149-161, 2003.
321
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Considerações sobre a prisão preventiva. Revista Cejap, a. 6, p. 9,
fev. 2005.
140
Uma das criações jurisprudenciais usadas como fundamento da decretação
da prisão cautelar para a garantia da ordem pública é o clamor público causado por fato. O
clamor público desdobra-se numa série de definições, segundo Odone Sanguiné:
[...] a jurisprudência identifica clamor público com: 1) a repercussão do
crime na comunidade; 2) a preservação da credibilidade do Estado e da
Justiça; 3) a satisfação da opinião pública; 4) a proteção da paz pública; 5)
a comoção social ou popular; 6) o desassossego, temor geral, espanto,
perplexidade, abalo ou inquietação social; 7) a indignação, repulsa
profunda, ou revolta na comunidade; 8) a gravidade do crime e ‘modus
operandi.322.
Fernando
da
Costa
Tourinho
Neto,
semelhantemente,
manifesta
preocupação com a decretação da prisão preventiva de forma indiscriminada, com
fundamento na garantia da ordem pública em face do clamor causado pelo fato:
A prisão preventiva, por não ser pena antecipada, não pode ser decretada
com base no alarma social, no clamor público, na comoção social, no modo
como foi executado o crime, na repercussão do crime na imprensa, para a
proteção da paz pública, para dar satisfação ao público.
[...]
O argumento que o indiciado, ou acusado, dispõe de vultuosas quantias, o
que facilita a articulação no sentido de corromper testemunhas, servidores
públicos, é meramente especulativo, teórico, não passando de mera, simples
suspeita, desconfiança, conjectura. É de perguntar-se: quem será
corrompido? As testemunhas são passíveis de serem corrompidas? Por quê?
O fato de o indiciado, ou acusado, ter recursos, grandes recursos, não
significa, por si só, que ira evadir-se do distrito da culpa. Se esse
entendimento for certo, todo indiciado, ou acusado rico deverá ter sua
prisão preventiva, obrigatoriamente, decretada.
322
SANGUINE, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento da prisão preventiva.
Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 9, n. 107, p. 30, 2001, Edição Especial.
141
Muitas vezes se alega que a prisão preventiva deve ser decretada para não
levar ao descrédito os órgãos de repressão estatal.
A comoção social, muitas vezes, é fabricada pela autoridade policial, ou
pelo Ministério Público com a utilização da mídia.
Agir de acordo com a lei e a Constituição não pode ocasionar o descrédito
das autoridades. O que leva ao descrédito é a falta de apuração dos fatos
tidos como criminosos, é a sensação de impunidade, é a morosidade dos
procedimentos administrativos na Polícia e no Ministério Público e dos
processos em juízo.323
Em nenhuma destas possibilidades há qualquer relação da prisão cautelar
com o processo penal condenatório. É apresentado com a natureza da medida de prevenção,
numa flagrante violação do princípio da presunção de inocência, decretada, geralmente, a
partir das informações da polícia e pelos meios de comunicação que permitem
instrumentalizar sabiamente o alarma social conforme os diversos momentos políticos ou
econômicos324.
De qualquer forma, embora inadmissível a princípio, o clamor social
invocado para fundamentar a decretação da prisão preventiva, na visão da Maria Lucia
Karam, deve ter relação com o processo,
Mas, o que, de todo modo, é inadmissível, por violar os princípios e regras
constitucionais, é este caráter de antecipação punitiva, a significar, em
última analise, uma imposição de pena sem processo.
A garantia da ordem pública, como as demais manifestações do periculum
in mora elencadas no art.312 CPP, há também que dizer que se relacionem
diretamente com os meios e fins do processo. É possível pensar em hipóteses
assim admissíveis – mas, decerto raras – de decretação da prisão preventiva
strictu sensu para a garantia da ordem pública quando se estiver, por
exemplo, diante de uma extrema comoção social provocada pela provável
323
TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Juizados especiais cíveis e criminais: comentários a Lei 9.099/954.
ed. reform. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 572.
324
SANGUINE, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento da prisão preventiva.
Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 9, n. 107, p. 30, 2001, Edição Especial.
142
prática do delito a exigir a imposição da medida para assegurar a
realização do processo eventualmente ameaçado por um clamor de “justiça
pelas próprias mãos.325
Não é papel do Judiciário, através de processo, resolver a questão da opinião
pública:
A opinião pública, sobre o fato delituoso, deve ser preocupação de outras
áreas do Estado que não do Judiciário. Sendo produto midiático, não pode
contingenciar o Poder Judiciário na correta aplicação da lei, sob pena de
comprometer os fundamentos do Estado Social Democrático de Direito, ao
atentar contra as garantias fundamentais a que o réu tem direito e que o
Estado, por sua vez, está obrigado a cumprir.326
O Doutrina Portuguesa327, manifesta a tendência de expurgar o fundamento
do alarma social como causa para a decretação da prisão cautelar ou processual, visto que o
mediatismo do processo não equivale aos pressupostos da prisão preventiva, e tampouco o
processo penal se presta para satisfazer a opinião pública, e sim para seus próprios fins.
5.5.1.3 Ordem pública em face da gravidade do crime
Em razão da ambigüidade do termo ‘ordem pública’, que permite variada
325
KARAM, Maria Lúcia. Prisão e liberdade processuais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 1, n. 2,
p. 89, abr./jun. 1993, p. 85.
326
MARQUES, Durval Bráulio. Uma (re)definição da ordem pública. Revista Síntese de Direito Penal e
Processual Penal, a. 5, n. 27, p. 70, ago./set. 2004.
327
SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In:
ANDRADE, Manuel da Costa (Org.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra
Ed., 2003, p. 1367-1368
143
gama de interpretações, chama a atenção de doutrinadores a decretação da prisão preventiva
com fundamento na ordem pública, invocando-se para a justificação da medida, a gravidade
do delito ou a comoção causada por ele na comunidade328. Luiz Roberto Cicogna Fagioni
explicita dizendo que
Ordem pública e perigosidade. Aqui a gravidade do crime, que seria
entendida como uma manifestação de periculosidade de seu autor,
consentiria na decretação da custódia cautelar. A associação, entretanto,
revela a evidente violação ao princípio da presunção de inocência. O
acusado seria perigoso justamente porque se presume ter ele praticado o
crime grave de que é acusado. Isso significa afirmar que nos crimes graves
a responsabilidade é presumida, e não o inverso. Na verdade, a questão vem
mal colocada. Gravidade é conceito de pouca concreção, já que é variável.
O critério deve ser o da possibilidade da perda da liberdade em decorrência
da sentença condenatória. A prisão preventiva somente pode ser decretada
de um juízo prévio de se chegar à conclusão de que condenado, pode o
suspeito, ou réu, vir a perder sua liberdade. Mas isso, por si só, não basta
(do contrário não haveria cautelaridade, mas antecipação de pena – vedada
pelo princípio da presunção de inocência). São ainda necessários os
pressupostos da prisão cautelar. Diante disso, o que se tem com a gravidade
do delito é a simples constatação que, sendo grave o delito, pelo princípio
da proporcionalidade, deve implicar uma pena que poderá gerar a perda da
liberdade de seu autor. Isso não implica que o suspeito seja o autor. Logo, a
gravidade aproxima a possibilidade de decretação da prisão preventiva,
mas não a determina (devem estar presentes os demais pressupostos como a
necessidade da medida e indícios de autoria).329
Em termos práticos, da afirmação acima infere-se que se presentes os
pressupostos, e a pena em abstrato do fato, resultar na perda da liberdade do acusado, é
possível a decretação da prisão preventiva.
328
MARQUES, Durval Bráulio. Uma (re)definição da ordem pública. Revista Síntese de Direito Penal e
Processual Penal, a. 5, n. 27, p. 69, ago./set. 2004.
329
FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível
e prisão decorrente de decisão de pronúncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 141,
jan./mar. 2003.
144
5.5.1.4 Ordem pública e periculosidade do agente
Fórmula usual invocada para a decretação da prisão preventiva por garantia
da ordem pública está baseada na periculosidade do agente, podendo ser aferida pelo
cometimento de novos crimes ou pela probabilidade de cometê-los, situações explicadas por
Gabriel Bertin de Almeida:
No primeiro caso não há presunção de periculosidade, pois só cometendo
novo crime, subseqüente ao anteriormente cometido, que ensejou o pedido
de prisão, poderia o agente vir a ser preso. Neste sentido já decidiu o STJ
que: A reiteração da mesma conduta criminosa após ter sido beneficiado
com liberdade provisória concedida mediante pagamento de fiança indica
personalidade diretamente direcionada ao crime, o que justifica sua prisão
preventiva como garantia da ordem pública.330
A periculosidade só se justifica se o acusado continuar a praticar crimes,
repugnando qualquer tipo de presunção.
Sem dúvida, não há como negar que a decretação da prisão preventiva com
o fundamento de que o acusado poderá cometer novos delitos baseia-se,
sobretudo, em dupla presunção: a primeira, de que o imputado realmente
cometeu o delito; a segunda, de que, em liberdade e sujeito aos mesmos
estímulos, praticará outro crime ou, ainda, envidar esforços para consumar
o delito tentado.331
330
STJ, RHC, rel Min. Vicente Leal. DJU 23.11.1998, p. 211 (FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (Coord).
Código de processo penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: RT, 1999, p. 1979. Apud
ALMEIDA, Gabriel Bertin. Afinal, quando é possível a decretação de prisão preventiva para a garantia da ordem
pública? Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 44, p. 75, jul./set. 2003.
331
DELMANTO JUNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. 2. ed. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001, p. 179. Apud ALMEIDA, Gabriel Bertin. Afinal, quando é possível a decretação de
prisão preventiva para a garantia da ordem pública? Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 44, p.
76, jul./set. 2003.
145
De acordo com Gabriel Bertin de Almeida, grande parte dos que se
posicionam dessa forma (presumindo a periculosidade do agente) indica como ‘indícios’ da
periculosidade justificadora da prisão a reincidência e os maus antecedentes [...]332.
A primeira situação, que salta aos olhos, para justificar a não decretação da
prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública, justificada com base na
periculosidade do indiciado ou réu, é a inexistência das diversas características da tutela
cautelar.
Outras motivações também são apresentadas como forma de demonstrar a
inconsistência da decretação da prisão preventiva por garantia da ordem pública, com base na
periculosidade do agente.
Gabriel Bertin de Almeida vale-se da teoria da prevenção para discordar da
aplicação do fundamento ordem pública com base na restauração da credibilidade da justiça,
acautelamento social, existência de clamor público, periculosidade do agente, para a
decretação da prisão preventiva. Justifica.
A prisão cautelar não pode basear-se em nenhuma das formas de
prevenção? Conforme verificado, segundo nossa doutrina e jurisprudência,
a prevenção geral, positiva e negativa, e a prevenção especial positiva não
são fundamentos da prisão cautelar. Por que? Justamente porque, segundo
nossos tribunais, o chamado periculum libertatis não se configura nesses
casos, motivo pelo qual a instrumentalidade desse tipo de prisão não se faz
presente. Por isso, não seria o caso de contrariar o consagrado princípio de
presunção de inocência, que diz que ninguém será considerado culpado até
o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5º, LVII). Dessa
forma, o que se tem é a intimidação, a confiança institucional no sistema e o
caráter ressocializador da pena não se coadunam com o princípio
constitucional acima referido e, por isso, só devem fazer-se presentes na
prisão pena, e não também na prisão cautelar. A restauração da
credibilidade da Justiça, a necessidade de acautelar-se o meio social, a
gravidade do crime cometido e a existência do clamor público têm,
332
ALMEIDA, Gabriel Bertin. Afinal, quando é possível a decretação de prisão preventiva para a garantia da
ordem pública? Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 44, p. 75-76, jul./set. 2003.
146
nitidamente, funções de prevenção geral, o que não se pode admitir.333
A decretação da prisão preventiva para a garantia da ordem pública, com
base na periculosidade do agente, é contrário ao direito penal de ato, que o caso, do Direito
Penal Brasileiro, pois a periculosidade por si só, não justifica a privação da liberdade na
própria condenação, com muito mais argumentos, não pode justificar a prisão processual334.
5.5.2 Prisão preventiva decretada para a garantia da ordem econômica
A decretação da prisão preventiva por garantia da ordem econômica foi
introduzida ao artigo 312, do Código de Processo Penal, por força da lei nº 8.884, de 11 de
julho de 1994, conhecida como lei antitruste.
O artigo 170, da Constituição Federal, embora não conceituando a ordem
econômica, relaciona os fundamentos e enumera os seus princípios informadores:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional,
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
333
ALMEIDA, Gabriel Bertin. Afinal, quando é possível a decretação de prisão preventiva para a garantia da
ordem pública? Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 44, p. 75-76, jul./set. 2003, p. 75-76.
334
Id
147
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI – defesa do meio-ambiente;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas
sob as leis brasileiras e que tenham a sua sede e a administração no país.335
José Cretella Junior define a dimensão constitucional de ordem econômica,
ao destacar que
A expressão ordem econômica designa, com as expressões ordem política e
ordem social, um universo presidido por princípios e regras rígidas, que as
informam, assegurando-lhes condições de existência, resguardo e equilíbrio,
endereçando-se, em cada Estado, a regra jurídica constitucional e a lei
contra qualquer tipo de ato atentatório perturbador da atividade humana,
no seio de cada ordem. [...]
De acordo com a Constituição vigente, a ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar
a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados certos princípios enumerados pela regra jurídica
constitucional.336
João Gualberto Garcez Ramos considerando a ordem econômica como
especialização da ordem pública, assim a define:
335
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005.
336
CRETELLA. JR, Jose. Elementos de direito constitucional. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais. 2000, p. 243-244.
148
Na mesma linha de raciocínio, a ordem econômica é, faticamente, a
convivência ordenada dos agentes econômicos e, normativamente, o
conjunto das regras que garante a segurança e a liberdade das relações de
produção e circulação de riquezas, bem como das que garantem a
valorização do trabalho humano.337
Paulo Roberto da Silva Passos338 destaca que não há razão de existir da
bipartição “ordem pública” – “ordem econômica”, afirmando que os sobressaltos decorrentes
de ataques à ordem econômica, atingirá, indubitavelmente a ordem econômica.
Sempre que os fundamentos ou princípios previstos no artigo 170 da
Constituição Federal forem de qualquer forma atingidos, haverá, por conseqüência, o atentado
à ordem econômica, possibilitando, em tese, a decretação da prisão preventiva para garantir a
ordem econômica.
Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, ao comentar a prisão preventiva,
observa que
Lei modificativa do Código de Processo Penal acrescentou a ordem
econômica (art. 86 da Lei 8.884/94). E, de novo, convém repelir a
‘porosidade’. A evidência, no objeto jurídico-penal ordem econômica não
serve para o encontro do conceito processual penal (arts. 4º, 5º, 6º, bem
como respectivos incisos, da Lei 8.137/90 e arts. 1º, e 2º da Lei 8.176/91).
Menos ainda, a imagem constitucional (art. 170 e incisos). Já antes não se
procurou a idéia da paz pública, no Código Penal (arts. 286 a 288).
Observa-se, pela ordem econômica, e os interesses da sociedade, a ela
pertinente. A ordem econômica, em palavras simples, integra a ordem
pública. Violar, ou ameaçar a economia gravemente, sem atingir a ordem
pública, parece impossível. Tenha-se em mente, contudo, que tão só,
quebranta, ou coloca em grave risco, a ordem econômica o comportamento
que compromete, de forma concreta, o funcionamento do específico sistema,
ou de parte dele. Fere, portanto, a ordem econômica material tudo quanto
atingir, por impacto frontal, a ponto de tirar a paz dos povos. Enseja prisão
337
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 144.
338
PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e
jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 65-66.
149
preventiva, porém e tão só a mencionada situação real que convenha ao
processo de conhecimento de índole condenatória.339
Semelhantemente à prisão preventiva decretada para a garantia da ordem
pública, a segregação decretada para a garantia da ordem econômica também não apresenta as
características de medida coercitiva cautelar, visto que está ausente a referibilidade, conforme
expõe João Gualberto:
A medida de prisão preventiva para a garantia da ordem econômica, como a
anterior, não é, obviamente, cautelar, porque não se refere a uma situação
de periclitação do direito (pretensão condenatória e pretensão executória)
ou do instrumento (processo penal condenatório), visa à defesa dos
referidos valores econômicos e sociais. Também não é antecipatória, pois
fundada em razões externas ao processo penal condenatório. Isto é, não é
referível à pretensão condenatória em jogo.
Em síntese, a prisão preventiva decidida por garantia da ordem econômica
não é cautelar nem antecipatória, mas medida judiciária de polícia.340
Fernando da Costa Tourinho Filho classifica a medida como esdrúxula e
propõe alternativa à aplicação da medida extrema.
Sua esdruxularia repousa na circunstância de não ser ela a medida ideal
para coibir os abusos contra a ordem econômica. Antes, tem acentuadas e
inequívocas funções repressivas. Se a medida visa a preservá-la, evitando a
339
PITOMBO, Sergio Marques de Mores. Prisão preventiva, em sentido estrito. In: PENTEADO, Jaques de
Camargo (Coord.). Justiça penal, 7: críticas e sugestões: justiça criminal moderna: proteção à vítima e à
testemunha, comissões parlamentares de inquéritos, crimes de informática, trabalho infantil, tv e crime. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 128.
340
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 145.
150
ganância, a auri sacra fames, o certo seria adotar uma medida que seja
espécie de medida de segurança, à maneira daquelas que havia, entre nós,
até antes da reforma da parte geral do nosso Código Penal. Que se
estabeleçam sanções contra a empresa, como, por exemplo, seu fechamento
por determinado tempo... Se a farmácia vende um produto por preço
extorsivo, que se instaure processo crime contra o proprietário e, ao mesmo
tempo, que se aplique, provisoriamente, esta ou aquela medida de segurança
de natureza patrimonial em relação ao estabelecimento. Os resultados
seriam bem melhores... Para o ganancioso, meter-lhe a mão no bolso é
castigo maior.341
Está evidente que a decretação da prisão preventiva por garantia da ordem
econômica não é medida de natureza cautelar, porém, o atentado à ordem econômica justifica
a segregação provisória, conforme defende Áureo Rogério Gil Braga.
Contexto que permite antever a estrutura dorsal desta modalidade de
segregação provisória. Primeiro porque estabelece um comportamento
processual distinto e não imiscuído nas demais possibilidades de prisão
provisória: prisão temporária, prisão em flagrante, prisão em decorrência
de sentença de pronúncia e prisão em decorrência de sentença penal
condenatória recorrível. Modalidades de custódia provisória, por ora,
distintas do específico objeto de indagação do presente trabalho. No mais,
deve-se realçar os contornos específicos às prisões privativas de liberdade
definitiva e preventiva, impossibilitando-se confundir os efeitos genéricos
daquela (repressão e prevenção) com o caráter instrumental desta medida
(cautelar). Com efeito, na precisa lição de Paulo Rangel,342 não há que se
imiscuir um juízo de periculosidade com culpabilidade.
Estabelecida tal premissa, insta acrescer que a antevista possibilidade de
decretação da prisão preventiva junto aos crimes contra a ordem tributária
está direcionada ao cenário da macrocriminalidade e suas inferências e
desdobramentos neste âmbito específico. Isso, porque não é possível dar o
mesmo tratamento legal para situações que exigem uma imediata resposta
do poder de império da lei.343
341
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 476-477.
342
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999, p. 272. Apud BRAGA,
Áureo Rogério Gil. A decretação da prisão preventiva em sede da ocorrência de condutas criminosas contra a
ordem tributária. Revista dos Tribunais, a. 92, n. 814, p. 457, set. 2003.
343
BRAGA, Áureo Rogério Gil. A decretação da prisão preventiva em sede da ocorrência de condutas
criminosas contra a ordem tributária. Revista dos Tribunais, a. 92, n. 814, p. 458, set. 2003.
151
Áureo Rogério Gil Braga, citando Eduardo Frederico de Andrade Carvalho,
assevera que
A prática reiterada e permanente de crimes de colarinho branco – no caso,
sonegação fiscal – com grave repercussão financeira negativa ao erário,
representa uma ameaça permanente à ordem pública, representando uma
periculosidade silenciosa, maligna, amorfa e sub-retícia alarmante que
merece, por parte do Judiciário, uma enérgica e corajosa tomada de atitude
para coibir, quando chamado a atuar dentro do devido processo legal, a
prática desses delitos causadores da falência da nação. Esse objetivo
pertinaz de lesar os cofres públicos atenta, sem sombra de dúvida, contra os
princípios básicos da Constituição Federal, contra os direitos e garantias
fundamentais, contra os direitos sociais e até da organização dos poderes
do Estado.344
A disseminação de práticas que atentem contra os fundamentos e princípios
constitucionais que norteiam a ordem econômica encontra campo fértil ante a vontade
legislativa de descriminalizar tais condutas. A manifestação desta intenção pode ser
exemplificada nas seguintes elaborações legislativas:
extinção da punibilidade pelo pagamento (art. 34 da lei 9.249/95);
a tentativa da vinculação da instância judicial ao encerramento do
procedimento administrativo fiscal (art. 83 da lei 9.430/96);
a possibilidade da substituição da pena privativa de liberdade até 4 anos
por penas restritivas de direitos (art. 44 da CP);
os programas de refinanciamentos de dívidas fiscais (Refis); e,
as disposições limitativas da atividade fiscal e das atribuições do Ministério
Público à persecução destas espécies delitivas, ambas inseridas no Projeto
344
BRAGA, Áureo Rogério Gil. A decretação da prisão preventiva em sede da ocorrência de condutas
criminosas contra a ordem tributária. Revista dos Tribunais, a. 92, n. 814, p. 458, set. 2003.
152
do Código do Contribuinte em tramitação no Congresso Nacional (Projeto
de Lei do Senado Federal 646/99).345
Com propriedade, Paulo Roberto da Silva Passos, em estudo sobre a
matéria, assegura que além disso, o passeio pela história da Justiça Penal Brasileira leva a
concluir que não é de nossa tradição punir os delitos econômicos, a não ser nas raras
ocasiões em que as injunções político-partidárias tal o exijam346.
A alteração introduzida no Código de Processo Penal pela lei nº 8.884, de
11 de julho de 1994, ataca a macrocriminalidade organizada, marcada pela mescla de
atividades lícitas e ilícitas, tendentes a mascarar o perfil e a empresa criminosa idealizada e
concretizada347, nos quais os crimes, geralmente, são de difícil identificação, visto que as
organizações criminosas, necessariamente, são compostas por especialistas, além de contarem
com a colaboração de pessoas infiltradas nos mais diversos setores da sociedade.
Isto fica evidenciado na classificação de organizações criminosas feita por
Rodolfo Tigre Maia, citado por Áureo Rogério Gil Braga:
ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS. UMA TIPOLOGIA.
17. São incontáveis as OC em atuação em todo o mundo. Adotando,
parcialmente, apenas para fins de ilustração, o mesmo critério usado por
Donald Lavey, membro do FBI e dirigentes da Interpol, e acrescentando
categorias adicionais consentâneas com nossa visão da matéria, podemos
dividir as organizações criminosas em cinco grupos:
345
BRAGA, Áureo Rogério Gil. A decretação da prisão preventiva em sede da ocorrência de condutas
criminosas contra a ordem tributária. Revista dos Tribunais, a. 92, n. 814, p. 458, set. 2003.
346
PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e
jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 65.
347
BRAGA, op. cit., p. 456.
153
o primeiro inclui organizações caracterizadas pela presença de ‘hierarquias
estruturadas, regras internas de disciplina, código de ética e diversidade de
negócios legais e ilegais [...]’, nas quais já existe um equilíbrio entre as
atividades ilícitas e as resultantes da infiltração da empresa em negócios
legítimos, além de uma intensa atuação internacional e redução do nível de
violência em prol do incremento da corrupção [...];
o segundo grupamento pode ser designado por ‘organizações profissionais’,
‘profissionais porque seus membros são especializados em uma ou duas
atividades ilegais específicas [...]’;
o terceiro grupo é formado por quadrilhas integradas ou comandadas por
colarinhos brancos que utilizam a criação de instituições financeiras,
formalmente autorizadas ou não a funcionar pelo governo, como ‘fachada’
para a prática de ilícitos no âmbito do sistema financeiro e da economia
popular, ou, com a mesma finalidade, aproveitam-se dos lugares-chaves que
ocupam em empresas legitimamente constituídas [...];
o quarto grupo é representado pela criminalidade do Estado, entendida não
como o conjunto de atos ilícitos (corrupção, concussão, etc) praticados por
funcionários públicos beneficiados individualmente por tais práticas, mas
por organizações incrustadas no aparelho do Estado para a prática de
crimes (ex., grupos de fiscais corruptos, grupos de extermínio composto por
policiais) [...];
o último e mais controvertido grupo congrega as organizações terroristas
que permanecem em atuação, inclusive internacionalmente, praticando
atentados contra pessoas e bens, muitas vezes com uso de explosivos [...].348
Os crimes praticados por qualquer um dos grupos há pouco descritos são de
difícil averiguação e constatação, e, com exceção do último, (cujos crimes se apresentam
repugnantes), nos demais, em razão do não uso de violência, embora danosos à sociedade no
seu conjunto, não despertam a atenção negativamente, o mesmo acontece em razão da
abrangência, tendo divulgação limitada ou distorcida pela grande mídia, que, igualmente, se
beneficia do resultado das atividades destes grupos, dificultando, sobremaneira a aplicação da
prisão preventiva, com fundamento na garantia da ordem econômica.
348
MAIA, Rodolfo Tigre. O Estado desorganizado contra o crime organizado. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
p. 27-34. Apud BRAGA, Áureo Rogério Gil. A decretação da prisão preventiva em sede da ocorrência de
condutas criminosas contra a ordem tributaria. Revista dos Tribunais, a. 92, n. 814, p. 456, set. 2003.
154
5.5.2.1 Prisão preventiva decretada pela magnitude da lesão ao sistema financeiro
artigo 30 Lei 7.492/86
Conhecida como a lei do colarinho branco, a lei 7.492/86 tem por bem
jurídico protegido o sistema financeiro nacional, conforme ensina Weliton Militão dos Santos:
Conclui-se, inarredavelmente, ser o Sistema Financeiro Nacional o bem
jurídico materializado pela Lei 7.492, de 16/6/1986, isso, de maneira
imediata, consubstanciando-se, de maneira mediata, na propriedade
inerente a cada qual que possui toda espécie de ativo financeiro, cuja
fidúcia repousa no aludido sistema.349
Além da definição de crimes contra o sistema financeiro nacional, entre
outras providências procedimentais a prisão preventiva está prevista expressamente no artigo
30, da lei 7.492/86, verbis:
Art. 30. Sem prejuízo do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal,
aprovado pelo dec.-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941, a prisão preventiva
do acusado da prática de crime previsto nesta lei poderá ser decretada em
razão da magnitude da lesão causada (vetado)350.
Este texto foi alvo de duras críticas. Exemplo é a manifestação de Manoel
Pedro Pimentel, citado por João Gualberto Garcez Ramos:
349
SANTOS, Weliton Militão dos. Lei 7.492/86: os artigos 30 e 31 da Lei 7.492/86 e o principio inocência;
confronto com o artigo 32 do CPP. Revista da AJUFE: Associação dos Juizes Federais do Brasil, a. 18, n. 60, p.
88, jan./mar. 1999.
350
Id.
155
A verdade é que este artigo [...] não deveria existir. É inteiramente
desnecessário para os fins colimados. Ressalvando que o dispositivo se
aplica sem prejuízo do disposto no art. 312 do CPP (e seria displicência a
menção ao decreto-lei que o editou, uma vez que ao tempo da promulgação
da lei em estudo o único Código de Processo Penal em vigor era aquele) o
legislador não trouxe, além do que já estava estatuído, nenhuma novidade.
Dizendo que a prisão preventiva poderá ser decretada em razão da
magnitude da lesão causada, mas sem prejuízo do disposto no art. 312 da lei
adjetiva penal, a norma apenas apontou um motivo que já se encontrava
implícito na expressão garantia da ordem pública, inserida no artigo 312 da
lei penal. A relevância do motivo para a decretação da prisão preventiva –
ao examinar o requisito da garantia da ordem pública, certamente deve ser
ponderada pelo juiz.
Por outro lado, como se há de aferir esse elemento normativo – magnitude
da lesão causada – se não for através do critério subjetivo, que pode variar
amplamente, já que a lei não define quantitativa ou qualitativamente tal
magnitude.351
João Gualberto Garcez Ramos aprofunda a análise sobre a possibilidade da
decretação de prisão preventiva em razão da magnitude da lesão causada ao sistema
financeiro nacional. Ele dispõe a questão sob a ótica do binômio antecipação da tutela versus
cautelaridade da medida. Citando situação hipotética, expõe que
é imaginável uma hipótese de macro-lesão sem perigo à credibilidade do
sistema financeiro nacional como um todo. Um crime desse jaez, que
envolva os patrimônios de um número certo de investidores, sem a mais
remota possibilidade de atingimento de outros, pode envolver situação de
macro-lesão sem perigo à credibilidade do sistema inteiro. O dano é
enorme, mas está perfeitamente circunscrito a um número, maior ou menor
de investidores, e os demais investidores, nem por hipótese, sentem-se
ameaçados.
Pois bem. Aplicada a regra a uma situação como essas, estaria ocorrendo a
antecipação de uma condenação só pelo fato da magnitude da lesão. Essa
antecipação não está tipicamente autorizada pela Constituição, como em
outros casos. Daí poder-se afirmar que a aplicação pura e simples da regra
351
PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o sistema financeiro nacional: comentários á Lei n. 7.492, de
16/6/86. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 191. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de
urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 145.
156
contida no artigo 30 da Lei 7.492/86, sem a ocorrência de perigo real à
ordem econômica, é inconstitucional352.
Nesta hipótese fica fácil imaginar que os danos resultantes ao sistema
financeiro e à ordem econômica nacional, em razão de possível decretação da prisão
preventiva, seriam maiores do que os causados pela atividade criminosa propriamente dita, já
que ela atingiria número certo de investidores, enquanto a notícia da segregação cautelar
poderia atingir e influenciar o sistema todo.
Considerando a tendência jurisprudencial no sentido de que a decretação da
prisão preventiva por magnitude da lesão causada somente teria cabimento se contasse com
pelo menos um dos pressupostos do artigo 312 do Código de Processo Penal353, Weliton
Militão dos Santos defende a aplicação da medida, nos termos como está exposta no artigo 30,
da Lei 7.492/86:
Em que pese a tendência complacente, de modo a prestigiar o princípio da
inocência com o status libertatis elevado à derradeira potência, como se o
princípio geral do in dúbio pro reo também fosse aplicado durante o
tramitar processual, ou que durante a apuração não preponderasse a
exceção a tal regra, ou seja, o in dúbio pro societa, o certo é que a
magnitude da lesão está sempre a autorizar a decretação da prisão
preventiva, ainda que seja o único elemento justificativo para o exercício do
poder geral de cautela, eis que, como já mencionado, estando como
garantidora do direito de propriedade, constitucionalmente assegurado,
portanto, bem jurídico de elevado potencial, não poderia ser vista como
inoperante, ou como letra morta constante do artigo, tendo de ser lembrado
352
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, 146.
353
“[...] a exemplo do que tem decidido os Egrégios Tribunais Federais das 2ª, 3ª, 4ª e 5ª Regiões, quase
indiscrepantemente, bem como de algumas Turmas Isoladas do Eg. Tribunal Federal da 1ª Região, cujo
entendimento ocorre no sentido de que a magnitude da lesão só teria sentido para a decretação da prisão
preventiva caso estive conformada com pelo menos um dos pressupostos previstos no prefalado art. 312 [...]”
SANTOS, Weliton Militão dos. Lei 7.492/86: os artigos 30 e 31 da Lei 7.492/86 e o princípio inocência;
confronto com o artigo 32 do CPP. Revista da AJUFE: Associação dos Juizes Federais do Brasil, a. 18, n. 60, p.
88, jan./mar. 1999, p. 92.
157
ensinamento do inigualável LIEBMAN, para quem na lei não existem
palavras ociosas.354
O autor critica a prisão pela magnitude da lesão causada no sentido da sua
perenidade, enquanto os pressupostos do artigo 312 do CPP são todos de natureza sazonal,
fato que, segundo alguns doutrinadores, por si só bastaria para não aplicar a tutela cautelar.
Weliton Militão dos Santos acentua que, com muito mais razão há que se aplicar a prisão
preventiva, porque o sentido de perenidade e a magnitude da lesão justificam o juiz a lançar
mão do poder geral de cautela.
O autor entende que a prisão não ofende o princípio da presunção de
inocência ante o permissivo constitucional (art. 5º, LXI CF), que estabelece a possibilidade da
prisão fundamentada.
5.5.3 Prisão preventiva decretada por conveniência da instrução criminal
A prisão preventiva também pode ser decretada como forma de assegurar a
instrução criminal, fórmula viável de ser interpretada sob vários ângulos. Partindo-se da
definição jurídica do vocábulo, temos:
Instrução. Na terminologia forense é empregada para exprimir a soma de
354
SANTOS, Weliton Militão dos. Lei 7.492/86: os artigos 30 e 31 da Lei 7.492/86 e o princípio inocência;
confronto com o artigo 32 do CPP. Revista da AJUFE: Associação dos Juizes Federais do Brasil, a. 18, n. 60,
p. 88, jan./mar. 1999, p. 92-93.
158
atos e diligências que, na forma das regras legais estabelecidas devem ou
podem ser praticados, no curso do processo, para que se esclareçam as
questões ou fatos que constituem o objeto da demanda ou do litígio [...]
Tecnicamente evidencia-se a reunião ou procura de provas, conseqüentes
dos atos praticados ou das diligências feitas, que determinam a procedência
ou improcedência dos fatos alegados, quando em processo civil ou, dos
fatos imputados a alguém, quando em processo penal.355
A partir desta definição, sempre que houver, de qualquer forma, influência
no sentido de impedir, dificultar, ou influir na reunião ou procura de provas, objetivando
demonstrar os fatos imputados a alguém, no processo penal poderá ser decretada a prisão
preventiva.
A influência na reunião e procura de provas pode ocorrer de várias formas,
conforme explicita João Gualberto Garcez Ramos:
É razoável pensar que a maior parte da doutrina do processo penal
considera que a dita fórmula refere-se à necessidade urgente de por cobro,
através da prisão, à atuação ilegal do acusado contra as provas que talvez
sejam produzidas no processo.356 Tal atuação deletéria, ainda segundo a
doutrina majoritária, dá-se através de ameaça ou aliciamento de
testemunhas, da destruição de provas documentais, de vestígios ou pegadas,
através da peita ou tentativa de corrupção de outros auxiliares da justiça e
outras situações análogas. Acerca dessa espécie de prisão, escreve Galdino
Siqueira que, como meio de instrução, ela tem por função evitar que o
delinqüente faça desaparecer os vestígios do crime, que suborne
testemunhas, que se concerte com os cúmplices para o plano de evitar a
descoberta da verdade.357
355
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Atualizado por Hagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de
Janeiro: Forense, 2003, p. 753.
356
Cf. NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1971, p. 163;
BATISTA, Weber Martins. Liberdade provisória: modificações da Lei 6.416 de 24 de maio de 1977. 2. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 17; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 18. ed. São
Paulo: Saraiva, 1997, v. 3, p. 478-479; JARDIM, Afrânio da Silva. Visão sistemática da prisão no código de
processo penal. In: _____. Direito processual penal: estudos e pareceres. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1995, p. 364. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo: Atlas, 1991, p. 369 apud RAMOS, João
Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 132.
357
SIQUEIRA, Galdino. Curso de processo criminal. 2. ed. São Paulo: Livraria Magalhães, 1930, p. 129.
Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte:
Del Rey, 1998, p. 132.
159
Fernando da Costa Tourinho Filho manifesta-se, de forma incisiva,
contrariamente a prisão preventiva por garantia de ordem pública. Admite, todavia, a medida
como necessidade da instrução criminal:
Assim, se o indiciado ou réu estiver afugentando testemunhas que possam
depor contra ele, se estiver subornando quaisquer pessoas que possam levar
ao conhecimento do Juiz elementos úteis ao esclarecimento do fato, peitando
peritos, aliciando testemunhas falsas, ameaçando vítimas ou testemunhas, é
evidente que a medida será necessária, uma vez que, do contrário, o Juiz
não poderá colher, com segurança, os elementos de convicção de que
necessitará para desate do litígio penal. Aí, sim, o poder coercitivo do
Estado se justifica para impedir que o réu prejudique a atividade
jurisdicional.358
Fernando Luiz Ximenes Rocha adverte ao sentenciar que não se deve
confundir a destruição de provas com a sonegação por parte do acusado de elementos
probatórios que lhe sejam desfavoráveis, uma vez que ninguém pode ser compelido a fornecer
meios de provas contrários à sua defesa. Afinal, compete à acusação obtê-los com o auxílio da
polícia judiciária. Constranger o indiciado a isto é afrontar o seu sagrado direito de ampla
defesa, assegurado constitucionalmente.359
Considerara-se para fins da decretação da prisão preventiva, não somente a
influência do acusado nas provas que estão sendo produzidas no processo, mas, sua influência
na fase processual em que se dá a atividade instrutória360.
Há a possibilidade da decretação da prisão preventiva por conveniência da
358
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Considerações sobre a prisão preventiva. Revista Cejap, a. 6, p. 9,
fev. 2005, p. 11.
359
ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. A Constituição e a prisão penal cautelar. Revista do Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária, p. 61, jul./dez. 1993.
360
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 134.
160
instrução criminal quando o próprio imputado interessa ao processo, já que o acusado é
também prova no processo361, sendo sua presença necessária para esclarecimentos úteis ao
processo, à sua própria defesa e para o seu reconhecimento, caso em que, necessariamente, há
a exigência da sua presença.
Merece destaque a observação feita por João Gualberto Garcez Ramos362 à
afirmação de Vicente Greco Filho, salientando que a decisão que decreta a prisão preventiva
por conveniência da instrução criminal não pode ser colocada em termos de conveniência,
mas em termos de necessidade363. O professor paranaense justifica ilustrando com caso
hipotético no qual o imputado faz ameaças a uma testemunha, de um total de cinco, acabando
por matá-la, restando quatro. Neste caso, a prisão cautelar se apresentaria como conveniente,
porém, não como necessária.
No mesmo sentido, Hélio Tornaghi garante que melhor seria que se
houvesse dito: necessidade para a instrução criminal. De qualquer modo, tratando-se de
providência restritiva de liberdade, deve entender-se conveniente a prisão para a instrução
criminal somente quando estritamente necessária, isto é, quando sem ela a instrução não se
faria ou se deturparia. 364
A simples falta aos atos processuais, ainda que reiterada, de acordo com
Hélio Tornaghi365, não justifica o decreto segregatório cautelar por conveniência da instrução
criminal, pois o juiz pode lançar mão de meio menos oneroso e, igualmente eficaz, consistente
na condução forçada do réu, conforme previsão do artigo 260, do Código de Processo Penal.
Num confronto entre os requisitos gerais do procedimento cautelar do
361
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 134..
362
Id..
363
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 243. Apud RAMOS,
João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998,
p. 134.
364
TORNAGUI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 93.
365
Id.
161
processo penal percebe-se a perfeita congruência entre elas e a natureza jurídica da prisão
preventiva, decretada por conveniência da instrução criminal, visto que motivadas pela
urgência, sendo formal e materialmente sumária, fundada na aparência, é temporária, não
gera coisa julgada material, apresenta ‘com a situação de perigo e conectada a persecutio
criminis366.
Considerando a excepcionalidade da medida e a circunstância de ser a
prisão preventiva decretada por conveniência da instrução criminal, a duração da medida
cautelar instrumental do processo penal deverá ser limitada ao tempo em que se fizer
necessária. Decretada a custódia em razão de ameaça às testemunhas, que, ouvidas, cessa a
necessidade da prisão. Da mesma forma, sendo necessária a presença do acusado em
audiência, quer para reconhecimento ou para outros esclarecimentos, uma vez ouvido, deverá
ter revogada a prisão.
Situação interessante levantada por Paulo Roberto da Silva Passos consiste
na interferência da atividade instrutória em favor do acusado, por terceira pessoa que não o
acusado, mas sendo ele quem tem a prisão preventiva decretada:
Nos reportamos aos casos, não incomuns, em que terceiras pessoas,
dizendo-se interlocutoras do acusado, tomam as atitudes reprovadas pela
doutrina supra-citada, comumente se prestando ao constrangimento de
testemunhas.
Presente no processo a notícia de ameaça, não raramente, o juiz determina
a custódia preventiva, invocando em sua decisão a figura em estudo
(‘conveniência da instrução’).
Também ao nosso ver, nesse caso, a cautela deve ser redobrada, na análise
da prova pelo julgador.
Com efeito, ainda deve fazer parte da motivação, para que a argumentação
366
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 136-137.
162
judicial se revista da legalidade esperada, a discussão sobre o caso em tela,
quando se apresenta a situação.
Não basta, daí em silogismo errôneo, ou simplista por excelência, concluirse que se o benefício da ameaça canalizou-se em direção do réu, deve ele,
obrigatoriamente, ser encarcerado para que seja preservada a instrução.367
O caso é ilustrado na análise do processo nº 5.181.120 do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo368, caso que ganhou notoriedade. O réu Igor Ferreira da Silva,
integrante, à época, do quadro do Ministério Público do Estado de São Paulo, acusado de ter
matado a esposa, teve a prisão preventiva decretada para garantir a instrução processual,
embora, reconhecidamente, tenha participado de qualquer das diligências dos fatos
determinantes da decretação da custódia cautelar:
Embora o denunciado Igor Ferreira da Silva não tenha comparecido aos
locais já mencionados...(fls10), o Sr. Procurador Geral da Justiça, intuindo
que o acusado participara da manobra que o beneficiaria (embora prova
alguma apontasse, concretamente, quanto a tal), entendem por bem
requerer-lhe a prisão preventiva sob o fundamento de que ‘assim torna-se
evidente que, caso o denunciado permaneça solto, continuará a fazer
manobras fraudulentas para fazer provas no processo e poderá assim,
perseguir e intimidar testemunhas ou suprimir provas [...] Há a necessidade
de se assegurar a aplicação da lei penal, evitando novas manobras
criminosas dessa espécie, sendo conveniente, ainda, para a instrução
criminal, que o denunciado seja preso, pois irá, certamente tumultuar o
processo, mercê de tramas e fraudes semelhantes às ora reveladas’ (fls.
10/11).369
A representação pela prisão preventiva foi acolhida pelo Tribunal de Justiça
367
PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e
jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 70.
368
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Processo nº 5181120. Apud PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão
e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 71.
369
PASSOS, op. cit., p. 70-71.
163
do Estado370 de São Paulo. Paulo Roberto da Silva Passos relata voto do desembargador Alves
Braga, que justificou
Dir-se-á há não haver prova de que o indiciado houvesse participado
daquela tentativa de, mediante pagamento em dinheiro e outras vantagens,
encontrar para impor a autoria do crime, um capro espiatore qualunque.
Mas cui bono? A quem aproveita todo o empenho de seu pai e seus irmãos,
outorgados seus advogados, em montar aquela encenação...? Não há prova
direta de que o indiciado participou das negociações para que Genivaldo
assumisse, mediante compensação, autoria da morte de Patrícia. Mas, é
claro que não iria o denunciado inteligente e solerte, como informam os
colegas, participar pessoalmente daquela farsa. Deixou a cargo de seu
irmão, seu advogado, o contato com o preso e sua amásia [...] Os indícios,
portanto são suficientes ao apontar o indiciado como autor daquele crime e
partícipe do episódio da compra de um bode expiatório. (fls.67).371
A prisão preventiva no caso em apreço foi decretada e fundamentada em
ilações e presunções de que o acusado poderia influenciar na instrução
criminal, embora, reconhecidamente, os atos que representaram a influência
na atividade instrutória foram praticados por terceiros.
5.5.4 Prisão preventiva decretada para a aplicação da lei penal
O acusado pode ter a prisão preventiva decretada de acordo com o artigo
312, do Código de Processo Penal, com fundamento na aplicação da lei penal.
Os motivos ensejadores da decretação da prisão preventiva com fundamento
na aplicação da lei penal são novamente balizados por José Frederico Marques:
370
PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e
jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 71.
371
Id.
164
Mas, se tudo indica que o réu, temeroso do resultado do processo, fuja do
distrito da culpa, ou, então, provável seja essa fuga, por não apresentar
garantias suficientes à Justiça, visto lhe ser indiferente a vida errante pelos
perseguidos órgãos de repressão penal, a prisão preventiva terá cabimento
‘para assegurar a aplicação da lei penal’.372
João Gualberto Garcez Ramos, de forma clara, identifica três possibilidades
de decretação da prisão preventiva com fundamento na aplicação da lei penal, a primeira
representada pelo perigo da fuga, a segunda quando a fuga já ocorreu e a terceira, a perigo de
aplicação da lei penal é representada pela hipótese de ser o imputado vadio ou de identidade
desconhecida. 373
Analisando a prisão preventiva com o fundamento de seu caráter
antecipatório ou de polícia, João Gualberto Garcez Ramos374 salienta que na prisão
preventiva, decretada para assegurar a aplicação da lei penal, estão contidos todos os
requisitos essenciais ao procedimento cautelar, visto que
é motivada por situação de urgência; seja qual for a hipótese – fuga do
iminente ou consumada – o encetamento das providências práticas para a
captura do imputado não pode tardar, pois a demora do início da
perseguição – ao menos a experiência comum, revela isso – torna cada vez
mais difícil o sucesso da tarefa e, por conseqüência, a aplicação da lei
penal.
Está inserido em procedimento sumário, no qual o exercício do direito de
defesa é arrefecido em favor da urgência que motiva a medida. Isso porque
nem o imputado nem a parte técnica responsável pela defesa são ouvidos
quando da sua decretação, mas somente após.
A jurisdição cautelar, em se tratando de prisão preventiva, pode funcionar
sem a propositura da ação respectiva [...] No entanto, quase sempre atuam
372
MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 62-
63.
373
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 130.
374
Ibid., p. 131.
165
os que estão legitimados [...]. Através de qualquer dessas formas é
instrumentada a ação cautelar, e por força dela, o juiz decide inaudita
alterar parte. Nem sempre poderia regulamentar essa ação por outra forma,
visto que a urgência e a difícil concretização da medida, somente admitida
em crimes de maior gravidade e contra pessoas de reconhecida
periculosidade, tornam impossível a sua imposição mediante prévia
audiência do indiciado. Tal providência tornaria ilusória a prisão do réu,
notadamente quando ela visa a evitar que ele fuja, dificultando a realização
do processo. Mas, nem por isso ocorre a impossibilidade de ser amplamente
discutido, julgado e criticado o que se decidiu através da jurisdição
cautelar. Esta funciona, a priori, depois de concedida a prestação
jurisdicional, vários meios existem para discutir a sua legitimidade375.
Da mesma maneira, há nela sumariedade material: o âmbito de cognição do
Juiz é reduzido à sua situação de urgência mesma e não se estende ao juízo
sobre a censuralidade à conduta do imputado. A decisão, além disso,
baseia-se na aparência de que a pretensão executória do Estado, ainda, in
fieri, periclita.
Como qualquer medida cautelar, é temporária e não gera coisa julgada
material. Conforme Romeu Pires de Campos Barros, a sentença nela
proferida, assentando-se num juízo de probabilidade, é daquelas que se
denominam sobre o estado do ato, permanecendo enquanto as coisas não se
modificam [...]. Daí a sua revogabilidade ampla admitida pelo artigo 316 do
Código de Processo Penal.
A característica de referebilidade da medida também é evidente, pois liga-se
ela umbilicalmente à situação de perigo e à persecutio criminis. Motivada
integralmente pela situação de perigo, a aplicação da lei penal tem a mesma
sorte dela.376
Paulo Roberto da Silva Passos377 entende que a aplicação do fundamento da
aplicação da lei penal, para a decretação da prisão preventiva, ante a fuga do imputado, leva a
uma imbricação com a prisão preventiva decretada para a garantia da instrução criminal, já
que ambas buscam proteger a dificuldade do andamento do processo. Por conseqüência,
acontece a proteção da atividade instrutória, admitindo, somente uma forma de prisão
preventiva, qual seja a da conveniência da instrução criminal.
375
BARROS, Romeu Pires de Campos. Processo penal cautelar. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 205-206.
Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte:
Del Rey, 1998, p. 131.
376
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 131-132.
377
PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e
jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 73.
166
O mesmo autor não vê a fuga do imputado como causa para fundamentar o
decreto segregatório cautelar:
Ora, qual o perigo incontornável ocorreria nesse momento processual com
a fuga do acusado, perguntamos?
[...]
Afinal é de se imaginar em primeiro lugar a temeridade do decreto, eis que,
ao término da instrução as provas coligidas, diferentemente do que se
pensava no início (e não se esqueça que a fuga pode se dar em plena fase de
investigação policial quando os indícios são fragilíssimos) podem apontar
para a não culpa. Em segundo lugar, que o aparelho estatal, sob pena de
falência, vai sempre ter como pôr as mãos no condenado; e, em terceiro
lugar, se já houve a fuga, tanto faz para o Estado que a prisão se dê agora
ou mais tarde.378
Paulo Roberto da Silva Passos379 também afirma que os prejuízos
decorrentes da ausência do imputado, de regra, serão em detrimento do próprio réu, visto que
pormenores da causa, que poderiam auxiliar o defensor, eventuais testemunhas a serem
relacionadas na defesa prévia, deixarão de vir ao processo, em franco prejuízo do acusado, já
as provas que exigem a presença do imputado levam novamente a citada imbricação com a
conveniência da instrução criminal380.
Alberto Zacharias Toron381 fez um interessante estudo sobre a fuga do
acusado após ter sido decretada a sua prisão preventiva. Parte de produção jurisprudencial da
fuga do acusado milita em seu desfavor, e, por si só, justifica o decreto prisional, idéia
representada pela decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região:
378
PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e
jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 74.
379
Ibid., p. 73.
380
Ibid., p. 75.
381
TORON, Alberto Zacharias. A fuga após a prisão preventiva. Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 12, n. 149,
p. 4-5, abr. 2005.
167
[...] a lei penal deve ser cumprida, as ordens judiciais devem ser
observadas, posto que representam esteio para que a ordem social possa ser
mantida, para que reinem, em suma, a segurança e a harmonia no âmbito
da comunidade, não podendo jamais o judiciário aceitar que possa o
acusado foragido condicionar sua apresentação à revogação de sua prisão
preventiva, pois, se assim agisse, estaria sendo admitida a transação com
valores maiores que não estão adstritos à titularidade ou à esfera privada
de denunciado, mas que dizem respeito à própria sociedade, ao Estado, que
tem interesse que a norma penal seja reverenciada em todos os seus
termos.382
De acordo com Alberto Zacharias Toron383, pelo julgado citado, o
magistrado encarna a figura do Führer, preconizada por ideólogos do porte de Carl Schmitt,
quando a autoridade integradora da nação era infalível, suprema e não permitia qualquer
contestação. O autor não prega a desobediência à lei, à ordem ou à Justiça. Considera a
infalibilidade das decisões judiciais, mormente no caso da decretação da prisão preventiva,
que apresenta elevado grau de subjetividade.
Alberto Zacharias Toron conclui salientando que
de um ponto de vista estritamente jurídico, para finalizar, há duas coisas
que obrigatoriamente devem ser realçadas: uma, repetindo a lição de Luiz
Flávio Gomes, é a significação tridimensional da presunção de inocência
que ultrapassa a esfera do ônus da prova e projeta igualmente seus efeitos
sobre a esfera das garantias da defesa e do tratamento devido ao acusado
no decorrer do processo; a outra é a dimensão preventiva do habeas corpus
que não exige o prévio recolhimento daquele que teve contra si decretada a
prisão preventiva; admitir o contrário, conduziria o aplicador da lei a
introduzir no sistema processual, pela via exegética, a exigência de o
investigado recolher-se ao cárcere para poder discutir a legalidade de sua
prisão processual.384
382
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL-3. HC 16.346. 5ª Turma. Relator: Des. Fed. Suzana Camargo. Diário
da Justiça, 16 mar. 2004. Apud TORON, Alberto Zacharias. A fuga após a prisão preventiva. Boletim
IBCCRIM, São Paulo, a. 12, n. 149, p. 4, abr. 2005.
383
TORON, Alberto Zacharias. A fuga após a prisão preventiva. Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 12, n. 149,
p. 4, abr. 2005.
384
Id.
168
É necessário distinguir a fuga do acusado da omissão ao comparecimento
em juízo, fato muitas vezes interpretado como fuga, escoando na decretação de medida
extrema, quando, contrariamente, poderia ser equacionada através da sua condução forçada
aos atos processuais.
5.5.5 Prisão preventiva com a finalidade de aplicação de medidas protetivas de urgência
nos casos de violência doméstica contra a mulher
Em 22 de setembro de 2006, entrou em vigor a Lei 11.340/2006,
denominada de Lei Maria da Penha, numa alusão à Senhora Maria da Penha Maia Fernandes,
que vítima de tentativa de homicídio por parte de seu marido, como resultando ela ficou
paraplégica, sendo que o marido agressor somente dezenove anos e seis meses depois é que
foi preso, tendo cumprido dois anos de prisão.
O fato teve tão grande repercussão que foi alvo de denúncia à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, resultando em responsabilização do Estado Brasileiro
por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando a adoção de
várias medidas, entre elas simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa
ser reduzido o tempo processual.385
A Lei Maria da Penha inova ao prever uma série de medidas de caráter
cautelar no âmbito processual civil como no âmbito processual penal, e contempla a
possibilidade de prisão preventiva em qualquer momento a partir do início da persecução
penal – artigo 20 - e ao acrescentar o inciso IV ao artigo 313 do Código de Processo Penal,
possibilitando a prisão preventiva para a aplicação de medidas protetivas de urgência.
385
DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à
violência doméstica e familiar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 14.
169
O artigo 20 da Lei Maria da Penha tem a seguinte redação:
Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal,
caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a
requerimento do Ministério Público ou mediante representação da
autoridade policial.
Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do
processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo
decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
Embora a afirmação de tratar-se da velha prisão preventiva386, nota-se que
entre os legitimados a requerer a prisão preventiva, ausente o querelante, o que representa
uma diminuição em relação ao artigo 311 do Código de Processo Penal, não havendo assim a
possibilidade da vítima representar pela prisão preventiva, já que a interpretação, no caso,
deve ser restritiva, pois se trata de restrição à liberdade pública, devendo vigorar o princípio
da proibição do excesso (J.J. Gomes Canotilho)387, o que é visto como uma imperfeição da
Lei Maria da Penha388.
Também é questionada a iniciativa instrutória do juiz ao possibilitar que este
de oficio decrete a prisão preventiva, visto que estaria adentrando à seara reservada
privativamente ao Ministério Público, conforme explica Marcellus Polastri Lima
Porém, advindo a Constituição de 1988m a decretação da prisão preventiva
386
BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria Penha” – alguns
comentários. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord.). Estudos sobre as novas leis de
violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 140.
387
SOUSA, Luiz Antônio de, Kümpel, Vitor Frederico. Violência doméstica contra a mulher: lei 11.340/2006.
São Paulo: Método, 2007, p. 137.
388
LIMA, Marcellus Polastri. Primeiras observações sobre as medidas cautelares previstas na Lei “Maria da
Penha”. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord.). Estudos sobre as novas leis de violência
doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2007, p. 152.
170
de ofício, no caso de investigação penal, passa a ser inconstitucional, em
vista do disposto no art. 129, I, da CF, pois, agora, em vista do dispositivo
constitucional, o magistrado, no processo penal, deve se abster de promover
de ofício atos na investigação da ação penal pública.389
Em razão da disposição constitucional citada, mesmo a representação do
delegado, de acordo com o Doutrinado citado, deverá ser ratificada pelo Ministério Público
para não haver a aludida nulidade.
Ainda em relação a iniciativa, embora a inexistência de previsão de
representação por parte da vítima, Marcelo Lessa Bastos, vislumbra a possibilidade de
decretação da prisão preventiva, mesmo em ação de iniciativa privada:
Poderia, em tese, por absurdo, a medida se afigurar imprescindível num
crime de injuria, após falharem todas as medidas protetivas de urgência
estabelecidas em favor da mulher, diante da insistência do agressor em
continuar freqüentando os locais que ela freqüenta para, sistematicamente,
humilhá-la (vide art. 7º, II, e V, da Lei “Maria da Penha”).390
Observa-se que a regra do artigo 20 da Lei Maria da Penha, se estende aos
crimes punidos com detenção, independentemente das condições subjetivas do agressor,
lembrando que o artigo 312 do Código de Processo Penal, prevê a possibilidade da prisão
preventiva nos casos de crimes punidos com detenção somente nos casos de ser o indiciado
vadio ou no caso de impossibilidade de sua identificação.A possibilidade da decretação da
389
LIMA, Marcellus Polastri. Primeiras observações sobre as medidas cautelares previstas na Lei “Maria da
Penha”. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord.). Estudos sobre as novas leis de violência
doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2007, p. 152..
390
BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria Penha” – alguns
comentários. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord.). Estudos sobre as novas leis de
violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p 143.
171
prisão preventiva, mesmo nos casos de crimes apenados com a detenção, que interpretada
como um avanço por Maria Berenice Dias391, ao possibilitar a prisão, mesmo quando
incabível a prisão em flagrante, recebe duras críticas:
Entendemos ser totalmente imprópria a previsão, pois em vista do princípio
da proporcionalidade não se pode decretar a prisão preventiva se a pena
final não comportar a efetiva prisão. Como a pena da lesão corporal leve
não levará o agente à prisão, em vista de ser cabível a substituição por
restritiva de direitos, o sursis, ou mesmo o cumprimento em regime aberto
(isto se levarmos em conta que foi vedada a possibilidade de conciliação e a
transação penal, como quer o legislador), não há qualquer razoabilidade de
se permitir a decretação da prisão preventiva. Portanto, totalmente
esdrúxula a previsão de prisão preventiva in casu.392
A inovação, de acordo com Marcelo Lessa Bastos, é representada pelo
acréscimo do inciso IV ao artigo 313 do Código de Processo Penal, que admite a decretação
da prisão preventiva se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
Da leitura do artigo 42 da Lei Maria da Penha, que resultou no acréscimo do
inciso IV ao artigo 313 do Código de Processo Penal, inferimos que a prisão preventiva
poderá ser aplicada nos crimes dolosos, independentemente da pena cominada e das
condições subjetivas do agressor, como forma de garantir a execução de medidas protetivas
de urgência previamente determinadas.
As medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor são previstas no
artigo 22 da Lei Maria da Penha:
391
DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à
violência doméstica e familiar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.103.
392
LIMA, Marcellus Polastri. Primeiras observações sobre as medidas cautelares previstas na Lei “Maria da
Penha”. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord.). Estudos sobre as novas leis de violência
doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2007, p. 154.
172
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao
agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de
urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao
órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando
o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio
de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade
física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a
equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras
previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as
circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao
Ministério Público.
§ 2o Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas
condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22
de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou
instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a
restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor
responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de
incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso.
§ 3o Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá
o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial.
§ 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto
no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de
1973 (Código de Processo Civil).
Note-se que mesmo as medidas protetivas de urgência,mesmo de natureza
cível, serão apreciadas pelo Juízo Criminal, enquanto e onde não existir o Juizado de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, por força da disposição do artigo 33 da Lei
Maria da Penha.
A decretação da prisão preventiva, com fundamento no inciso IV do artigo
313, exige a aplicação pelo juiz, de uma das medidas protetivas previstas, ou mesmo alguma
outra que o juiz achar necessário, já que o rol é exemplificativo, caso estas por si só se
mostrarem ineficazes, assumindo assim um caráter essencialmente excepcional e
173
subsidiário393.
A excepcionalidade da medida se justifica porque na execução das medidas
protetivas de urgência, poderá o juiz usar subsidiariamente os § 5º e § 6º do artigo 461 do
Código de Processo Civil, que possibilita a aplicação de ações diversas tais como a imposição
de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento
de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
Embora a execpcionalidade da medida representada pela custódia
preventiva, há casos em que esta se justifica
Todavia haverá momentos em que a prisão preventiva será necessária,
mesmo em face de lesões leves ou ameaças sérias, pois não se pode mais
incorrer em autêntica “crônica de uma morte anunciada” para deixar a
vida ou a integridade física da mulher ao alvedrio de seu autoproplado
algoz. Quando as demais medidas protetivas não tiverem êxito, e o agressor
venha transitando uma via de crescente ameaça à incolumilidade ou à vida
da vítima, a prisão cautelar se impõe como última ratio, para evitar
desdobramentos de atroz gravidade.394
Marcelo Lessa Bastos, adotando uma posição crítica, recomenda cautela na
aplicação da medida, quando tratarem-se de crimes de pequeno potencial ofensivo
É preciso, portanto, principalmente nos crimes de menor potencial ofensivo,
como os acima mencionados, em virtude da pequena quantidade de pena
privativa de liberdade cominada, que o juiz aja com bastante prudência na
hora de decidir pela prisão do agressor, medida esta que só pode ser
reservada à ultima ratio e, em nenhuma hipótese, pode exceder, em tempo de
393
BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria Penha” – alguns
comentários. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord.). Estudos sobre as novas leis de
violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 142.
394
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica e familiar contra a mulher: Lei 11.340/-6 – análise
crítica a sistêmica. Porto Alegre. Livraria do Advogado. 2007, p. 106.
174
duração, á projeção da aplicação da pena privativa de liberdade cominada,
em caso de condenação, o que faria com que se perdesse o contorno de
cautelaridade que se deve exigir da prisão preventiva.395
O inciso IV do artigo 313 do Código de Processo Penal, vincula a hipótese
de decretação da prisão preventiva a um fato típico, mas à garantia de efetivação de uma das
medidas protetivas de urgência, previamente determinadas pelo juiz, mesmo que de natureza
civil, assim, estaria contemplada uma hipótese, ainda que absurda, da decretação da prisão
preventiva pela inércia na prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
5.6 Condições de Admissibilidade da Prisão Preventiva
As condições de admissibilidade da prisão preventiva estão expressas no
artigo 313, do Código de Processo Penal.
Art. 313. Em qualquer das circunstâncias previstas no artigo anterior, será
admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos:
I – punidos com reclusão;
II – punidos com detenção, quando se apurar que o indiciado é vadio ou,
havendo dúvidas sobre sua identidade, não fornecer ou não indicar
elementos para esclarecê-la;
III – se o réu tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença
transitado em julgado, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 46
395
BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria Penha” – alguns
comentários. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (coord). Estudos sobre as novas leis de violência
doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris. 2007, p. 142.
175
do Código Penal.396
A norma autoriza a decretação da prisão preventiva apenas para crimes
dolosos, estando, desta forma, afastada a possibilidade de decretação da medida em se
tratando de delito culposo, quando a matéria é pacífica.
A regra para a decretação da prisão preventiva entra em vigência quando
acontece o cometimento de crime doloso, que tem que ser punido com a reclusão. A prisão
preventiva pode ser decretada excepcionalmente nos crimes dolosos, a serem punidos com
detenção, no caso de réu vadio, ou, quando ele não for identificado, não fornecer a
identificação ou, ainda, quando ele não apresentar elementos suficientes para a sua
identificação.
Neste particular, há duas questões que merecem destaque, a saber: a
definição de vadio e a garantia constitucional do silêncio ou de não produzir provas contra si.
Vadio, no conceito legal, segundo a compreensão de Hélio Tornagui é
o sujeito que voluntariamente vive ocioso, isto é, aquele que precisa e pode
trabalhar mas não o faz ou vive de ocupação ilícita. A lei não considera
vadio quem não trabalha por não precisar, por ter rendas que lhe
assegurem a subsistência. O rico desocupado, indolente, mandrião, é
moralmente censurável, mas não incide na reprovação da lei penal.
Igualmente não pode ser considerado vadio quem não trabalha por não
poder fazê-lo, como o incapacitado físico e o usual desempregado.397
A Lei da Maria da Penha, conforme já abordado, nos casos de violência
396
BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Código de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004.
397
TORNAGUI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 94.
176
doméstica contra a mulher, prevê a possibilidade da decretação da prisão preventiva,
independentemente da pena cominada ao crime e das condições pessoais do criminoso, para
garantir a aplicação das medidas protetivas de urgência previstas na Lei.
5.7 Revogação da Prisão Preventiva
O artigo 316, do Código de Processo Penal, prevê a possibilidade da
revogação de prisão preventiva quando restarem cessadas as medidas justificadoras da sua
decretação, bem como a possibilidade de nova decretação, sobrevindo, razões que a
justifiquem.
José Frederico Marques fundamenta a possibilidade da revogação ao afirmar
que
A razão de ser dessa norma está em que a sentença sobre a prisão
preventiva descansa sobre um juízo de probabilidade e é proferida segundo
o estado da causa.
[...] a revogabilidade da providência coativo-cautelar deriva da natureza da
própria sentença que a decreta. Isto é, de decisão proferida segundo o
estado da causa. Sendo assim, tudo quanto se refira aos elementos
pertinentes à aparentia júris em que se funda a medida cautelar está sujeito
a ulterior apreciação, uma vez que se comprove não haver mais elementos
que mostrem ser provável a imputação em face das provas colhidas no curso
da instrução.398
Em certos casos, a revogação é obrigatória. Atentemos:
398
MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 66.
177
Não parece totalmente acertado falar em revogação facultativa ou em
revogação obrigatória da prisão preventiva. Nem o Juiz está totalmente
obrigado à revogação da prisão, nem pode negar-se a revogá-la por simples
capricho, como quem dispõe de um bem seu.
Há casos em que a lei determina a revogação, restando ao Juiz pouco
espaço para decidir contrariamente: a essa situação, meramente por
comodidade terminológica, chama-se obrigatoriedade. A tardança
exagerada e injustificada dos prazos processuais, segundo interativa
jurisprudência de diversos tribunais do país, é um exemplo dessa situação,
em que o sistema compele o Juiz a revogar a prisão preventiva
anteriormente decretada.399
Segundo João Gualberto Garcez Ramos400, a medida que revoga a prisão
preventiva está baseada no poder de polícia da autoridade judiciária. Mesmo que seja urgente
e sumária, não gera coisa julgada material, não está baseada na aparência, não há a ocorrência
da sumariedade material, não é medida temporária e, também, não apresenta referibilidade.
399
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998, p. 237-238.
400
Ibid., p. 238-239.
178
6 QUESTÕES POLÊMICAS SOBRE A PRISÃO PREVENTIVA
6.1 Medidas Alternativas à Prisão Preventiva
No Código de Processo Penal brasileiro não se encontram medidas
cautelares outras que não sejam as diversas espécies de prisões processuais, levando muitas
vezes a aplicação da prisão, quando por medidas menos gravosas ao indivíduo, alcançariam
plenamente os fins do processo penal, possibilitando, inclusive, maior participação do
imputado na instrução probatória.
A restrição da liberdade, representada pela prisão processual, deve ser
reservada a casos extremos. Se for necessária alguma constrição do raio de liberdade
individual, a atividade estatal deve principiar a atividade coercitiva com a previsão legal e a
aplicação concreta de medidas cautelares reais que, atuando na esfera de direitos patrimoniais
do imputado, preservem a sua liberdade pessoal.
Nas hipóteses de comprovada ineficácia da coação processual real, sempre
em face da prévia legislação pertinente, é legítima a coerção sobre a pessoa
do imputado que, todavia, deve ser iniciada por medidas de restrição à
liberdade individual (proibição de se ausentar de certos locais, vedação de
comparecimento em outros, presença à sede judicial em datas regulares,
recolhimento domiciliar e medidas semelhantes).
Somente nos casos previamente especificados em lei e depois de
179
regularmente apurada a ineficácia das medidas precedentes pode ser
efetivada a privação de liberdade individual. A falta de previsão legal de
medidas alternativas à prisão processual enfraquece a missão estatal de
reprimir ilicidades penais e fere o princípio da garantia da liberdade
individual em face da prisão processual daqueles que poderiam ser contidos
em suas eventuais condutas danosas ao escopo do processo com a sujeição
a medidas restritivas de sua liberdade pessoal401.
A inexistência de medidas alternativas à prisão processual e a aplicação
sistemática da medida como forma de se garantir a instrução processual tem se apresentado
como paradoxo em confronto com a política criminal. Na compreensão de José Laurindo de
Souza Netto,
O direito penal hodierno tem se caracterizado pela difusão de sistemas
alternativos à punição pela prisão, estabelecendo como política criminal a
intervenção mínima.
Já na legislação processual penal, a tônica tem sido o endurecimento
institucional, como resposta à argumentação de que as leis do processo e os
meios disponíveis para a averiguação dos crimes são inoperantes.
Tal contradição conduz à situação de que, no campo penal, substitui-se a
prisão como pena, mantendo-a como medida cautelar.402
César Roberto Bitencourt403, partindo de crise da pena de prisão, e da
ineficácia da função ressocializadora da pena, propõe o aperfeiçoamento da pena restritiva de
liberdade e a substituição desta sempre que possível, afirmando que o problema da prisão é a
própria prisão, citando a advertência do Claus Roxin que afirma não ser exagero dizer que a
401
PENTEADO, Jaques de Camargo. Tempo da prisão: breves apontamentos. Revista dos Tribunais, a. 92, v.
814, p. 427, ago. 2003.
402
SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 76-77.
403
BITENCOURT, César Roberto. Novas penas alternativas: análise político criminal das alterações da Lei n.
9.714/98. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 2-3.
180
pena privativa de liberdade de curta duração, em vez de prevenir delitos, promove-os.
Como resultado de debates jurídicos, políticos e acadêmicos, em que se
esperava um grande avanço no sistema de aplicação de penas alternativas, pela Lei 9.714/98,
foram criadas duas novas espécies de penas alternativas, consistentes na prestação pecuniária
e perda de bens e objetos e valores, que de acordo com César Roberto Bitencourt404 visam
num primeiro plano abastecer a arcas do Tesouro Nacional, o que, paradoxalmente, leva a um
locupletamento do Estado com a criminalidade que deveria combater.
O estudo citado tem o foco na substituição da privação da liberdade, por
ocasião da aplicação da pena, e aplicáveis a crimes de menor potencial ofensivo, porém, deve
ser usado como subsídio a estudos que visem a adoção de medidas alternativas à prisão
preventiva.
A inovação vem da Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, que
expressamente prevê uma série de medidas protetivas de urgência, nos casos de violência
doméstica contra a mulher, reservando a prisão preventiva, como meio coercitivo para
garantir a execução das medidas protetivas anteriormente aplicadas.
O artigo 42 da Lei Maria da Penha, acrescentou o inciso IV, artigo 313 do
Código de Processo Penal, permitindo a prisão preventiva se o crime envolver violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução
de medidas protetivas de urgência.
Como já estudado, as medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria
da Penha, visam a proteção integral à mulher, com medidas de natureza penal, de família e
patrimonial, mas que tem como o fundamento a existência da violência doméstica, aplicadas,
enquanto não forem efetivadas as Varas dos Juizados Especiais de Violência Doméstica, pelo
juízo criminal.
404
BITENCOURT, César Roberto. Novas penas alternativas: análise político criminal das alterações da Lei n.
9.714/98. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 116-117.
181
Ao reservar, a aplicação da prisão preventiva ao agressor, para os casos de
garantia da execução das medidas protetivas de urgência previstas na lei, lembrando que o rol
não é apenas exemplificativo, podendo ser aplicadas outras medidas, criou-se uma série de
possibilidades intermediárias entre a prisão e a liberdade.
O Código de Processo Penal, até então, estabelecia apenas a liberdade
provisória como medida intermediária entre a prisão cautelar e a liberdade. O princípio da
legalidade é o fundamento para a não-aplicação de outras medidas que não sejam as
permitidas por lei.
A aplicação de medidas alternativas à prisão de parte de juízes é defendida
por José Laurindo de Souza Netto com amparo no princípio da proporcionalidade. Observa-se
que
Apesar da falta de previsão legal, é possível defender a possibilidade de os
juizes aplicarem medidas alternativas à prisão cautelar, atendendo-se o
princípio da proporcionalidade e da interpretação das normas no sentido
mais favorável à efetividade dos direitos fundamentais.405
As condições para a aplicação de medidas substitutivas da prisão processual
estabelecem que
Para isso, impõe-se, além da previsão em lei da medida mais gravosa
(prisão cautelar), a idoneidade e menor lesividade da medida substitutiva
(da prisão). Desde que a medida menos gravosa seja suficientemente eficaz
para alcançar a finalidade perseguida pela prisão, torna-se desproporcional
405
SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 76-77.
182
a adoção desta última.406
José Laurindo de Souza Netto apresenta medidas alternativas à prisão
cautelar para preservar a instrução processual.
Em recente encontro do Comitê de Ministros do Congresso da Europa foram
apresentadas as seguintes medidas alternativas: liberdade mediante caução,
vigilância por terceiros, obrigação de comparecimento periódico perante
autoridade, internamento em instituição especializada, prisão domiciliar,
obrigação de permanecer no país, proibição de freqüentar determinados
lugares, proibição de entrar em contato com certas pessoas, retirada do
passaporte, retirada da carteira de motorista, restrições ao exercício de
atividades profissionais em funções e serviços públicos, retenção de armas.
A relação de medidas alternativas precisa ser adotada como exemplo, já que
outras podem garantir o processo, sem prejuízo ao processo penal.
6.2 Prazo de Duração da Prisão Preventiva
O Código de Processo Penal Brasileiro é omisso quanto ao tempo de
duração da prisão processual, seja qual for. Em razão desta deficiência, ela pode durar até à
prolação da sentença. O prazo usado como balizador resulta da construção jurisprudencial.
406
SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 77.
183
A jurisprudência brasileira incumbiu-se de solucionar a falta de uma
definição legal sobre os prazos para o encerramento do processo penal
tendo em vista que ‘tanto ao Estado, por razões de ordem pública, como
aos sujeitos processuais, convém o rápido desfecho da ação penal,
principalmente ao réu preso’,407 estatuindo que, no máximo de 81 dias, a
prestação jurisdicional deve ser efetivada.408
O prazo de 81 dias para a prestação jurisdicional ao caso concreto, conforme
consta da súmula 52, do Superior Tribunal de Justiça, foi deslocado da sentença de mérito
para o final da instrução acusatória, no início da fase do artigo 499, do Código de Processo
Penal.
A jurisprudência se encarregou de promover outras alterações na fixação do
prazo-limite da instrução processual, conforme estudos de Antônio Scarance Fernandes:
o tempo de oitenta e um dias é exigível para o encerramento da instrução e
não para a prolação de sentença, havendo mesmo forte inclinação a se
exigir a observância desse prazo somente até o encerramento da prova
acusatória;
vários motivos justificam a superação dos oitenta e um dias - grande
número de réus, complexidade da causa, necessidade de expedição de
precatórias, instauração de incidentes (insanidade mental, dependência
toxicológica, falsidade documental);
não haveria constrangimento quando o excesso resultasse de manobras da
defesa ou de diligências de seu interesse;
o constrangimento deve ser verificado em cada caso, dentro de um critério
de razoabilidade.
Pode-se afirmar que o prazo de oitenta e um dias resultou de um marco
para a verificação do excesso. Só isso. A sua superação não traduziria mais,
segundo a jurisprudência, constrangimento ilegal, que deveria ser
verificado em cada caso concreto em face das razões que determinarem a
407
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. TACRIM. HC nº 276.240/7. Rel. Marcio Bártoli. 10ª Cam. Diário da
Justiça, 16 ago. 1995.
408
MARONNA, Cristiano Ávila; CIASCA, Renata Strang. O excesso de prazo na prisão cautelar e a súmula 52
do STJ. Boletim IBCCRIM, São Paulo, p. 268, jun. 1988.
184
demora.409
É possível e não raro que o prazo da custódia cautelar, em razão da
extrapolação dos prazos da segregação cautelar, seja superior à pena definitiva, ainda mais se
for considerada a possibilidade de livramento condicional e progressão de regime, situação
que ocorre, justamente, pela inexistência de qualquer previsão quanto ao prazo da prisão
preventiva ou da prisão provisória no seu sentido estrito.
Em recente atualização da letra da Carta Constitucional, numa clara
afirmação à imposição do princípio do devido processo legal, foi acrescentado ao texto da
Constituição, o inciso LXIIIV, no artigo 5º, que cuida, exatamente, das garantias individuais
do cidadão, visando à celeridade processual: a todos, no âmbito judicial e administrativo, são
assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação410.
Entende-se que a inclusão, em se tratando de processo penal, representa,
simplesmente, a afirmação ao princípio do devido processo legal, contemplado no inciso LIV,
do artigo 5º, da Constituição, uma vez que, em obediência ao princípio do devido processo
legal, os prazos processuais devem ser rigorosamente observados. O ordenamento processual
penal prevê, expressamente, os prazos procedimentais de cada fase processual. Assim,
considerando que a inclusão constitucional silencia quanto à determinação de prazos e a
simples obediência ao princípio do devido processo legal, que representa a observação do
procedimento legal previsto, o novo texto afirma a obrigatoriedade da obediência aos prazos
estabelecidos.
409
FERNANDES, Antonio Scarance. Novo Maximo de prisão cautelar: 180 dias. Boletim IBCCRIM, São
Paulo, n. 32, p. 3, ago. 1995.
410
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005.
185
O excesso de prazo das várias modalidades de prisões provisórias representa
uma das violações aos direitos humanos do acusado no processo penal. Isto é o que observa
Rogério Lauria Tucci.
Verifica-se, enfim e induvidosamente também, que o disposto no art. 8º., 1
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, vem sendo, numa regra
quase sem exceção, manifestamente contrariado pela longevidade do curso
dos procedimentos penais em nosso país, aos quais faltam os exigíveis
mecanismos de sua agilização.411
A importância de marco na duração do processo, e, por conseqüência, da
prisão cautelar, aparece pela caracterização do constrangimento ilegal quando alguém estiver
preso por mais tempo do que determina a lei, a ser atacado via habeas corpus nos termos do
artigo 648, II do Código de Processo Penal412.
A lei 9.034/95, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a
prevenção e a repressão de ações praticadas por organizações criminosas, estabelece no artigo
8º, o prazo máximo de 180 dias para a prisão processual, aos crimes previstos na lei.
Antônio Scarance Fernandes defendo que, na falta de prazo previsto em lei,
seja aplicado o prazo previsto na lei 9.034/95:
Ora, a previsão pela Lei do Crime Organizado de um prazo máximo de
prisão cautelar impõe novas reflexões e exige resposta a três indagações
fundamentais:
411
TUCCI, Rogério Lauria. Processo penal e direitos humanos no Brasil. Revista dos Tribunais, a. 87, n. 755,
p. 477, set. 1998.
412
FERNANDES, Antonio Scarance. Novo Maximo de prisão cautelar: 180 dias. Boletim IBCCRIM, São
Paulo, n. 32, p. 3, ago. 1995, p. 3.
186
como se adequar o prazo global de cento e oitenta dias ao prazo de oitenta e
um dias criado pela jurisprudência?
Esse prazo máximo de cento e oitenta dias deve abranger toda a fase
recursal e, nos processos de júri, incluir a fase posterior à pronúncia até o
julgamento em plenário?
Este prazo global pode se aplicar a outros crimes além dos regulados pela
lei 9.034/95?
A primeira questão é de solução aparentemente simples. O prazo de oitenta
e um dias continua sendo um marco para se avaliar eventual
constrangimento ilegal, enquanto o prazo de cento e oitenta dias passa a ser
o prazo máximo, a partir do qual não mais se admitiria qualquer excesso,
ficando o juiz impedido de justificar, no caso, o atraso por situações
especiais ou em virtude de um critério de razoabilidade.
Mais difícil é a resposta à segunda questão. A redação do texto parece não
deixar dúvidas de que o prazo é fatal, pois está escrito ser o período de
cento e oitenta dias o tempo máximo de prisão. Provavelmente, contudo, não
será possível realizar nesse período os julgamentos dos processos de júri e
dificilmente terão os tribunais condições de apreciar os recursos de modo a
evitar a superação do prazo de cento e oitenta dias.
Ante essa situação facilmente constatável e sem que a nova lei preveja
prorrogação de prazos, é bem possível que a jurisprudência dê ao texto
orientação restritiva, adequando-o às interpretações anteriores, ou seja, que
venha a considerar aquele prazo máximo até a pronúncia ou até a sentença.
Não é, entretanto, o que se extrai do texto.
A última questão deve ter resposta positiva. Falta no CPP a previsão de um
prazo máximo de prisão. Assim, é admissível que, por interpretação
analógica, aplique-se a norma a todos os processos, suprindo-se a lacuna.413
As previsões de Antônio Sacarance Fernandes no sentido de que se daria
interpretação restritiva à lei 9.034/95 foram confirmadas por várias decisões do Superior
Tribunal de Justiça, que continua justificando a extrapolação dos prazos processuais com o
fundamento do princípio da razoabilidade.
Há que se considerar como prazo máximo da duração da prisão preventiva,
desde a decretação até a sentença, caso persistam os motivos autorizadores da prisão
preventiva, por aplicação analógica do artigo 8º, da lei 9.034/95, o tempo de cento e oitenta
413
FERNANDES, Antonio Scarance. Novo Maximo de prisão cautelar: 180 dias. Boletim IBCCRIM, São
Paulo, n. 32, p. 3, ago. 1995, p. 3.
187
dias, não comportando qualquer extrapolação.
Cláudio Porto do Amaral414 faz importantes considerações sobre a situação
das prisões cautelares em caso de greve, considerando a possibilidade de greves de
serventuários da Justiça, com a conseqüente paralisação dos processos, dificultando a
compreensão da idéia da razoabilidade temporal dos atos processuais, já que os atos
processuais não se realizam.
A abordagem do magistrado é feita sob dois ângulos. O primeiro considera
o princípio de presunção de inocência do segregado cautelarmente. Leva em conta os
princípios da brevidade e da excepcionalidade da prisão preventiva, no caso em que se
considera absolutamente inadmissível alguém permanecer custodiado, aguardando julgamento
sem a perspectiva da retomada do curso normal do processo.
Sob outra ótica, defende, partindo do pressuposto de que a greve como parte
da sociedade contemporânea brasileira, posto que se trata de uma sociedade democrática e
que aspira fundamentalmente à liberdade e à igualdade, e que, por tanto, fenômeno autorizado
pelo Direito, com efeitos sobre todos os cidadãos. Da mesma forma, seus efeitos se
estenderiam aos indivíduos presos preventivamente, que deveriam aceitar os efeitos da greve
com a mesma resignação que o restante da sociedade, já que a prisão preventiva é medida
legítima desde que observados os pressupostos e os requisitos necessários a sua decretação.
Sendo assim, a inércia do processo em razão da greve não faz cessar os motivos autorizadores
do decreto prisional como forma de justificar sua posição. Cláudio Prado Amaral exemplifica:
Imagine-se um réu preso provisoriamente por crime doloso contra a vida,
que possui diversas condenações definitivas recentes por crimes praticados
414
AMARAL, Cláudio Prado. Greve e prisão cautelar. Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 12, n. 143, p. 12-14,
out. 2004.
188
com violência e grave ameaça contra a pessoa – todos com intensa
crueldade – e cuja prisão cautelar foi decretada justamente para evitar
novos delitos, tudo baseado num juízo de probabilidades. Deve ser admitido,
ainda, que em relação a este réu existem indícios de autoria sobre a
acusação à qual está respondendo preso. Indaga-se: o advento greve
aniquila o elemento ‘necessidade’ dessa prisão? Certamente, não. Seria
correto libertá-lo para aguardar em liberdade o julgamento, ainda que
existam testemunhas ameaçadas e vítimas juradas de morte? Também não.
Agora, vamos agudizar a hipótese acima. Imaginemos uma greve longa: 1
ano. Deveria o réu aguardar tanto tempo? Depende. Não se sabe o que deve
ser considerado ‘prazo razoável’ para a conclusão do processo mesmo ante
uma greve. Não existe critério com numerus clausus para definir a
expressão ‘prazo razoável’. Já que a compreensão da expressão – e
conseqüentemente a sua quantificação com o termo a quo e termo ad quem
– está em boa parte deixada ao sabor de interpretação que pode variar
muito, a situação hipotética de greve de um ano incitaria o julgador a uma
atitude que é considerada proibida no processo penal, qual seja, o exame
mais aprofundado das provas até então colhidas como fato determinante da
soltura ou manutenção da custódia do acusado.415
Considerando-se o direito de greve como forma de causar prejuízo, o preso
preventivo é quem arcaria com o prejuízo decorrente da paralisação do processo, porém,
como forma de minimizar o prejuízo do réu, caberia ao juiz, ao analisar as provas colhidas na
fase inquisitorial, fazer que a decisão se aproximasse o máximo possível da decisão de tutela
final buscada pela acusação e defesa.
Em ordenamentos processuais alienígenas é constatada a fixação de prazos
limites para a duração da prisão preventiva. O Código de Processo Italiano, de acordo com
comentários feitos por Francesco Carnelutti, apresenta dificuldades em relação à estreita
obediência dos prazos processais fixados:
Sob este aspecto é oportuno fazer referência desde já aos limites de duração
da detenção preventiva, tal como são estabelecidos, com uma valoração
415
AMARAL, Cláudio Prado. Greve e prisão cautelar. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 12, n. 143, p. 12-14,
out. 2004, p. 12-14.
189
infelizmente muito otimista. Pela lei: resulta do art. 272 que somente depois
de 4 meses, para a instrução formal, e de quarenta dias, para a instrução
sumária, deve o juiz começar a preocupar-se com a aceleração do processo;
quatro meses de detenção preventiva são, portanto, para o legislador, um
evento que não sai dos limites da normalidade; mas, quando se reflete que
sobre a medida da pena suficiente para determinar a captura não entram em
jogo circunstâncias atenuantes, as quais, todavia, em certos casos podem
fazer a pena diminuir de três quartos (art. 67² do Código Penal), damo-nos
conta que a duração prevista para a detenção preventiva, embora
prescindindo de particular periculosidade do imputado, pode superar o
mínimo da pena que lhe será aplicada; um imputado de um delito punível
com um mínimo de um ano de reclusão, o qual, no caso de concurso de
várias atenuantes, poderia ser condenado a apenas três meses, pode, de
acordo com a lei, sem que isso dê lugar a nenhuma anormalidade,
permanecer em estado de captura durante quatro meses. Deve-se observar
que estes cálculos são feitos sobre o que me permite chamar valorações
otimistas da lei quanto à duração da detenção preventiva; mas a fim de que
tais valorações correspondessem à realidade conviria que, pelo menos,
houvesse juízes e, em geral, funcionários judiciais suficientes para realizar o
trabalho penal e, portanto, para fazer andar o processo, se não
propriamente às carreiras, pelo menos numa marcha normal; agora, bem, o
leito conhecedor das verdadeiras condições do ambiente judiciário, ainda
deixando de lado crises particulares graves, como a que atravessamos, sabe
que os prazos previstos pelo art. 272 são, infelizmente, insuficientes para as
possibilidades normais da instrução, de maneira que a confrontação entre a
pena correspondente à imputação e a duração média da detenção prevista,
para ser, teria de ser feita sobre outras bases. Isto quer dizer também o
instituto da captura do imputado, numa reforma do processo penal, deve ser
objeto de novo exame com provável resultado de restringir os limites da
potestade coercitiva. 416
Francesco Carnelutti expõe uma série de situações, que num comparativo
representam a realidade atual do judiciário brasileiro e que levam, inexoravelmente, à
extrapolação dos prazos, propondo a redução dos prazos relativos à duração máxima da prisão
preventiva.
No Direito Processual Penal Português encontramos prazos estabelecidos
para a duração do encarceramento preventivo. Até a entrada em vigor do código processual
atual, em 1987, o prazo máximo da efetivação da prisão preventiva, até a acusação, poderia
alcançar 150 dias, prazo que foi alargado no código vigente, podendo, agora, chegar, de
416
CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Trad. Francisco Jose Galvão Bueno. Campinas:
Bookseller, 2004, p. 177.
190
acordo com interpretação de Germano Marques da Silva417, a 15 meses. Segundo cálculos de
Frederico Isasca418, pode chegar a quatro anos e meio, considerando-se todas as fases
processuais, começando pela realização do inquérito policial, passando pela instrução e
julgamento, até a apreciação de possível recurso. Houve assim um alargamento do prazo
operado no procedimento português, conforme o estudioso lusitano Germano Marques da
Silva419, o que representou um retrocesso, já que o Código de Processo anterior trazia marcas
do autoritarismo, em confronto com a celeridade processual exigida pela Constituição:
Comentava ironicamente Salgado Zenha, referindo-se às reformas de cariz
autoritários dos anos quarenta do século passado em confronto com as de
legislação precedente, que ‘a primeira surpresa é que quanto menos idôneos
são os funcionários instrutores, maiores são os poderes que se lhes
conferem’420. É evidente que não é essa agora, como não o era então, a
verdadeira causa, mas a crescente complexidade da criminalidade não
justifica tudo, até porque o alargamento dos prazos abrange toda a espécie
de crimes. Não são também razões de natureza política a ditar o
alargamento, como de certo modo sucedia no tempo a que se referia
Salgado Zenha, mas o alargamento do prazo da prisão até a acusação não
deixa de ser contraditório com a dinâmica da vida do nosso tempo e com o
direito à celeridade que a Constituição também garante, e até com a
exigência legal de que só seja aplicada quando no processo tenham sido
recolhidos fortes indícios da prática do crime. É nosso entendimento que
aquele alargamento dos prazos se deve em grande medida à
sobrevalorização da eficácia da investigação e da segurança pública com
prejuízo do direito à liberdade, por uma parte, mas também, e
principalmente, à contemporização com a insuficiência do aparelho
judiciário para responder às crescentes solicitações, por outra parte. Sucede
que a conjuntura daquelas razões é agravada pelo efeito multiplicador da
incipiente cultura democrática ambiente a fazer esquecer que a idéia de
democracia inere o absoluto respeito pelos direitos dos outros e que seu
sacrifício, ainda quando consentido para realização de interesses também
417
SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In:
ANDRADE, Manuel da Costa (Org.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra
Ed., 2003, p. 1368-1369.
418
ISASCA, Francisco. Prisão preventiva e as restantes medidas de coação. Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, Coimbra, a. 13, n. 3, p. 367-385, jul./set. 2003, p. 379.
419
SILVA, op. cit., p. 1.369.
420
ZENHA, Francisco Salgado. Notas sobre a instrução criminal. Braga, 1968. p. 61. Apud SILVA, Germano
Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In: ANDRADE, Manuel da Costa
(Org.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Ed., 2003, p. 1368-1369.
191
merecedores da tutela, deve ser reduzido ao mínimo indispensável.421
A doutrina portuguesa também não chegou a bom termo em relação ao
prazo máximo do encarceramento preventivo. É criticada quanto à divergência entre prazos
fixados. É o caso, por exemplo, do prazo para a duração da prisão preventiva e outro, fixado
para a duração da instrução processual. Invocando Francisco Isasca pelo princípio da
concordância ou harmonia dos prazos, e, reclamando por maior celeridade processual, externa
Finalmente, uma última palavra quanto à prisão preventiva.
Se um sistema de justiça não é capaz de responder com eficiência e
celeridade ditando o direito ao caso concreto, de duas uma: ou o sistema
está mal, ou não são criadas as condições mínimas para que funcione. No
caso português, estou absolutamente convicto que, no essencial, o defeito
não está no sistema. Mas também estou absolutamente convicto que não é
aceitável – num Estado de Direito Democrático – permitir, à velocidade em
que decorre a vida no século XXI, que uma medida cautelar, como o é da
prisão preventiva, possa ter a duração de quatro anos e meio! Creio que
dois anos ou mesmo dois anos e meio é o limite do admissível.422
O doutrinador Germano Marques da Silva se manifesta no mesmo sentido:
É urgente cumprir a Constituição e conformar a lei ordinária para que a
prisão preventiva adquira o seu carácter de excepção e essa conformação
passa necessariamente pelo encurtamento dos prazos porque é dificilmente
421
SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In:
ANDRADE, Manuel da Costa (org.) Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra
Ed., 2003, p. 1369.
422
ISASCA, Francisco. Prisão preventiva e as restantes medidas de coação. Revista Portuguesa de Ciência
Criminal. Coimbra, ano 13, n. 3, p. 367-385, jul./set. 2003, p. 385.
192
conciliável com os princípios de presunção de inocência e da liberdade423,
que são a base de nossa civilização, uma prisão preventiva que possa atingir
15 meses imposta a quem, ‘sendo embora argüido de um crime, não está
ainda pronunciado ou acusado’424 e praticamente impossibilitado de se
defender, sobretudo em razão de uma pratica processual de matiz
autoritária.425
A doutrina lusitana, embora apresente contradições quanto à interpretação
do prazo máximo da duração da medida de encarceramento preventivo, revela congruência de
idéias no sentido da celeridade processual máxima quando o acusado se encontra preso
cautelarmente.
6.3 Proposta de Contagem de Prazo da Prisão Preventiva
A legislação em vigor determina que a contagem de prazo do preso
segregado por custódia preventiva, bem como por quaisquer das modalidades das prisões
processuais, medida de segurança ou administrativa, mesmo que seja cumprida no exterior, se
opere a detração, instituto previsto no artigo 42, do Código Penal.
Na contagem de tempo é computado, para fins de detração, um dia de pena a
ser cumprido de acordo com a sentença, para cada dia cumprido provisoriamente, qualquer
423
“A prisão preventiva não pode deixar de ser temporalmente limitada, e, de acordo com a sua natureza,
estritamente limitada”. CANOTILHO, J. J. Gomes; BUENO, Vital. Constituição da Republica Portuguesa
anotada. 3. ed. 1993, p. 190. Apud SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do
culto a da liberdade. In: ANDRADE, Manuel da Costa (Org.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo
Dias. Coimbra: Coimbra Ed., 2003.
424
CANOTILHO, J. J. Gomes; BUENO, Vital. Constituição da Republica Portuguesa anotada. 3. ed. 1993,
p. 190. Apud SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In:
ANDRADE, Manuel da Costa (Org.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra
Ed., 2003.
425
SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In:
ANDRADE, Manuel da Costa (org.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra
Ed., 2003, p. 1370.
193
que for a duração da prisão cautelar.
Observa-se na prática processual que, dificilmente, um processo tem a
sentença prolatada no prazo processual previsto, e que, de acordo com as somas dos prazos
previstos no Código de Processo Penal, no processo de rito ordinário, decidiu-se pela
jurisprudência em 81 dias, caso não sejam requeridos incidentes que possam aumentar o
prazo, como a oitiva de testemunhas por carta precatória, incidente de sanidade, além de
outros.
Ao elaborar o projeto de Reforma do Código Penal e da Lei de Execuções
Penais para a Argentina em 1992, (estudo que não passou do projeto),Raul Eugênio Zaffaroni
sugeriu a adoção de sistema progressivo da contagem do tempo da prisão cumprida
provisoriamente, medida que resultaria na aceleração natural do processo , bem como uma
certa compensação pela violação do princípio da presunção de inocência, como explica o
Doutrinador Argentino:
Temos sugerido, também, um sistema de computo da prisão preventiva. A
prisão preventiva realmente é uma pena. Temos que admitir esta
conseqüência inevitável, mas temos pensado que seria muito bom imputar à
pena de prisão preventiva, regra que leva à conclusão de que um dia de
prisão preventiva vale um dia de prisão como se fosse definitiva, até os 6
meses. Depois, de 6 meses a um ano, um dia de prisão preventiva valerá 2
dias de prisão como pena definitiva; de um ano a 18 meses, um dia de
prisão preventiva eqüivalerá a 3 dias de prisão como pena definitiva, e, dos
18 meses para frente, um dia de prisão preventiva valerá 4 dias de prisão
como pena. No sistema progressivo há um incentivo ao preso, com
obrigação dos tribunais, com o fim de acelerar o processo. No fundo, a
prisão preventiva é uma pena inevitavelmente violatória dos princípios da
presunção de inocência, mas não podemos prescindir da prisão preventiva.
A prisão preventiva viola os princípios da presunção de inocência, é uma
pena, e quanto maior for a prisão preventiva, progressivamente vai violando
mais profundamente o princípio da presunção da inocência. Estamos
reconhecendo esta violência ao imputar à pena esta progressividade, na
tentativa de reparar o princípio da presunção de inocência. 426
426
ZAFARONI, Raul Eugenio. A reforma penal argentina e nos paises latino-americanos. Revista do
Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 30, p. 11-22, 1994.
194
A proposição, segundo nossa compreensão, seria de boa aplicação e caberia
ao processo penal brasileiro como forma de impor obrigação aos condutores do processo, de
observar o princípio do devido processo legal, principalmente no que diz respeito à
obediência dos prazos processuais, sendo, inclusive, os marcos para a aplicação da
progressividade. Assim, por exemplo, num processo ordinário, sem qualquer incidente, a
partir dos 81 dias seria aplicada a progressividade, e, a cada transcurso deste período, poderia
se computar um dia a mais de pena cumprida provisoriamente como pena definitiva, o que
promoveria a progressão. Até os 81 dias de pena cumprida provisoriamente, um dia de prisão
equivaleria a um dia de pena definitiva. A partir de 82 até 162 dias cada dia de pena
provisória equivaleria a dois dias de pena definitiva. A partir de 163 até 243 dias cada dia de
prisão provisória equivaleria a três dias de pena cumprida definitivamente, e, assim,
sucessivamente, observados, evidentemente, os prazos exatos para a realização dos incidentes
processuais e cumprimento de cartas precatórias afastando-se o princípio da razoabilidade,
invocado pelo Superior Tribunal de Justiça427 para justificar as demoras injustificadas e
decorrentes das deficiências do aparelho judiciário, para a manutenção das segregações
provisórias.
6.4 Inexistência de Prisão Preventiva no Juizado Especial
No Juizado Especial se aplica, com muito mais razão, o princípio da
excepcionalidade da prisão preventiva. Isto também acontece com os demais princípios
427
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 43439/RJ - Habeas corpus 2005/0064594-4. Relator Ministro
Felix Fischer. Órgão Julgador . Quinta Turma. Julgamento 15 set. 2005. Diário da Justiça, p. 356, 24 out.
2005.
195
norteadores do processo penal, notadamente da presunção de inocência.
O artigo 61, da lei 9.099/95, estabelece a competência dos Juizados
Especiais. As infrações a serem julgadas por este Juízo são as contravenções penais e crimes
punidos com pena máxima não superior a um ano. O limite temporal foi aumentado para pena
não superior a dois anos pela aplicação, em beneficio do réu, da lei 10.259/2001, lei dos
Juizados Especiais Federais. Assim, por aplicação do artigo 69 da lei 9.099/95, não haverá a
prisão em flagrante, já que em havendo a infração penal, a autoridade policial lavrará termo
de infração penal.
Na análise do disposto no artigo 313, do Código de Processo Penal,
considerando os tipos penais de competência dos Juizados Especiais, percebe-se que somente
em alguns casos seria cabível a prisão preventiva. Trata-se dos casos previstos no inciso II do
artigo citado, ou seja, indiciado por crime doloso, punido com detenção, sendo vadio ou se
houver dúvida quanto a sua identidade, ou, quando o indiciado não fornecer elementos para a
sua identificação.
José Laurindo de Souza Netto apresenta posição firme sobre a
impossibilidade da medida cautelar nos crimes de competência dos Juizados Especiais.
Acontece que o tratamento legal dispensado para os delitos de menor
potencial ofensivo é incompatível com encarceramento preventivo diante da
imperiosa presença do acusado no procedimento, embora o argumento não
seja por evidente cabal.
Definitivo, este sim, é o argumento que indica o sentido de ser um contrasenso o fato do imputado vir a sofrer mais durante o processo do que com a
pena que, eventualmente, venha a receber em caso de condenação.428
428
SOUZA NETTO, Jose Laurindo de. Processo penal: modificação da lei dos juizados especiais criminais à
luz dos princípios processuais. Curitiba: Juruá, 1998, p. 115.
196
A convicção de José Laurindo de Souza Netto é fundada, basicamente, na
aplicação do princípio da proporcionalidade, aplicado aos procedimentos penais italiano e
português:
O Código de Processo Penal Português, no seu artigo 193º, 1, estabelece
que as medidas de coação a aplicar devem ser proporcionais à gravidade do
crime e as sanções que, previsivelmente, venham a ser aplicadas.
No mesmo sentido, o disposto no art. 321, do Código de Processo Penal
Brasileiro, garante uma situação de liberdade plena quando o réu se livra
solto.
O encarceramento preventivo no Juizado apresenta-se desproporcional com
a pena que se espera, superando-a em gravidade.
O Código de Processo Penal Italiano determina, no art. 274, ‘b’, que não
será imposta medida cautelar quando o Juiz antevê a possibilidade de que o
apenamento a ser aplicado não ultrapassar dois anos.
Deste modo, a existência de poder estatal, para privar os indivíduos de
liberdade, no sistema do Juizado, leva à revigoração do princípio do estado
de inocência.429
Integrantes da 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de São
Paulo, ao concederem ordem de habeas corpus, justificaram a concessão da revogação da
prisão preventiva levando em conta a aplicação dos princípios da proporcionalidade, da
razoabilidade e da excepcionalidade da medida cautelar. O acórdão destaca:
Por outro lado, curial salientar que o crime de desobediência, irrogado ao
paciente, inclui-se entre aqueles considerados de menor potencial ofensivo
pelo art. 2º, § único, da Lei n° 10.259/01, instituidora dos Juizados
Especiais Federais, e a decretação da prisão preventiva, nestas condições,
possui um caráter desproporcional, diante não só da possibilidade de
429
SOUZA NETTO, Jose Laurindo de. Processo penal: modificação da lei dos juizados especiais criminais à
luz dos princípios processuais. Curitiba: Juruá, 1998, p. 115.
197
transação penal (art. 76 da Lei n° 9.099/95) e de suspensão condicional do
processo (art. 89 da Lei n° 9.099/95), mas também, na hipótese de
condenação, de eventual concessão de sursis (art. 77 do Código Penal),
multa substitutiva (art. 60, §2° do Código Penal) ou aplicação de pena
restritiva de direito (art. 44 do Código Penal). A desproporcionalidade da
medida fica ainda mais nítida se considerarmos que em delitos de menor
potencial ofensivo sequer é cabível a prisão em flagrante do autor do fato,
se este for encaminhado ao Juizado competente ou assumir o compromisso
de a ele comparecer, ex vi do art. 69, § único da Lei nº 9.099/95. Desta feita,
a determinação de recolhimento preventivo em casos envolvendo delitos
considerados de menor expressão ou de pouco potencial ofensivo atenta
contra o princípio da razoabilidade, devendo ficar reservada a prisão
preventiva a hipóteses graves e excepcionalíssimas, o que não corresponde
ao caso vertente nos presentes autos.430
Há, todavia, quem defenda a possibilidade da decretação da prisão
preventiva em sede de Juizado Especial em condições especialíssimas:
Apesar de raríssima e de contra-indicada, pode ser cabível, no Juizado, a
representação ou o pedido de prisão preventiva se, por exemplo, provar-se
que o autor do fato está coagindo testemunhas. Neste aspecto devemos estar
atentos para um dos elementos da prisão provisória, qual seja a
homogeneidade: las medidas cautelares son homogéneas, aunque no
idênticas, con las medidas ejecutivas a las que tienden a preordenar.431
A Turma Recursal Única, do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, emite
manifestações nos dois sentidos: pela inviabilidade da prisão preventiva, em razão da sua
característica de excepcionalidade e, pela cominação de penas restritivas de direitos aos
430
BRASIL. JEF. Habeas Corpus nº 200403000202440 SP. Órgão Julgador 1ª Turma Recursal – SP. Relator
Juiz Federal Hélio Egydio M. Nogueira.
Decisão: 16 nov. 2004.
Disponível em:
<http://daleth.cjf.gov.br/Jurisp/Juris.asp>. Acesso em 28 jan. 2006.
431
MOREIRA, Rômulo de Andrade. Juizados especiais criminais: considerações gerais. Jus Navigandi,
Teresina, ano 8, n. 285, 18 abr. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5078>.
Acesso em: 20 out. 2005.
198
crimes e contravenções de competência dos Juizados Especiais432. No recurso 2003.00002963, de habeas corpus criminal, a Turma Recursal entendeu cabível a decretação da prisão
preventiva, conforme se percebe na ementa:
É assente na jurisprudência a aplicação dos artigos 312 e 313, II, ambos do
Código de Processo Penal, para fundamentar o decreto de prisão preventiva
daquele que, respondendo por crime apenado com detenção e não
comprovando atividade laboral lícita, reitera a prática delituosa. 2. Em
casos tais, não se configura constrangimento ilegal a prisão cautelar, posto
que emanada para garantia da ordem pública.433
É possível observar que a lei 9.099/95 se coaduna com os princípios gerais
das Regras de Tóquio, adotadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas através da
resolução 45/110, de 14 de dezembro de 1990, que tem por finalidade a intervenção mínima e
a aplicação de medidas não restritivas de liberdade ao máximo. Preceituando em relação à
prisão preventiva determina
6. A prisão preventiva como último recurso.
6.1. No procedimento penal só se recorrerá à prisão preventiva como último
recurso, tendo devidamente em conta a investigação do suposto delito e a
proteção da sociedade e da vítima.
6.2. As medidas substitutivas da prisão preventiva se aplicarão o antes
possível. A prisão preventiva não deverá durar mais que o tempo que seja
432
PARANÁ. Tribunal de Justiça. Turma Recursal Única. Recurso em Sentido Estrito 2003.0000329-2. Ação
Originária 1999.10. Comarca de Origem Quedas do Iguaçu. Relator: Juiz Edgard Fernando Barbosa. 17 maio
2004. Disponível em: <http://www.tj.pr.gov.br/csp/turmarec/ConsultaVerbete02.csp?Operacao=PR>. Acesso
em: 28 jan. 2006.
433
PARANÁ. Tribunal de Justiça. Turma Recursal Única. Recurso 2003.0000296-3 - Habeas Corpus Criminal.
Ação Originária 2002.110 Comarca de Origem Astorga - 1º JECri. Relator: Juiz Edgard Fernando Barbosa.
Julgamento 01 set. 2003. Disponível em: <http://www.tj.pr.gov.br/csp/turmarec/ConsultaVerbete02.csp?
Operacao=PR>. Acesso em 28 jan. 2006.
199
necessário para o logro dos objetivos indicados da regra 6.1.
6.3. O delinqüente terá direito a apelar ante uma autoridade judicial ou
outra autoridade independente e competente nos casos em que se imponha a
prisão preventiva.434
Não há como se conceber a aplicação da prisão preventiva ao acusado, que,
em sentença penal condenatória, provavelmente não seja sentenciado a pena privativa de
liberdade, mas restritiva de direitos.
6.5 Prisão Preventiva Diante dos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos
Humanos
Diante da importância da aplicação de tratados de direitos humanos,
mormente quando se trata de proteger o cidadão, faz-se necessária breve explanação sobre a
forma como eles ingressam no ordenamento jurídico brasileiro, bem como sobre o seu status
normativo.
A Carta Constitucional de 1988, inspirada em experiências de constituições
que evidenciam os princípios da dignidade humana e os direitos humanos, apresenta o que há
de mais avançado em relação à matéria435, o que pode ser observado já no preâmbulo da Carta
Maior.
A Constituição Federal já estabelecia, anteriormente, a aplicação imediata
434
Regras Mínimas das Nações Unidas sobre Medidas não Privativas de Liberdade (Regras de Tókio). Adotadas
pela Assembléia Geral em sua resolução 45/110, em 14 de dezembro de 1990, citado por MAIA NETO, Candido
Furtado. Direitos humanos do preso: lei de execução penal, Lei nº 7.2210/84. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.
257.
435
PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos, o princípio da dignidade humana e a Constituição Brasileira de 1988.
Revista dos Tribunais, a. 94, n. 833, p. 48, mar. 2005.
200
de normas que tratassem sobre direitos fundamentais no §1º, do artigo 5º, bem como a
aplicação das normas e dos princípios decorrentes de tratados adotados pelo Brasil, no §2º, do
artigo 5º. O fato, entretanto, gerou discussões doutrinárias sobre a hierarquia das normas
internacionais.
Com a inclusão do §3º, do artigo 5º, da Constituição Federal, pela Emenda
Constitucional nº 45, promulgada em de 08 de dezembro de 2004, (o tratado internacional que
versa sobre matéria de direitos humanos é inserido no ordenamento jurídico interno), passa a
ser equiparada à emenda constitucional, inclusive, em relação à validade e à eficácia dela,
unificando, assim, as várias vertentes doutrinárias acerca da receptividade dos tratados
internacionais, a partir de simples interpretação da emenda:
Pela parte final da redação do §3º, do artigo 5º, da Constituição Federal,
pode-se concluir que, embora os tratados internacionais que versam sobre matéria de direitos
humanos sejam equiparados a emendas constitucionais, dependem, para isto, da aprovação,
inclusive em dois turnos, pela maioria qualificada dos membros de cada casa do Congresso
Nacional: Câmara de Deputados e Senado. Caso não atendam à exigência, se igualam à lei
ordinária, como ocorria com o entendimento anterior à Emenda Constitucional nº 45, de 08 de
dezembro de 2004.
A necessidade da equiparação entre os tratados internacionais que versam
sobre matéria de direitos humanos à emenda constitucional no ordenamento jurídico pátrio há
muito tempo está sendo discutida pela doutrina. Para ilustrar o afirmado, pode-se citar o
eminente constitucionalista português, J.J Gomes Canotilho, em comentários feitos à
constituição portuguesa:
Dada à não atribuição expressa pela Constituição, de um valor específico às
normas de direito internacional geral, várias soluções poderão ser
201
apontadas quanto ao valor dessas normas: (1) valor constitucional – as
normas de direito internacional geral fariam parte integrante do direito
constitucional português e a sua violação desencadearia o fenômeno da
inconstitucionalidade; (2) valor infraconstitucional, mas supra legislativo –
as normas de direito internacional geral não podem valer contra a
Constituição, mas têm primazia hierárquica sobre o direito interno anterior
e posterior, devendo os tribunais ou quaisquer outros órgãos aplicadores do
direito recusar-se a aplicar o direito interno contrário ao direito
internacional geral; (3) valor equivalente ao das leis – podendo, revogar
actos legislativos anteriores e ser revogados por leis posteriores; (4) valor
supra-constitucional, como expressamente estatui a constituição holandesa
em que as normas de direito internacional têm primazia sobre as normas
constitucionais.436
Mesmo sem previsão legal expressa sobre as normas de direito
internacional, já havia, na doutrina, a possibilidade da aplicação de várias teorias, na tentativa
de inseri-las em contexto social, dentre os quais está a primazia sobre as normas
constitucionais.
A inclusão do §3º, ao artigo 5º, da Carta Magna, dificultou a inserção dos
tratados de direitos humanos ao ordenamento jurídico, já que determina a aprovação da
maioria qualificada dos membros do Congresso Nacional. Pela interpretação da cláusula
aberta do §2º, do artigo 5º, da Constituição Federal, os tratados internacionais de direitos
humanos já possuíam força constitucional sem a necessidade da aprovação por maioria
absoluta do Congresso Nacional. Isto é o que assevera Valério de Oliveira Mazzuoli:
De outra parte, a assertiva de que os tratados internacionais de proteção
dos direito humanos ‘ingressam como lei ordinária’ no nosso ordenamento
interno não prospera. Se a própria Constituição estabelece que os direitos e
as garantias nela elencados podem ser complementados por outros,
provenientes de tratados, não se poderia pretender que esses outros direitos
e garantias tivessem um grau hierárquico diferente do das normas
constitucionais em vigor. Ademais, a afirmativa de que ‘senão por meio de
436
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000,
p. 796.
202
tratados teríamos emendas constitucionais a alterar a Constituição’, em
virtude de ter tratado posterior, não podem modificar a Constituição nem se
tornar petrificado por antecipação, como veremos, é, data máxima vênia,
absolutamente descabida. Primeiro, porque os tratados de proteção dos
direito humanos de que o Brasil é parte tornam-se, sim, petrificados por
antecipação, pelo fato de terem aplicação imediata, segundo o mandamento
do §1º, do artigo 5º, da Carta de 1988, desde a data de respectivas
ratificações. Segundo, porque, como veremos, sem embargo de não poderem
tais tratados ‘emendar’ o texto constitucional, podem, entretanto, em caso
de conflito com uma norma constitucional menos benéfica, fazer com que se
inaplique o dispositivo constitucional prejudicial, aplicando-se o texto do
tratado que traz disposição sobre a mesma matéria, de forma mais favorável
ao cidadão.437
O entendimento é viável porque a redação do §2º, do artigo 5º, da
Constituição Federal, estabelece que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”438.
Consoante ao estabelecido, pode-se consagrar que somente os tratados
internacionais versando sobre matéria de direitos humanos é que são equiparados às emendas
constitucionais e possuem inclusão imediata pelo sistema jurídico nacional, conforme regra
prevista no §1º, do artigo 5º, da Constituição Federal, enquanto que, os demais tratados
internacionais, inseridos no ordenamento jurídico pátrio, têm índole infraconstitucional e não
podem ser congregados imediatamente.
O inciso II, do artigo 4º, da Carta Magna, estabelece:
Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais pelos seguintes princípios:
437
MAZUOLLI, Valério de Oliveira. Direito humanos provenientes de tratados: exegese dos §§1º e 2º do art. 5º
da constituição de 1998. Revista Jurídica, a. 48, n. 278, p. 41, dez. 2000.
438
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005.
203
[...]
II – prevalência dos direitos humanos;439
Fazendo-se leitura sistemática do artigo, percebe-se que a Carta Magna
determina que as relações exteriores são dirimidas pela prevalência dos direitos humanos.
Diante disto pode-se subtender que, em conjunto com a cláusula aberta do §2º, artigo 5º, da
Constituição Federal, sempre vai ser aplicada a norma mais benéfica, qual seja, a do princípio
da primazia da norma mais benéfica para dirimir as relações interestatais:
Quanto ao caráter aberto da cláusula constitucional constante do art. 5º,
parágrafo 2º, é ele evidenciado por José Afonso da Silva, quando leciona a
circunstância de a Constituição mesma admitir outros direitos e garantias
individuais não enumerados, quando, no parágrafo 2º, do art. 5º, declara
que os direitos e garantias previstos neste artigo não excluem outros,
decorrentes dos princípios e do regime adotado pela Constituição e dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte.440.
Antes da inserção do §3º, ao artigo 5º, da Constituição Federal, era atribuído
aos tratados internacionais de direitos humanos caráter de emenda constitucional, por conta da
“cláusula aberta” do §2º, do artigo 5º, da Constituição Federal, que permite a inclusão do rol
de princípios da própria Constituição e, de outros, provenientes de tratados, sendo que o §3º
do mesmo dispositivo legal, pôs fim às discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da
sua hierarquia.
Como a primeira forma de limitação ao poder supremo do Estado, a Magna
439
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 22.
440
PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos, o principio da dignidade humana e a Constituição Brasileira de 1988.
Revista dos Tribunais, a. 94, n. 833, p. 48, mar. 2005. p. 80.
204
Cartha Libertatum representa um dos principais documentos históricos a afirmar a liberdade,
prevendo, ao mesmo, as possibilidades de se efetuar a prisão:
Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus
bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e
nós não procederemos e nem mandaremos proceder contra ele senão
mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei
do país.441
A afirmação da liberdade originou-se em dois movimentos marcantes: a
independência dos Estados Unidos da América, marcada pela Declaração do Bom Povo da
Virgínia, de 16 de julho de 1776, e, a Revolução Francesa, da qual resultou a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, em 26 de agosto de 1779, que, todavia, mesmo ao
assegurar o direito à liberdade, impôs os limites no artigo 4º:
Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o
próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem
por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade
o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados
pela lei.442
Marco divisor na internacionalização dos direitos humanos surge no final da
441
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999.
Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/documentos/historicos/magna_carta.html>. Acesso em: 04
ago. 2007.
442
TEXTOS básicos sobre derechos humanos. Trad. Marcus Cláudio Acqua Viva. Madrid: Universidad
Complutense, 1973. Apud FERREIRA FILHO, Manoel G. et al. Liberdades públicas. São Paulo: Saraiva,
1978. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/documentos/historicos/magna_carta.html>. Acesso
em: 04 ago. 2007.
205
Segunda Guerra Mundial, (medida que ela própria representou) série de violações de toda a
sorte dos direitos humanos, que poderiam ser evitadas diante da presença de sistema efetivo
de proteção internacional de direitos humanos. É o que assegura Valério de Oliveira
Mazzuoli:
Esta última atribuição do direito internacional é bastante recente e não
encontra eco nessa arena até o final do século XIX. Mas, em decorrência
das inúmeras violações de direitos humanos, ocorridas a partir das
primeiras décadas do século XX – principalmente com as duas grandes
guerras mundiais – a idéia de um jus puniendi em plano global começa a
integrar a ordem do dia da agenda internacional, rumo à instituição de uma
moderna Justiça Penal Internacional.443
Interessante é ressaltar a criação do Tribunal de Nüremberg, resultado do
acordo de Londres, firmado em 08 de agosto de 1945. Sem entrar no mérito da sua
legitimidade, objeto de críticas por violar princípios norteadores do processo penal ao vedar a
criação de tribunais de exceção e o princípio da legalidade, ele teve os seus julgamentos
lastreados basicamente no direito costumeiro internacional, como fonte do direito, a exemplo
do que ocorreu, por ocasião da redação do Estatuto da Corte de Haia, em 1920. No documento
foram citados como fontes do Direito Internacional os tratados, os costumes e os princípios
gerais do Direito, sendo fontes auxiliares a jurisprudência e a doutrina, e, facultativamente, o
uso da eqüidade444.
A partir da criação da Organização das Nações Unidas pode-se dizer que os
documentos internacionais relativos à proteção dos direitos humanos foram multiplicados de
forma acelerada, a começar pela Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada
443
MAZUOLLI, Valério de Oliveira. Tribunal penal internacional e as perspectivas para a proteção intencional
dos direitos humanos no século XXI. Revista Jurídica, a. 93, n. 830, p. 422, dez. 2004.
444
REZEK, J. Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 9.
206
pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de
1948.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos representa grande avanço em
relação às declarações de direitos do século XVIII, (declaração francesa de 1789 e a
declaração americana de 1776), que consagravam a ótica contratualista liberal pela qual os
direitos humanos se reduziam aos direitos à liberdade, à segurança e à propriedade,
complementados pela resistência à opressão sob os ideais de Locke, Montesquieu e Rosseau,
enquanto que a Declaração Universal dos Direitos Humanos consagrou a universalidade
destes direitos e introduziu a idéia de indivisibilidade ao conjugar, imediatamente, o catálogo
dos direitos civis e políticos com o catalogo dos direitos econômicos, sociais e culturais445.
Tratados internacionais referem-se de forma clara à restrição da liberdade do
cidadão antes da prestação jurisdicional final pelo Estado juiz, seja impondo limites, seja
estabelecendo regras processuais quanto ao tratamento recluso, preventivamente.
Na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos,
realizada em San José de Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, foi elaborada, e aberta a
assinaturas, a Convenção Americana de Direitos Humanos denominada de Pacto de San José
da Costa Rica, subscrita pelo Brasil em relação à prisão preventiva, reafirmou, basicamente, o
contido na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, inovando na área da
privação de liberdade, a proibição da prisão por dívidas. Já o Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de
1966, e incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro através do decreto-legislativo 226,
de 12 de dezembro de 1991, promulgado pelo decreto 592, de 06 de julho de 1992, prevê, de
modo expresso, a excepcionalidade da prisão preventiva, no artigo 9º, parágrafo 3º:
445
PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos, o princípio da dignidade humana e a Constituição Brasileira de 1988,
Revista dos Tribunais, a. 94, n. 833, p. 48, mar. 2005. p. 146.
207
A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá
constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a
garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à
audiência e a todos os atos do processo, se necessário for, para a execução
da sentença.446
Advindo
daí,
foram
elaborados
vários
documentos
internacionais
objetivando preservar as garantias de presos e detentos. Pode-se destacar, entre outros, o
conjunto de princípios para a proteção das pessoas sujeitas a qualquer forma de detenção ou
prisão, adaptados pela Assembléia Geral das Nações Unidas através da resolução 43/173, de
09 de dezembro de 1998, que, especificamente, resguarda o princípio da presunção de
inocência e da prisão como última ratio no princípio nº 36, do documento:
A pessoa detida, suspeita ou acusada da prática de infração penal presumese inocente, devendo ser tratada como tal até que a sua culpabilidade tenha
sido legalmente estabelecida no decurso de um processo público em que
tenha gozado de todas as garantias necessárias à sua defesa.
Só se deve proceder à captura ou detenção da pessoa assim suspeita ou
acusada, aguardando a abertura da instrução e julgamento quando o
requeiram necessidades da administração da Justiça pelos motivos, nas
condições e, segundo o processo prescrito por lei. É proibido impor a essa
pessoa, restrições que não sejam estritamente necessárias para os fins da
detenção; para evitar que dificulte a instrução ou a administração da
justiça, ou para manter a segurança e a boa ordem no local de detenção.447
Outros documentos foram elaborados com a mesma finalidade. Foi o caso
446
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Adotado pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em
16.12.1966. Entrou em vigor a 23.03.1976, em conformidade com o artigo 49 do mesmo Pacto, após haver a
Tcheco-Eslováquia (35º Estado) depositado seu instrumento de ratificação a 23.12.1975. O Brasil ratificou o
Tratado, tendo-o promulgado pelo Decreto 592, de 06.12.1992 (DO de 07 do mesmo e ano). Aprovação do
Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo 226, de 12.12.1991. RANGEL, Vicente Marotta (Org.). Direito e
relações internacionais. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 686.
447
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 43/173, de 09 de dezembro de 1998.
208
das regras mínimas para o tratamento de reclusos, emitidas durante o primeiro Congresso das
Nações Unidas sobre a prevenção de crime e o tratamento de delinqüentes realizado em
Genebra, no ano de 1955. Posteriormente, elas foram aprovadas pelo Conselho Econômico e
Social das Nações Unidas através das resoluções 663 C (XXIV), de 31 de julho de 1957, e,
2.076, (LXII), de 13 de maio de 1977. A primeira delas (663 C) estabeleceu regras que,
seguramente, não são seguidas no Brasil, como é a questão da separação que precisa
acontecer entre presos provisórios e condenados, sem considerar as condições mínimas de
espaço, ventilação, higiene e outras que, lamentável e infelizmente, não são seguidas em
prisões brasileiras.
Além dos tratados internacionais já mencionados, Cândido Furtado Maia
Neto cita série de documentos internacionais que visam a limitar ao máximo a prisão
preventiva.
No 8º Congresso Mundial das Nações Unidas sobre a Prevenção do Delito e
Tratamento do Delinqüente é reafirmada a excepcionalidade da prisão preventiva, ao
recomendar aos Estados-Membros, que
Tenham em conta, no marco das sanções não privativas de liberdade,
disponibilidades de medidas substitutórias da prisão preventiva às que se
pode recorrer com maior freqüência.
Evitem, reduzem ou eliminem a superpopulação nas prisões estudando a
possibilidade de combinar fatores como os seguintes: redução das penas de
prisão impostas, substituição das penas de prisão por sanções ou penas não
privativas de liberdade e redução do recurso à prisão preventiva facilitando
a liberação prévia ao juízo ou à liberdade sob fiança e cauções juratórias;
Examinem métodos para garantir que não se veja obstaculizado o acesso
das pessoas em regime de prisão preventiva à assistência letrada ou a outro
tipo de assistência ou assessoramento e que as condições de detenção não
sejam mais restritivas que o necessário para assegurar a custódia segura
dessas pessoas;
Façam o necessário para conseguir uma aplicação mais completa das
209
regras mínimas para o tratamento dos reclusos.448
Há recomendação firme no sentido da aplicação de medidas substitutórias
da prisão preventiva. Confrontando-se com nosso ordenamento jurídico, observa-se
facilmente que ele não contempla qualquer medida substitutiva à medida extrema
representada pela prisão preventiva. Assim, por exemplo, para se evitar que alguma pessoa se
furte à aplicação da lei penal pela saída do Brasil, o que poderia ser evitado pelo simples
recolhimento do passaporte, é atacado via prisão preventiva.
O avanço experimentado aconteceu pela adoção dos Juizados Especiais
Civis e Criminais, visando às infrações de menor potencial ofensivo, embora, teoricamente
seja possível, mesmo em sede de procedimentos de competência da justiça especializada, a
aplicação da prisão preventiva.
448
CONGRESSO MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A PREVENÇÃO DO DELITO E
TRATAMENTO DO DELINQÜENTE, 8.: Milão-Itália: 1985. Apud MAIA NETO, Candido Furtado. Direitos
humanos do preso: lei de execução penal, Lei nº 7.2210/84. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 251.
210
CONCLUSÃO
Considerando as pesquisas realizadas no presente estudo, considerando a
liberdade de interpretação que nos é possibilitada pela Teoria Crítica do Direito,
considerando, ainda, a proposta do curso que, colocando o homem numa perspectiva que
considera o meio social, econômico, político e jurídico, sem, todavia, desprezar as
contribuições históricas, com a finalidade de resgatar a dignidade do cidadão e a jurisdição
como elemento de inclusão social do cidadão, nos leva a concluir que
I. O texto Constitucional, que por um lado apresenta-se como limitador a
atividade discricionária do Estado, no que tange o procedimento penal e principalmente a
restrição de liberdade do cidadão, ao mesmo tempo legitima a prisão processual, antes da
sentença penal condenatória com transito em julgado.
II. A tutela de urgência no processo penal brasileiro continua sofrendo fortes
influências da doutrina civilista, porém, os avanços doutrinários alcançados nos últimos
tempos permitem supor que em futuro próximo, o tema será objeto de solidificação, com
influência direta dos textos constitucionais, em matéria de liberdades do cidadão.
III. A prisão preventiva que, por definição, deveria ter natureza
eminentemente cautelar, medida instrumental ligada umbilicalmente ao processo penal
condenatório, como acontece quando ela é decretada para a conveniência da instrução
criminal e aplicação da lei penal, não é respeitada sob esta ótica. Em se tratando de ato para
garantir a ordem pública, a prisão preventiva apresenta finalidade diversa, com amplitude que
211
possibilita afirmar que serve desde a prevenção, passando por medida de antecipação de pena,
ou, mesmo, medida de segurança, aparecendo como verdadeira medida judiciária de polícia.
IV. O Supremo Tribunal Federal, cimeiro do nosso Judiciário, está
reservando, gradativamente, com base nos preceitos fundamentais estabelecidos pela
Constituição Federal, a prisão preventiva para os casos de extrema necessidade, sem, contudo,
aboli-la totalmente. O Poder Judiciário não se presta a resolver problemas de política criminal
através da privação indiscriminada da liberdade do cidadão, nem procura acalmar a população
por causa de estardalhaços gerados pelos meios de comunicação.
V. Os preceitos constitucionais que impõem limites à atuação do Estado,
que elevam o homem a condição de parte do processo penal e que consagram a regra da
liberdade têm a aplicação maximizada à medida que vão galgando as instâncias do Poder
Judiciário, partindo de decisões baseadas em fundamentos de fatos, usadas para acalmar o
alarma social, prestigiando a dignidade da justiça em detrimento da dignidade da pessoa
humana, e, culminando em decisões que consideram as razões de direito, fundadas em
preceitos.
VI. Embora o avanço experimentado na direção de proteção ao cidadão, e
rumo a excepcionalidade da prisão preventiva, representado pela produção doutrinária com o
conseqüente reflexo na jurisprudência, ainda há um caminho a ser trilhado na busca da
solidificação do instituto.
VI. A Lei Maria da Penha, embora mereça algumas criticas quanto à
possibilidade de decretação da prisão preventiva nos casos de crimes de pequeno potencial
ofensivo, inova ao adotar uma série de medidas cautelares, e, reserva a prisão preventiva
como um meio de coação para que as medidas sejam efetivadas.
VII. O sistema processual penal brasileiro está defasado. O mesmo também
acontece com os projetos de reforma do processo penal; alguns dos quais consideram
212
proposições para estabelecer sistema acusatório pleno. Outros, infelizmente, fundamentados
no direito penal do terror, representam verdadeiro retrocesso ao sistema inquisitivo,
esquecendo, principalmente, a parte mais interessada no processo: a vítima.
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