UNIVERSIDADE PARANAENSE - UNIPAR DELMAR MARINO HOFFMANN OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO FATO LIMITADOR DA PRISÃO PREVENTIVA UMUARAMA - PR 2008 DELMAR MARINO HOFFMANN OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO FATO LIMITADOR DA PRISÃO PREVENTIVA Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade Paranaense – UNIPAR – Programa de Mestrado em Direito Processual e Cidadania, como exigência para obter o título de Mestre em Direito, sob orientação do Prof. Dr.: José Laurindo de Souza Netto UMUARAMA - PR 2008 TERMO DE APROVAÇÃO DELMAR MARINO HOFFMANN OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO FATO LIMITADOR DA PRISÃO PREVENTIVA Trabalho de conclusão aprovado como requisito para obtenção de Grau de Mestre pela Universidade Paranaense - UNIPAR, pela seguinte banca examinadora __________________________________________________ Dr. José Laurindo de Souza Netto ___________________________________________________ Dr. Gilson Bonato _____________________________________________________ Dr. Fábio Caldas de Araújo DEDICATÓRIA À minha namorada Anna Paula, pelo que representa na minha vida, e por estar ter sido determinante para a conclusão deste trabalho. À minha filha Bárbara, que me ensina pela sabedoria de sua pureza. Ao meu irmão Dércio, que foi o motivo desse estudo. A Deus... AGRADECIMENTOS Ao Professor Orientador José Laurindo de Souza Netto. A todos os meus familiares. Ao amigo João Carlos Poletto, companheiro das viagens, nas quais me saciei com sua sabedoria. HOFFMANN, Delmar Marino. Os Direitos Fundamentais como Fato Limitador da Prisão Preventiva. Umuarama, 2008. 214 f. Dissertação (Mestrado em Direito Processual e Cidadania) – UNIPAR. RESUMO A pesquisa dissertativa busca estudar a prisão preventiva, instituto processual de privação da liberdade, sob a ótica de defesa do cidadão, segundo a ordem constitucional vigente, de forma a reservar a restrição de liberdade a casos efetivamente necessários. A partir da aplicação de princípios constitucionais que operam a favor da liberdade, e que, ao mesmo tempo, se apresentam como permissivos à prisão processual, é feita uma passagem pela tutela cautelar do processo penal, já que o objeto do estudo apresenta, ou deveria apresentar, natureza jurídica eminentemente cautelar. Para melhor entender a prisão preventiva é feita exposição das várias espécies de prisões cautelares previstas no ordenamento processual penal brasileiro, a saber: prisão em flagrante, prisão decorrente de pronúncia, prisão decorrente de sentença penal recorrível e prisão temporária. A prisão preventiva é abordada em seus fundamentos para a garantia da ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal e aplicação da lei penal. Também são estudadas algumas questões polêmicas relativas a prisão preventiva, procurando apresentar alternativas à medida extrema, sempre em favor da finalidade do processo penal, garantindo-se, assim, a plena efetividade do processo. PALAVRAS-CHAVE: prisão preventiva, processo penal. HOFFMANN, Delmar Marino. The Fundamental Rights Fact limiter as pre-trial detention. Umuarama, 2008. 214 f. Dissertação (Mestrado em Direito Processual e Cidadania) – UNIPAR. ABSTRACT The dissertative research aims to study the pretrial detention., liberty institute action disfranchisement, in the view of the citizen defense, according to the constitutional order in legality, in the way to reserve the liberty restriction to cases really necessary. Using the constitutions principle application that operates at the favour of the liberty, and that in the same way, presents themselves as allowed to the processual detention, is proceed a guardianship caution through the penal process, as the object of the study presents, or may present, juridical sole character of caution. To better understand the preventive arrestment is exposed several modus of caution arrestments foreseen in the brazilian penal process, as written: snapshot (flagrant) arrestment, arrestment through enunciation, arrestment due penal sentence able to recourse and temporary arrestment. The preventive arrestment is discussed in its own fundaments to the public order guarantee, economical order, criminal instruction convenience and penal law application, as well as the late innovation represented by the preventive detetion foreseen in the Law 11.340/2006 - Law Maria da Penha. Also are under the study some controversy questions that are around on the preventive arrestment, which aim is to present alternatives to extreme dimensions, allways in favour of the penal process object, giving so the guarantee to the plane process fulfillment. KEY-WORDS: pretrial detention, penal process. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10 1 A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A PRISÃO PREVENTIVA ................. 13 1.1 A Problemática da Prisão Preventiva............................................................................ 13 1.2 A Hermenêutica Jurídica Necessária para Consolidar o Estado Democrático de Direito ........................................................................................................................... 16 1.3 Um Breve Delineamento dos Direitos Fundamentais................................................... 21 1.4 A Eficácia e Aplicação da Jurisdição Constitucional dos Direitos Fundamentais ... 27 2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE GARANTIA DO CIDADÃO ....................... 32 2.1 Princípio da Liberdade ................................................................................................... 32 2.2 Princípio da Presunção de Inocência e Prisão Preventiva........................................... 37 2.3 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana .................................................................. 44 2.4 O Princípio do Devido Processo Legal........................................................................... 48 2.5. Princípio da Proporcionalidade .................................................................................... 58 2.6 Princípio da Razoabilidade............................................................................................. 62 2.7 Princípio da Fundamentação das Decisões Judiciais ................................................... 65 3 TUTELA CAUTELAR NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO ................................ 71 3.1 Noções Gerais................................................................................................................... 71 3.2 Características da Tutela Cautelar ................................................................................ 74 3.3 Requisitos e Fundamentos Gerais das Medidas Cautelares ........................................ 80 3.4 Cautelares do Processo Penal Brasileiro ....................................................................... 82 4 PRISÕES DE NATUREZA PROCESSUAL NO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO ...................................................................................................................... 88 4.1 Conceito de Prisão ........................................................................................................... 88 4.2 Prisão em Flagrante ........................................................................................................ 90 4.3 A Prisão Decorrente de Pronúncia ................................................................................ 96 4.4 Prisão Decorrente de Sentença Penal Condenatória Recorrível................................. 98 4.5 Prisão Temporária......................................................................................................... 103 5 A PRISÃO PREVENTIVA............................................................................................. 112 5.1 Conceituação .................................................................................................................. 112 5.2 Aspectos Históricos da Prisão Preventiva ................................................................... 116 5.3 Natureza Jurídica da Prisão Preventiva...................................................................... 121 5.4 Pressupostos Necessários à Decretação da Prisão Preventiva................................... 123 5.4.1 Prova da existência do crime ..................................................................................... 123 5.4.2 Indício suficiente da autoria ...................................................................................... 125 5.4.3 Necessidade de ordem escrita e fundamentação do decreto de prisão preventiva 128 5.5 Requisitos Autorizadores à Decretação da Prisão Preventiva .................................. 129 5.5.1 Prisão preventiva decretada como garantia da ordem pública.............................. 130 5.5.1.1 Da inconstitucionalidade da decretação da prisão preventiva para a garantia da ordem pública .......................................................................................................... 138 5.5.1.2 Ordem pública em face do clamor público causado pelo fato criminoso ........... 139 5.5.1.3 Ordem pública em face da gravidade do crime .................................................... 142 5.5.1.4 Ordem pública e periculosidade do agente ........................................................... 144 5.5.2 Prisão preventiva decretada para a garantia da ordem econômica ...................... 146 5.5.2.1 Prisão preventiva decretada pela magnitude da lesão ao sistema financeiro artigo 30 Lei 7.492/86 ............................................................................................. 154 5.5.3 Prisão preventiva decretada por conveniência da instrução criminal................... 157 5.5.4 Prisão preventiva decretada para a aplicação da lei penal..................................... 163 5.5.5 Prisão preventiva com a finalidade de aplicação de medidas protetivas de urgência nos casos de violência doméstica contra a mulher................................... 168 5.6 Condições de Admissibilidade da Prisão Preventiva ................................................. 174 5.7 Revogação da Prisão Preventiva .................................................................................. 176 6 QUESTÕES POLÊMICAS SOBRE A PRISÃO PREVENTIVA ............................... 178 6.1 Medidas Alternativas à Prisão Preventiva .................................................................. 178 6.2 Prazo de Duração da Prisão Preventiva...................................................................... 182 6.3 Proposta de Contagem de Prazo da Prisão Preventiva.............................................. 192 6.4 Inexistência de Prisão Preventiva no Juizado Especial.............................................. 194 6.5 Prisão Preventiva Diante dos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos......................................................................................................................... 199 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 210 REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 213 10 INTRODUÇÃO Diariamente são noticiados casos de decretação de prisão preventiva por juízes e de revogação de prisão preventiva por Tribunais Superiores, sem que qualquer fato novo ocorra no processo, o que já bastaria para justificar a escolha do tema, entretanto, tal escolha resultou de experiência pessoal, não como operador do Direito, mas do sentimento de impotência diante da negativa de várias instâncias do Judiciário em atender a pedido de liberdade de pessoa próxima, após ter a prisão preventiva decretada em fundamentos genéricos e abstratos1, em casos que se multiplicam, mas que, quando enfrentados sob a ótica de operador do Direito, não levam a reflexão profunda e intensa sendo, muitas vezes, tratadas de forma displicente, afinal, o que significa mais uma noite na cadeia para quem cometeu um 1 Nos Autos nº 165/99, de ação penal da 1ª Vara Criminal da Comarca de Toledo, Dércio Fernandes Hoffmann, teve a prisão preventiva decretada nos seguintes termos: “[...] 3. A Autoridade Policial, no relatório de conclusão do inquérito, representou pela prisão preventiva do réu, para garantia de ordem pública, o que foi secundado pelo parecer ministerial em fls. 119-IP. Imputa-se ao réu a prática de homicídio qualificado em concurso com tentativa de homicídio simples, o primeiro classificado como crime hediondo. A materialidade deletiva encontrase demonstrada através de laudo de necropsia de fls. 49 e verso. Há indícios suficientes de que o réu tenha praticado o fato delituoso descrito na denuncia, conforme se verifica dos depoimentos prestados perante a autoridade policial. No que diz respeito aos requisitos intrínsecos relativos a necessidade da custódia cautelar, a medida se impõe para conveniência da instrução criminal e garantia da ordem pública. Pois, pelo que se verifica das provas apuradas, o réu possui fortes vínculos com outro País, a Bolívia, onde é proprietário de terras, o que traz fundadas suspeitas que pesando sobre o mesmo tão grave acusação poderá evadir-se do distrito da culpa para outro País, frustrando-se, assim, a instrução criminal e conseqüente aplicação da Lei Penal. E, ainda, a natureza do crime praticado contra uma jovem trabalhadora e honesta, conforme apurado no inquérito, por si só gera clamor público numa cidade como Toledo, indicando presente o pericullum in libertatis, tornando-se aquela pressuposto ensejador da segregação provisória do acusado. Quando de acordo com a jurisprudência: “A prisão preventiva tem como um de seus pressupostos a ordem pública, ou seja a preservação da sociedade contra eventual repetição do delito pelo mesmo agente. Também quando o bem jurídico é afetado por conduta que ocasione impacto social, por sua extensão ou outra circunstância relevante. Constitui resposta à vilania do comportamento do agente. No caso em concreto, ademais, realçada a necessidade decorrente da fuga de Pacientes. (STJ, 6ª Turma. Rel. Min. Vicente Cernichiaro, DJU 02.08.93, p. 14272) – in Jurisprudência Criminal do STF e do STJ, Juruá, 1994, p. 151. (grifo nosso). Ante o exposto, acolhendo o requerimento do Dr. Promotor de Justiça, com fundamento no artigo 312 do Código de Processo Penal, decreto a prisão preventiva de DFH...” 11 delito? Seguindo a proposta do curso, no estudo, o assunto será abordado no contexto da Teoria Crítica do Direito, que permite conduzir a pesquisa através de união dialetizada entre a teoria e a experiência2. Usando-se a hermenêutica jurídica como forma de aplicar o direito ao caso concreto, busca-se não apenas os motivos e as intenções do legislador na elaboração da lei, mas, considera-se a vontade expressa no texto, ultrapassando a interpretação gramatical, lógica, sistemática e histórica para buscar o significado oculto do texto, operando o direito como o lócus de refúgio das reivindicações sociais, o lugar da consolidação das conquistas dos fracos, oprimidos e socialmente excluídos de todo tipo3, que possibilite a verdadeira efetividade do processo, de acordo com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, afirmados no artigo 3° da Constituição Federal. A importância do tema ocorre atentando ao fato de que a prisão preventiva representa a restrição da liberdade física do cidadão antes mesmo de qualquer julgamento, em detrimento do princípio da presunção de inocência, razão pela qual deve ser tratada como medida realmente excepcional e não apenas como forma de satisfação de alguns poucos interessados, como meio de combate à criminalidade, ou, então, para representar falsa operatividade do Poder Judiciário, que decreta a prisão preventiva de forma rápida, mas que, posteriormente, ultrapassa os prazos processuais sob o argumento da razoabilidade, ou ainda, para justificar rompantes eleitoreiros de políticos que buscam, num discurso do Direito Penal do terror4, os argumentos da eleição e da reeleição, resguardando a própria imunidade, esquecendo-se da causa da criminalidade representada pela exclusão social no seu sentido lato. A prisão preventiva, bem como as demais prisões cautelares, é medida 2 COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rei, 2003. p. 13. 3 id. 4 RAMOS, João Gualberto. A inconstitucionalidade do direito penal do terror. Curitiba: Juruá, 1991. 12 drástica, reservada a casos extremos, pois contraria o direito mais sagrado do cidadão, a liberdade. Qualquer erro em relação à decretação destas medidas pode ter seqüelas irreversíveis, conforme assegura Francesco Carnelutti: o encarcerado saído do cárcere, crê não mais ser encarcerado; mas as pessoas, não. Para as pessoas ele é sempre encarcerado, quando muito se diz ex-encarcerado; nesta fórmula está a crueldade do engano5. A Jurisdição Constitucional dos Direitos Fundamentais, que tem entre seus corolários os direitos de liberdades, é o instrumento que assegura ao cidadão, através do Direito Processual Constitucional, materializado pelo Princípio do Devido Processo Legal, e dos remédios processuais, a restrição de liberdade como uma ultima ratio. O estudo hermenêutico jurídico da prisão preventiva sob a ótica da cidadania, e, de acordo com os fundamentos da Teoria Crítica do Direito, apresenta peculiaridade importantíssima que permite interpretar o ordenamento jurídico processual penal não como forma de dominação, de libertação, libertação que não significa liberdade física, mas libertação das amarras positivista e formal. 5 CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio Cardinalli. São Paulo: Conan, 1995. p. 75. 13 1 A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A PRISÃO PREVENTIVA 1.1 A Problemática da Prisão Preventiva Entre as diversas categorias6 que na prática processual penal, suscitam a maior crítica epistemológica e por isso mesmo, descortinam um paradoxo (aparente contradição), surge a prisão preventiva que uma vez decretada pela autoridade judicial, pode estar eivada de vícios e avessa aos fundamentos e maiores necessidades de observância constitucional. Segundo palavras do Ministro Gilmar Mendes7, ao ser sabatinado pelo Senado com a finalidade de aprovar a sua indicação para a presidência do Conselho Federal de Justiça, o Supremo Tribunal Federal, tem concedido a ordem de Habeas Corpus em cerca de sessenta por cento dos recursos apreciados contra prisão preventiva, o que demonstra que algo está errado, chamando os juízes à responsabilidade pelas prisões mal feitas. A dimensão do problema causado pela prisão processual, pode ser medida pelas palavras de Luigi Ferrajoli 6 Categoria é, pois, o conceito, a representação intelectual do objeto, enquanto integrado na dialética do conhecimento que une o sujeito com seu objeto gnósico. COELHO, Luis Fernando. Teoria crítica do direito. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 47. 7 CONSULTOR JURIDICO. Direção da Justiça: Gilmar Mendes toma posse da presidência do CNJ. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/64955>. Acesso em: 01 abr. 2008. 14 É verdade que o encarceramento preventivo é o momento do processo ordinário e é ordenando por um juiz. Todavia, por causa dos seus pressupostos, da sua modalidade e de sua dimensão assumida, tornou-se o sinal mais vistoso da crise da jurisdição, da tendência de tornar mais administrativo o processo penal e, sobretudo, da sua degeneração no sentido diretamente punitivo.8 A Constituição é a "norma das normas"; a lei (em sentido amplo) que fundamenta todo o funcionamento do Estado, seus poderes institucionais e por óbvio as decisões provenientes da "livre convicção do magistrado". Sucede que estas categorias formais (investigação, inquérito, lavratura de termo em flagrante, indiciamento, até a efetiva processualização do fato motivador da medida) vez por outra não respondem ao clamor constitucional garantista. Estas normas, estas decisões formalizadas, deveriam sempre resultar e corroborar ao mesmo tempo, uma validade e observância complexa, mas objetiva, que espelhe a regra superior vinculante ao Poder Público. Ocorre que em relação ao valor normativo desta própria Constituição, a hierarquia que deveria ser pressuposto irretocável, não é ponderada. Existem sem dúvida algumas questões desafiadoras no trato com uma sociedade Democrática num Estado Democrático de Direito. Sua concepção jurídico-política, ou seja, como condutora do sistema judicial, faz com que a vislumbremos como algo inalcançável, a serviço de todos, dos iguais, só que numa sociedade capitalista, alguns são mais iguais e outros menos iguais. Esta tensão decorre fundamentalmente da vinculação histórica do sistema judiciário aos poderes econômico e político, levando a situação em que os conceitos de Estado 8 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 711. 15 de Direito e democracia são invocados como forma de legitimar o poder dominante9, que vem desde há muito se consolidando e caracterizando-se como dependentes e subordinadas. O Poder Judiciário ou de forma direta e objetiva, os magistrados, em tese são encarregados no "sistema", de administrar o julgamento das contendas havidas entre os "comuns”. As leis no mais das vezes, inclusive a lei penal e as medidas judiciais fundadas nelas são apresentadas como espelho de privilégios de dominantes ou manifestação de vontades de uma classe social mais aquinhoada em detrimento da classe dos que nada tem10, sendo que os primeiros, por sua vez, não sobrevivem sem seus representantes no estamento do Estado, quer seja na esfera municipal, estadual e/ou federal. José Laurindo de Souza Netto observa que o que se verifica é que o sistema criminal dramaticamente vai buscar legitimidade sobretudo nos pobres, fazendo com que o direito penal desate sua fúria preponderantemente sobre eles.11 Sidnei Eloy Dalabrida, também manifesta sua preocupação com a intervenção punitiva do Sistema Penal A positivação constitucional de Direitos Fundamentais da Pessoa Humana, com a consagração de garantias penais e processos penais, tem sido insuficiente para a efetiva proteção dos Direitos Humanos no âmbito do Sistema Penal. A realidade operativa do Sistema Punitivo demonstra que freqüentemente a intervenção punitiva se realiza de forma perversa e irracional, com absoluta subversão aos valores que fundamentam um Estado Democrático de Direito, muito embora o discurso jurídico-penal seja capaz de criar a ilusão de que naquele quadrante os Direitos Humanos são de fato respeitados.12 9 PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. A jurisdição como elemento de inclusão social. Barueri: Manole, 2002, p. 27. 10 COELHO, Luis Fernando. Teoria crítica do direito. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 547. 11 SOUZA NETTO, José Laurindo de. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 16. 12 DALABRIDA, Sidnei Eloy. Prisão preventiva: uma análise à luz do garantismo penal. Curitiba: Juruá, 2005, p. 19/20. 16 Quer pela proposta de Luigi Ferrajoli13, através da Teoria da Garantismo Penal, que prevê um direito penal mínimo com respeito aos Direitos Fundamentais e acentuadamente no respeito à dignidade da pessoa humana, modelo que embora utópico14, quer pela proposta de J.J. Gomes Canotilho15 que analisa os Direitos Fundamentais como uma categoria dogmática, nos é permitido vislumbrar um processo penal justo como requer um Estado Democrático de Direito, reservando qualquer das formas de prisão processual como verdadeiras medidas de exceção. 1.2 A Hermenêutica Jurídica Necessária para Consolidar o Estado Democrático de Direito Instrumento indispensável ao aplicador da lei, a hermenêutica jurídica possibilita uma adequação do texto constitucional ao real, à conjuntura da sociedade, visto que a interpretação é a sombra que segue o corpo. Da mesma maneira que nenhum corpo pode livrar-se da sua sombra, o Direito tampouco pode livrar-se da interpretação.16 Busca os princípios da constitucionalidade das leis, uma vez que o Direito nem sempre está disposto ou incluído nas leis, ou seja, a hermenêutica busca efetivar os princípios constitucionais, interpretando as leis de forma a demonstrar a proporcionalidade, a adequação e a unidade da Constituição. É tarefa complexa e não deve ser exercida de forma "mecânica" e descontextualizada, sob pena de aprofundar com este julgamento (latu sensu) 13 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. 14 Ibid, p. 317/318. 15 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 1213. 16 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 532. 17 uma cegueira incompatível com a Constituição Federal. Lênio Luiz Streck17, identifica vários problemas que colaboram para a (in)efetividade dos diretos, e apresenta justamente a hermenêutica jurídica como forma de solução do problema e dar efetividade à norma Constitucional. Com o condão de denunciar o excessivo positivismo18, a hermenêutica consubstancia-se como ferramenta indispensável à libertação das gentes. Entre a libertação e as liberdades, entretanto, vagueia o "monstro autoritário" no qual pode se tornar o Estado, o agente público insensível e avesso a interpretações mais abrandadora, obstinado em resolver as questões pelo uso "nu e cru" da ressalva legal, punidora, restritiva, aprisionadora, etc. Contra este Estado hobbesiano19, a única ação eficaz é a criação de atores sociais libertários e crentes numa efetiva alternância no estado de coisas. Não só os movimentos sociais - fortes e autônomos - que lamentavelmente por vezes arrastam igualmente dirigentes e dirigidos, mas sobretudo pela formação mais contextualizada e responsável dos egressos dos cursos jurídicos e operadores do Direito em geral (advogados, juízes e promotores de justiça). A resistência ao Estado autoritário passa pela modernização de meios, global e universal capaz de negociar com os - no mínimo - dois mundos existentes na sociedade um oficial e outro oficioso, um letrado e outro iletrado, um includente e outro excludente,etc. A percepção democrática do Estado de Direito surgiu como resposta às imprecisões e insuficiências do Estado Social. Se bem observarmos o que se convencionou denominar de "Estado Providência" não deu conta de todos os papéis que lhe foram atribuídos. A democracia possível, passa necessariamente pela reformulação radical de 17 STRECK, Lênio Luiz, Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. 18 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 115. 19 STRECK, op. cit., p. 38. 18 algumas instituições, entidades e departamentos estatais por assim dizer. O Estado Democrático de Direito, fundamento da República Federativa do Brasil, é a síntese histórica de duas idéias originariamente antagônicas: democracia e constitucionalismo. Com efeito, enquanto a idéia de democracia se funda na soberania popular, o constitucionalismo tem sua origem ligada à noção de limitação de poder.20 J.J. Gomes Canotilho explica a afirmação acima: A articulação das dimensões de Estado de direito e de Estado democrático no moderno Estado constitucional democrático de direito permite-nos concluir que, no fundo, a proclamada tensão entre “constitucionalistas” e “democratas” entre o Estado de direito e democracia, é um dos “mitos” do pensamento político moderno. Saber se o “governo de leis” é melhor que o “governo de homens” ou vice-versa é, pois, uma questão mal posta: o governo dos homens é sempre um governo sob leis e através de leis. É, basicamente, um governo de homens segundo a lei constitucional, ela própria imperativamente informada pelos princípios jurídicos radicados na consciência jurídica geral.21 E distingue o Estado de direito, onde a liberdade é vista como uma liberdade negativa, ou uma liberdade de defesa, do Estado democrático, onde a liberdade é uma liberdade positiva, baseada no exercício democrático do poder, legitimando o próprio poder22, o que Luigi Ferrajoli chama de democracia substancial23. Segundo Luigi Ferrajoli24, tanto no governo per leges como no governo per leges, o “garantismo” é a principal conotação funcional de uma específica formação 20 BINENBOJN, Gustavo. A nova jurisdição constitucional: legitimidade democrática e instrumentos de realização. 2. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 246. 21 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 231. 22 Ibid., p. 99. 23 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 797. 24 Ibid., p. 789. 19 moderna que é o Estado de Direito, e faz uma conceituação considerando a ascendência histórica, remontando a Platão e Aristóteles que defendiam um “governo de leis” em contraponto ao “governo dos homens”, segundo orientação de Norberto Bobbio o governo per leges mediante leis gerais e abstratas e o governo sub leges submetido às leis, o “Estado de Direito” no campo do direito penal designa ambas coisas, na medida que: O poder judicial de apurar e punir os crimes e, por certo, sub lege tanto quanto o poder legislativo de defini-los é exercitado per leges; e o poder legislativo é exercitado per leges enquanto, por seu turno, está sub leges, isto é, está prescrita pela lei constitucional a reserva geral e abstrata em matéria penal. 25 Luigi Ferrajoli26 explica que o poder sub lege, pode ser concebido em dois sentidos, no sentido formal ou substancial. No sentido formal, o poder deve ser conferido pela lei, e exercido na forma e de acordo com os procedimentos por ela previstos, sendo considerado Estado de direitos os ordenamentos mesmo que autoritários ou totalitários, enquanto no sentido substancial, o poder é limitado pela lei, característica dos Estados Constitucionais de Constituição rígida, que condicionam a forma e conteúdo, impondo limites formais e principalmente substanciais ao poder, sendo que neste segundo sentido o termo Estado de Direito é empregado como sinônimo de garantismo: Designa, por esse motivo, não simplesmente um “Estado legal” ou “regulado pelas leis”, mas um modelo de Estado nascido com as modernas 25 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2006, p. 789. 26 Ibid., p. 790. 20 Constituições e caracterizado: a) no plano formal, pelo princípio da legalidade, por força do qual todo poder público – legislativo, judiciário e administrativo – está subordinado às leis gerais e abstratas que lhes disciplinam as formas de exercício e cuja observância é submetida ao controle por parte dos juizes delas separados independentes (a Corte Constitucional para as leis, os juízes ordinários para as sentenças, os tribunais administrativos para os provimentos); b) no plano substancial da funcionalização de todos os poderes do Estado às garantias dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações legais de lesão aos direitos de liberdade e de obrigações de satisfações dos direitos sociais, bem como dos correlativos poderes do cidadão de ativarem a tutela judiciária.27 As regras do Estado Democrático de Direito, garantem os direitos fundamentais dos cidadãos, estabelecendo “quem” pode e “como” se deve decidir; “o que” se deve e “o que não” se deve decidir28, o que pode ser verificado pelas condições formais e substancias de legitimação do poder. O Estado de Direito, não pode ser concebido somente no seu sentido formal, ou como um “governo de leis”, mas como “ordenação integral e livre da comunidade política”29, concepção que reconhece não somente a garantia de determinadas formas e procedimentos relativos à organização do poder, como também as metas, parâmetros e limites da atividade estatal, certos valores, direitos e liberdades fundamentais, que infere numa ligação umbilical da idéia de Estado de Direito com a legitimidade da ordem constitucional e do Estado30, assumindo os direitos fundamentais, uma função além da simples limitação do poder, mas de legitimação do poder estatal em função da ordem constitucional, que pode ser explicada pela afirmação de Ingo Wolfgang Sarlet 27 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2006, p. 790. 28 Ibid., p. 791. 29 SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 70. 30 Id. 21 Existe um estreito nexo de interdependência genético e funcional entre Estado de Direito e os direitos fundamentais, uma vez que o Estado de Direito exige e implica, para sê-lo, a garantia dos direitos fundamentais, ao que estes exigem e implicam, para a sua realização, o reconhecimento e a garantia do Estado de Direito31. E conclui que, no sistema constitucional positivo brasileiro, considerando a imbricação entre as noções de Estado de Direito, Constituição e direitos fundamentais, sob o aspecto de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores da igualdade liberdade e justiça, constituem condições de existência e medida da legitimidade de um autêntico Estado Democrático e Social de Direito32. O desafio, segundo Lênio Luiz Streck, é o triunfo do novo, representado pelo modelo proposto pela Constituição Federal que consagra o Estado Democrático de Direito, em face da tradição (inanêutica) do direito, forjada no velho/ultrapassado modelo neo-liberal-individualista-normativista?33 1.3 Um Breve Delineamento dos Direitos Fundamentais Considerando que o estudo tem por escopo demonstrar que a observância dos Direitos Fundamentais, mesmo que só os positivados no texto Constitucional, servem 31 SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 71. 32 Ibid., p. 74. 33 STRECK, Lenio Luiz. A crise da hermenêutica e a hermenêutica da crise: a necessidade de uma nova crítica do direito (NCD). In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 110. 22 como um limitador das prisões processuais, o uso do termo – Direitos Fundamentais – embora a profusão de termos (direitos humanos, direitos dos homens, direitos públicos subjetivos, liberdades públicas, direitos individuais, liberdades fundamentais, direitos humanos fundamentais, etc)34, justifica-se pela terminologia usado na epígrafe do Título II do texto Constitucional que se refere aos Direitos e Garantias Fundamentais, termo usado também pela Doutrina Constitucional moderna.35 Interessante apresentar a classificação feita por Ingo Wolfgang Sarlet36, que faz uma distinção entre a definição de direitos fundamentais – termo aplicado para os direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional - e de direitos humanos locução que guarda relação com os documentos de ordem internacional, portanto positivados, que reconhecem os direitos humanos, sem porém estarem vinculados a qualquer ordem constitucional, assumindo assim um caráter supranacional, concepção destacada também por J.J. Gomes Canotilho As expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais” são freqüentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distinguí-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos do homem arrancaria da própria natureza humana e daí o caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa 37 ordem jurídica concreta. 34 SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 33. 35 Ibid., p. 34. 36 Ibid., p. 35 37 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 387. 23 Interessa ao presente estudo a dimensão nacional dos direitos humanos reconhecidos e positivados na Constituição Federal como Direitos Fundamentais. Para resolver a problemática representada pela da conceituação dos Direitos Fundamentais, invocamos de forma objetiva a definição trazida à tona por Marcelo Campos Galuppo38, que através da Teoria Discursiva do Direito, busca superar a incongruência entre uma definição denotativa e conotativa, ao afirmar que Direitos Fundamentais são os direitos que os cidadãos precisam reciprocamente reconhecer uns aos outros, em dado momento histórico, se quiserem que o direito por eles produzidos seja legítimo, ou seja, democrático39. E explica a afirmação de que os cidadãos precisam reconhecer os direitos uns dos outros, e não que o Estado precisa lhes atribuir, representa a essência do Estado Democrático de Direito, já que nesta não há uma regra pronta e acabada para a legitimidade das normas, não sendo a democracia um estado, mas um processo que ocorre pela interpenetração entre a autonomia privada, a autonomia pública que se manifesta na sociedade civil, guardiã de sua legitimidade.40 A conceituação de direitos fundamentais apresentada, é explicada pela afirmação de Luigi Ferrajoli: Pode-se tranqüilamente afirmar que não houve nenhum direito fundamental, na história do homem, que tivesse caído do céu ou nascido de uma escrivaninha, já escrito e confeccionado nas cartas constitucionais. Todos são frutos de conflitos, às vezes seculares e foram conquistados com revoluções e rupturas, a preço de transgressões, repressões, sacrifícios e sofrimentos: primeiro, os direitos à vida e a garantia do habeas corpus, depois a liberdade de consciência e de culto, sucessivamente a liberdade de opinião e de imprensa, mais recentemente a liberdade de associação e reunião, e por fim o direito de greve e os direitos sociais. Há um sentido no qual os direitos fundamentais não são “universais”: eles não são 38 GALUPPO, Marcelo Campos. O que são direitos fundamentais? In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 213/238. 39 Ibid., p. 236. 40 Ibid., p. 237. 24 reconhecidos e nem reivindicados nem em todos os tempos nem em todos os lugares. Ao contrário, são o fruto de opções e expressões de carências historicamente determinadas e, sobretudo, o resultado de lutas e processos longos, disputados e exaustivos.41 Por sua vez, José Alfredo de Oliveira Baracho, sintetiza o modelo garantista de democracia constitucional, apresentado por Luigi Ferrajoli, ao afirmar que no momento que propõe uma definição teórica, puramente formal ou estrutural dos direitos fundamentais. Considera direitos fundamentais todos aqueles direitos subjetivos que corresponderem universalmente a todos os seres humanos, como dotados de status de pessoas ou cidadãos.42 J.J. Gomes Canotilho, faz uma análise sob uma ótica dogmática no sentido analítico, empírico e normativo, dos direitos fundamentais A perspectiva analítica-dogmática, preocupada com a construção sistemático-conceitual do direito positivo, é indispensável ao aprofundamento e análise de conceitos fundamentais (exs: direito subjectivo, dever fundamental, norma) à iluminação das construções jurídico-constitucionais (exs: âmbito de proteção e limites dos direitos fundamentais) e à investação da estrutura do sistema jurídico e de suas relações com os direitos fundamentais (ex: eficácia objetiva dos direitos fundamentais)passando pela própria ponderação de bens jurídicos, sob a perspectiva dos direitos fundamentais (ex: conflito de direitos). A perspectiva empírico-dogmática interessar-nos-á porque os direitos fundamentais para terem verdadeira força normativa, obrigam a tomar em conta as suas condições de eficácia e o modo como o legislador, juizes e administração os observam e aplicam nos vários contextos práticos. A perspectiva normativa-dogmática é importante sobretudo em sede de aplicação dos direitos fundamentais, dado que esta pressupõe, sempre, a fundamentação racional e jurídico-normativa dos juízos de valor (ex: na interpretação e concretização).43 41 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 870. 42 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Jurisdição constitucional da liberdade. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 33. 43 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 1214. 25 Importante ressaltar a distinção entre os direitos fundamentais no sentido formal e material, sendo que no primeiro sentido pode ser entendido como aquelas posições jurídicas das pessoas – na sua dimensão individual, coletiva ou social – que, por decisão expressa do Legislador-Constituinte foram consagrados no catálogo dos direitos fundamentais44, já no sentido formal, são os direitos não catalogados, mas que pela sua importância podem ser a estes equiparados. Uma análise histórica da evolução dos Direitos Fundamentais, que pode ser confundida com a história da própria limitação do poder estatal45, está inevitavelmente ligada a uma análise das diversas dimensões (usando o termo sugerido por Ingo Wolfgang Sarlet) de direitos fundamentais, o que poder ser inferido da conceituação apresentada, já que se baseiam na ordem cronológica em que passaram a ser constitucionalmente reconhecidos.46 A primeira dimensão dos direitos fundamentais, reconhecido nas primeiras Constituições escritas, são produto do pensamento liberal-burguês do Século XVIII, é marcada pela afirmação dos direitos de defesa frente ao Estado, portanto, direitos de cunho negativo, uma vez que visam uma abstenção do Estado, assumindo importância os direitos à vida, à liberdade (complementados posteriormente por uma variada gama de liberdades como liberdade de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação etc...), à propriedade e igualdade perante a lei (igualdade formal e algumas garantias processuais como devido processo legal, habeas corpus, direito de petição). Chamados de direitos civis e políticos que continuam a integrar as Constituições atuais.47 A afirmação dos direitos econômicos, sociais e culturais, denominados de 44 SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 95. 45 Ibid., p. 43. 46 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 26. 47 SARLET, ob. cit., p. 56. 26 direitos de segunda dimensão, resultado de movimentos reivindicatórios do século XIX, frente aos graves problemas sociais e econômicos gerados pela industrialização e a constatação de que afirmação formal de liberdade e igualdade não resultavam em seu efetivo gozo, marcado pela dimensão positiva, a segunda dimensão dos direitos fundamentais, são entendidos numa perspectiva material, onde a liberdade, por exemplo, é exercida por intermédio do Estado, conferindo aos indivíduos o direito a prestações sociais como assistência social, saúde, educação, trabalho, etc.. Nesta dimensão de direitos fundamentais são reconhecidas as liberdades denominadas sociais como a liberdade de sindicalização, direito de greve e também os direitos fundamentais dos trabalhadores como direito de férias, repouso semanal remunerado, salário mínimo, limitação da jornada de trabalho citando os mais significativos.48 Os direitos fundamentais de terceira geração, identificados como direitos de fraternidade e ou de solidariedade, se distinguem pela titularidade, sendo esta coletiva ou difusa, resultado das reivindicações fundamentais do ser humano frente ao impacto tecnológico, estado crônico de beligerância e pelo processo de descolonização do pós-guerra, sendo considerados uma resposta ao fenômeno denominado por Perez Luño como “poluição das liberdades”.49 Os direitos fundamentais de terceira dimensão encontra-se em fase de consagração no direito internacional através de tratados e documentos transnacionais. Assumem importância nesta dimensão dos direitos fundamentais o direito ao meio-ambiente, à qualidade de vida, direito e liberdade de informática, direito a intimidade individual perante bancos de dados pessoais, meios de comunicação, direito de morrer com dignidade, garantia contra manipulação genética, direito a mudança de sexo, etc...50 Paulo Bonavides tem defendido o reconhecimento de uma quarta dimensão dos direitos fundamentais resultado da globalização dos direitos fundamentais, no sentido de 48 SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 57. 49 Ibid., p. 59. 50 Id. 27 uma universalização no plano institucional, que corresponde na sua opinião á derradeira fase de institucionalização do Estado Social51. Dimensão que seria composta pelos direitos à democracia, à informação e ao pluralismo. , direitos que para a sua consagração, exigem para sua legitimação a liberdade de todos os povos.52 Certamente, no futuro novas dimensões de direitos fundamentais serão objeto de discussão, dimensões estas que advirão das novas relações entre as pessoas e entre os povos. 1.4 A Eficácia e Aplicação da Jurisdição Constitucional dos Direitos Fundamentais A jurisdição constitucional se apresenta como o principal instrumento de defesa dos direitos e liberdades fundamentais e afirmação, por conseqüência, do próprio Estado Democrático de Direito, tendo como fonte no plano nacional o texto Constitucional sem prejuízo dos princípios. De acordo com o texto Constitucional, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata53, explica Ingo Wolfgang Sarlet54, que embora a localização no texto, às várias formas de interpretação da Lei Maior, levam à conclusão que o comando se aplica a todos direitos fundamentais, mesmo que situadas em outras partes da Constituição, a exemplo dos Direitos Sociais, o que significa, de acordo com afirmação de Flávia Piovesan uma imposição aos órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos 51 SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 60. 52 Ibid., p. 61. 53 BRASIL. Constituição federal. Art. 5º. 1§. 54 SARLET, ob. cit., p. 275. 28 direitos fundamentais55, maximização que deve ganhar maior relevância quando se tratar dos direitos fundamentais de defesa, não apenas autorizando, mas impondo aos juizes e tribunais que apliquem as normas aos casos concretos, viabilizando, de tal sorte, o pleno exercício destes direitos.56 J.J. Gomes Canotilho57 explica que a aplicabilidade direta das normas de direitos, liberdades e garantias, portanto normas assecuratórias de direitos fundamentais, implica em que as mesmas se aplicam independentemente de qualquer intervenção legislativa, tem aplicabilidade diretamente contra a lei quando esta estiver em desconformidade com o norma Constitucional, e implica em inconstitucionalidade de todas a leis pré-constitucionais contrária às normas ou na inconstitucionalidade superveniente das normas pré-constitucionais. De acordo com Daniel Sarmento, sequer seria necessária a previsão legal da eficácia e aplicabilidade dos direitos fundamentais, o que se daria pela eficácia irradiante dos direitos fundamentais: Esta significa que os valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulso e diretrizes para o legislador, a administração e o judiciário. A eficácia irradiante, nesse sentido, enseja a “humanização” da ordem jurídica, ao exigir que todas as normas sejam, no momento de aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional.58 55 PIOVEZAN. Flavia. In : RPGESP nº 37 (1992. p. 73). apud SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 282. 56 SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 296. 57 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 1142. 58 SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey. 2003, p. 279. 29 A jurisdição constitucional dos direitos fundamentais, é exercida através de vários instrumentos postos à disposição dos cidadãos, como forma de torná-los efetivos e eficazes. Salutar fazer a diferenciação das expressões Direito Processual Constitucional e Direito Constitucional Processual, como forma de definir as relações existentes entre relação e processo. O Direito Constitucional Processual, de acordo com diferenciação apresentada por Ivo Dantas, abrangeria o conjunto de normas processuais existentes na Constituição, tais como Direito da Ação e as Garantias Constitucionais referentes ao Processo e ao Procedimento59, enquanto o Direito Processual Constitucional usando aqui a definição apresentada por J.J. Gomes Canotilho é o conjunto de regras constitutivas de um procedimento juridicamente ordenado através do qual se fiscaliza jurisdicionalmente a conformidade constitucional de actos normativos.60 O Direito Processual Constitucional, por sua vez, poder ser analisado sob dois enfoques: a) preocupa-se com a denominada Jurisdição Constitucional e com as ações que visam á integridade e defesa da própria Constituição, ou seja, aquelas que hoje formam o controle de Constitucionalidade; b) consagração de ações tipificamente constitucionais e que dizem respeito à Jurisdição constitucional das liberdades – denominadas de Remédios Constitucionais - exatamente, aqueles que visam tornar efetivos os Direitos constitucionalmente assegurados.61 59 DANTAS, Ivo. Jurisdição constitucional e a promoção dos direitos sociais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 436. 60 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 939. 61 DANTAS, op. cit., p. 437. 30 O controle de constitucionalidade como forma de dar efetividade aos Direitos Fundamentais, em sede de Jurisdição Constitucional, é explicado por Ivo Dantas No Brasil, o Controle de Constitucionalidade – objeto da Jurisdição Constitucional – assume diversas formas, quais sejam, o Controle Concentrado, englobando a Ação Direta de Inconstitucionalidade, a Ação Declaratória de Constitucionalidade, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, ao lado das quais o sistema brasileiro consagra o Controle Difuso, compreendido como dever que tem todas as instâncias do Poder Judiciário – inclusive de ofício -, de observar o respeito à Constituição, tanto por parta das leis como dos atos que se ponham à sua apreciação.62 Note-se, que pelo sistema difuso de controle de constitucionalidade, não somente é permito que todos julgadores, como toma caráter de imposição, o respeito à Constituição, até porque todas as autoridades do Poder Judiciário juram cumprir e fazer cumprir a Constituição.63 O principal instrumento garantidor de efetivação dos Direitos Fundamentais, em se tratando da Jurisdição Constitucional das Liberdades, são os denominados Remédios Constitucionais, como exemplos históricos, o Habeas Corpus e o Mandado de Segurança, ao lado dos quais, e especialmente no caso brasileiro, acrescentem-se os institutos do Habeas Data, Mandado de Injunção, Ação Civil Pública...64 Seguramente, o Habeas Corpus, se apresenta como a principal modalidade de garantia de efetivação dos Direitos Fundamentais em sede de Jurisdição Constitucional das liberdades, assumindo maior relevo no campo processual penal, pela possibilidade de 62 DANTAS, Ivo. Jurisdição constitucional e a promoção dos direitos sociais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 437. 63 ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais. 2001, p. 13. 64 DANTAS, loc. cit. 31 reexaminar qualquer provimento e de apreciar qualquer matéria e principalmente pela sua simplicidade e celeridade, possibilitando a reação do cidadão como forma de manter ou recuperar a liberdade ilegal ou abusivamente ameaçada. 32 2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE GARANTIA DO CIDADÃO 2.1 Princípio da Liberdade O texto constitucional, no preâmbulo, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais das pessoas, aborda, de forma privilegiada, o direito à liberdade, posicionandoa, textualmente, somente depois dos direito relativos à vida. Do mesmo modo também pode ser interpretada quanto a sua importância: Direitos ‘concernentes à liberdade’, depois dos ‘direitos concernentes à vida’ são, a seguir, os que incluem entre os assegurados pela Constituição aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País. Está a ‘liberdade’, ao lado da ‘igualdade’, figurando, em segundo plano, conforme os idealistas da Revolução Francesa, a ‘fraternidade’ tendo, por sua vez, a ‘sociedade fraterna’ sido, em nossa Constituição de 1988, como afirmam os constituintes no ‘Preâmbulo’, incluída entre as metas que o Estado democrático ou Estado de direito visa alcançar.65 Várias são as liberdades asseguradas no artigo 5º da Constituição, 65 CRETELA JR, José. Elementos de direito constitucional. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 204. 33 desdobrando-se em várias vertentes a serem estudadas, que podem ser classificadas em cinco grandes grupos: liberdade da pessoa física (liberdade de locomoção, de circulação); liberdade de pensamento, com todas as suas liberdades (opinião, religião, informação artística, comunicação do conhecimento); liberdade de expressão coletiva em suas várias formas (de reunião, de associação); liberdade de ação profissional (livre escolha e de exercício de trabalho, oficio e profissão); liberdade de conteúdo econômico e social (liberdade econômica, livre iniciativa, liberdade de comércio, liberdade ou autonomia contratual, liberdade de ensino e liberdade de trabalho) [...].66 Além das liberdades expressas no texto constitucional, outras são asseguradas ao cidadão, já que o rol previsto de liberdades é apenas exemplificativo67. As liberdades podem ser classificadas como positivas e negativas, embora, de acordo com José Afonso da Silva68, ambas as concepções apresentam defeitos de conceituação em função de se fundarem em oposição ao autoritarismo e não à autoridade legítima. J.J. Gomes Canotilho esclarece as duas vertentes: 66 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 238. 67 “Contudo a enumeração das liberdades públicas feita pela Constituição é meramente exemplificativa, pois não exclui outros direitos e garantias (art. 5º LXXVIII, § 2º). A interpretação de alcance e conteúdo de tias direitos fica sujeira aos princípios da hermenêutica de modo geral, mas com alguns particularismos.” FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989, v. 1, p. 61. 68 SILVA, loc. cit., p. 235. 34 Respondem alguns que Estado de direito e democracia correspondem a dois modos de ver a liberdade. No Estado de direito concebe-se a liberdade como liberdade negativa, ou seja, ‘uma liberdade de defesa’ ou de ‘distanciação’ perante o Estado. É uma liberdade liberal que ‘curva’ o poder. Ao Estado democrático estaria inerente a liberdade positiva, isto é, a liberdade assente no exercício democrático do poder. É a liberdade democrática que legitima o poder.[...]69 O autor destaca, porém, a importância da liberdade negativa, ao afirmar que A idéia de que a liberdade negativa tem precedência sobre a participação política (liberdade positiva) é um dos princípios básicos do liberalismo político clássico. As liberdades políticas teriam uma importância intrínseca menor que a liberdade pessoal e de consciência. Não admirará, pois – como salienta um influente cultor actual da filosofia política – que ‘se alguém for forçado a escolher entre as liberdades políticas e os restantes das liberdades, o governo do bom soberano que reconhecesse estas últimas e que garantisse o domínio da lei seria preferível’’70. A segurança da propriedade e dos direitos liberais representaria neste contexto a essência do constitucionalismo. O ‘homem civil’ precederia o ‘homem político’, o burguês estaria antes do cidadão. O ‘Bürger’ que preza a sua liberdade em face do poder terá mais liberdade do que o ‘Burgeois’ que cultiva a liberdade política.71 José Afonso da Silva propõe novo conceito, que diz que liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal72. A liberdade física, na forma mais visível, é explicada por Jorge Henrique Schaefer Martins: “qual seja, a de ir e vir, de livre escolha para deslocamentos ou paradas, 69 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 99. 70 Assim precisamente, RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Lisboa, 1993, p. 187; Political Liberalism, p.. 294. Cf., também, ZIPPELIUS. Allgemeine Staatslebre, cit. 331 ss. apud CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 99. 71 CANOTILHO, op. cit., p. 99. 72 SILVA, Jose Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 263. 35 exercício de atividade ou ócio, enfim, tudo quanto fique a critério do ser humano, sem a interferência do ente estatal, ou em resumo, a liberdade física, ou da pessoa física”73. É válido dizer que a forma de liberdade descrita é manifestada de modo mais claro no direito de liberdade de locomoção e de circulação, expresso no inciso XV do artigo 5º da Constituição Federal, já que se trata de liberdade que decorre da própria natureza humana74. A liberdade consiste na oposição à detenção, prisão ou a qualquer impedimento à locomoção da pessoa. Por isto, é correta a definição que diz que é a possibilidade jurídica que se reconhece a todas as pessoas de serem senhoras de sua própria vontade e de locomoverem-se desembaraçadamente dentro do território nacional.75 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, explicando que as liberdades identificamse com os direitos fundamentais, no sentido que correspondem a um dever de abstenção do Estado, apresenta a visão de liberdade dos modernos e dos antigos, imortalizadas nas palavras de Constant de Louzane ao afirmar que os antigos – os romanos, os gregos – se consideravam livres quando tinham igual participação nas tomadas de decisões sobre os negócios públicos, mas que os modernos, nós, só nos consideramos livres quando temos a autonomia da conduta individual, ou seja, quando somos os senhores – numa colocação vulgar, mas expressiva – do nosso nariz.”76 73 MARTINS, Jorge Henrique Schaefer. Prisão provisória: medida de exceção no direito criminal brasileiro. Curitiba: Juruá, 2005, p. 43. 74 “Posto que o homem seja membro de uma nacionalidade, ele não renuncia por isso suas condições de liberdade, nem os meios racionais de satisfazer a suas necessidades ou gozos. Não se obriga ou reduz à vida vegetativa, não tem raízes, nem se prende à terra como escravo do solo. A faculdade de levar consigo seus bens é um respeito devido ao direito de propriedade.” BUENO, Pimenta. Direito público brasileiro e analise da constituição do império. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1958. p. 388 apud MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 112. 75 Em sentido semelhante, BURDEAU, Georges. Les libertes publiques. p. 111 apud SILVA, Jose Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 240. 76 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A cultura dos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 247. 36 Destas definições, optamos pela que acentua que o direito de liberdade não é absoluto, encontrando o limite no direito de outrem, estabelecido por lei. Alexandre de Moraes garante que Trata-se, porém, de norma constitucional de eficácia contida, cuja lei ordinária pode delimitar a amplitude, por meio de requisitos de forma e fundo, nunca, obviamente, de previsões arbitrárias. Assim, poderá o legislador ordinário estabelecer restrições referentes a ingresso, saída, circulação interna de pessoas e patrimônio.77 Os limites ao direito da liberdade física, representados pela oposição à detenção e à prisão, encontram-se delineados na própria Constituição, que estabelece no inciso LXI, do artigo 5º, as exceções ao estado de liberdade, representadas pela possibilidade da prisão em flagrante delito, por ordem escrita e fundamentada de autoridade competente, ou, ainda, nos casos de prisões por crimes ou transgressões militares, devidamente previstos em lei. A importância da lei que restringe o direito à liberdade pode ser medida pela afirmação de Pinto Ferreira, que assegura que no direito constitucional comparado, na lei retroativa da liberdade, presume-se a inconstitucionalidade, devendo ser declarada a constitucionalidade78. 77 78 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 113. FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989, v.1, p. 61-62. 37 2.2 Princípio da Presunção de Inocência e Prisão Preventiva Embora, numa primeira análise, o princípio da presunção de inocência ser frontalmente atingido pelo simples fato da existência da possibilidade de prisão preventiva, ou mesmo, de quaisquer das demais modalidades de prisões processuais, pela ausência de uma decisão com trânsito em julgado, José Laurindo de Souza Netto79, observa que, o princípio não é atingido em razão de que a prisão cautelar, pois, fundado no fumus bonis iuris e periculun in mora. Inicialmente, existe a necessidade de se atentar para a discussão levantada por Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho ao tratar sobre a diferença entre a presunção de inocência e a não-culpabilidade: Parte da doutrina entende existir uma diferença entre a presunção de inocência e a da não-culpabilidade. Sustenta que não se pode presumir a inocência do réu se contra ele tiver sido instaurada ação penal, pois, no caso, haverá um suporte probatório mínimo. O que se poderia presumir é a sua não-culpabilidade, até que assim seja declarado judicialmente. Se existe uma diferença no plano teórico em termos práticos, importa interpretar corretamente o dispositivo constitucional que a abriga...80 A presunção de inocência com raízes na Roma antiga81 teve na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em 26/8/1789, a sua afirmação, resultado da Revolução Liberal. A presunção juris tantum, da presunção de inocência exige, 79 SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 161. Ibid., 2005, p. 71. 81 “Pode-se falar do principio da presunção de inocência desde a Roma Antiga, com a expressão innocens praesumitur cujus nocentia non probatur; vindo este principio, porém, a aparecer efetivamente, mais tarde, como principio do in dúbio pro reo e do favor rei. SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 155. 80 38 para ser afastada, decisão condenatória, fundamentada, prolatada em processo que obedeceu a todos os princípios informadores do processo penal, ou, pelo devido processo legal, garantindo-se, especialmente, o direito ao contraditório e ampla defesa82. O princípio de presunção de inocência somente foi incorporado ao texto constitucional brasileiro em 1988. Está expresso no inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição Federal: LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória83. Representa inovação no Direito pátrio, já que não havia sido contemplado em qualquer das Cartas anteriores. Pela primeira vez em nossa história, a presunção de inocência passa a ter “status constitucional”. Uma vez consagrada constitucionalmente, a presunção de inocência converte-se num direito fundamental que, no direito brasileiro, é de aplicação imediata. A importância é tamanha que, para seu reconhecimento, prescinde de previsão legal84. José Laurindo de Souza Netto observa a existência de duas formas de interpretação do princípio de presunção de inocência, o formal que diz respeito à qualidade de direito constitucional fundamental, assegurado como cláusula pétrea pelo constituinte e o no aspecto substancial, a presunção de inocência é definida como direito de caráter processual que repercute no campo da prova e no tratamento do acusado85. É visível a importância de ambos aspectos, porém, em se tratando da privação de liberdade, antes da sentença condenatória, portanto no seu sentido substancial, o princípio de presunção de inocência toma dimensão maior 82 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 385. 83 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 84 SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 156. 85 Ibid., p. 157. 39 No caso da prisão cautelar, essas exigências se tornam ainda mais rigorosas, diante do preceito constitucional segundo o qual ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’, art. 5º, inc. LVII, CF); em face do estado de inocência do acusado, a antecipação do resultado do processo representa providência excepcional, que não pode ser confundida com a punição, somente justificada em situações de extrema necessidade.86 Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho interpreta o princípio constitucional esclarecendo que A Constituição proibiu terminantemente que o acusado fosse considerado culpado antes da sentença judicial transitada em julgado. De outro lado, previu e manteve as medidas cautelares de prisão, como o flagrante e a prisão preventiva. Não previu a Constituição qualquer outro fundamento para a prisão que estes: a prisão cautelar e a prisão penal. Ora, se o acusado não pode ser considerado culpado antes de ser declarado judicialmente, com que título se justifica encarcerá-lo antes da prolação da sentença final? Trata-se de prisão cautelar? Não, pois não estão presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora. Trata-se de pena? Não, pois não há pena sem o trânsito em julgado da sentença. Então, esta prisão não é constitucionalmente admitida; não se enquadra nas modalidades de prisão aceitas pela constituição como exceções necessárias ao direito natural de liberdade. 87 Os questionamentos foram respondidos de forma objetiva pelo próprio autor: Assim, só pode existir prisão, além das hipóteses de flagrante expressamente 86 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 343. 87 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 72. 40 admitidas pela Constituição, naqueles casos em que o juiz, para decretá-la, tenha de buscar o fundamento no fumus boni iuris e no periculum in mora, residentes no nosso código no art. 312. Afora esses casos, a Constituição não admite prisão. Essa interpretação é lógica e sistemática, pois está plenamente de acordo com outros princípios adotados pela Carta, cujo espírito está claramente preocupado com os direitos e garantias individuais. E, também, uma interpretação histórica, uma vez que a Constituição, em todos momentos, reafirma o compromisso de romper com as fórmulas deterioradas do período autoritário experenciado no País. E é literal a interpretação, porque decorre de seus exatos termos: ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da decisão.88 O princípio foi alvo de farta discussão nos tribunais. Como forma de unificar e pacificar posição sobre a matéria, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 9, que dispõe claramente que as espécies de prisão provisória previstas no Código de Processo Penal não ofendem o princípio de presunção de inocência: a exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência89. João Gualberto Garcez Ramos90 justifica que o princípio de presunção de inocência, deve ser aplicado como regra de distribuição de ônus processuais, em todas as medidas de urgência, enquanto Afrânio Silva Jardim, citado por Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho91, afirma que agora, a expressa presunção de inocência faz com que o ônus probatório seja todo da acusação. Não obstante a clara posição do Superior Tribunal de Justiça, determinando que a presunção de inocência não é maculada pelas prisões cautelares, elas não podem ser aplicadas indiscriminadamente, conforme justifica Fernando Capez: 88 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 72. 89 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula 09. 90 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 133. 91 CARVALHO, op. cit., p. 75-76. 41 No entanto, a prisão provisória somente se justifica, e se acomoda dentro do ordenamento pátrio, quando decretada com base no poder geral de cautela do juiz, ou seja, desde que necessária para uma eficiente prestação jurisdicional. Sem preencher os requisitos gerais da tutela cautelar (fumus boni iuris e periculum in mora), sem necessidade para o processo, sem caráter instrumental, a prisão provisória, da qual a prisão preventiva é espécie, não seria nada mais que uma execução da pena privativa de liberdade antes da condenação transitada em julgado, e, isto violaria o princípio da presunção de inocência. Sim, porque se o sujeito está preso sem que haja necessidade cautelar, na verdade estará apenas cumprindo antecipadamente a futura e possível pena privativa de liberdade. 92 O princípio da presunção de inocência não inviabiliza as espécies prisões processuais, mas merece uma observação mais aprofundada, a ser feita no decorrer do presente estudo, com a análise de cada espécie de prisão, enfocando que a regra é quebrada pela decretação da prisão preventiva com o fundamento na garantia da ordem pública e da ordem econômica, para execução de medidas protetivas de urgência prevista na Lei Maria da Penha, prisão decorrente de sentença de pronúncia e, também, da prisão decorrente de sentença condenatória recorrível. No Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, é possível encontrar decisões em ambos sentidos. Acata o princípio de presunção de inocência, conforme HC 79.817: Prisão preventiva fundada na efetividade da aplicação da lei penal, tendo por base outra custódia cautelar decretada em ação penal diversa, face à circunstância de estar a paciente foragida à época do julgamento. Posterior deferimento de habeas-corpus pelo Superior Tribunal de Justiça para cessar a medida. 2. Princípio da presunção de inocência. Aplicação de medidas coercitivas à liberdade antes de decisão transitada em julgado. Possibilidade, desde que preenchido o requisito da necessidade. 3. Paciente reconhecidamente primária e sem maus antecedentes. Supressão do fundamento para a prisão preventiva. Configuração do direito subjetivo de aguardar em liberdade o julgamento de sua apelação. Habeas-corpus 92 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 242. 42 deferido.93 Entendendo que o princípio de presunção de inocência não invalida a decretação da prisão preventiva, HC 31.323: Paciente condenado por tráfico de entorpecentes. Recebimento do recurso de apelação condicionado ao seu recolhimento à prisão. Regra estabelecida no artigo 2º, §2º da Lei 8.072/90. Entendimento harmônico com a jurisprudência desta Corte. 2. Prisão sem decisão transitada em julgado. Ausência de violação ao princípio da presunção de inocência (CF, artigo 5º, LVII)94. O princípio da presunção de inocência ou do estado de inocência está contemplado em vários tratados internacionais. Está incorporado a ordenamentos jurídicos de vários países, independentemente de estar contemplado nas constituições ou mesmo no ordenamento infraconstitucional pela incorporação dos tratados, em certos casos e, pela forma de recepção dos tratados, com força normativa de princípio constitucional, em outros. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 11, contempla o princípio de presunção de inocência. 1. Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual tenham sido asseguradas todas as garantias 93 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. HC 80830/RJ - Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgamento 05 mar. 2002 – 2ª Turma. Diário da Justiça, p. 142, 28 jun. 2002. 94 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. HC 81323/RS - Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgamento 30 out. 2001 – 2ª Turma. Diário da Justiça, p. 31, 01 mar. 2002. 43 necessárias e a sua defesa.95 O artigo 14 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos enumera série de garantias processuais: Art. 14. 1. Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por Lei, na apuração de qualquer acusação de caráter pena formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. A imprensa e o público poder são excluídos de parte ou da totalidade de um julgamento quer por motivo de moral pública, ordem pública ou segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando o interesse da vida privada das partes o exija, quer na medida em que isso seja estritamente necessário na opinião da justiça, em circunstancias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da justiça; entretanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil deverá tornar-se pública, a menos que o interesse de menores exija procedimento oposto, ou o processo diga a respeito a controvérsias matrimoniais ou à tutela de menores. 2. Toda a pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada a sua culpa.96 A importância da citação do item 01 do artigo 14, do Pacto de Direitos Civis e Políticos, ocorre à medida que muitas prisões preventivas são acompanhadas de ampla publicidade, podendo ser considerada como turbação à ordem pública, causada pela 95 Declaração Universal dos Diretos Humanos: aprovada pelas Assembléia Geral das Nações Unidas em 10.12.1948. In: RANGEL, Vicente Marotta (Org.). Direito e relações internacionais. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 647. 96 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Adotado pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 16.12.1966. Entrou em vigor a 23.03.1976, em conformidade com o artigo 49 do mesmo Pacto, após haver a Tcheco-Eslováquia (35º Estado) depositado seu instrumento de ratificação a 23.12.1975. o Brasil ratificou o Tratado, tendo-o promulgado pelo Decreto 592, de 06.12.1992 (DO de 07 do mesmo e ano). Aprovação do Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo 226, de 12.12.1991. In: RANGEL, Vicente Marotta (Org.). Direito e relações internacionais. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 687-688. 44 divulgação do fato, posteriormente usado como fundamento da prisão por garantia da ordem pública. O importante, todavia, é a reafirmação do princípio de presunção de inocência, previsto no referido pacto. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José de Costa Rica, igualmente trata das garantias judiciais do cidadão. O artigo 8º prevê, expressamente, o princípio da presunção de inocência: Art. 8º. Garantias judiciais. §2º. Toda a pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa [...].97 Embora o princípio de presunção de inocência, ou estado de inocência, implique em que o acusado não seja considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença, não implica em proibição irrestrita das prisões cautelares, desde que estejam presentes os requisitos, pressupostos e fundamentos da tutela cautelar, obedecendo-se aos demais princípios norteadores da liberdade do cidadão. 2.3 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana A dignidade da pessoa humana, predicativo inerente à condição do homem, 97 Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Aprovada na Conferencia de São Jose de Costa Rica em 22.11.1969. o Brasil aderiu 25.09.1992 (Decreto de Promulgação 678, de 06 de novembro do mesmo ano). RANGEL, Vicente Marotta (Org.). Direito e relações internacionais. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 708. 45 essencial à auto-estima, ao respeito por parte de outrem, é qualidade absolutamente fundamental ao gozo pleno da vida98, tem a importância medida pela afirmação: O valor da dignidade do ser humano, postulado supralegal que decorre da própria natureza das coisas, daquilo que é ínsito à nossa existência e pertence ao direito natural, se encontra amalgamado com a solidariedade e com o que há de melhor no ser humano que é a busca pela compreensão (que não significa aprovação e, tampouco, tolerância com o que por vezes é intolerável) dos acertos e erros de nossos pares.99 A dignidade da pessoa humana apresenta-se como fundamento do sistema republicano, explicado por J.J. Gomes Canotilho. Perante as experiências históricas da aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos políticos-organizatórios. A dignidade da pessoa humana exprime a abertura da República à idéia de comunidade constitucional inclusiva pautada pelo multi-culturalismo mundivicencial, religioso ou filosófico. O expresso reconhecimento da dignidade da pessoa humana como núcleo essencial da República significa, assim, o contrário de ‘verdade’ ou ‘fixismos’ políticos, religiosos ou filosóficos. O republicanismo clássico exprimia esta idéia através dos princípios da não identificação e da neutralidade, pois a República só 98 MARTINS, Jorge Henrique Schaefer. Prisão provisória: medida de exceção no direito criminal brasileiro. Curitiba: Juruá. 2005, p. 38-39. 99 DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio Machado de Almeida. A dignidade da pessoa humana e o tratamento dispensado aos acusados no processo penal. Revista dos Tribunais, a. 94, v. 835, p. 444, maio 2005. 46 poderia conceber-se como ordem livre à medida que não se identificasse com qualquer ‘tese’, ‘dogma’, ‘religião’, ou ‘verdade’ de compreensão do mundo e da vida. O republicanismo não pressupõe qualquer doutrina religiosa, filosófica ou moral abrangente (J. Rawls).100 A República Federativa do Brasil tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa101. O fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana é explicado por Alexandre de Moraes, em comentário à Constituição: A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerentes às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas do Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindose um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.102 Como elemento da esfera constitutiva da República Portuguesa103, a 100 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 225-226. 101 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, Artigo 1º. 102 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 16. 103 “República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.” PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. Disponível em: <http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Portugal/Sistema_Politico/Constituicao/ constituicao_p01.htm>. Acesso em: 20 jan. 2005. 47 dignidade da pessoa humana é principio antrópico que acolhe a idéia do indivíduo conformador de si próprio e de sua vida segundo o seu projeto espiritual104. A importância do princípio da dignidade da pessoa humana no Direito Processual Penal fica evidenciada nas palavras da Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho à medida que fundamenta a volta do sistema acusatório com a afirmação do acusado como titular de direitos processuais: Do Direito Penal, esse sentimento de respeito à dignidade humana dirige-se ao Direito Processual Penal, e vai acabar por fundamentar a transmutação do sistema inquisitivo para o sistema acusatório, no mesmo século XVII, voltando à cena as características deste, ou seja, fundamentalmente, a tripartição das funções de acusar, defender e julgar e a garantia do contraditório. [...] Mas a evolução não parou por aí. Não bastava reconhecer ao réu o direito à dignidade se não lhe dotasse de mecanismos processuais ensejadores do exercício eficaz de defesa. O sistema acusatório, conforme era concebido no século XVIII, ainda não contemplava o acusado como titular de direitos processuais, e sem essa concepção dificilmente poderia ele se opor ao arbítrio ainda remanescente. Somente no século XIX, a partir da obras de Wach e, principalmente Bülow, é que se inicia a teorização da concepção jurídica em que o acusado, tanto quanto o autor da ação, passa a ser reconhecido como sujeito de direitos, deveres, faculdades e ônus processuais. A importância desta teorização consiste, em outras palavras, no reconhecimento de que o acusado deixou definitivamente de ser objeto do processo para ser sujeito da relação processual, titular de direitos processuais e apto a exercê-los em igualdade de condições em relação ao autor da demanda. [...] Em síntese, está assegurado constitucionalmente, pelo princípio da dignidade humana, um Direito Processual que confira ao acusado o direito de ser julgado de forma legal e justa, um direito a provar, contraprovar, alegar e defender-se de forma ampla, em processo público, com igualdade de tratamento a outra parte da relação processual.105 104 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 225. 105 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 7-8. 48 A aplicação do princípio da dignidade humana, portanto, implica na observância das regras processuais previstas na Constituição pelo princípio do devido processo legal. Do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, ao colocar o homem como centro da atividade estatal, decorre a aplicação de todos os demais princípios e direitos e garantias individuais constitucionalmente previstos. 2.4 O Princípio do Devido Processo Legal A prestação Jurisdição Constitucional no processo penal, basicamente é representada pela aplicação correta e impositiva do devido processo legal que engloba praticamente todos os demais princípios informadores do processo, (quando se fala em processo entende-se o processo judicial em suas várias áreas de atuação como também o processo administrativo), foi assim expresso no inciso LIV do artigo 5º da Constituição: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. A garantia do devido processo constitucional implica na imparcialidade e adequabilidade traduzindo-no exercício da autonomia jurídica do cidadão: Nessa perspectiva, a jurisdição constitucional deve garantir, de forma constitucionalmente adequada, a participação ou a representação, nos processos ordinários cíveis, penais e nos processos e nos processos especiais de garantias de direitos constitucionais e de controle jurisdicional de constitucionalidade, dos possíveis afetados por cada decisão, por meio de uma interpretação construtiva que compreenda o próprio processo jurisdicional como garantia das condições para o exercício da autonomia 49 jurídica dos cidadãos.106 O princípio do devido processo legal, com indícios nas primeiras codificações, quer seja no Código de Hamurabi, ao possibilitar às pessoas conhecerem quais eram as leis, ou, mesmo na China antiga, que previa procedimentos mínimos para a notificação dos acusados, mas principalmente na Lei das XII Tábuas, ao prever os primeiros esboços de direito processual estabelcendo, por exemplo, a determinação das horas das audiências e citação dos réus, foi efetivamente positivado na Inglaterra em 1215, no artigo 39 da Carta Magna, fruto de imposição dos senhores feudais ao réu João Sem-Terra, como forma de limitar a sua autoridade107 que, de forma clara, centralizou o princípio: Art. 39 nenhum homem livre deve ser tomado, ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou exilado, ou prejudicado de qualquer maneira, salvo pelo julgamento legal pelos seus semelhantes. O devido processo legal, incorporado na Constituição dos Estados Unidos da América pela 5ª Emenda, destaca: Ninguém será detido para responder por crime capital ou outro crime infame, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha conta si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização.108 106 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Devido processo legislativo e controle jurisdicional de constitucionalidade no Brasil. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 190. 107 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 41. 108 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 265. 50 É possível observar que foi garantida a proteção formal do indivíduo, porém, com o texto da XIV Emenda: Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis.109 João Gualberto Ramos Garcez110, assevera que o devido processo legal, no sistema processual penal, e a própria quintessência do processo, em todas as suas manifestações, e age como um limitador dos poderes Executivo e Legislativo. A emenda constitucional, além de tornar obrigatória a aplicação nos Estados, (anteriormente, a garantia se dava apenas aos processos federais), possibilitou interpretação jurisprudencial extensiva, saindo do campo estritamente processual para alcançar concepção substantiva. Com isto, os tribunais americanos passaram a analisar a razoabilidade e a proporcionalidade da norma e não somente a aplicação correta dela. A aplicação do devido processo legal substantivo na Suprema Corte Americana acabou definindo-o, de forma precisa, como sendo a garantia positiva de direito natural das pessoas a um processo judicial inspirado por princípio de justiça, ou garantia concreta de justiça substancial e não só formal111. A influência norte-americana foi notada em vários textos constitucionais 109 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 269. 110 Ibid., p. 156. 111 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 52. 51 europeus, integrando o devido processo legal ao rol de garantias na Itália, Portugal, Espanha, Alemanha e Bélgica112, culminando com a inserção no texto da Declaração Universal dos Direitos do Homem. No Brasil, a evolução até o atual texto, passou por regras estritamente processuais, como o artigo 159 da Constituição Política do Império do Brasil de 1824, que previa que nas Causas crimes, a inquirição das Testemunhas e de todos os demais actos do Processo, depois da pronuncia, serão públicos desde já113, com avanço significativo na Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, que teve como principal idealizador Rui Barbosa, influenciado pela Bill of Rigths americana, consagrou seção específica para a declaração de direitos, entre eles, regras processuais quanto à impossibilidade da prisão sem ordem escrita e fundamentada, salvo em flagrante; a obrigatoriedade da liberdade sob fiança nos casos previstos em lei e nos parágrafos 15 e 16 do artigo 72; regras basilares do devido processo legal, consistentes no princípio do juiz natural e ampla defesa, respectivamente114, texto seguido pela Constituição 1934. A Carta Constitucional de 1937 mantém as referidas garantias processuais, acrescentando inovação, representada pelo sistema acusatório na instrução criminal: Art. 122.[...] 11. À exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão depois de pronúncia do indiciado, salvo casos determinados em lei, e mediante ordem escrita de autoridade competente. Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, senão pela autoridade competente, em virtude da lei e na forma por ela regulada; a instrução criminal será contraditória, asseguradas, antes e depois da formação de 112 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 44. 113 BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, jurada à 25 de março de 1824. In: SILVA, Helio. As Constituições do Brasil. Rio de Janeiro: Globo, 1986, p. 23. 114 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891. In: SILVA, Helio. As Constituições do Brasil. Rio de Janeiro: Globo, 1986, p. 41. 52 culpa, as necessárias garantias de defesa. 115 As demais Cartas se limitaram a reproduzir as garantias genéricas, já citadas. Somente com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é que aconteceu a afirmação do devido processo legal de forma expressa, com nítidas influências da V e XIV Emenda Constitucional dos Estados Unidos da América do Norte. O fato fica mais evidente no artigo 5º, da constituição brasileira, que aborda os direitos e as garantias fundamentais. A cláusula do devido processo legal foi formalmente inserida no ordenamento jurídico brasileiro após 200 anos de incorporação no ordenamento jurídico norte-americano. No inciso LIV, do artigo 5º, da Carta de 1988, está expresso: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. O devido processo legal se consubstancia numa garantia constitucional que visa a consecução das tutelas dos direitos fundamentais essenciais aos membros da coletividade na vida comunitária, a saber: a) direito à integridade física e moral e à vida; b) direito à liberdade; c) direito à igualdade; d) direito à segurança; e) direito à propriedade; f) direitos relativos à personalidade (relacionados ao direito ao processo)116. O devido processo legal pode ser interpretado em duas faces: formal e material ou substancial. São assim entendidas por Manoel Gonçalves Ferreira Filho: O aspecto formal consiste na sujeição de qualquer questão que fira a liberdade ou os bens de um ser humano ao crivo do judiciário, por meio do 115 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, Decretada em 10 de novembro de 1937. In: SILVA, Helio. As Constituições do Brasil. Rio de Janeiro: Globo, 1986, p. 104. 116 TUCCI, Rogério Lauria. Constituição de 1988 e processo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 17. 53 juiz natural, num processo contraditório, em que se assegure ao interessado a ampla defesa. O substancial importa em que as normas aplicadas quanto ao objeto do litígio não sejam desarrazoadas, portanto intrinsecamente injustas.117 A cláusula do devido processo legal pode ser vista como princípio informativo dos atos dos poderes públicos, sendo, por tanto, princípio jurídico fundamental conforme exposição de J.J. Gomes Canotilho118: Os princípios historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional, pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo. Mais rigorosamente, dir-se-á, em primeiro lugar, que os princípios tem uma função negativa particularmente relevante nos ‘casos limites’ (‘Estado de Direito e de Não Direito’, ‘Estado Democrático e Ditadura’). A função negativa dos princípios é, ainda, importante em outros casos onde não está em causa a negação do Estado de Direito e da legalidade democrática, mas emerge com perigo o ‘excesso de poder’. Isso acontece, por ex., com o princípio da proibição do excesso. O constituinte brasileiro organizou de forma lógica os princípios constitucionais, classificando no Título II, os direitos e as garantias fundamentais, e, no artigo 5°, os direitos e os deveres individuais e coletivos, criando os princípios e as garantias. Conforme Canotilho119, por sua força de autêntica norma jurídica vincula estreitamente o legislador, possibilitando interpretação substancial da norma pelo judiciário. Quando está em jogo a liberdade do cidadão, vale contra a lei quando ela estabelece restrições em 117 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 67. 118 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 1128. 119 Ibid., p. 1131. 54 desconformidade com o texto constitucional120. Por se tratar de direitos e garantias fundamentais do cidadão, estabelecidas no artigo 5° da carta constitucional, a cláusula do devido processo legal tem aplicação imediata, conforme a disposição expressa no § 1°, podendo ser invocada na plenitude121, já que, segundo José Cretella Jr.122, o dispositivo que integra a Constituição tem supremacia sobre toda e qualquer outra norma jurídica – lei ou ato normativo – do sistema jurídico de que faz parte. O constituinte brasileiro, ao elaborar a Carta de 1988, com doutrina de Direito Constitucional à disposição, optou por positivar os princípios constitucionais como garantias fundamentais. Isto é destacado por Paulo Bonavides123: O ponto central da grande transformação por que passam os princípios reside, em rigor, no caráter e no lugar de sua normatividade depois que esta, inconcussamente proclamada e reconhecida pela doutrina mais moderna, salta dos Códigos, onde os princípios eram fontes de mero teor supletório, para as Constituições, onde em nossos dias se convertem em fonte de toda a ordem jurídica, na qualidade de princípios constitucionais. O devido processo legal substantivo, face mais abrangente do princípio, prevê a possibilidade de análise pelo judiciário, de atos de quaisquer dos poderes que importem em limitação dos diretos de liberdade, propriedade e demais direitos da pessoa humana. 120 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 1142. 121 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 25. 122 CRETELA JUNIOR, Jose. Elementos de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 100. 123 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 260. 55 A cláusula, aceita no direito constitucional norte-americano124, também encontra por aqui, defensores. É o caso de Uadi Lammêgo Bulos125, que vê a importância do devido processo legal na proteção dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, como um instrumento contra os arbítrios das autoridades legislativas, judiciárias e administrativas, pois, possibilita o controle sobre leis com a aplicação do princípio da razoabilidade, integrando o direito constitucional brasileiro, atuando em todos os campos, seja no direito administrativo, seja no direito civil, seja no direito comercial, seja no direito tributário e, mais especificamente, seja no campo do direito penal, no qual atua como inesgotável manancial de inspiração para interpretar direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição. A cláusula do devido processo legal material encontra-se expressa nos seguintes dispositivos constitucionais presunção de inocência, até que sobrevenha condenação definitiva, transitada em julgado, reconhecendo a autoria e a materialidade do delito (art. 5°, LVII); não-identificação datiloscópica de quem já o seja civilmente identificado (art. 5°, LVIII); exigência que a prisão do cidadão seja em flagrante delito, observadas as prescrições constitucionais e legais (art. 5°, LXI); respeito ao principio da comunicabilidade imediata ao juiz competente e à família do preso, ou à pessoa por ele indicada, do fato em si, da prisão e do local onde o mesmo se encontra (art. 5°, LXII); direito de o preso ser informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, além de lhe ser garantida a assistência da família e de advogado (art. 5°, LXIV); direito do preso à identificação dos responsáveis por sua prisão ou interrogatório policial (art. 5°, LXIV); 124 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2006, p. 171-175. 125 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 238. 56 obrigação de o juiz relaxar imediatamente a prisão ilegal (art. 5°, LXV); - direito do cidadão não ser levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança (art.5º, LXVI); impossibilidade de ocorrer prisão civil por dívida, exceto a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel (art. 5°, LXVII).126 O Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 345845, não acata a idéia de devido processo legal substancial com a análise da razoabilidade da norma, mas, deixa clara a posição de interpretar o devido processo legal formal, conforme relato do Ministro Carlos Veloso: Ao Judiciário cabe, no conflito de interesses, fazer valer a vontade concreta da lei, interpretando-a. Se, em tal operação, interpreta razoavelmente ou desarrazoadamente a lei, a questão fica no campo da legalidade, incorrendo o contencioso constitucional. II. - Decisão contrária ao interesse da parte não configura negativa de prestação jurisdicional (C.F., art. 5º, XXXV). III.Alegação de ofensa ao devido processo legal: C. F. , art. 5º, LV: se ofensa tivesse havido, seria ela indireta, reflexa, dado que a ofensa direta seria a normas processuais. E a ofensa a preceito constitucional que autoriza a admissão do recurso extraordinário é a ofensa direta, frontal.127 Observa-se que, de acordo com este julgado, o Supremo Tribunal Federal não admite a interpretação, em sede de recurso extraordinário, da razoabilidade da lei, mas da ofensa direta às normas processuais. O doutrinador Feu Rosa, ao abordar o tema referente às garantias constitucionais, ensina que 126 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 240. 127 SÃO PAULO. RE 345845 AgR / SP - Relator(a): Min. Carlos Velloso. Publicação: DJ -11-10-2002 PP00043 EMENT VOL-02086-04 PP-00764. Julgamento: 17/09/2002 - Segunda Turma. 57 Assim, faz parte do direito constitucional moderno, de todos os países cultos e civilizados, a afirmação peremptória que diz: ‘os direitos fundamentais garantidos pela Constituição não podem, em princípio, restringir-se. As limitações desses direitos pela lei só serão admitidas quando a segurança, a moral, a saúde e a assistência pública o exijam imperiosamente. Não serão admitidas mais limitações que nas condições previstas na própria Constituição. O tribunal de conflitos constitucionais está obrigado a declarar nulas as leis que restringem, contra a Constituição, qualquer dos direitos fundamentais’.128 Pode-se perceber que, de acordo com a afirmação, implica na incorporação pela Constituição Federal do devido processo substancial, e, não apenas formal, contrariamente ao julgado do Supremo Tribunal Federal. Para Nelson Nery Júnior há até um exagero na afirmação do princípio Bastaria à Constituição Federal de 1988 ter enunciado o princípio do devido processo legal e o caput e a maioria dos incisos do art. 5° seriam absolutamente dispiciendos. De todo modo, a explicação das garantias fundamentais derivadas do devido processo legal, como preceitos desdobrados nos incisos do art. 5°, CF, é uma forma de enfatizar a importância dessas garantias, norteando a administração pública, o Legislativo e o Judiciário para que possam aplicar a cláusula sem maiores indagações.129 A exemplo do devido processo legal substancial, o devido processo legal em seu sentido processual, com raízes no sistema norte americano, de acordo com Uadi Lammêgo Bulos, é representado pelas seguintes garantias: 128 ROSA, Antonio Jose Miguel Feu. Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 171. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 41. 129 58 a) direito à citação e ao conhecimento do teor da acusação; b) direito a um rápido e público julgamento; c) direito ao arrolamento de testemunhas e à notificação das mesmas para comparecer perante os tribunais; d) direito ao procedimento contraditório; e) direito de não ser processado, julgado ou condenado por alegada infração às leis ex post facto; f) direito à plena igualdade entre acusação e defesa; g) direito contra medidas ilegais de busca e apreensão; h) direito de não ser acusado nem condenado com base em provas ilegalmente obtidas; i) direito à assistência judiciária, inclusive gratuita; j) privilégio contra a auto-incriminação.130 O devido processo legal nada mais é do que o direito do cidadão a processo justo, com a possibilidade efetiva de ter acesso à justiça, com direito à ampla defesa e ao contraditório. 2.5. Princípio da Proporcionalidade Do termo proporcionalidade se extrai a idéia de proporção, correspondência, correlação ou relatividade. José Laurindo de Souza Netto ensina que a proporcionalidade se revela numa igualdade relativa, conseqüente da relação das diferentes partes de um todo, comparadas entre si131. O elemento jurídico da proporcionalidade, teria sido identificado por Aristóteles, que afirmava “o proporcional é um meio termo e o justo é o proporcional”132, foi inicialmente usado no campo do Direito Administrativo, mas dada a sua importância, foi, posteriormente, incorporado por praticamente todos os ramos do Direito. José Laurindo de 130 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 40. 131 SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 63. 132 D’URSO, Flávia. Princípio constitucional da proporcionalidade no processo penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 50. 59 Souza Netto observa Dizia, primitivamente, respeito ao problema da limitação do poder executivo, sendo considerado como medida para as limitações administrativas da liberdade individual. É com este sentido que a teoria do estado o considera, já no séc. XVIII, como máxima suprapositiv, é que ele foi introduzido, no séc. XIX, no direito administrativo como princípio geral do direito de polícia. Posteriormente, o principio da proporcionalidade em sentido amplo, também conhecido por princípio da proibição de excesso (Übermassverbot), foi erigido à dignidade de princípio constitucional na Alemanha.133 J.J. Gomes Canotilho, explica o princípio da proporcionalidade no sentido estrito, ao afirmar que, Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação da medida coectiva do poder público para alcançar determinado fim, mesmo nestes casos deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à ‘carga coactiva’ da mesma. Está aqui em causa o princípio da proporcionalidade em sentido restrito, entendido como princípio da ‘justa medida’. Meio e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com objectivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.134 O princípio da proporcionalidade tem vinculação com a Jurisdição Constitucional, já que atua na esfera dos direitos fundamentais, servindo como instrumento de proteção à liberdade, protegendo o cidadão contra os excessos e as intervenções estatais 133 SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 64. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 269. 134 60 desnecessárias, ao difundir os demais princípios e garantias básicas135. Há casos em que, inevitavelmente, possa ocorrer a colisão de direitos fundamentais. A equação da situação fática se dá pelo princípio da proporcionalidade. É certo que o princípio da proporcionalidade tem como finalidade salvaguardar a dignidade da pessoa humana. Contudo, definir com precisão o que é dignidade da pessoa humana não é tarefa simples. O conceito é altamente abstrato e nem sempre é possível identificar, a priori, os supostos fáticos específicos da infração da dignidade humana. A rigor, a noção menos vaga sobre a dignidade apenas é possível in concreto, principalmente, na hipótese de colisão de direitos fundamentais, direitos portadores do conteúdo ‘dignidade humana’, mas que, no caso concreto, dado ao caráter principal das normas conferidoras de direitos fundamentais, tem pesos relativos. Portanto, na hipótese de colisão, o que é a dignidade humana – e sua violação ou não violação – resulta da aplicação do princípio da proporcionalidade. Nesse sentido, as considerações sobre o princípio da proteção do conteúdo essencial como via de fundamentação do princípio da proporcionalidade valem, ao menos em parte, para a via do princípio da dignidade humana.136 Tomando-se como exemplo o direito à liberdade, regra constitucional da maior importância versus a possibilidade da decretação da prisão preventiva devidamente fundamentada, autorizada igualmente pela Constituição, há de se aplicar o princípio da proporcionalidade com base no fundamento da dignidade da pessoa humana. Levando-se em conta a proposta deste trabalho, que defende o uso da prisão cautelar como medida realmente excepcional, a aplicação do princípio da proporcionalidade possibilita a adoção de medidas substitutivas à prisão preventiva, visto inexistirem no processo penal brasileiro, medidas intermediárias entre a liberdade e a prisão, previstas nos códigos processuais penais modernos, reservando a prisão como última alternativa, aplicada 135 SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 65-66. STEINMETZ, Wilson Antonio. Colisão de direitos fundamentais e principio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 165. 136 61 aos casos de extrema necessidade137. A importância do princípio da proporcionalidade, no Direito Comparado, pode ser medida pela sua aplicação no Direito Alemão, que, por exemplo, ao restringir o princípio da culpa (Schuldprinzip), ao exigir que haja correspondência entre a culpa e o grau de ofensa do crime, como medida da pena aplicada ou aplicável138, caso em que o princípio da proporcionalidade é posto como limite ao legislador penal. Já no processo penal, a proporcionalidade exige que a sanção ou pena seja adequada: O princípio da proporcionalidade no processo penal reclama sobretudo que a medida seja indispensável, que haja uma relação adequada com a gravidade do crime e que seja justificada pela intensidade [..]}[{A] Constituição pode impor uma determinada gestão do processo em que os aspectos de oportunidade de per se respeitáveis para o andamento do processo devem ceder à tutela dos direitos fundamentais. Nesse sentido, o Bundesverfassungsgeritc está autorizado também a gestão concreta do processo.139 Na falta da previsão legal, embora a invocação do princípio da legalidade seja forma de obstar a adoção de outras medidas que não a prisão preventiva, existem alternativas, já que é possível defender a possibilidade dos juízes aplicarem medidas outras que não a prisão cautelar, atendendo ao princípio da proporcionalidade e da interpretação das normas no sentido mais favorável à efetividade dos direitos fundamentais140. 137 SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 77. SAMPAIO, José Adércio Leite. Retorno às tradições: a razoabilidade como parâmetro constitucional.. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 78. 139 ALEMANHA, Corte Constitucional federal. BVerf|GE 17,108. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 79. 140 SOUZA NETTO, op. cit., p. 77. 138 62 2.6 Princípio da Razoabilidade Dificuldade surge ao se estabelecer a diferenciação entre a conceituação do princípio da razoabilidade e o princípio da proporcionalidade. Isto ocorre porque o princípio da razoabilidade se apresenta como um dos critérios para a aplicação do princípio da proporcionalidade141, porém, a distinção de acordo com José Laurindo de Souza Netto142 pode ser notada no sentido que a razoabilidade protege o cidadão contra os excessos muitas vezes praticados pelo Estado, e serve como meio de defesa de dos direitos e das liberdades constitucionais enquanto a proporcionalidade atua no âmbito dos direitos fundamentais, enquanto critério valorativo constitucional determinante das restrições impostas aos cidadãos. Willis Santiago Guerra Filho, citado por Wilson Antônio Steinmetz, identifica as finalidades de cada princípio: a desobediência ao princípio da razoabilidade significa ultrapassar, irremediavelmente, os limites do que as pessoas em geral, de plano, consideram aceitável, em termos jurídicos. É um princípio de função negativa. Já o princípio da proporcionalidade tem uma função positiva a exercer, na medida em que pretende demarcar aqueles limites, indicando como nos mantermos dentro deles – mesmo quando não pareça, a {sic} primeira vista, ‘irrazoável’ ir além.143 141 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 368. 142 SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p . 65. 143 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo e principio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1997. p. 25-26. Apud STEINMETZ, Wilson Antonio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 186. 63 Outra diferenciação entre o princípio da proporcionalidade e o da razoabilidade é apresentada por Wilson Antônio Steinmetz: Argumentos mais desenvolvidos a favor da tese da diferença oferece Ávila, tendo como referências formulações recentes do pensamento constitucional alemão (doutrinário e jurisprudencial). Aplica-se o postulado normativo da proporcionalidade nos casos em que se estrutura uma relação meio-fim, na qual um meio x pretende alcançar um fim constitucionalmente legítimo y (ou, se preferir, um direito fundamental y, um bem jurídico constitucionalmente protegido y (restringindo um princípio constitucional z (ou direito fundamental z, y bem jurídico constitucionalmente protegido z). Nessas hipóteses, ‘a pergunta a ser feita é: a medida adotada e adequada e necessária em relação ao fim não implica a não realização substancial do bem jurídico correlato?’ Há um dever de proporcionalidade? Já o dever de razoabilidade não pressupõe uma relação meio-fim, mas, a situação pessoal do sujeito envolvido na aplicação da medida que se quer controlar. A pergunta a ser feita é outra: ‘a concretização da medida abstratamente prevista implica a não realização substancial do bem jurídico correlato para determinado sujeito?’. Segundo Ávila, ‘trata-se de um exame concreto-individual dos bens jurídicos envolvidos, não em função da medida em relação a um fim, mas em razão da particularidade ou excepcionalidade do caso individual’. Em outros termos, ‘não se analisa a intensidade da medida para a realização de um fim, mas a intensidade da medida relativamente ao um bem jurídico de determinada pessoa’. Objetiva-se verificar se a resultante da aplicação da norma geral (que é uma norma constitucionalmente válida) ao caso individual é razoável e não arbitrária. Ávila conclui afirmando que há uma diferença de métodos na aplicação de princípios da proporcionalidade e da razoabilidade: ‘enquanto o primeiro consiste num juízo com referência a bens jurídicos ligados a fins, o segundo traduz um juízo com referência a pessoa jurídica atingida’.144 O princípio da razoabilidade, invocado na literatura publicista brasileira, deriva da concepção substantiva do princípio do devido processo penal norte-americano.145 O princípio da razoabilidade tem o condão de proteger os direitos 144 STEINMETZ, Wilson Antonio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 186-187. 145 Ibid., p. 188. 64 fundamentais contra condutas arbitrárias das várias esferas do poder público146, e sua aplicação no processo penal deverá seguir a seguinte orientação: A chamada lógica do razoável, que, como visto, traduz-se em um método de abordagem hermenêutica, com vistas à adaptação do ordenamento à realidade do momento histórico de sua aplicação, diverso daquele em que foi elaborada, com escopo de permitir que o juiz prolate a decisão mais justa possível, deverá se limitar, sempre, aos valores em que a própria norma se embasa..147 A cláusula do princípio do devido processo legal, prevista no inciso LIV, do artigo 5º da Constituição Brasileira, contempla o princípio da razoabilidade, dando-lhe status de princípio constitucional. O Supremo Tribunal Federal interpreta a regra de forma a impedir o privilégio para o Estado A igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law; quando uma das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais que, além de vetustez, tem sido reputados nãoarbitrários por visarem a compensar dificuldades da defesa em juízo das entidades públicas; se, ao contrário, desafiam a medida da razoabilidade e da proporcionalidade, caracterizam privilégios inconstitucionais: [...] (ADIN 1.753-DF – Medida Cautelar – RTJ 172/32).148 146 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 369. 147 DELMATO JUNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 282, apud PENTEADO, Jaques de Camargo. Tempo da prisão: breves apontamentos. Revista dos Tribunais, a. 92, v. 814, p. 447, ago. 2003. 148 BRASIL. Constituição (1988). Constituição federal interpretada pelo STF. Antonio Joaquim Ferreira Custódio (Org.). 8. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 21. 65 Situando a questão no plano do processo penal, a defesa tem prazos estabelecidos, e, não exercida a faculdade processual dentro dos limites temporais previstos, terá o direito de defesa precluso, enquanto os prazos processuais concedidos ao Estado, são, via de regra, dilatados, sendo a razoabilidade um dos fundamentos invocados, quando esta conjugada com o “devido processo penal” implicaria no desfecho processual em tempo “razoável” e com a razoabilidade das medidas constritivas adotadas.149 2.7 Princípio da Fundamentação das Decisões Judiciais O inciso IX, do artigo 93, da Constituição Federal, prevê, expressamente, que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”150. Considerando que a regra é a liberdade enquanto a prisão representa medida excepcional, o presente trabalho vai se ater à fundamentação da decisão para decretar a prisão preventiva e aplicar a cláusula do devido processo legal no seu aspecto formal, em conformidade com as disposições do inciso LXI do art. 5°, da Carta Constitucional, embora o Supremo Tribunal Federal tenha feito interpretação no sentido de que o princípio da fundamentação da decisão é a que legitima as prisões cautelares, representadas pelas prisões preventiva ou temporária: 149 SAMPAIO, José Adércio Leite. Retorno às tradições: a razoabilidade como parâmetro constitucional.. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.) Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 79. 150 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 861. 66 Já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que a prisão cautelar não viola o princípio constitucional da presunção de inocência, conclusão essa que decorre da conjugação dos incisos LVII, LXI e LXVI, do artigo 5º da Constituição Federal (HC nº 71.169-SP).151 Permitido, pois, é partir do pressuposto de que a prisão preventiva é medida cabível, fundada no fumus bonis iuris (prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria) e periculum in mora ou periculum libertatis (garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal), desde que esteja escrita e fundamentada. O inciso IX, do artigo 93, da Constituição Federal, é consectário lógico da cláusula do devido processo legal. Representa a garantia de um Estado Democrático de Direito que não admite que os atos do poder público sejam expedidos sem que sejam obedecidas as garantias constitucionais, entre outras, caso da imparcialidade e da livre convicção do magistrado, pois, através de sentenças fundamentadas e descomprometidas de qualquer interesse, e, também sendo pública, é que a parte e a comunidade destinatária da motivação da sentença poderão verificar a lisura da atividade jurisdicional. Alexandre de Moraes, ao comentar a Constituição da República, mostra que a fundamentação das decisões foi alvo de evolução: Para garantir o respeito a seus julgados e, conseqüentemente, reafirmação de sua legitimidade, historicamente o estilo das decisões de diversos tribunais foi alterado, visando um maior detalhamento de sua motivação e propiciando maior acesso popular aos elementos básicos de sua fundamentação, por meio de publicidade de seus acórdãos.152 151 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 79920. 2ª Turma. Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgamento: 11 abr. 2000. Diário da Justiça, p. 77, 01 jun. 2001. 152 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 1294. 67 O constituinte, ao positivar o princípio da motivação da decisão judicial, confirmou regra já alcançada pela cláusula do devido processo legal substancial, obrigando o magistrado a apresentar as razões de fato e de direito que o levaram a uma determinada convicção, não se considerando substancialmente fundamentadas as decisões, afirmando que segundo os documentos e testemunhas ouvidas no processo, o autor tem razão, motivo por que julgo procedente o pedido. Esta decisão é nula por que lhe falta fundamentação153. J.J. Gomes Canotilho explica de forma objetiva a exigência da motivação das decisões judiciais: [...] radica em três razões fundamentais: (1) controle da administração da justiça; (2) exclusão do caráter voluntarístico e subjectivo do exercício da atividade jurisdicional e abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos juízes; (3) melhor estruturação dos eventuais recursos, permitindo às partes em juízo um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas.154 A importância da fundamentação das decisões judiciais pode ser avaliada pela afirmação de João Gualberto Garcez Ramos: Tão relevante é o princípio da motivação dos provimentos jurisdicionais que, mesmo nos casos de decretação tida pela lei como obrigatória, a decisão judicial neste sentido deve ser fundamentada. Eduardo Espínola Filho, escrevendo sobre a hoje extinta prisão preventiva obrigatória¸ lembrava os Juízes de seu dever imperioso de fundamentarem as decretações dessa medida. E contemplava que, mesmo quando os Tribunais Superiores não concedessem habeas corpus anulando decisões não 153 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 176. 154 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 651. 68 fundamentadas, os Juízes deveriam saber que haviam faltado gravemente com seus deveres.155 Em se tratando de decisão tomada em sede de cognição sumária e com base no inquérito policial, a fundamentação assume importância ainda maior: Dita providência, aliada a tal critério, feria a fundo o status libertatis do indivíduo, máxime se considerarmos que é regra geral ser ela decretada com apoio apenas no inquérito policial. Tem este, entre nos, caráter inquisitivo, gozando por isso a autoridade de discrição, que, se não é arbítrio, confere-lhe, entretanto, largos poderes, freqüentemente, lesivos aos interesses individuais. Assim, é comum que se desfaçam, na instrução, os elementos obtidos no inquérito, pela amplitude de defesa que nossas Constituições sempre asseguram aos acusados.156 Nelson Nery Júnior também se expressa a respeito: A menção pura e simples aos documentos da causa ou testemunhas, como circunstâncias autorizadoras do decreto judicial, sem qualquer análise concreta dos referidos documentos e demais provas dos autos, não preenche o requisito constitucional da motivação como fator da higidez das decisões judiciais.157 Antonio Scarance Fernandes atenta para o conteúdo mínimo essencial à garantia da motivação: 155 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 112. 156 NORONHA, E. Magalhães. Curso de processo penal. 25. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 224-225. 157 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 177. 69 1. O enunciado da escolha do juiz, com relação à a) individuação das normas aplicáveis; b) análise dos fatos; c) à sua qualificação jurídica: d) às conseqüências jurídicas desta decorrentes. 2. Nexos de implicação e coerência entre os referidos enunciados.158 Ada Pellegrine Grinover, igualmente, admite a necessidade da fundamentação: É através da fundamentação, com efeito, que se expressam os aspectos mais importantes considerados pelo julgador ao longo do caminho percorrido até a conclusão última, representando, por isso, o ponto de referência para a verificação da justiça, imparcialidade, atendimento às prescrições legais e efetivo exame das questões suscitadas pelos interessados do pronunciamento judicial. No caso da prisão preventiva (e isso se aplica às demais formas de prisão de natureza cautelar) é indispensável, ao fumus boni iuris, que o juiz demonstre a tipicidade do fato e sua real existência, apontando as provas em que apóia sua convicção, sendo imprescindível o laudo de exame de corpo de delito quando a infração deixar vestígios (art. 158, CPP); por outro lado, deve, igualmente, o magistrado, sopesar os indícios de autoria esclarecendo as razões de seu convencimento. [...] Ainda é preciso observar que a justificação sobre a presença das apontadas exigências cautelares deve ser individualizada, sempre que houver mais de um acusado no mesmo processo, levando-se em conta as condições pessoais de cada um deles na constatação do periculum libertatis. Seria de todo arbitrário, caracterizando absoluta falta de motivação, indicar globalmente uma situação que autorize a prisão de vários acusados, sem consignar os dados individuais que indicam a necessidade da segregação.159 Muito mais do que qualquer outra, a decisão de decretar a prisão preventiva deve ser fundamentada, quer seja pela regra do inciso LXI, do art. 5°, quer seja do inciso IX, 158 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais., 2000, p. 120. 159 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 357-359. 70 do art. 93, da Constituição Federal, regras que não necessitam de interpretação substantiva, bastando-lhe apenas a formal ou a processual, ou, então, a disposição do artigo 315 do Código de Processo Penal. São normas imperativas também à decretação da prisão temporária, prisão decorrente de pronúncia ou de sentença penal recorrível visto que a regra é a liberdade, sob pena da nulidade da decisão que decreta a segregação cautelar160. A nulidade será absoluta, já que viola regra estabelecida na Constituição161. 160 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 356-365. 161 Ibid., p.359. 71 3 TUTELA CAUTELAR NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO 3.1 Noções Gerais O Direito Processual Penal, a exemplo dos demais ramos do Direito, contempla cautelaridade específica com o fim de garantir a efetividade ao processo consubstanciado em medidas e ações cautelares de matéria penal. Ao fazer um estudo aprofundado, João Gualberto Garcez Ramos162 aponta duas realidades decepcionantes no estudo da tutela de urgência no processo penal brasileiro. A primeira é a dificuldade de se obter conceituação da tutela cautelar em matéria processual penal, uma vez que a doutrina se baseia integralmente na doutrina do processo civil, sendo esta insegura e incorreta, o outro ponto é que a doutrina brasileira do processo penal, não de aprofundou com o desenvolvimento de conceitos que não se mostravam inteiramente corretos. Mesmo que o Processo Penal Brasileiro, desde os seus albores, contemple série de providências de caráter cautelar, somente após o advento do Código de Processo Penal de 1941 é que a doutrina começou a tratar a matéria de forma sistemática: 162 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 79. 72 À parte das críticas, procedentes ou não, às medidas de urgência, os autores do processo penal de antanho, embora conscientes da nota diferenciadora de determinadas medidas urgentes em face de outras não-urgentes, ou delas entre si, não trouxeram contribuição definitiva para a sua sistematização, que acabou por vir aparentemente por influência de dois fatores: o primeiro deles, o fato do Código de Processo Penal de 1941 ter tratado no mesmo título IX, do livro I, de diversas formas de prisão e de liberdade vinculada e, no capítulo VI, do título VI, do livro I, que denominou de medidas assecuratórias, agrupando o que lhe parecia semelhante; o segundo fator, o onipresente influxo da doutrina processual civil, já na época mais avançada a respeito desse e de outros temas do processo.163 João Gualberto Garcez Ramos observa, nos escritos de João Mendes de Almeida Júnior, os primeiros traços sobre as medidas de caráter cautelar no Processo Penal Brasileiro. Relacionam-se, justamente, em relação à prisão preventiva: O delito supõe o delinqüente. O espírito do juiz, frente ao fato do delito, passa por todos os estados da mente: em primeiro lugar, a ignorância; em segundo, a dúvida; em terceiro, a suspeita; em quarto, a opinião; em quinto, a certeza. A queixa, a denúncia e o corpo delito transformam a ignorância em dúvida; o flagrante delito, a confissão extrajudicial ou os depoimentos de duas testemunhas transformam a dúvida em suspeita; a reiteração judicial dos depoimentos, a confissão judicial e outros veementes indícios transformam a suspeita em opinião; a prova plena transforma a opinião em certeza. Enquanto o estado de dúvida permanece, o juiz está indeciso, não se manifesta; mas no momento em que surge a suspeita, há uma adesão do espírito, para colocar o acusado em estado de prevenção. E, se esta suspeita produz o assentimento da mente, há uma opinião, manifesta-se um grau mais forte na decisão, pelo qual o juiz se inclina a crer ou não na acusação. A prisão preventiva não é uma pena, porque a pena não pode ser imposta sem certeza do delito e de quem seja o delinqüente, isto é, sem uma decisão final, que produza firmeza do juízo. Por isso, no processo criminal há actos decisórios de prevenção, de acusação e de julgamento.164 163 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, 38. 164 ALMEIDA JUNIOR, João de Almeida. O processo criminal brasileiro. Rio de Janeiro: Laemmert, 1901, v. 1. p. 338, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 370. 73 O marco inicial de um tratamento sistemático do procedimento cautelar pode ser identificado na obra de José Frederico Marques, datada de 1965, que, pela primeira vez fala em processo penal cautelar. Na obra Elementos de Direito Processual Penal, José Frederico Marques dedica o capítulo XXVI, do volume IV, ao estudo do Processo Penal Cautelar, denominando o parágrafo 156 da obra, de Teoria Geral das Medidas Cautelares165, afirmando que elas possuem caráter instrumental, constituindo meio e modo de se garantir o resultado da tutela jurisdicional, destinada a impedir que a demora do processo torne inócua a prestação jurisdicional buscada pelas partes. José Frederico Marques aponta a finalidade das medidas cautelares no processo: Com as providências cautelares – como salienta VITTORIO DENTI –buscase garantir ao processo a consecução integral de seu escopo, para que os meios dos quais deve servir-se ou a situação sobre a qual irá incidir, se modifiquem ou se tornem inúteis antes ou durante o desenrolar do procedimento, frustrando-se, em conseqüência, a atuação da vontade da lei material. Com a medida cautelar antecipa-se, no todo ou em parte, a situação jurídica que advirá do resultado final do processo; e, com isso, afasta-se o periculum in mora, neutralizando-se os efeitos lesivos que dele poderiam surgir e garante-se, dentro do possível, a realização efetiva da tutela jurisdicional do Estado.166 No processo penal, a medida cautelar, em regra não pode antecipar o resultado jurídico, pois pode significar a antecipação da pena, o que é totalmente contrário aos 165 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 31- 37. 166 DENTI, Vittorio. Sul concetto di funcione cautelare. Studi Giuridici. In: Memória de Pietro Capiessoni, 1948, p. 24, apud MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 31. 74 princípios de um Estado Democrático de Direito. 3.2 Características da Tutela Cautelar As principais características das providências cautelares apontadas por José Frederico Marques são a provisoriedade, a interinidade, acessoriedade e a instrumentalidade. João Gualberto167, todavia, no estudo sobre o tema, afirma que a tutela cautelar é informada pelas seguintes características: urgência, sumariedade procidemental, sumariedade material, aparência, temporariedade, incapacidade de gerar coisa julgada material, referibilidade e a instrumentalidade, demonstrando cada uma das características. A urgência significa dizer que a tutela cautelar está preordenada para conjurar, imediatamente, uma situação de perigo atual e concreto para um direito168, interessando ao processo penal somente a situação de perigo concreto, assim definido por Heleno Cláudio Fragoso: [...] reconhece a doutrina moderna que o perigo é constituído por um elemento objetivo e um elemento subjetivo. Objetivamente constitui perigo o conjunto das circunstâncias e condições em que se verifica o fato de que pode surgir o dano; subjetivamente, integra-o o juízo sobre o perigo, ou seja, o juízo estabelece, com base na experiência, a probabilidade de superveniência de um dano. O perigo é, assim, uma realidade, uma abstração. O juízo deve ser feito de acordo com a chamada prognose póstuma, avaliando o sujeito ante as possibilidades do resultado temido. É 167 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 86-95. 168 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela cautelar e tutela antecipatória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 17-21 e 75-79, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 86. 75 evidente que o juízo deve ser feito pelo julgador, provindo da experiência comum e válida para todos.169 A sumariedade da tutela cautelar, é a essência da tutela cautelare se subdivide em procedimental e material. A importância da sumariedade procidemental na tutela cautelar é atestada pelas palavras de João Gualberto Garcez Ramos: A tutela cautelar, porque voltada à tarefa de eliminar, o tão rapidamente possível a situações de perigo real, está sempre inserida em procedimento formalmente sumário. De fato, o procedimento construído para a inserção do provimento cautelar é sumário, o que atende a um imperativo de lógica pragmática.170 Há que se atentar para o fato de que nem todo o processo sumário é cautelar171. Além disto, também é preciso observar que a sumariedade não significa a mera redução de prazos ou, então, a simplificação dos termos, ou, ainda, a adoção da oralidade, entre outras providências. A sumariedade procedimental se caracteriza in casu pela atenuação efetiva ou postergação do direito de defesa por parte do requerido. Essa operação é legítima, sobretudo se proporcional ao caso penal e às penas do crime que se trate172. Na sumariedade material ocorre a redução da amplitude de defesa, embora 169 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: a nova parte geral. 10. ed. rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro, 1986. p. 173-174, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 86-87. 170 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 88. 171 “Haverá procedimentos sumários outros que, nem por isso, tornam-se cautelares, como é o caso do mandado de segurança, exemplo este também fornecido por Luiz Guilherme Marinoni”. RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 88. 172 RAMOS, op. cit., p. 88. 76 seja possível pressupor a aceleração e a agilização do procedimento. A sumariedade material é inserida no campo da atividade instrutória, decisória ou cognitiva, podendo ser tanto a cognição no plano vertical quanto no plano horizontal. Luiz Guilherme Marinoni explica que a cognição pode ser referida a dois planos distintos: horizontal, que diz respeito à amplitude de conhecimento do juiz; e, vertical, pertinente à profundidade da cognição do magistrado acerca da afirmação dos fatos. No plano horizontal, portanto, a cognição vincula-se à lide carneluttiana, ou ao conflito de interesses. O processo terá cognição plena ou parcial, segundo se permita, ou não, o conhecimento de todo o conflito de interesses. [...] A cognição no plano vertical diz respeito à intensidade de relação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, ou seja, ao grau de cognição do objeto. Nessa perspectiva, a cognição pode ser exauriante, sumária e superficial.173 A sumarização no sentido material consiste na redução do campo de cognição do juiz, seja no plano horizontal, seja no vertical. A aparência, no procedimento cautelar, significa que a tutela cautelar não necessita de certeza, contentando-se apenas com a aparência. Luiz Roberto Cicogna Faggioni, ao se referir à aparência, declara que Havendo a soma da sumariedade de procedimento e superficialidade de conhecimento, tudo em benefício da máxima agilidade razoável, o efeito é que a causa só pode ser decidida através do critério de similitude. Havendo aparência do direito material e do risco a ele, o provimento cautelar é o de ser prestado; do contrário não. Basta, portanto, que haja similitude.174 173 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela cautelar e tutela antecipatória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 21-22, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 89. 174 FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 128, jan./mar. 2003. 77 Para João Gualberto Garcez Ramos a aparência é o que a doutrina convencionou chamar de fumus bonis iuris. A importância da temporariedade pode ser medida pelas palavras de José Frederico Marques ao afirmar que a medida cautelar tem caráter provisório e interino, uma vez que é de duração limitada: os efeitos da medida cautelar persistem enquanto não emana do Judiciário a providência jurisdicional que ela procura garantir e tutelar175. Embora a assertiva de José Frederico Marques faça uso do termo “provisório”, João Gualberto Garcez Ramos vê distinção entre temporariedade e provisoriedade. Ele afirma, textualmente, que a temporariedade é traço característico da tutela cautelar, enquanto que a provisoriedade não é.176 Temporariedade é a característica da tutela cautelar que representa a idéia de que ela deve durar por certo tempo, ou enquanto permanecer o risco à efetividade do processo e à sua capacitação plena para obtenção de tutela eficiente do direito material177, ou, ainda, quando for substituída por medida definitiva178. No processo penal a demorada duração de uma medida cautelar representa a imposição de pena sem o respectivo processo, fato vedado em face ao princípio processo legal179. A tutela cautelar tem a característica de não gerar coisa julgada material. Isto significa dizer que a tutela emanada de procedimento cautelar não é definitiva, já que, deixando de existir o mal prenunciado, deve deixar de existir a cautela180. Alcides Alberto Munhoz da Cunha esclarece que 175 MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 32. RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 90. 177 FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 128, jan./mar. 2003. 178 RAMOS, op. cit., p. 91. 179 FAGGIONI, op. cit., p. 128. 180 Ibid., p. 129. 176 78 a lide cautelar pode existir sem que a pretensão principal ou ideal de situe no estado de lide. Embora conexas, pelo vínculo de assessoriedade, tais pretensões têm objetos diferentes [...] O objeto da lide cautelar será sempre o bem jurídico da segurança da pretensão principal, enquanto se entenda que subsiste o estado de perigo (periculum) e de idealidade (fumus), em torno da pretensão que se quer preservar.181 É impossível conceber a idéia de coisa julgada material num juízo cognitivo formado pela aparência. A referibilidade é apontada por João Gualberto Garcez Ramos como a característica mais importante da tutela cautelar e tida como uma das mais úteis ao processo cautelar penal, dá a idéia de ligação estrita entre a situação de perigo e a proteção jurídica que se pede. Há referibilidade no sentido de que a tutela cautelar se refere, exclusivamente, à situação de perigo que se pretende remediar, não indo jamais para além, para alcançar e dizer algo sobre a existência ou inexistência do direito que fundamentou a ação de conhecimento.182 Em conformidade com a definição de Luiz Guilherme Marinoni, a referibilidade é a nota destintiva entre as tutelas cautelar e antecipatória. Na tutela cautelar há sempre a referibilidade a um direito acautelado. O direito referido é que é protegido (assegurado) cautelarmente. Se inexiste 181 CUNHA, Alcidez Alberto Munhoz. A lide no processo civil. Curitiba: Juruá, 1992. p. 121, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 91. 182 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 93. 79 referibilidade, ou direito referido, não há direito acautelado. Ocorre neste caso, satisfatividade; nunca cautelaridade.183 A assertiva, porém, não pode ser aplicada ao processo penal, uma vez que há casos em que, embora ocorra a tutela cautelar, o mesmo não acontece com referibilidade. Nem por isto, contudo, existe a figura da tutela antecipatória, verificando-se um tertus genus, que se situa entre duas formas de tutela e com nenhuma se identifica184. No plano processo penal a referibilidade assume importância maior em razão do princípio constitucional da presunção de inocência, que veda que indivíduo seja considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, observados, rigorosamente, os procedimentos processuais previstos, atentando para o princípio do devido processo legal185. Mesmo que no presente estudo tenham sido adotadas, pela lógica, as características da tutela cautelar apontada por João Gualberto Garcez Ramos, há que se considerar a importância da instrumentalidade. Para José Frederico Marques ela é o meio e o modo de se garantir a efetividade e providências definitivas que constituem o objeto do processo principal186. Ligada à idéia da referibilidade, a instrumentalidade objetiva assegurar que o provimento almejado para a tutela do direito substancial discutido ocorra e opere com eficácia, em sua plenitude, ao término dos debates187. 183 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela cautelar e tutela antecipatória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 79, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 93. 184 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 94. 185 Id. 186 MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 32. 187 FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 129, jan./mar. 2003. 80 3.3 Requisitos e Fundamentos Gerais das Medidas Cautelares Tanto as medidas cautelares quanto as ações cautelares previstas no Código de Processo Penal têm como pressupostos, segundo José Frederico Marques188, a existência do periculum in mora e o fumus bonis iuris inerentes a todo o procedimento cautelar. O periculum in mora é apresentado como o pressuposto fundamental do processo cautelar, na medida que o ato decisório que determina a providência cautelar deve eliminar o perigo.189 A necessidade do periculum in mora é acentuada por José Frederico Marques: Se a providência acauteladora não se torna imprescindível, porquanto os efeitos dilatórios do processo não colocam em perigo a proteção ao bem jurídico, que nele se procura assegurar, não há o periculum in mora e a medida cautelar não deve ser concedida.190 A presença do fumus boni iuris é representada pela probabilidade de resultado favorável do processo principal àquele a quem a medida acautelatória irá beneficiar191. Aury Celso Lima Lopes Júnior avalia como inaplicável o pressuposto da tutela cautelar importada do processo civil, consistente no fumus boni iuris, ao processo cautelar penal, quando se tratar de privação de liberdade. Ele afirma que a aplicação se 188 MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 33. Id. 190 Id. 191 Id. 189 81 configura numa impropriedade jurídica: Como se pode afirmar que um delito é uma ‘fumaça de bom direito’? No processo penal, o requisito para a decretação de uma medida coercitiva não é a probabilidade da existência do direito de acusação alegado. O objeto do processo, nesse momento, não é um direito, mas um delito. Logo, o correto é afirmar que o requisito para a decretação de uma medida cautelar em matéria penal é a existência do fumus delicti, ou seja, a probabilidade da ocorrência de um delito, mas, nunca de um direito.192 O mesmo Aury Celso Lima Lopes Júnior destaca que a confusão vai além da simples questão terminológica, pois, leva a uma equivocada valoração do perigo decorrente da demora, em se tratando de tutela cautelar penal, já que o perigo apresenta-se como fundamento e não como requisito das medidas cautelares, e aponta elementos necessários à existência do fumus delicti ao expor que o fumus delicti exige a existência de sinais externos, com suporte fático real, extraídos dos atos de investigação levados a cabo, e que, por meio de um raciocínio lógico, sério e desapaixonado, permita deduzir com maior ou menor veemência a comissão de um delito, cuja realização e conseqüências apresentem como responsável, um sujeito concreto.193 Considerando as cinco hipóteses que dão fundamento à prisão preventiva194, o presente trabalho atentará, em cada uma delas, para os respectivos pressupostos, que serão 192 LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Fundamento, requisitos e princípios gerais das prisões cautelares. Revista dos Tribunais, a. 87, n. 748, p. 452, fev. 1998. 193 LOPES JUNIOR, loc. cit.. 194 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 129. 82 identificados e analisados de modo mais aprofundado. 3.4 Cautelares do Processo Penal Brasileiro As medidas e ações cautelares podem ser adotadas tanto contra o status libertatis da pessoa do acusado (consubstanciadas em variadas formas de prisões processuais) quanto a favor do status libertatis, representado por medidas, caso, por exemplo, da liberdade provisória com ou sem fiança, bem como o habeas corpus195, que podem visar a fatos relacionados com o ato delituoso, cujas providências se concretizam pela busca e apreensão, por medidas assecuratórias (seqüestro, hipoteca legal e arresto), previstas nos artigos 125, 134 e 136 do Código de Processo Penal. De semelhante maneira, há medidas cautelares que visam a garantia da instrução probatória, como é o caso de depoimentos antecipados (artigos 225 e 366, do CPP(3), bem como o exame de corpo de delito e perícias em geral (artigos 158 e seguintes, do CPP). Para José Frederico Marques, as medidas cautelares, no Direito Processual Penal Brasileiro, ou se destinam a garantir a indenização do dano advindo do crime ou então, atuam no campo estritamento da persecutio criminis. Na última hipótese, ou são providências coercitivas contra o status libertatis do réu, e se destinam a tutelar o interesse punitivo do Estado consubstanciado na provável condenação do réu, ou, então, visam a impedir danos à liberdade do réu, como providências de contracautela, com o escopo de garantir o status libertatis em face do poder coercitivo-cautelar do Estado.196 195 196 MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 36. Id. 83 João Gualberto Garcez Ramos, na marcante obra da doutrina processual penal brasileira, (A Tutela de Urgência no Processo Penal), tratou sobre as medidas de urgência previstas no Processo Penal Brasileiro, deixando, justificadamente, de tratar sobre a restituição de coisas apreendidas, tidas, por outros autores, como medidas de caráter cautelar: José Frederico Marques inclui a restituição das coisas apreendidas entre as medidas cautelares, com o que obteve apoio de Romeu Pires de Campos Barros. Entretanto, não haverá qualquer preocupação neste trabalho com a restituição de coisas apreendidas. Em primeiro lugar, porque essa restituição é claramente satisfativa e jamais cautelar, já que o legítimo dono de uma coisa apreendida durante a investigação policial ou durante o processo penal condenatório, não a tem de volta dada uma situação de perigo, mas simplesmente porque ela lhe pertence. Inexplicável que os autores citados, tenham-na classificado como medida cautelar. Em segundo lugar, porque à restituição de coisas apreendidas não é essencial o requisito de urgência. A não ser acidentalmente, o bem apreendido precisa ser, com urgência, devolvido ao legítimo dono. O presente trabalho se preocupa com a tutela de urgência no processo penal. Daí porque a restituição de coisas apreendidas não será sequer objeto de estudo.197 João Gualberto classifica as medidas privativas de liberdade do imputado, compostas pelas formas de prisões processuais, em prisão preventiva, prisão em flagrante, prisão decorrente de pronúncia, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão temporária. Nas medidas protetivas de liberdade do imputado estão inseridas a liberdade, independente de fiança; a liberdade vinculada com fiança e, também, a liberdade 197 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 40. 84 vinculada sem fiança. As medidas instrutórias de urgência, que objetivam garantir o conjunto probatório a ser analisado pela autoridade judiciária, consistem no inquérito policial, no auto de prisão em flagrante e na produção antecipada de provas. Existe, igualmente, a busca e apreensão. As medidas patrimoniais de urgência, que têm a finalidade de garantir o princípio da responsabilidade patrimonial, são caracterizadas pelo seqüestro dos proventos de crime, pela especialização da hipoteca legal e pelos arrestos prévio ou subsidiário de bens móveis. A Lei 10.455/2002 acrescentou o parágrafo único, no artigo 69, da lei 9.099/95, estabelecendo uma situação de tutela de urgência, consistente no afastamento cautelar do autor de violência doméstica, previsão que, embora, representando um avanço em relação às cautelares do processo penal, recebeu pesadas críticas, pois a cautelar foi vista como um pena não prevista no ordenamento jurídico e visava garantir a não ocorrência possível de futuros crimes198, porém a medida justificava-se,visto que a providência, consistente no afastamento do local de convívio de apontado autor de infração penal de menor potencial ofensivo, alegadamente praticada com violência doméstica, destina-se apenas, como qualquer tutela cautelar, a assegurar, como tradicionalmente se expõe nesta matéria, os meios e fins de processo em que se busca ou se irá buscar a realização da pretensão punitiva fundada em alegada prática de uma tal infração penal.199 A Lei 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, inovou ao estabelecer 198 KARAM, Maria Lucia. Juizados especiais criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 227. 199 Id. 85 uma série de providências de natureza cautelar, nos casos de violência doméstica contra a mulher. O artigo 20 da Lei Maria da Penha, prevê a possibilidade da prisão preventiva, o que representa uma inovação no sentido de que a mesma pode ser decretada mesmo em crimes punidos com detenção, e independentemente das condições pessoais do agente. No artigo 22 estão enumeradas as medidas de urgência que obrigam o agressor. As medidas que obrigam o agressor, previstas nos incisos I, II e III (“a”, “b” e “c”), vinculam-se a ação penal, portanto, cautelar de natureza penal, e, em razão de estarem vinculadas à infração penal, somente podem ser requeridas pelo Ministério Público que é o titular da ação, enquanto as medidas previstas nos incisos IV e V, são cautelares típicas do Direito de Família, o que legitima a vítima a requerer as providências.200 O artigo 23, enumera as medidas de urgência que visam a proteção da ofendida. Os incisos I e II, são medidas administrativas, podendo ser requerida pela ofendida enquanto os incisos III e IV, contemplam medidas tipicamente cautelares do Direito de Família, sendo necessário a assistência de advogado pela requerê-las. O artigo 24 enumera uma série de medidas cautelares de natureza patrimonial, portanto extrapenal. A Lei Maria da Penha atribui competência para processar e julgar os casos de violência doméstica contra a mulher, aos Juizados Especiais de Violência Domésticas, que deverão ser criados, e, enquanto tal não ocorrer, será da competência do juízo criminal, 200 LESSA, Marcelo Bastos. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria da Penha” – alguns comentários.p. 137. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord). Estudo sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. 86 mesmo as providências de natureza cível, como separação de corpos, suspensão de visitas e ainda as medidas de proteção patrimonial previstas no artigo 24. As medidas protetivas de urgência, justificam-se, porque No caso de Direito Penal, em uma visão tradicional, talvez se pudesse objetar que o objeto da lide é a definição da culpa latu sensu com conseqüente aplicação da sanção penal, daí porque a prisão preventiva desponta como nítida medida cautelar penal. Entretanto, inegável que a proteção de bem jurídico ameaçado é também um dos propósitos do Direito Penal, donde ser lícito concluir que cautelarmente se pode também na esfera penal, adotar-se providências capazes de acautelar o bem jurídico ameaçado – vida, saúde, integridade física, sexual e moral da mulher – antes ou durante o curso do processo penal.201 As medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, embora reconhecidamente de caráter cautelar, tem algumas peculiaridades como a satisfatividade, portanto, não dispõe de caráter temporário, característico das cautelares, com exceção das medidas de proteção patrimonial previstas no artigo 24, que dependerão da propositura de ação principal no prazo de trinta dias.202 Importante salientar que as medidas previstas não são as únicas a serem aplicadas, visto que o rol não é taxativo, podendo o juiz aplicar outras medidas protetivas que obrigam o agressor como forma de garantir a integral proteção à mulher vítima de violência doméstica. A importância das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, podem ser medidas pelas palavras de Guilherme de Souza Nucci que afirma que são 201 PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica contra a mulher: Lei 11.340/06 análise crítica e sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 88. 202 LESSA, Marcelo Bastos. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria da Penha” – alguns comentários. p. 139. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord). Estudo sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. 87 positivas e mereceriam, inclusive, extensão ao processo penal comum, cuja vítima não fosse somente a mulher.203 203 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 879. Apud DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 78. 88 4 PRISÕES DE NATUREZA PROCESSUAL NO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO Como forma de melhor situar o tema objeto do estudo, inicialmente é feita uma abordagem das demais formas de prisões processuais previstas no ordenamento processual vigente, visto que, embora apresentem peculariedades comuns a todas as espécies de prisão, cada qual guarda características próprias. 4.1 Conceito de Prisão A regra é a liberdade, e as suas exceções representadas pela privação dela, devem ser devidamente disciplinadas pela carta constitucional e pela legislação, em face do princípio da reserva legal, o que garante que ninguém será privado de sua liberdade sem que haja previsão expressa, sob pena da prisão ser declarada ilegal. A forma clássica de privação de liberdade é representada pela prisão. Fernando Capez a conceitua, garantindo que é a privação da liberdade de locomoção determinada por ordem escrita da autoridade competente ou em caso de flagrante delito204. A conceituação se apresenta como necessária e suficiente, sendo, por isto 204 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 228. 89 mesmo, completa. A completitude ocorre porque o conceito abrange a privação do direito de ir e vir, direito consagrado do cidadão, considerado como direito natural garantido pela Constituição. De igual modo, por contemplar a legalidade da constrição do direito, seja em flagrante delito, seja por ordem fundamentada da autoridade competente, uma vez que fora destas situações não é possível decretar a prisão. A Constituição Federal, no caput do artigo 5º, justamente, sacramenta os direitos e as garantias fundamentais do cidadão, consagrando a regra geral da liberdade, tendo a privação dela como medida excepcional, somente possível em caso de flagrante delito ou por decisão fundamentada da autoridade competente (inciso LXI), respeitado o devido processo legal (inciso LIV), o contraditório e ampla defesa (inciso LV), a presunção de inocência (inciso LVII), o direito à liberdade provisória (inciso LXVI) e a proibição de prisão por dívida, salvo do infiel depositário e do devedor voluntário e inescusável de alimentos (LXVIII). Fernando Capez classifica a reclusão em prisão pena ou prisão penal decorrente da sentença penal condenatória (transitado em julgado); prisão processual ou provisória – no curso do processo, podendo ser em flagrante delito; prisão preventiva, prisão resultante de sentença de pronúncia; prisão temporária; prisão de sentença penal condenatória que não transitou em julgado; prisão cível - atingindo o depositário infiel ou o alimentante; prisão disciplinar – somente cabível a militares e em crimes militares. Também relaciona as extintas prisões administrativas e de averiguação205. Este estudo tem por objeto a prisão preventiva, revestida de todos os elementos do processo cautelar. Para se alcançar maior aprofundamento do assunto, será feita abordagem das demais prisões processuais, igualmente de natureza cautelar. 205 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 228-229. 90 4.2 Prisão em Flagrante Autorizada pelo inciso LXI, do artigo 5º, da Constituição, a prisão em flagrante pode ser feita por qualquer cidadão, ou, por autoridade policial, surpreendendo o indivíduo no instante da infração (art. 301). Conforme afirmação de José Frederico Marques, citada por João Gualberto Ramos Garcez, a prisão em flagrante é destacado aspecto de medida cautelar. Com a captura[...] do réu [...] garantida fica a imediata colheita de provas e elementos de convicção da prática do crime206. No mesmo sentido se manifesta Guilherme de Souza Nucci, ao afirmar que a prisão em flagrante é a modalidade de prisão cautelar, de natureza administrativa, realizada no instante em que se desenvolve ou termina de se concluir a infração penal207. O termo flagrante tem origem no latim, flagrans, flagrantis, que traduz a idéia de algo que ainda está em chamas.208 O estado de flagrância é aquele em que o sujeito é encontrado praticando o ato. Walter P. Acosta209 salienta que, a certeza visual do crime, obriga a efetivação da prisão sem qualquer escrúpulo, sendo obrigado a autoridade a fazê-lo e autorizado a qualquer do povo, caso em que o particular exercerá uma função pública. A prisão em flagrante é ato administrativo, independentemente de quem a 206 MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 1965, v. 4, p. 62, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 46. 207 NUCCI, Guilherme de. Código de processo penal comentado. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 560. 208 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 419. 209 Id. 91 execute. É medida cautelar de segregação provisória, de natureza processual210, exigindo assim, o periculum in mora et fumus boni juris, sendo que os requisitos serão analisados primeiramente pela autoridade policial. O periculum in mora, traduzido no processo penal como o periculum libertatis, estará preenchido caso esteja o agente cometendo violação, e efetivada a prisão, lavrado o respectivo termo, será analisado com maior profundidade o segundo requisito, qual seja, o fumus boni juris, presente caso o fato cometido for típico, e dentro daqueles que se exige a manutenção do infrator preso, obedecidos todos os procedimentos previstos no Código de Processo Penal, sob pena de nulidade do flagrante. A justificativa da prisão em flagrante, embora medida de natureza processual, justifica-se primeiramente em razão da reação social imediata à prática de uma infração, e, igualmente, por ser meio de colheita de provas211 revestida de robustez, dado às circunstâncias do crime estarem na situação em que se encontravam no momento da perpetuação do fato. A natureza jurídica da manutenção da prisão em flagrante, assume natureza cautelar, visto que vinculada a um criterioso juízo de necessidade.212 Ada Pellegrini Grinover, Geraldo Batista Siqueira, Weber Martins Batista, Paulo Lúcio Nogueira, Antônio Magalhães Gomes Filho, Sérgio de Oliveira Médici e Fernando da Costa Tourinho Filho, de acordo com estudos de João Gualberto Garcez Ramos213, também interpretam como cautelar a decisão que, após o controle jurisdicional de sua legalidade formal e substancial resultar positivo, manter a prisão em flagrante. 210 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 560. 211 GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 267. 212 JARDIM, Afrânio da Silva. Visão sistemática da prisão provisória no Código de Processo Penal. In: JARDIM, Afrânio da Silva. Direito processual penal: estudos e pareceres. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 366-367, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 48. 213 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 48-49. 92 O Código de Processo Penal define a situação de flagrante, no momento do crime (art. 302, I), denominado de flagrante próprio, ou logo após o cometimento do crime (art. 302, II). O flagrante impróprio consiste na perseguição do infrator pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa (art. 302, III). O flagrante presumido ocorre quando o autor da infração é encontrado com instrumentos, armas, objetos ou papéis que indiquem ser ele o autor da infração (art. 302, IV). A doutrina italiana, de acordo com João Gualberto Garcez Ramos, classifica a prisão em flagrante de forma diferenciada da doutrina brasileira: Entre os autores italianos, é comum definição do arresto in flagranza (prisão em flagrante) como algo menos que uma medida cautelar. Arturo Santoro, por exemplo, define a prisão realizada pela polícia como uma medida cautelar provisória, enquanto a manutenção do imputado no cárcere, após sua prisão pela polícia, seria uma medida cautelar propriamente dita.214 Franco Cordero, por sua vez, aponta a prisão em flagrante e o fermo di indiziato in reato (instituto equivalente à prisão temporária) como uma subcautela: Arresto in flagranza e fermo [...] preludono a eventuali misure coattive sula persona, delle queli garatiscono l’esecuzione: sono dunque cautele mediate; ed essendovi svolti poteri non giurisdiconali, hanno effetti labili, misurati a ore; convalidati o no, decadono, eventualmente sommersi nella misura disposta dal giudice a richiesta del pubblico ministero.215 214 SANTORO, Arturo. Manuale de diritto processuale penale. Turim: UFET, 1954, p. 487, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 47. 215 “Prisão em flagrante e fermo preludiam eventuais medidas coativas sobre a pessoa, cujas execuções garantem: são, portanto, cautelas mediatas; sendo produtos de poderes não-juridicionais, tem efeitos frágeis, limitados a horas; convalidados ou não, decaem, eventualmente submersos na medida determinada pelo Juiz a requerimento do Ministério Público”. (Tradução livre). CORDERO, Franco. Procedura penale. Milão: Giuffrè, 1991, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 48. 93 A causa da diferenciação é apontada por João Gualberto Garcez Ramos: A explicação desse entendimento é que na Itália, a prisão em flagrante não se prolonga no tempo. Para que o imputado continue encarcerado, muda o título da prisão. Malgrado essa diferença normativa, outro autor italiano, Leonardo Filippi, concede ao arresto in flagranza, a natureza de medida cautelar.216 No Direito Alemão, a prisão em flagrante denominada Festnahme auf friescher Tat, embora a similitude com o instituto brasileiro, é limitada de acordo com estudos de Sidnei Agostinho Beneti, às hipóteses de o agente ser surpreendido a praticar o crime ou ser perseguido em seguida a ele e de haver suspeita de fuga ou não se poder constatar imediatamente sua identidade217. O procedimento alemão tem a previsão de espécie de prisão em flagrante, autorizada, sem ordem judicial à polícia e ao ministério público, no caso de perigo de retardamento, se presentes os pressupostos para a ordem de prisão ou ordem de internamento. Não se trata, nesse caso, de prisão auf frischer Tat, pois o agente não terá sido preso cometendo ou acabando de cometer a infração penal. O dispositivo abre caminho à atuação dos órgãos de persecução penal, superando a amplitude da lei brasileira, carente, esta, de dispositivo semelhante, especialmente para, com o oferecimento do caminho legal, ensejar controle mais eficiente das já mencionadas ‘prisões para a averiguação’.218 216 FILIPPI, Leonardo. L’arresto in flagranza nell’evolucione normativa. Milão: Giuffrè, 1990, p. 54-64, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 48. 217 BENETI, Sidnei Agostinho. Prisão provisória: direito alemão e brasileiro. Revista dos Tribunais, a. 80, p. 269, jul. 1991. 218 Id. 94 Em qualquer dos casos, a prisão sem ordem judicial, em flagrante ou a forma acima exposta, terá a duração de um dia, prazo máximo para o preso ser apresentado ao juiz, que analisará os motivos da prisão, e constatada sua ilegalidade, colocará imediatamente em liberdade, podendo o fato também acontecer de outra forma, por requerimento do Ministério Público ou de ofício, expedindo ordem de prisão ou de internamento219. O sistema alemão oferece melhor garantia ao cidadão, já que no sistema brasileiro, somente com base no auto de prisão em flagrante, a duração da prisão poderá se estender por prazo maior. A prisão em flagrante desdobra-se em flagrante próprio, flagrante impróprio e flagrante presumido. O flagrante próprio, real ou flagrante propriamente dito é o que se realiza no ato da infração, quando o crime está sendo cometido, como o caso de quem é apanhado agredindo a vítima ou subtraindo-lhe bem, ou, ainda, com a característica de imediatidade, com o autor sendo encontrado quando “está cometendo a infração penal” (art. 302, I, CPP), ou “acaba de cometê-la”. (art. 302, II, CPP). O flagrante impróprio pode ser definido igualmente como “quase flagrante”. Ocorre quando o infrator é perseguido “logo após” cometer o fato. A expressão “logo após”, de acordo com Fernando Capez, compreende todo o espaço de tempo necessário para a polícia chegar ao local, colher as provas elucidadoras da ocorrência do delito e dar início à perseguição do autor220. O flagrante impróprio ou quase flagrante ocorre, de acordo com ensinamento de Walter P. Acosta, quando 219 BENETI, Sidnei Agostinho. Prisão provisória: direito alemão e brasileiro. Revista dos Tribunais, a. 80, p. 269, jul. 1991. 220 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 234. 95 [...] o agente é perseguido, logo após o delito, pela autoridade, pelo ofendido, ou por qualquer pessoa, em situação que se faça presumir ser o autor da infração. [...] Exige-se para a caracterização deste tipo de flagrância, que o autor do crime seja perseguido sem solução de continuidade (não importa por quanto tempo) desde o momento do fato até o da prisão. Em acórdão (in’Arquivo Judiciário’ vol. 13. p. 272) o Des. CESÁRIO PEREIRA afirma:’o que a lei vai requerer, de um modo geral, é uma acusação viva, oral, movida contra o delinqüente desde o momento do crime e em seu seguimento, no percurso da fuga’.221 Não há qualquer fundamento no mito popular que, para não existir o estado de flagrância, basta passarem 24 horas, podendo, assim, ocorrer a prisão em flagrante após este interregno temporal. Para que se caracterize o estado de flagrância, é obrigatoriamente necessária a perseguição ininterrupta do acusado. Há a possibilidade de deixar de existir o estado de flagrância antes deste espaço de tempo. Acontece, por exemplo, quando não ocorre perseguição policial ou qualquer movimento da autoridade policial neste sentido. O flagrante presumido ocorre quando, em razão das circunstâncias, o infrator é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração (art. 302, IV, CPP), não sendo necessária, neste caso, a imediatidade222, bastando, para tanto, que ele seja encontrado com instrumentos, armas, objetos ou papéis que o liguem de maneira inquestionável ao crime. A locução “logo depois”, expressada na redação do inciso IV do artigo 302 do Código de Processo Penal, trata de uma situação de imediatidade, que não comporta mais de algumas horas para findar-se, ficando ao arbítrio, inicialmente da autoridade policial e posteriormente à autoridade judiciária definir a situação de flagrância.223 221 ACOSTA, Walter P. O processo penal: teoria – pratica – jurisprudências – organogramas. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1989, p. 37. 222 GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 267. 223 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 4. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 664. 96 Walter P. Acosta, entendendo que a expressão “logo depois” não fica circunscrita ao sentido literal, admite prazo compatível à circunstância de cada caso224. Em todos as hipóteses de prisão em flagrante, caso a natureza da infração e as condições do infrator facultarem a liberdade provisória, com ou sem fiança, o infrator deverá ser imediatamente posto em liberdade. 4.3 A Prisão Decorrente de Pronúncia A prisão decorrente de sentença de pronúncia está prevista no §1º do artigo 408 do Código de Processo Penal, quando o juiz, após se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, recomendá-lo-á prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para a sua captura.225 A pronúncia é definida por Walter P. Acosta como uma apreciação preliminar da prova, feita pelo juiz presidente, para proporcionar ao júri o julgamento final. Efetiva-se por meio de uma sentença, baseada num elemento concreto – a realidade material do crime – e numa suposição fundada sobre seu autor. Mais do que uma sentença é o epílogo de uma fase processual, do qual a pronúncia é o resultado positivo, enquanto as outras decisões que, então, podem ser proferidas (a impronúncia, a absolvição in limine e a desclassificação) são os resultados negativos.226 224 ACOSTA, Walter P. O processo penal: teoria – prática – jurisprudências – organogramas. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1989, p. 38. 225 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Código de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004a. Art. 408, §1º. 226 ACOSTA, ob. cit., p. 85. 97 Existe divisão doutrinária sobre a natureza jurídica da prisão decorrente de pronúncia. De acordo com estudos de João Gualberto Garcez Ramos,227 defendem a natureza cautelar desta forma de prisão, José Frederico Marques, Júlio Fabbrini Mirabete e Antônio Magalhães Gomes Filho. Sintetizada, na afirmação de José Frederico Marques, A prisão em virtude de pronúncia também se filia a prisão cautelar [...]. No entanto, sua duração é permitida num espaço de tempo bem dilatado pelas normas processuais em vigor, sendo que antigamente, quando o assunto vinha focalizado, de modo imediato e direto, por mandamentos constitucionais, o próprio texto de tais normas admitia a legalidade da permanência sob custódia quando houvesse culpa formada. A sentença penal de pronúncia – como todas as decisões cautelares -, se assenta no fumus bonis iuris. Por ser provável a condenação do indiciado, é que o juiz pronuncia a sentença. [...] Mas a pronúncia não resulta da apreciação sumária e de plano, com base em elementos muitas vezes até extrajudiciais (como ocorre, v. gratia, na prisão preventiva), e sim, de todo um procedimento especial para o exame da imputação contida na denúncia, e que se denomina de formação de culpa, ou de instrução preliminar [...]. Essa a razão pela qual o réu pode ficar legitimamente detido, embora não haja, ainda, sentença condenatória que o declare infrator da lei penal.228 Em sentido contrário, a corrente à qual se filiam Vicente Greco Filho, Romeu Pires de Campos Barros, Weber Martins Batista, Hermínio Alberto Marques Porto, Afrânio Silva Jardim e Fernando da Costa Tourinho Filho, não dá à prisão decorrente de sentença de pronúncia a natureza cautelar, uma vez que a prisão pode ser uma conseqüência da pronúncia, mas não exclusivamente; para ser legítima, é mister que com ela ocorram 227 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 50-51. 228 MARQUES, Jose Frederico. Estudos de direito processual penal: Faculdade Paulista de Direito. São Paulo: Saraiva, 1958, v. 2, p. 113, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 50. 98 quaisquer dos requisitos necessários à decretação da prisão preventiva.229 Como regra, há a possibilidade da decretação da prisão por pronúncia, mas deve ser reservada para casos extremamente necessários. 4.4 Prisão Decorrente de Sentença Penal Condenatória Recorrível Interpretando-se o artigo 594 do Código de Processo Penal, pode-se observar, a princípio, a obrigatoriedade do réu, que não for primário, ou tiver bons antecedentes, e, ainda, se o crime não for passível de fiança, recolher-se à prisão para usufruir do direito subjetivo de apelar. Novamente não se encontra unidade doutrinária sobre a natureza jurídica da prisão decorrente de sentença penal recorrível. Parcela da doutrina sustenta que somente a prisão determinada na sentença penal condenatória, como condição para interposição do recurso do réu primário e com bons antecedentes230 é que teria natureza cautelar. Outra corrente, contudo, sustenta que a prisão decorrente da condenação é, sempre, cautelar.231 As duas teses podem ser sintetizadas na exposição do professor Luiz Flávio Gomes: 229 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 51-52. 230 . A idéia pode ser sintetizada na expressão de Julio Fabbrini Mirabete: “[...] não obstante o reconhecimento da primariedade e dos bons antecedentes do réu condenado, pode o juiz negar a liberdade provisória desde que demonstre base segura para tal decisão, como reconhecendo que está caracterizada v.g., a periculosidade do agente e evidenciadas as graves conseqüências do crime [...]ou que exista qualquer das hipóteses que autorizem a decretação da prisão preventiva.” (RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 54-55.) 231 “Já Rogério Lauria Tucci, Leonidas Ribeiro Scholz, Odone Sanguiné e Jose Antonio Paganella Boschi, sustentam que a prisão decorrente da condenação é sempre cautelar, segundo esse entendimento, quando está invariavelmente submetida à ocorrência de qualquer das hipóteses autorizadoras da prisão preventiva” (RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 55). 99 No nosso livro Direito de Apelar em Liberdade (2 ed. Revista dos Tribunais. 1997. p.34 e ss), sustentávamos basicamente duas grandes teses: a primeira no sentido de que a prisão prevista no art. 594 do CPP (‘o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecidos na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto’) possui natureza cautelar – logo, somente quando presentes os requisitos do art. 312 é que se justifica o encarceramento provisório do acusado; a segunda, mais ousada, no sentido de que devemos definitivamente separar prisão cautelar do direito de apelar. A conseqüência natural dessa última postura consiste na perda da eficácia do art. 594, pois a apelação seria direito constitucional impostergável, enquanto a prisão será decretada, quando o caso tiver fundamento no citado art. 312. A primeira tese é amplamente aceita nos tribunais (v. direito de apelar, op cit. p. 235 e ss). A segunda, de fundamental relevância e de efeito prático incomensurável, agora foi reconhecido, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, v.u., j. de18.02.1997.) 232 Na citada decisão, o Superior Tribunal de Justiça deu provimento a recurso de habeas corpus para determinar o processamento e julgamento de apelação, independentemente de prisão do réu condenado, decisão fundamentada no princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF), princípio do contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV in fine, CF), além do princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF), conforme é possível observar na ementa da decisão: RHC – Processual penal – Sentença condenatória – Réu foragido – Apelação – Processamento – Devido processo legal – Presunção de inocência – Cautelas processuais penais. O princípio da presunção de inocência, hoje, está literalmente consagrado na Constituição da República (art. 5º, LVII). Não pode haver, assim, antes deste termo final, cumprimento da sanção penal. As cautelas processuais buscam, no correr do processo, prevenir o interesse público. A Carta Política, outrossim, registra o devido processo legal: compreende o ‘contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes’. Não se pode condicionar o exercício de um direito constitucional – ampla defesa e duplo grau de jurisdição – ao cumprimento 232 GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processual penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 243. 100 da cautela processual. Impossibilidade de não receber a apelação, ou declará-la deserta porque o réu está foragido. Releitura do art. 594 do CPP, face à Constituição. Processe o recurso, sem sacrifício do mandado de prisão.233 É preciso atentar para o fato de que o decreto prisional foi mantido, de acordo com o voto do relator234, por ser aceitável à decretação da prisão preventiva do acusado, não em razão da disposição do artigo 594 do CPP. Luiz Flávio Gomes235 afirma que a prisão cautelar pode ser decretada em qualquer fase do processo, como forma de garantir o resultado, presentes os requisitos e fundamentos necessários a sua decretação, porém, não pode ser imposta como condição, para que o réu exerça um direito subjetivo, consistente no duplo grau de jurisdição, expressamente previsto na Constituição, até por que, é inerente ao sistema o recurso ser recebido no efeito suspensivo.236 De acordo com estudos de João Gualberto Garcez Ramos, outrora, logo após, e, principalmente anteriormente à Carta Constitucional de 1988, havia certa unanimidade em considerar legítima esta espécie de prisão, bem como aceitar o recebimento da apelação no efeito suspensivo, sem que se suspendessem os principais efeitos da sentença, e aponta como a mais coerente a solução proposta por Afrânio da Silva Jardim, que frisa que 233 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RHC 6.110. Sexta Turma. Relator: Min. Vicente Cernicchiaro. Diário da Justiça, 18 fev. 1997, apud GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processual penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 243-244. 234 “Não se esta discutindo sobre a eventual conveniência ou não da prisão preventiva do acusado, perfeitamente cabível nos estritos casos previstos na lei processual.” (extraído do voto do relator SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RHC 6.110. Sexta Turma. Relator: Min. Vicente Cernicchiaro. Diário da Justiça, 18 fev. 1997, apud GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processual penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 243-244) 235 GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processual penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 247. 236 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 53. 101 a) a prisão em decorrência de sentença penal condenatória recorrível não apresenta características essenciais às medidas cautelares; b) tal prisão, sendo efeito da sentença penal condenatória que aprecia o mérito da pretensão punitiva, tem a indisfarçável natureza de tutela satisfativa, ainda que submetida à condição resolutiva.237 Luiz Grandineti Castanho de Carvalho238 traça questionamento, sem contar com a flagrante quebra do princípio da presunção de inocência, considerando o direito de recorrer uma faculdade da parte, que, se ela apelar, não haverá a reformatio in pejus, que busca, exatamente, preservar a possibilidade do condenado recorrer sem qualquer tipo de fator inibitório. Sendo assim, a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível seria antinomia jurídica inaceitável, além de contrariar o princípio da fundamentação da prisão contida no inciso LXI, artigo 5 º da Constituição, já que esta espécie de prisão, de acordo com o artigo 594, não exige qualquer fundamentação, significando procedimento inconstitucional. Não há lugar, segundo o autor retro citado, para interpretações restritivas aos princípios constitucionais: Como dissemos, são respeitáveis os entendimentos contrários. Não se pode, contudo, reduzir o significado do princípio constitucional à sua origem histórica, pois isto seria coatar a evolução. Se todo princípio ficasse preso à sua origem, o devido processo legal, por exemplo, não poderia nunca ter a dimensão que a jurisprudência alemã e norte-americana lhe têm dado. Tampouco, é permitido restringir a disposição constitucional quando o constituinte não previu qualquer restrição. Como assinalou o professor Weber, a liberdade é um indivíduo natural e as normas que o restringem são excepcionais, devendo ser interpretadas restritivamente – as restrições, não o princípio constitucional.239 237 JARDIM, Afrânio da Silva. Visão sistemática da prisão provisória no Código de Processo Penal. In: Direito processual penal: estudos e pareceres. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 353-388, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 56. 238 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 72. 239 Ibid., p. 76-77. 102 A prisão decorrente de sentença condenatória somente poderia ser executada quando do trânsito em julgado da sentença, sob pena de violação do princípio da presunção de inocência. Não obstante, a respeito da previsão expressa na Carta Maior, firmando o princípio da presunção de inocência, a resposta da jurisprudência inclinou-se no sentido de que todas as formas de prisão provisória240 se coadunam com o texto constitucional, levando a doutrina a se ajustar à produção jurisprudencial, dando às prisões provisórias idéia de cautelaridade como forma de justificar a legitimidade delas. Luiz Roberto Cigogna Faggioni mantém firme a posição de que o §2º do artigo 408 e o artigo 594 do Código de Processo Penal não têm finalidade cautelar, esposando entendimento ainda no sentido de que a prisão decorrente de sentença penal condenatória recorrível não assume o caráter de execução provisória241. A título de conclusão, ele expõe que III) A prisão que seja decretada no momento da prolação da sentença condenatória ou na ocasião em que for proferida a decisão de pronúncia pode ou não ter finalidade e natureza cautelares. Mas, certo é que a determinação de prisão nesses momentos processuais não há de ser decorrência pura e simples da edição de tais atos decisórios, mas sim, tutela prestada à efetividade do processo à vista de necessidade cautelar, para cuja determinação não basta, como critério, a simples presença de maus antecedentes ou reincidência, pois que essas circunstâncias não são isoladamente elementos hábeis a tanto.242 240 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Sumula 9. “A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”. 241 FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 128, jan./mar. 2003, p. 145-148. 242 Ibid., p. 149. 103 De regra, a sentença mantém a prisão de quem estiver preso, e garante-se a quem estiver em liberdade, o direito de apelar em liberdade, visto que até esta fase processual, a legalidade da prisão já ter sido discutida, através dos vários institutos processuais, passiveis de se atacar a legalidade da prisão. 4.5 Prisão Temporária A prisão temporária tal como foi implantada no Brasil tem inspiração na legislação de diversos países. Serviram de base, Portugal, Inglaterra, França, Itália, Espanha, Argentina, Estados Unidos e Alemanha. Apesar de ter sido instituída há poucos anos (1989), teve a redação prevista como providência de natureza cautelar, na proposta de reforma do Código de Processo Penal constante do projeto de lei 1.655/83, com base no anteprojeto elaborado pelo professor José Frederico Marques em 1970, e arquivado em 1990. Segundo as explicações do Ministro da Justiça da época, Ibraim Abi-Akel, o objetivo era o de, justamente, evitar prisões preventivas desnecessárias, visto ser instrumento existente para efetuar a prisão não decorrente de situação de flagrância243. A lei 7.960, de 21 de dezembro de 1989, derivada da Medida Provisória n. 11, de 24 de novembro de 1989, instituiu a prisão temporária, também chamada prisão para investigação. É possível decretá-la quando há a necessidade da investigação policial, quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade, ou, ainda, quando houver razões fundadas de autoria em crimes, caso de homicídios simples ou qualificado desde que doloso, seqüestro e cárcere privado, roubo, 243 RIBEIRO, Diaulas Costa. Prisão temporária (Lei 7.960 de 21.12.89) um breve estudo sistemático e comparado. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 709, p. 272 -275, 1994. 104 extorsão ou extorsão mediante seqüestro, estupro, atentado violento ao pudor, rapto violento, epidemia com resultado de mortes, envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificada pela morte, quadrilha ou bando, genocídio, tráfico de drogas e crimes contra o sistema financeiro. O pedido de prisão temporária pode ser requerido pela autoridade policial ou pelo Ministério Público. Será decretado pelo prazo de cinco dias, ou nos casos definidos como crimes hediondos, de acordo com a lei 8.072, de 11 de setembro de 1990, por 30 (trinta) dias, sendo prorrogáveis por igual período, conforme o caso, desde que evidenciada a real e extrema necessidade. Decorrido o prazo da decretação, o preso será imediatamente posto em liberdade, independentemente de mandado ou alvará. O não cumprimento imediato da disposição representa crime de abuso da autoridade que deixou de colocar o preso em liberdade. A prisão temporária e a investigação de crimes graves, durante a fase de inquérito policial, são medidas que podem ser decretadas a qualquer tempo, ou, igualmente, por razões de necessidade ou de conveniência. De acordo com a exposição de motivos da lei 7.960, de 21 de dezembro de 1989, o clima de pânico que estabelece a certeza da impunidade que campeia célere na consciência do povo, formando novos criminosos, exige medidas firmes e decididas, entre as quais figura a prisão temporária. A doutrina inclina-se no sentido de considerar a prisão temporária como medida de natureza cautelar244. A posição pode ser observada na afirmação de Fernando da Costa Tourinho Filho, ao assegurar que 244 “Nas obras da doutrina do processo penal brasileiro, pesquisadas para o presente estudo, a maior parte das manifestações foi de natureza cautelar da prisão temporária”. RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 58. 105 ao lado da prisão em flagrante, da prisão preventiva, da prisão resultante de pronúncia e da prisão resultante de sentença penal condenatória recorrível, institui-se, após o advento da liberal Constituição de 1988, outra modalidade de prisão: a prisão temporária. Como se trata de prisão decretada antes da sentença penal condenatória, ela se inscreve na modalidade de ‘prisão cautelar’, mesmo sem o fumus bonis júris e até mesmo o periculum in mora.245 A natureza jurídica da prisão temporária é questionada por vários autores. Um deles é Luiz Roberto da Silva Passos, que afirma que a prisão temporária não apresenta, apenas, natureza cautelar, pois o que norteou o espírito do legislador foi o caráter inibitório satisfativo que tal encarceramento provoca.246 Maria Lúcia Karan247 manifesta posição no sentido de que a prisão temporária não apresenta as características fundamentais das medidas cautelares, necessárias às prisões processuais, porque em regra visa as investigações no inquérito policial, ausente assim um dos requisitos básicos das medidas cautelares a assessoriedade. Ao afirmar que, para o deferimento da prisão temporária se faz necessária a presença de, pelo menos, um dos requisitos da prisão preventiva, previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, Rui Cascaldi248, embora defendendo a inconstitucionalidade desta espécie de prisão, atribui natureza cautelar à prisão temporária. A despeito de outros posicionamentos, João Gualberto Garcez Ramos mostra firmeza ao afirmar que a natureza jurídica da prisão temporária é eminentemente cautelar. Justifica a assertiva de forma incisiva: 245 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 390. 246 PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 42-43. 247 KARAM, Maria Lúcia. Prisão e liberdade processuais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 1, n. 2, p. 89, abr./jun. 1993. 248 CASCALDI, Rui. Prisão temporária: inconstitucionalidade. Revista dos Tribunais, a. 80, n. 667, p. 259-261, maio 1991. 106 Essa conclusão é autorizada por um silogismo do tipo aristotélico. Sua premissa maior: o inquérito policial é uma medida cautelar complexa. Sua premissa menor: a prisão temporária é uma medida destinada exclusivamente a garantir a otimização do inquérito policial. Conclusão: a prisão temporária é uma medida cautelar. A premissa maior será desenvolvida adiante. Por ora, basta afirmar que as investigações em sede de inquérito policial são preventivas, isto é, somente se justificam à medida que acautelam diversas situações, desde a prova em si, até a versão que a corporifica. Conforme escreve Walter Fanganiello Maierovitch, a prisão provisória assegura, imediatamente, o bom êxito da persecução. Imediatamente, constitui instrumento que garantirá o provimento jurisdicional a ser lançado no rol de conhecimento. A prisão temporária, que exclusivamente serve ao inquérito policial é, como ele, medida cautelar. Somente se justifica porque as investigações precisam se realizar antes do desvanecimento dos elementos de convicção, sob pena de sua completa inutilidade. Se imprescindível ou útil às investigações, a prisão temporária tem natureza cautelar, porque urgente – e, portanto, sumária, formal e materialmente – baseada na aparência. Além disso, é temporária e incapaz de gerar a coisa julgada material. É, por fim, referível à pretensão do direito material que arrima o processo penal condenatório.249 A idéia construída por João Gualberto Garcez Ramos é mais completa e estruturada, uma vez que considera todas as características do procedimento cautelar. Maria Lúcia Karam considera, basicamente, a vinculação ao resultado do processo principal. Além do vício de origem, e, como principal argumento de justificar a inconstitucionalidade da prisão temporária, é apontada a violação ao princípio de presunção de inocência. Vários são os doutrinadores que defendem, inclusive de forma veemente, a inconstitucionalidade da prisão temporária. De igual forma, vários também são os motivos alegados para justificar a afronta à Carta Constitucional. Rui Cascaldi250 defende a idéia que enfoca a inconstitucionalidade da prisão 249 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 202-203. 250 CASCALDI, Rui. Prisão temporária: inconstitucionalidade. Revista dos Tribunais, a. 80, n. 667, p. 259260, maio 1991. 107 temporária sob três aspectos. Primeiro, por violar o inciso LXI do artigo 5º da Constituição; segundo, por apresentar outro prisma com fundamento na violação do princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF), e, por fim, por não garantir ao cidadão a previsão expressa no inciso LXVI do artigo 5º da Constituição Federal. No primeiro caso, considerando o inciso I, artigo 1º da lei 7.960, de 21 de dezembro de 1989, que prevê que a prisão preventiva pode ser decretada quando for imprescindível para as investigações do inquérito policial, entende que foi atribuída à autoridade policial a possibilidade de concluir pela imprescindibilidade da prisão temporária, ferindo, assim, o princípio da fundamentação que decreta a prisão: Como deverá um juiz se portar diante de um requerimento de delegado que diz necessária a prisão por ser ela imprescindível às investigações (inc. I)? Deferir a prisão com base exclusivamente nessa afirmação seria delegar à autoridade policial a análise desses elementos de prova que levaram concluir pela imprescindibilidade da prisão em face das investigações do inquérito, o que feriria o §2º, do art. 1º, comentando que impõe ao juiz fundamentar o seu decreto de prisão, o mesmo ocorrendo com a Constituição Federal, que, igualmente, impõe ao juiz o mesmo dever (art. 5º, LXI). Feriria, portanto, a Constituição o juiz que decretasse a prisão temporária sem ter examinado a causa da ‘imprescindibilidade’ a que se refere o mencionado inc. I.251 Maria Lúcia Karam aponta, inicialmente, o vício de origem que, por si só, basta para justificar a inconstitucionalidade da medida. Tal instituto já veio contaminado por um vício original, pois criado através 251 CASCALDI, Rui. Prisão temporária: inconstitucionalidade. Revista dos Tribunais, a. 80, n. 667, p. 260, maio 1991. 108 de medida provisória baixada pelo Presidente da República, que se converteu na Lei 7.960/89, de manifesta inconstitucionalidade. Tratando-se de instrumento de coerção pessoal a atingir o direito de liberdade, não poderia a prisão temporária ser objeto de medida provisória, mas tão somente de lei em sentido estrito (ou seja, ato normativo procedente do Poder Legislativo e elaborado segundo a forma e o processo constitucionalmente estabelecidos): tem-se aqui decorrência básica do princípio da legalidade, que naturalmente, limita o poder do Estado, não só em matéria penal substantiva, mas também no que diz respeito ao direito processual penal, notadamente neste, com a da liberdade.252 Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior igualmente aponta o vício decorrente da conversão de medida provisória em lei. A prisão temporária não está prevista no Código de Processo Penal. Foi introduzida pela Lei 7.960/89, originária de medida provisória. Por isto, desde logo é de se ressaltar que aquele diploma tem sido apontado inconstitucional por invasão da reserva feita pela Constituição da República quanto à edição de mecanismos de coerção pessoal. Só através de lei em sentido estrito, não de medida provisória, poderia a matéria ser disciplinada. E a lei de conversão não apaga o vício de origem.253 Sob outra ótica, a decretação da prisão temporária, com fundamento no inciso III do artigo 1º da lei em questão, decorreria de presunção absoluta de periculosidade, totalmente contrária ao princípio da presunção de inocência: 252 KARAM, Maria Lúcia. Prisão e liberdade processuais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 1, n. 2, p. 89, abr./jun. 1993, p. 88. 253 CINTRA JUNIOR, Dirceu Aguiar Dias. Prisões cautelares: uso e abuso. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 703, p. 267, maio 1994. 109 Entendendo que a presunção absoluta de periculosidade pelo fato de se responder a certos crimes fere o art. 5º, LVII, da CF, pois equipara a situação do processado à do condenado em definitivo, para efeito de presumi-los culpados e vai além, pois o culpado pode não ser perigoso, estando-se, então, a presumir a periculosidade sem peias.254 Aponta também a inconstitucionalidade da prisão temporária nos casos passíveis de liberdade provisória: Mas tudo que se disse até aqui é nada perto da inconstitucionalidade que tisna a lei em estudo face ao art. 5º., LXVI da CF, in verbis: ‘Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança’. Portanto, em sendo caso de liberdade provisória não cabe qualquer forma de prisão. Mas, o que vem a ser a liberdade provisória? A resposta nos é dada pelo parágrafo único do art. 310 do CPP. A resposta consiste em afirmar que a liberdade provisória é o reverso da medalha da prisão preventiva. Em outras palavras, segundo o Código de Processo Penal, o juiz deve conceder liberdade provisória quando não ocorrem as hipóteses que autorizam a prisão preventiva. Logo, as hipóteses autorizadas de prisão preventiva, em face do que veio dispor a Constituição no inc. LXVI do art.5º, passaram a constituir a garantia mínima do cidadão em matéria de liberdade: só perderá este se presentes pelo menos as hipóteses da prisão preventiva e não outras com menos requisitos de deferimento.255 Assim, sempre que cabível a liberdade provisória, não há, de acordo com a abordagem apresentada, como se decretar a prisão temporária, face à inconstitucionalidade da medida. Dyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior também vê inconstitucionalidade pela impossibilidade da fundamentação do decreto da prisão temporária: 254 CASCALDI, Rui. Prisão temporária: inconstitucionalidade. Revista dos Tribunais, a. 80, n. 667, p. 261, maio 1991. 255 Id. 110 [...] Agora, aumentando a gravidade atentatória do Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário as tem deferido, de regra, com base exclusiva na afirmação de imprescindibilidade feita pela autoridade policial. Com efeito, a inconstitucionalidade de tais decretações advém de uma simples realidade. A Constituição da República garante que o Judiciário aprecie qualquer lesão ou ameaça de direito (art. 5º, XXXV), devendo o juiz decidir, outrossim, fundamentadamente (art. 5º. LXI e 92, IX). E tal fundamentação, um dos limites da legalidade do constrangimento, não é possível, nos casos para os quais tem sido utilizado aquele instituto.256 Defendendo não somente a necessidade da prisão temporária, como também a sua constitucionalidade, além de defini-la como especialização das providências cautelares previstas no Processo Penal, Walter Fanganiello Maierovitch defende o instituto: Na realidade, a Lei 7.960/89 não afronta a Constituição da República. Ao contrário, apoiou-se nela. Encontrou permissivo no artigo LXI, que admitiu a prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. [...] Apesar da insistência de alguns, a Constituição da República não acolheu o princípio da presunção de inocência, nascido com a Revolução Francesa e expresso, em 1791, na Declaração dos Direitos do Cidadão. A nossa Constituição da República, seguindo o modelo da italiana em 1948, consagrou a presunção de não culpabilidade [...].257 Respondendo questionamento feito pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro concilia o princípio da presunção de inocência com a possibilidade da decretação da prisão temporária, prevista na lei 7.960, de 21 256 CINTRA JUNIOR, Dirceu Aguiar Dias. Prisões cautelares: uso e abuso. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 703, p. 268, maio 1994, p. 268. 257 MAIEROVITCH, Walter Fangianello. Prisão temporária. Revista dos Tribunais, a. 81, n. 680, p. 325, jul. 1992. 111 de dezembro de 1989: Em face da Constituição há de se fazer uma conciliação entre o princípio da presunção de inocência, que significa que ninguém pode sofrer restrição no exercício do direito de liberdade antes de sentença penal condenatória transitado em julgado, e o interesse público. Há de se conciliar porque a sociedade não pode ficar a mercê de determinadas condutas que afrontem valores, princípios que ela mesma está procurando defender. Nesse meio termo é que me parece ser necessário haver fundamentação da sua necessidade. Não há necessidade de se encerrar o inquérito policial para a decretação dessa prisão. Há a necessidade de se considerar o direito à liberdade para esse fim como regra geral. Só porque o delegado deseja ouvir alguém no inquérito policial, contrariaria a Constituição, trazê-lo preso à Delegacia. Há a necessidade de ser o único meio de colher o depoimento que se faz necessário.258 Apesar de ser criticada quanto à legalidade e à constitucionalidade, certo é que a prisão temporária continua sendo usada, em alguns casos, como instrumento processual, sendo, também empregada com caráter nitidamente intimidatório e satisfativo. 258 CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Entrevista. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 3, n. 12, p. 9, out./dez. 1995. 112 5 A PRISÃO PREVENTIVA 5.1 Conceituação A prisão preventiva, medida cautelar de constrição de liberdade, no curso do processo penal, pode ser analisada sob duas óticas, a prisão preventiva no sentido restrito ou stricto sensu e no sentido lato ou latu sensu, sendo a diferenciação estabelecida por Magalhães Noronha: A expressão prisão ou custódia preventiva oferece duas acepções: uma lata e outra restrita. No primeiro sentido é que se verifica antes do julgamento irrecorrível. É qualquer detenção ou custódia sofrida pelo imputado, antes ou depois da pronúncia e em qualquer estado da causa, antes de julgada definitivamente. Nessa acepção, como escreve COSTA MANSO, ela abrange: a) a prisão em flagrante delito; b) a que resulta da pronúncia; c) a decretada pelo juiz formador da culpa, antes da pronúncia e fora do flagrante delito. A esta última espécie, entretanto, é que comumente se aplica a designação, é a ela que se refere o artigo. Em sentido restrito e tendo-se em vista nosso Código, ela é a privação da liberdade decretada pelo juiz no inquérito ou na instrução.259 259 NORONHA, E. Magalhães. Curso de processo penal. 25. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 220. 113 Tourinho Filho estabelece outra diferenciação Prisão preventiva é espécie do gênero ‘prisão cautelar de natureza processual’ A rigor, toda a prisão que anteceda a uma condenação definitiva é preventiva. A própria prisão em flagrante é uma prisão preventiva lato sensu. Entretanto, quando se faz uma referência a essa modalidade de prisão cautelar, tem-se em vista aquela medida restritiva de liberdade determinada pelo Juiz, em qualquer fase da instrução criminal, seja como medida de segurança de natureza processual (como dizia Faustin Hélie, Traité, t. 4. p. 606), seja para garantir eventual execução da pena, seja para preservar a ordem pública, seja por conveniência da instrução criminal.260 A prisão preventiva, do sentido restrito ou stricto sensu, prevista nos artigo 311 a 316 do Código de Processo Penal, interessa ao objetivo desta pesquisa. Observamos, que como todo o Direito, igualmente a definição da prisão preventiva é dinâmica, Walter P. Acosta, citando Espínola Filho, destaca que nos idos de 1950, a prisão preventiva era definida como [...] medida de força, que o interesse social reclama da liberdade individual, com a tríplice finalidade de permitir que o indiciado se mantenha acessível à justiça no distrito da culpa, de impedir que ele, por manobras, estorve a regular produção das provas e de obstar ao prosseguimento de sua atividade delituosa.261 Tourinho Filho, complementando definição de Arturo Zavaleta, conceitua a 260 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 461. 261 ACOSTA. Walter P. O processo penal: teoria – prática – jurisprudências – organogramas. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1989, p. 81. 114 prisão preventiva, frisando que Em excelente monografia, Arturo Zavaleta define-a como uma medida precautória de índole pessoal, criando para o indivíduo sobre qual recai um estado mais ou menos permanente de privação de liberdade, suportada em estabelecimento adequado, e que é decretada pelo Juiz competente no curso de uma causa, contra o imputado, com o único objetivo de assegurar sua presença em juízo e garantir a eventual execução da pena (cf. La Prisión, cit.., p. 74). Podemos acrescentar outros objetivos: a garantia da ordem pública e a preservação da instrução criminal.262 João Gualberto Garcez Ramos apresenta definição de João Mendes de Almeida Júnior, para quem A prisão preventiva é uma cautelar que consiste na detenção do indiciado, antes do julgamento e logo que se manifesta contra ele a suspeita da criminalidade; e, como a pronúncia, supondo uma opinião, isto é, um juízo ou assentamento do intelecto, já é considerada uma sentença, se tem entendido que a prisão preventiva é juridicamente fundada depois da pronúncia e pode ser uma necessidade administrativa. A prisão preventiva é qualquer detenção ou custódia sofrida pelo imputado, antes ou depois da pronúncia e em qualquer estado da causa, antes de julgada definitivamente.263 Conceito interessante é defendido por Sergio Marcos de Moraes Pitombo ao afirmar que 262 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 463. 263 ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro. Rio de Janeiro: Laemmert, 1901, v. 1, p. 338-339, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 129. 115 o cárcere preventivo, em sentido estrito, surge como medida excepcional: decretável, tão-só nos crimes dolosos, punidos com reclusão e severamente; limitado às causas legais, que assim permitem, tão só interpretação restrita; e tangido pela indispensabilidade, com vistas ao processo de conhecimento, de natureza condenatória, a que serve de instrumento e, sempre, proporcional ao fato perquirido.264 Baseando-se na exposição de motivos do decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941, que instituiu o Código de Processo Penal, é possível definir, em linhas gerais, do seguinte modo, a prisão preventiva: A prisão, por sua vez, desprende-se dos limites estreitos até agora traçados à sua admissibilidade. Pressuposta a existência de suficientes indícios para a imputação da autoria do crime, a prisão preventiva poderá ser decretada toda vez que o reclame o interesse da ordem pública, ou da instrução criminal, ou da efetiva aplicação da lei penal.265 Não se encontra na doutrina, conceito completo que contemple todas as características, fundamentos e pressupostos da prisão preventiva. Para João Gualberto Garcez Ramos existem quatro espécies de prisão preventiva266, e agora recentemente, com o advento da Lei Maria da Penha, nova modalidade de prisão preventiva foi criada, dificultando, assim, uma definição única. 264 PITOMBO, Sergio Marques de Mores. Prisão preventiva, em sentido estrito. In: PENTEADO, Jaques de Camargo (Coord.). Justiça penal, 7: críticas e sugestões: justiça criminal moderna: proteção à vítima e à testemunha, comissões parlamentares de inquéritos, crimes de informática, trabalho infantil, tv e crime. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 130. 265 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Código de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 266 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 129. 116 5.2 Aspectos Históricos da Prisão Preventiva A prisão apresenta-se, inicialmente, com nítidas características de prisão processual, sendo a sua evolução explicada por Aníbal Bruno, na citação de João Gualberto Garcez Ramos: A prisão antiga era somente meio de contenção do réu, para mantê-lo seguro durante o processo ou guardá-lo até a execução da pena que lhe fora aplicada. Foi assim em Roma e comumente por toda a Idade Média e período intermediário, quando as penas em uso eram, em geral, a de morte e as corporais infamantes. Mas, pouco a pouco, o encarceramento foi tomando o caráter de pena, ou porque os presos fossem sendo deixados indefinidamente nas prisões, ou porque realmente se viessem estabelecendo aqui e ali penas detentivas como aconteceu com o Edito de Luiprando, rei dos Lombardos, em 702, que prescrevia a prisão de dois a três anos por furto, ou em determinação de Carlos Magno, com penas de prisão por tempo indeterminado, ou no antigo Direito Penal de Nueremberg, onde se prescrevia o encarceramento, como punição, para vários crimes. [...]. Nessa mutação da prisão em pena autônoma a grande influência foi da Igreja, que, procurando realizar o propósito da regeneração moral do criminoso pela penitência e o arrependimento, criou, desde a mais alta Idade Média, a prisão canônica, de regime geralmente celular, maneira do sistema monástico, mas outras vezes, em comum.267 Michel Foucault ao criticar o sistema carcerário, também define o início da prisão como cumprimento de pena: Ora, eis o problema: depois de bem pouco tempo, a detenção se tornou a forma essencial de castigo. No Código Penal de 1810, entre a morte e as multas, ela ocupa, sob um certo número de formas, quase todo o campo das punições possíveis.268 267 BRUNO, Aníbal. Direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 61-62, apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 128. 268 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 95. 117 Luigi Ferrajoli269, faz uma analise histórica da prisão preventiva, destacando que a mesma chegou a ser completamente proibida em Roma, e, voltou com força total na Idade Média com o desenvolvimento do processo inquisitório, já que o corpo do acusado era o principal objeto de prova a ser produzido no processo, sendo novamente estigmatizada com o iluminismo. No Brasil, ao tempo da descoberta, estavam em vigor em Portugal, as Ordenações Afonsinas. A legislação, contudo, não chegou a ser aplicada ou a ter influência no Brasil, já que na época das capitanias, a lei era ditada pelo donatário, a quem, através da carta de adoção era entregue, inclusive, o exercício da justiça. Mais tarde, no tempo dos governadores gerais, a administração da justiça tornou-se um pouco mais efetiva à aplicação da legislação do reino, obedecendo às Ordenações Filipinas, que admitiam a aplicação da prisão preventiva270, sendo permitido ao magistrado a decretação desta forma de prisão nos casos mais graves, e, se fosse necessário, para a segurança da instrução criminal ou da execução da pena Não há, todavia, nenhuma menção da prisão preventiva ser utilizada para garantir a ordem pública. A primeira legislação eminentemente brasileira em matéria penal surgiu em decorrência do comando do artigo 179, §18 da Constituição do Império, que estabeleceu a elaboração de código criminal fundado nas bases de justiça e eqüidade sob a influência dos ideais da Revolução Francesa. Trata-se do Código Criminal do Império, sancionado em 1830271. Ele admitia a existência da prisão com natureza preventiva, fato exposto no artigo 37, sob o texto: Não se considera pena a prisão do indiciado de culpa para prevenir a fugida [...]272. 269 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 509. 270 PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980, p. 7. 271 Ibid., p. 8. 272 PIERANGELLI, op. cit., p. 171. 118 Antes mesmo do Código Criminal do Império ser sancionado, já havia regulamentação da prisão sem culpa formada: Muito antes do Código de Processo Criminal de Primeira Instância, do Império do Brasil – lei de 29 de novembro de 1832 -, Decreto da Assembléia Geral, mandado observar mediante Carta de Lei, do Imperador, de 30 de agosto de 1928, assentava que tão-só podiam prender-se, sem culpa formada, os que se achassem em flagrante delito (art. 1º, §1º); mais os indiciados em crimes, ‘em que a lei impuser pena de morte natural, prisão perpétua, ou galés, por toda a vida ou temporariamente’ (art. 1º, §2º) Em tal último caso, a lei exigia ‘ordem por escrito do juiz competente’, da qual se deveria dar ciência aos destinatários no ato da prisão.273 A Constituição do Império274 previa no artigo 179, §8º, 9º e 10º, os casos em que a restrição da liberdade individual era possível. Era, no entanto, medida de arbítrio do juiz, podendo ser executada somente por ordem escrita da autoridade legítima. O Código de Processo Criminal do Império – lei de 29 de novembro de 1832 - foi a primeira legislação brasileira de matéria processual penal, seguindo as linhas traçadas na Carta Constitucional. Disciplinou a possibilidade da decretação da prisão preventiva: Art. 175. Poderão também ser presos sem culpa formada os que forem indiciados em crimes, em que não tem lugar a fiança; porém nestes e em todos os demais casos, à exceção dos de flagrante delito, a prisão não pode ser executada, senão por ordem escrita da autoridade legítima275 273 PITOMBO, Sergio Marques de Mores. Prisão preventiva, em sentido estrito. In: PENTEADO, Jaques de Camargo (Coord.). Justiça penal, 7: críticas e sugestões: justiça criminal moderna: proteção à vítima e à testemunha, comissões parlamentares de inquéritos, crimes de informática, trabalho infantil, tv e crime. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 125. 274 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 464. 275 BRASIL. Código de Processo Criminal (1832). Código de Processo Criminal do Império. In: PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980. 119 Depreende-se que era necessária, em qualquer caso, à exceção da prisão em flagrante, a fundamentação. A lei 2.033 de 20 de setembro de 1871 introduziu importantes alterações na decretação da prisão: O art. 13, §2º, estatui: À exceção de flagrante delito, a prisão antes de culpa formada, só pode ter lugar nos crimes inafiançáveis, por mandado escrito do juiz competente para a formação da culpa ou para a sua requisição; neste caso, precederá ao mandado ou à sua requisição, declaração de duas testemunhas que jurem de ciência própria, ou prova documental, de que resultem veementes indícios contra o acusado ou declaração deste confessando o crime. §3º. A falta, porém, do mandado da autoridade formadora da culpa, na ocasião, não inibirá a autoridade policial ou o juiz de paz de ordenar a prisão do indiciado em crime inafiançável, quando encontrado, se para isso houver requisição da autoridade competente, ou se for notória a expedição de ordem regular para a captura; devendo, porém, imediatamente ser levado preso à presença da competente autoridade judiciária para dele dispor. §4º. Não terá lugar a prisão preventiva do culpado se houver decorrido um ano depois da data do crime.276 A Constituição da República conferiu competência aos Estados Membros para legislar sobre matéria processual penal, com destaque para a legislação processual do Estado do Rio Grande do Sul, que instituiu a prisão preventiva obrigatória nos seguintes casos: a) no caso de homicídio ou lesão gravíssima, salvo se estes fatos são justificáveis ou cometidos casualmente; b) nos atentados à propriedade, quando as pendas excedem a quatro anos de prisão celular; c) se o indiciado, durante a formação da culpa, pratica novo delito, ameaça a parte 276 PITOMBO, Sergio Marques de Mores. Prisão preventiva, em sentido estrito. In: PENTEADO, Jaques de Camargo (Coord.). Justiça penal, 7: críticas e sugestões: justiça criminal moderna: proteção à vítima e à testemunha, comissões parlamentares de inquéritos, crimes de informática, trabalho infantil, tv e crime. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 126. 120 ofendida ou tenta corromper ou intimidar testemunha.277 A medida prevista na legislação gaúcha foi abolida logo por força da declaração de inconstitucionalidade pelo pretório excelso, visto que sua disposição era totalmente contrária ao espírito da Carta Constitucional em vigor278, que previa, no artigo 72, §14, que ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, salvo as exceções especificadas em lei, nem levado à prisão ou nella detido, si prestar fiança idônea, nos casos em que a lei admitir279. O decreto 847, de 11 de outubro de 1890, que institui o Código Penal dos Estados Unidos do Brazil, igualmente prevê a existência da prisão preventiva no artigo 60, inovando ao considerar, para o cômputo da pena, o período cumprido na forma de prisão preventiva, Art. 60. Não se considera pena a suspensão administrativa, nem a prisão preventiva dos indiciados, a qual, todavia, será computada na pena legal280. A Consolidação das Leis Penais, aprovada e adotada pelo decreto nº 22.213, de 14 de dezembro de 1932, não apresenta novidades, mantendo a redação anterior do mesmo artigo 60. De semelhante modo, o Código Penal de 1940, não apresenta novidades, prevendo, apenas, a contagem de tempo cumprido preventivamente no artigo 34. A lei 5.349, de 03 de novembro de 1967, modificou a redação que estabeleceu a prisão preventiva obrigatória. Atualmente, em todos os casos, é facultativa, de acordo com o texto do artigo 312, do Código de Processo Penal. 277 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 465. 278 Ibid., p. 419. 279 BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Globo, 1985. 280 BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brazil. Apud PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980. 121 Atualmente, a prisão preventiva está regulamentada no artigo 312 do Código de Processo Penal. O código vigora desde 1941, sendo que no texto original havia a previsão expressa da prisão preventiva compulsória para os crimes cominados com pena de reclusão igual ou maior de 10 anos, e facultativa nos casos de crimes inafiançáveis, aos vadios ou pessoas sem identificação ou que dificultem a mesma, bem como para os reincidentes em crimes dolosos, para a garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da pena, e em recente inovação da 11.340/2006 – Lei Maria da Penha, para assegurar a execução de medidas protetivas de urgência, nos casos de violência doméstica contra a mulher, presentes a prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, sendo necessária, entretanto, a fundamentação do decreto segregatório. 5.3 Natureza Jurídica da Prisão Preventiva Em termos de natureza jurídica, diante da redação do atual Código de Processo Penal, a prisão preventiva stricto sensu conta, praticamente, com a unanimidade doutrinária ao considerar a medida como eminentemente cautelar. João Gualberto Garcez Ramos afirma destacando que A doutrina no processo penal posterior ao advento da Lei 5.349, de três de novembro de 1967, que, entre outras providências, deu nova redação ao artigo 312 do Código de Processo Penal, para eliminar a chamada prisão preventiva obrigatória, é, majoritariamente, do entendimento de que a prisão preventiva facultativa, também denominada de prisão preventiva 122 stricto sensu, seja qual for sua motivação, é, sempre cautelar.281 No texto original do Código de Processo Penal, anterior à lei nº 5.349, de 3 de novembro de 1967, havia a figura da prisão preventiva obrigatória, nos crimes aos quais foi cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez anos282. Sendo a prisão preventiva obrigatória ou compulsória para os crimes com pena de reclusão igual ou superior a 10 anos, poderia ocorrer a decretação da prisão preventiva sem que estivessem presentes os pressupostos gerais da tutela cautelar, conforme explica João Gualberto Garcez Ramos: [...] por causa da existência, no ordenamento jurídico de então, da prisão preventiva obrigatória que prescindia dos pressupostos da tutela cautelar para ser decretada283. Mesmo que o termo cautelar não fosse consagrado pelo uso284, João Gualberto Garcez Ramos destaca que, anteriormente ao advento da lei 5.349, de 3 de novembro de 1967, José Frederico Marques, (sendo exceção entre os pares), identificava a natureza cautelar da prisão preventiva conceituando-a como a mais genuína das formas de prisão cautelar285. Dois são os pressupostos e quatro, são os requisitos ensejadores do decreto segregatório preventivo. Os pressupostos são a prova da existência do crime e o indício suficiente de autoria. Os requisitos são a decretação da prisão preventiva para garantir a ordem pública, a ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para a 281 BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brazil. Apud PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980, p. 43. 282 Texto original do Código de Processo Penal apud MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 63. 283 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 44. 284 Ibid., p. 43. 285 MARQUES, Jose Frederico. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1965, v. 4, p. 43. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 44. 123 aplicação da lei penal e com o advento da Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006 – foi introduzido ao Código de Processo Penal, dispositivo que possibilita a decretação de prisão preventiva para aplicação de medidas protetivas de urgência.. Estes aspectos serão estudados de forma mais acentuada. Para a decretação da prisão preventiva devem ocorrer os dois pressupostos e, pelo menos, uma das hipóteses que lhes dão fundamento. 5.4 Pressuposto Necessários à Decretação da Prisão Preventiva Apresentam-se como pressupostos comuns a todos os casos de decretação de prisão preventiva, a prova de existência do crime e indícios suficientes de autoria. A eles, Hélio Tornagui286 acrescenta o despacho por escrito e a fundamentação. 5.4.1 Prova da existência do crime A prova da existência do crime é visível quando está demonstrada a prática de fato típico na sua integralidade287. É pressuposto fundamental à decretação da prisão preventiva, devendo a expressão prova da existência do crime ser interpretada como a existência de fato criminoso em sua materialidade. Hélio Tornagui esclarece que 286 287 TORNAGUI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 90. MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 60. 124 Ao contrário do que acontece com a queixa é com a denúncia, para cuja aceitação basta que o fato seja típico, seja um crime em tese, podendo não ser crime na hipótese (p. ex. por ter sido praticado em legítima defesa), na prisão preventiva é necessário que esteja provada a existência do fato que seja um crime em tese (típico, pois ninguém pode ser preso preventivamente por fato não definido na lei penal como crime) e que seja crime também na hipótese (pois se houver prova de ter sido praticado em qualquer das circunstâncias que excluem a ilicitude: CP, art. 23 – o juiz não deve decretar a prisão: CPP art. 314).288 Qualquer que seja o fundamento, à existência de fato criminoso se faz necessária a materialidade do crime que demonstre a existência do fato criminoso, conforme demonstra Guilherme de Souza Nucci: Prova da existência do crime é a materialidade, isto é, a certeza de que ocorreu uma infração penal, não se determinando o recolhimento cautelar de uma pessoa, presumidamente inocente, quando se há séria dúvida quanto à própria existência do evento típico. Essa prova, no entanto, não precisa ser feita, mormente na fase probatória, de modo definitivo e fundada em laudos periciais. Admite-se que haja a certeza da morte de alguém (no caso de homicídio, por exemplo), porque as testemunhas ouvidas no inquérito assim afirmaram, bem como houve a juntada de certidão de óbito nos autos. O laudo necroscópico, posteriormente, pode ser apresentado.289 Apesar de que nesta fase não haja a necessidade de prova mais contundente quanto aos pormenores do crime, é imperiosa a convicção mais aprofundada certa e determinada290 quanto à existência do crime. 288 TORNAGUI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 90. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 585-586. 290 FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 128, jan./mar. 2003, p. 135. 289 125 5.4.2 Indício suficiente da autoria Há indícios suficientes de autoria quando o réu é o provável autor do crime291. O segundo pressuposto para a decretação da prisão preventiva é o indicio suficiente de autoria, posto que, sem a existência do crime não há como se iniciar qualquer procedimento processual penal. Para melhor situar a pesquisa, primeiramente é preciso conceituar o meio de prova representada pelo indício, que é definido no artigo 239, do Código de Processo Penal: considerara-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias292. Segundo o entendimento de Walter P. Acosta, indício [...] é a circunstancia ou antecedente que autoriza a fundar uma opinião acerca da existência de um determinado fato [...]. Na técnica da prova indiciária desenvolve-se, pois, um silogismo, em que a premissa menor é um fato, ou circunstância provada, que é a circunstância indiciante, e a premissa maior, que se ajusta à outra, é simplesmente problemática ou abstrata, calcada nos ensinamentos do senso comum.293 A importância da conceituação ocorre quando se observa que “os indícios têm vários graus de valor”. Na ótica de Nelson Hungria, ao tratar da prisão preventiva, “os 291 MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 60. BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Código de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 293 ACOSTA, Walter P. O processo penal: teoria – pratica – jurisprudências – organogramas. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1989, p. 255. 292 126 indícios podem ser concludentes e inequívocos” ou, simplesmente, podem “acarretar fundada suspeita”294. A doutrina é pacífica no sentido de não ser necessária a certeza absoluta da autoria. Fernando Capez se manifesta afirmando que note-se que, nesta fase, não se exige a prova plena, bastando meros indícios, isto é, que se demonstre a probabilidade do réu ou indiciado ter sido o autor do fato delituoso. A dúvida, portanto, milita em favor da sociedade, e não do réu (princípio in dúbio pro societa). Nesse sentido, não se pode exigir para a prisão preventiva a mesma certeza que se exige para a condenação. O in dúbio pro reo vale ao ter o juiz que absolver ou condenar o réu. Não, porém, ao decidir se decreta ou não a custódia provisória (RT, 554/386).295 Hélio Tornagui esclarece a forma pela qual a expressão é usada no artigo 312, do Código de Processo Penal: A palavra indício está empregada no art. 312, como em vários outros, no sentido de provas leves, provas fracas. Enquanto relativamente à existência do crime, o Código exige prova (querendo significar prova cabal). No que se refere à autoria, ele se contenta com indícios, isto é, meros sinais. Se houver maiores provas, tanto melhor; mas a lei não as requer.296 Francesco Carnelutti, em comentário ao Código de Processo Penal Italiano, demonstra a preocupação com a graduação do indício, visto que a maior graduação da culpa pode ensejar mandado de captura, que é avaliado pelo indício de culpabilidade: 294 ACOSTA, Walter P. O processo penal: teoria – pratica – jurisprudências – organogramas. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1989, p. 256. 295 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 243. 296 TORNAGUI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 91. 127 O mesmo aspecto do problema emerge do art. 252 do Código de Processo Penal, onde, sob rubrica de condições gerais para a expedição do mandado de captura, se diz que ‘para poder expedir um mandado de captura é necessário que existam indícios suficientes da culpabilidade contra aquele contra quem a providência foi adotada’; o problema que emerge, dizíamos, dessa disposição, mas emerge, também da infelicidade, para não dizer inexistência, de sua solução. Desde um ponto de vista inteiramente lógico, exatamente, a proposição agora referida não diz nada; certamente, para emitir um mandado de captura são necessários indícios suficientes, mas suficientes para quê? Para emitir um mandado de captura? A proposição, abandonada a si própria, resolve-se numa tautologia. Por outro lado, sem indícios suficientes, nem sequer uma imputação se poderia formular; qual é, pois, o valor das provas de culpa exigidas para que a captura possa ser decretada? Será aquele mesmo que é necessário afim de que possa haver a imputação?297 O Jurista Italiano equaciona o problema da seguinte forma: Agora, o problema está resolvido. É claro, com efeito, que, sem um juízo de possibilidade basta para a imputação. Não pode bastar para a captura, com a qual o peso do processo se agrava sobre as costas do imputado: nem todo o imputado, pois nos casos previstos pelos arts. 253 e 254, deve ou pode ser capturado, mas somente aquele sobre quem, mais que um juízo de possibilidade, pode-se formular um juízo de probabilidade de que tenha cometido o delito. Assim, a fórmula do art. 252 se resolve logicamente nesta outra: não se pode submeter o imputado à captura se não aparece como provável a sua culpa. De lege data esta é, no meu entender, a solução da questão, à qual proporciona, se fosse necessário, um argumento ulterior a exegese do artigo 269, quando prevê que, não obstante a desaparição dos ‘indícios suficientes’ da culpa, subsistem, porém, ‘motivos de suspeita’ contra o imputado; daí resulta claramente que a suficiência dos indícios, segundo o art. 252, deve-se entender em relação a um juízo de probabilidade da culpa. De lege ferenda acrescerá a essa formula um advérbio: se não é seriamente provável que o imputado tenha cometido o delito, a fim de chamar atenção dos juízes para a gravidade da captura e estimular-lhe a cautela.298 Não se pode exigir em sede de juízo de cognição sumária, geralmente 297 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Trad. Francisco Jose Galvão Bueno. Campinas: Bookseller, 2004, p. 179. 298 Ibid., p. 181. 128 tomado por informações constantes na fase indiciária, grau de certeza do juízo decisório do processo penal após a instrução normalmente concluída, com as garantias processuais do contraditório e da ampla defesa sacramentadas na Constituição. Há a necessidade da presença de indícios que levem à probabilidade de que o imputado seja o autor do fato criminoso. 5.4.3 Necessidade de ordem escrita e fundamentação do decreto de prisão preventiva Helio Tornagui salienta que, além dos pressupostos consistentes na prova da existência do crime e dos indícios suficientes de autoria, comuns a todos os casos de prisão preventiva, outros dois podem ser acrescentados: Além deles, a lei acrescenta outros dois, meramente formais, destinados a garantir o réu contra abusos do juiz. São eles: - o despacho (art. 315) e - fundamentação (art. 315).299 O despacho escrito garante a formalização do decreto, já que não se concebe a idéia da decretação da prisão preventiva de outra forma, caso, por exemplo, verbalmente. O mesmo acontece por qualquer outra forma de comunicação. A fundamentação do decreto de prisão preventiva, bem como de qualquer outra forma de prisão que não seja em flagrante, está prevista no Código de Processo Penal e 299 TORNAGHI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 90. 129 na Constituição Federal, conforme anteriormente estudado. O artigo 315 do Código de Processo Penal impõe, por ocasião da decretação ou da denegação da prisão preventiva, a devida fundamentação, Helio Tornagui relaciona os elementos necessários à fundamentação: A decretação da prisão preventiva tem de ser acompanhada de razões de fato e de direito em que se baseia. É necessário que o juiz manifeste sempre: - quais as provas da existência do crime; - quais as da autoria. O juiz deve mencionar de maneira clara e precisa os fatos que levam a considerar necessária a prisão para garantir a ordem pública ou para assegurar a instrução criminal ou a aplicação da lei penal substantiva. Não basta, de maneira alguma, não é fundamentação, frauda a finalidade da lei e ilude as garantias de liberdade o fato de o juiz dizer apenas ‘considerando que a prisão é necessária para garantia da ordem pública[...]’ ou, então ‘a prova dos autos revela que a prisão preventiva é conveniente para a instrução criminal [...]’. Fórmulas como essas são a mais rematada expressão da prepotência, do arbítrio e da opressão. Revelam displicência, tirania ou ignorância, pois, além de tudo, envolvem petição de princípio: com elas, o juiz toma por base exatamente aquilo que deveria demonstrar.300 A falta de fundamentação pode resultar na nulidade do decreto segregatório. 5.5 Requisitos Autorizadores à Decretação da Prisão Preventiva Há cinco hipóteses autorizadoras da prisão preventiva. Cada qual apresenta peculiaridades próprias. Não é possível, destarte, se fazer estudo da prisão preventiva levando 300 TORNAGHI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 91-92. 130 em conta apenas as orientações gerais da tutela cautelar do processo penal. Cada uma das hipóteses, (garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da instrução criminal, aplicação da lei penal e necessidade de aplicação de medidas protetivas de urgência nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher), serão apresentadas e analisadas separadamente. 5.5.1 Prisão preventiva decretada como garantia da ordem pública É necessário buscar na doutrina a conceituação da expressão. Como a doutrina é rica em conceituar a ordem púbica, parte-se da definição do dicionarista De Plácido e Silva pelo fato dela não estar ligada diretamente ao processo penal e ao requisito da prisão preventiva: ORDEM PÚBLICA: Entende-se a situação e o estado de legalidade normal em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto. Não se confunde com a ordem jurídica, embora seja uma conseqüência direta desta e tenha a sua existência formal justamente dela derivada.301 Admitindo-se esta conceituação, há que se considerar, sempre que houver a quebra do estado normal de legalidade de parte de cidadãos por não respeitarem e acatarem as atribuições, a autoridade pública competente para tomar medidas visando ao restabelecimento da normalidade. Em se tratando de fato criminoso, com o tipo penal sendo passível da 301 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Atualizado por Hagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 988. 131 custódia preventiva, ela poderá, em tese, ser decretada, até porque o próprio processo penal tem, também, finalidade preventiva. João Gualberto Garcez Ramos apresenta definição mais completa, que atende de forma mais adequada o propósito deste estudo, citando Giuseppe Vergonttini, A ordem pública é concebida ao mesmo tempo como uma circunstância de fato [e] como fim do ordenamento político e estatal e nesse sentido o encontramos na legislação administrativa, policial e penal como sinônimo de convivência ordenada, segura, pacífica e equilibrada, isto é, normal e conveniente aos princípios gerais de ordem, desejados pelas opções de base que disciplinam a dinâmica de um ordenamento. Nesta hipótese, ordem pública constitui o objeto de regulamentação pública para fins de tutela preventiva, contextual e sucessiva ou repressiva, enquanto a jurisprudência tende a ampliar o conceito material de ordem pública até fazer incluir nele a execução normal das funções públicas ou o normal funcionamento das instituições, como a propriedade de importância publicitária (ordem legal constituída).302 A expressão “garantia de ordem pública” não tem conotação única já que o fundamento visa a prevenção do cometimento de novos crimes, além de tranqüilizar o meio social e a credibilidade da Justiça303. Várias são as formas de violação da ordem pública a ensejar a decretação da prisão preventiva. Pesquisa efetuada por Paulo Roberto da Silva Passos mostra que a doutrina brasileira segue os rumos traçados por Frederico Marques: 302 VERGONTINI, Giuseppe. Ordem Pública. In: BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. João Ferreira, Carmem C. Varriale et al. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 851. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 138-139. 303 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 370. 132 Basicamente, quanto à garantia da ‘ordem pública’, os doutrinadores têm seguido as pegadas de Frederico Marques, que lecionava: desde que a permanência do réu, livre e solto, possa dar motivo a novos crimes ou cause repercussão danosa e prejudicial no meio social, cabe ao juiz decretar a prisão preventiva ‘como garantia da ordem pública’.304 Hélio Tornaghi também admite a decretação da prisão preventiva como garantia da ordem pública. A prisão preventiva é medida de segurança processual, tomada nos casos em que o réu ameaça consumar o crime apenas tentando ou cometer outros. Observe-se que a ordem pública pode ser posta em risco pela simples lesão ao particular. Não é necessário que esteja em perigo o Estado, o Governo, a República ou qualquer semelhante. Da mesma forma que põe em perigo a paz pública quem faz apologia ao crime, quem incita ao crime, quem se reúne em quadrilha ou bando, ainda que contra indivíduos (CP. arts. 286, 287 e 288), assim também atenta contra a ordem pública e deve ser preso preventivamente quem se prepara para cometer crime contra particular. Na verdade ‘o atentado contra um é ameaça contra todos’ e a ordem pública se sente convulsionada.305 Júlio Fabbrini Mirabeti justifica a decretação da prisão preventiva como garantia da ordem pública salientando que Fundamenta em primeiro lugar a decretação de prisão preventiva a garantia de ordem pública, evitando-se com a medida que o delinqüente pratique novos crimes, vitime qualquer outra pessoa, quer porque seja acentuadamente propenso à prática delituosa, quer, porque, em liberdade, encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida. Mas o conceito de ordem pública não se limita a prevenir a produção de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria 304 PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 65. 305 TORNAGUI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 93. 133 credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e da sua repercussão. A conveniência da medida deve ser regulada pela sensibilidade do juiz à reação do meio ambiente, à prática delituosa. Embora seja certo que a gravidade do delito, por si, não basta para a decretação da custódia, a forma e execução do crime, a conduta do acusado, antes e depois do ilícito, e outras circunstâncias podem provocar imensa repercussão e clamor público, abalando a própria garantia da ordem pública, impondo-se a medida como garantia do próprio prestígio e segurança da atividade jurisdicional. A simples repercussão do fato, porém, sem outras conseqüências, não se constitui em motivo suficiente para a decretação da custódia, mas ela está justificada se o acusado é dotado de periculosidade, na perseverança da prática delituosa, ou quando denuncia na prática do crime, perversão, malvadeza, cupidez e insensibilidade moral.306 Vários são os argumentos invocados para a decretação da prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública, chamados de fundamentos apócrifos da prisão preventiva, conforme explica Odone Sanguiné: [...] como assinala Hassemer, pelo menos desde o início da década de 60, sabe-se que existem fundamentos apócrifos da prisão preventiva, quando se argumentou na Alemanha em favor do fundamento do perigo da reiteração, que na prática era o fundamento da detenção, embora sem base legal, situando-o apocrifamente no perigo da fuga. Os fundamentos apócrifos da prisão preventiva – que também podem denominar-se de fundamentos nãoescritos, ocultos ou falsos -, além de supor uma vulneração do princípio constitucional da legalidade da repressão (nulla coactio sine lege), permitem que a prisão preventiva cumpra funções encobertas, não declaradas, mas que desempenham um papel mais importante na práxis processual do que as funções oficiais propriamente ditas.307 Figuram como fundamentos da prisão preventiva para a garantia da ordem pública, conforme citação de Júlio Fabbrini Mirabete, as seguintes razões: 306 MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado: referências doutrinárias, indicações legais, resenha jurisprudencial: atualizado ate julho de 2003. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 803. 307 SANGUINE, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento da prisão preventiva. Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 9, n. 107, p. 29, 2001, Edição Especial. 134 [...] o clamor público, indicação de delinqüência organizada, participação em quadrilha armada, autor de crime de roubo, autor de crime de receptação qualificada, autor de crime gravíssimo, pela credibilidade da justiça, autor policial militar, para assegurar a integridade da vítima, para proteger testemunhas de acusação, periculosidade evidenciada no crime, periculosidade do réu, periculosidade e insensibilidade moral, réu que cumpria pena em regime aberto, prática de crime hediondo, gravidade do crime e circunstâncias, repercussão de crime grave, perseverança no crime.308 Quando se fala em proteção à vida de vítimas ou de testemunhas, os casos que interessam ao processo têm por objetivo a instrução criminal. Nestes casos, a decretação tem a finalidade da instrução criminal e não a garantia da ordem pública, enquanto outras são frutos da interpretação extensiva, vedada, em se tratando de matéria penal, como o clamor público (objeto de estudo mais aprofundado), gravidade do fato, credibilidade da justiça, prática de crime hediondo, reincidência e outras, que nada têm a ver com o processo em si e totalmente alheios à instrumentalidade processual, elemento que, a princípio, é necessário para a decretação da prisão preventiva. Fernando Capez expressa a possibilidade da prisão preventiva para “impedir que agente solto continue a delinqüir, ou, de acautelar o meio social, garantindo a credibilidade da justiça, em crimes que provoquem grande clamor popular”309: No primeiro caso há evidente perigo social decorrente da demora em se aguardar o provimento definitivo, porque até o trânsito em julgado da decisão condenatória o sujeito já terá cometido inúmeros delitos. Os maus antecedentes e a reincidência são circunstâncias que evidenciam a provável prática de novos delitos, e, portanto, autorizam a decretação da prisão preventiva com base nessa hipótese. No segundo, a brutalidade do delito provoca comoção no meio social, 308 MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado: referências doutrinárias, indicações legais, resenha jurisprudencial: atualizado ate julho de 2003. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 804-810. 309 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 243. 135 gerando sensação de impunidade e descrédito pela demora na prestação jurisdicional, de tal forma que, havendo o ‘fumus boni iuris’, não convém aguardar-se até o trânsito em julgado para só então prender o indivíduo [...] Entendemos que não pode ser decretada a preventiva sem os requisitos da tutela cautelar; no entanto, tanto no primeiro, quanto no segundo caso, evidencia-se o ‘periculum in mora’ autorizador da custódia.310 Debates ocorrem acerca da cautelaridade da prisão preventiva decretada como garantia da ordem pública. Para João Gualberto Garcez Ramos, a prisão preventiva, embora motivada por situação urgente, seja formal e materialmente sumária, fundada na aparência, temporária e incapaz de gerar a coisa julgada material, não é cautelar por faltarlhe um requisito essencial: a referibilidade.311 Com base na afirmação, não se pode concordar com Fernando Capez quando ele assegura que a prisão preventiva por garantia da ordem pública não pode ser decretada sem os requisitos da tutela cautelar, exemplificando com situação desprovida da cautelaridade da medida representada pela prisão preventiva, já que nos casos citados, não há qualquer referência à situação com o processo penal condenatório, pois, no primeiro deles, o objetivo é impedir que o agente volte a delinqüir, e, no segundo, acautelar o meio social nos casos de crimes que gerem clamor público. A ausência da referibilidade, apontada por João Gualberto Garcez Ramos, refere-se à falta de relação entre a custódia cautelar decretada com fundamento na garantia da ordem pública com o direito e os fatos discutidos no processo penal condenatório312, já que não existe relação entre o clamor público, a reiteração de fatos criminosos, a hediondez do crime e a periculosidade do agente, quando a vítima tem o direito em julgamento. A segregação cautelar como garantia da ordem pública objetiva, antes de 310 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 244. RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 142. 312 Ibid, p. 141. 311 136 tudo, assegurar os possíveis danos que o réu poderia causar à vida social e aos bens jurídicos que o Direito Penal protege313. Diante da falta de referibilidade, a coação tem traços de medida segurança314. Neste sentido também se manifestou Antônio Magalhães Gomes Filho: Os casos de prisão por garantia da ordem pública ou da ordem econômica ensejam, na maioria dos casos, uma verdadeira antecipação da punição, incompatível com a presunção de inocência. Mais do que isso, essas expressões, longe de representarem conceitos que possam ser claramente delimitados, constituem, na verdade, artifícios retóricos do legislador, que possibilitam a superação da rigidez da legalidade estrita, essencial nesta matéria, autorizando os juízes a utilizarem um amplo poder descricionário quando apreciam os aspectos da necessidade da prisão cautelar. Geralmente, a idéia de ordem pública está relacionada às finalidades do encarceramento provisório, que não se enquadra nas exigências de caráter cautelar propriamente dita, mas constitui forma de privação antecipada da liberdade, adotada como medida de defesa social; fala-se, então, em exemplaridade como imediata reação ao delito, que teria como efeito satisfazer o sentimento de justiça da sociedade; ou, ainda, em prevenção especial, assim entendida a necessidade de se evitar novos crimes. Em todas as situações há, evidentemente, a intenção de fazer prevalecer o interesse da repressão, em detrimento das garantias individuais.315 Evidencia-se a constatação de que a prisão preventiva como garantia de ordem pública não tem natureza cautelar. Cabe, então, a indagação: é antecipatória? A resposta é não. De acordo com o teor do texto do inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição Federal, ela não pode ter natureza antecipatória. A solução é apontada por João Gualberto Garcez Ramos. 313 MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 1965, v. 4, p. 49-50. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 141. 314 BATISTA, Weber Martins. Liberdade provisória: modificações da Lei nº 6.416, de 24 de maio de 1977. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 16. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 141. 315 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Prisão preventiva e garantias constitucionais: a proporcionalidade como principio constitucional da prisão cautelar. Questões agrárias, julgados comentados e pareceres. Organizador Juvelino Jose Strozake. São Paulo: Método, 2002, p. 253. 137 Assim, a conclusão a que se chega é de que a prisão preventiva decretada por garantia da ordem pública não é cautelar nem antecipatória, mas medida judiciária de polícia, justificada e legitimada pelos altos valores sociais em jogo, a magistratura, formada por agentes políticos do Estado, tem papel suficientemente importante na defesa social que a legitima politicamente para decretar a medida, não referente, todavia, à atividade concreta que desenvolve no processo penal condenatório.316 Em posição totalmente antagônica, Luiz Roberto Cigogna Faggioni não admite que a prisão por garantia da ordem pública, englobando também a ordem econômica, seja usada como medida de segurança, ou, como medida judiciária de polícia. Ele enumera as seguintes objeções: I) Por ela se presume que o réu é o autor do fato de que é suspeito ou imputado; II) A prisão preventiva não pode cumprir função de prevenção especial, função típica da prisão em decorrência de sentença condenatória; III)Faz-se uma profecia, predição perigosa, para se dizer, no mínimo, acerca da conduta futura do acusado; IV) Julga-se a conduta não praticada, nem ao menos iniciada. Julga-se, portanto, o homem e não o fato (trata-se de verdadeiro direito processual penal de auto e não de fato); V) Há que se distinguir entre as atividades de polícia e as medidas cautelares. Tomar uma por outra é cometer desvio de finalidade. Os institutos são a sua finalidade. Havendo divergência de finalidades, é necessário instrumental jurídico divergente; VI) O processo em que a medida cautelar, com essa finalidade é decretada, não se destina ao julgamento dos possíveis atos futuros do acusado, mas sim, ao julgamento de ato determinado que lhe é anterior. Daí, há a violação do devido processo legal.317 316 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 143. 317 FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 142-144, jan./mar. 2003. 138 Há que se salientar que as expressões ordem pública e ordem econômica são vazias de significado e não passíveis de conceituação, desprovidas dos requisitos da cautelaridade. Não aceitam, igualmente, a segregação por garantia da ordem pública e ordem econômica como medida de segurança, Faggioni simplesmente abomina a decretação da prisão com estes fundamentos318. 5.5.1.1 Da inconstitucionalidade da decretação da prisão preventiva para a garantia da ordem pública Defensores da inconstitucionalidade da decretação da prisão preventiva para garantia da ordem pública invocam, para defender a posição, várias linhas de argumentações, tendo como origem o princípio de presunção de inocência. A posição é defendida à luz do Garantismo Penal, idealizado por Luigi Ferrajoli319, que propõe a intervenção mínima do Estado, já que o indivíduo estaria acima do Estado, como forma de proteger o indivíduo de abusos e violações de direitos previstos na Constituição, num sistema de minimização do poder e maximização do saber, assumindo o processo penal a função de determinar o delito e impor a pena. De outra parte, adota a idéia como instrumento de preservar as garantias e direitos individuais elencados na Constituição, contra atos abusivos e arbitrários Aury Lopes Júnior destaca que 318 FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão decorrente de decisão de pronuncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 142-144, jan./mar. 2003, p. 149. 319 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. ampl. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. 139 instrumentalidade do processo penal é o fundamento de sua existência, mas com especial característica: é um instrumento de proteção dos indivíduos e garantias individuais. É uma especial conotação do caráter instrumental que só se manifesta no processo penal, pois se trata de instrumentalidade relacionada ao Direito Penal, à pena, às garantias constitucionais e aos fins políticos e sociais do processo. É o que denominamos de instrumentalidade garantista.320 Mais uma vez pode-se perceber a ausência da referibilidade alegada por João Gualberto Garcez Ramos. Por isto, ocorrendo, em conseqüência, a ausência da cautelaridade da medida representada pela prisão preventiva como garantia da ordem pública. Sob a ótica garantista, que prima pela intervenção mínima e proteção do indivíduo na forma das garantias e direitos expressos na Constituição, (entre os está o princípio da presunção de inocência e da excepcionalidade da prisão processual, mesmo que seja admitida a possibilidade da prisão preventiva), em hipótese alguma isto se torna possível sob o fundamento de garantia da ordem pública. Fernando da Costa Tourinho Filho321 defende a inconstitucionalidade da prisão preventiva por garantia da ordem pública, de forma veemente, afirmando que a expressão ordem pública “diz tudo e não diz nada”, e questiona as argumentações do Ministério Público nas representações pela prisão preventiva, logo do Ministério Público, que deve aparecer ‘como pilar fundamental do sistema judicial [...]’ Não pode o Ministério Público afastar-se um palmo sequer da Lei Fundamental. 5.5.1.2 Ordem pública em face do clamor público causado pelo fato criminoso 320 LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001. p. 13. Apud LIMA, Camile Eltz de. A “garantia da ordem pública” como fundamento da prisão preventiva: (in)constitucionalidade à luz do garantismo penal. Revista de Estudos Criminais, v. 2, n. 11, p. 149-161, 2003. 321 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Considerações sobre a prisão preventiva. Revista Cejap, a. 6, p. 9, fev. 2005. 140 Uma das criações jurisprudenciais usadas como fundamento da decretação da prisão cautelar para a garantia da ordem pública é o clamor público causado por fato. O clamor público desdobra-se numa série de definições, segundo Odone Sanguiné: [...] a jurisprudência identifica clamor público com: 1) a repercussão do crime na comunidade; 2) a preservação da credibilidade do Estado e da Justiça; 3) a satisfação da opinião pública; 4) a proteção da paz pública; 5) a comoção social ou popular; 6) o desassossego, temor geral, espanto, perplexidade, abalo ou inquietação social; 7) a indignação, repulsa profunda, ou revolta na comunidade; 8) a gravidade do crime e ‘modus operandi.322. Fernando da Costa Tourinho Neto, semelhantemente, manifesta preocupação com a decretação da prisão preventiva de forma indiscriminada, com fundamento na garantia da ordem pública em face do clamor causado pelo fato: A prisão preventiva, por não ser pena antecipada, não pode ser decretada com base no alarma social, no clamor público, na comoção social, no modo como foi executado o crime, na repercussão do crime na imprensa, para a proteção da paz pública, para dar satisfação ao público. [...] O argumento que o indiciado, ou acusado, dispõe de vultuosas quantias, o que facilita a articulação no sentido de corromper testemunhas, servidores públicos, é meramente especulativo, teórico, não passando de mera, simples suspeita, desconfiança, conjectura. É de perguntar-se: quem será corrompido? As testemunhas são passíveis de serem corrompidas? Por quê? O fato de o indiciado, ou acusado, ter recursos, grandes recursos, não significa, por si só, que ira evadir-se do distrito da culpa. Se esse entendimento for certo, todo indiciado, ou acusado rico deverá ter sua prisão preventiva, obrigatoriamente, decretada. 322 SANGUINE, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento da prisão preventiva. Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 9, n. 107, p. 30, 2001, Edição Especial. 141 Muitas vezes se alega que a prisão preventiva deve ser decretada para não levar ao descrédito os órgãos de repressão estatal. A comoção social, muitas vezes, é fabricada pela autoridade policial, ou pelo Ministério Público com a utilização da mídia. Agir de acordo com a lei e a Constituição não pode ocasionar o descrédito das autoridades. O que leva ao descrédito é a falta de apuração dos fatos tidos como criminosos, é a sensação de impunidade, é a morosidade dos procedimentos administrativos na Polícia e no Ministério Público e dos processos em juízo.323 Em nenhuma destas possibilidades há qualquer relação da prisão cautelar com o processo penal condenatório. É apresentado com a natureza da medida de prevenção, numa flagrante violação do princípio da presunção de inocência, decretada, geralmente, a partir das informações da polícia e pelos meios de comunicação que permitem instrumentalizar sabiamente o alarma social conforme os diversos momentos políticos ou econômicos324. De qualquer forma, embora inadmissível a princípio, o clamor social invocado para fundamentar a decretação da prisão preventiva, na visão da Maria Lucia Karam, deve ter relação com o processo, Mas, o que, de todo modo, é inadmissível, por violar os princípios e regras constitucionais, é este caráter de antecipação punitiva, a significar, em última analise, uma imposição de pena sem processo. A garantia da ordem pública, como as demais manifestações do periculum in mora elencadas no art.312 CPP, há também que dizer que se relacionem diretamente com os meios e fins do processo. É possível pensar em hipóteses assim admissíveis – mas, decerto raras – de decretação da prisão preventiva strictu sensu para a garantia da ordem pública quando se estiver, por exemplo, diante de uma extrema comoção social provocada pela provável 323 TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Juizados especiais cíveis e criminais: comentários a Lei 9.099/954. ed. reform. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 572. 324 SANGUINE, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento da prisão preventiva. Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 9, n. 107, p. 30, 2001, Edição Especial. 142 prática do delito a exigir a imposição da medida para assegurar a realização do processo eventualmente ameaçado por um clamor de “justiça pelas próprias mãos.325 Não é papel do Judiciário, através de processo, resolver a questão da opinião pública: A opinião pública, sobre o fato delituoso, deve ser preocupação de outras áreas do Estado que não do Judiciário. Sendo produto midiático, não pode contingenciar o Poder Judiciário na correta aplicação da lei, sob pena de comprometer os fundamentos do Estado Social Democrático de Direito, ao atentar contra as garantias fundamentais a que o réu tem direito e que o Estado, por sua vez, está obrigado a cumprir.326 O Doutrina Portuguesa327, manifesta a tendência de expurgar o fundamento do alarma social como causa para a decretação da prisão cautelar ou processual, visto que o mediatismo do processo não equivale aos pressupostos da prisão preventiva, e tampouco o processo penal se presta para satisfazer a opinião pública, e sim para seus próprios fins. 5.5.1.3 Ordem pública em face da gravidade do crime Em razão da ambigüidade do termo ‘ordem pública’, que permite variada 325 KARAM, Maria Lúcia. Prisão e liberdade processuais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 1, n. 2, p. 89, abr./jun. 1993, p. 85. 326 MARQUES, Durval Bráulio. Uma (re)definição da ordem pública. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, a. 5, n. 27, p. 70, ago./set. 2004. 327 SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In: ANDRADE, Manuel da Costa (Org.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Ed., 2003, p. 1367-1368 143 gama de interpretações, chama a atenção de doutrinadores a decretação da prisão preventiva com fundamento na ordem pública, invocando-se para a justificação da medida, a gravidade do delito ou a comoção causada por ele na comunidade328. Luiz Roberto Cicogna Fagioni explicita dizendo que Ordem pública e perigosidade. Aqui a gravidade do crime, que seria entendida como uma manifestação de periculosidade de seu autor, consentiria na decretação da custódia cautelar. A associação, entretanto, revela a evidente violação ao princípio da presunção de inocência. O acusado seria perigoso justamente porque se presume ter ele praticado o crime grave de que é acusado. Isso significa afirmar que nos crimes graves a responsabilidade é presumida, e não o inverso. Na verdade, a questão vem mal colocada. Gravidade é conceito de pouca concreção, já que é variável. O critério deve ser o da possibilidade da perda da liberdade em decorrência da sentença condenatória. A prisão preventiva somente pode ser decretada de um juízo prévio de se chegar à conclusão de que condenado, pode o suspeito, ou réu, vir a perder sua liberdade. Mas isso, por si só, não basta (do contrário não haveria cautelaridade, mas antecipação de pena – vedada pelo princípio da presunção de inocência). São ainda necessários os pressupostos da prisão cautelar. Diante disso, o que se tem com a gravidade do delito é a simples constatação que, sendo grave o delito, pelo princípio da proporcionalidade, deve implicar uma pena que poderá gerar a perda da liberdade de seu autor. Isso não implica que o suspeito seja o autor. Logo, a gravidade aproxima a possibilidade de decretação da prisão preventiva, mas não a determina (devem estar presentes os demais pressupostos como a necessidade da medida e indícios de autoria).329 Em termos práticos, da afirmação acima infere-se que se presentes os pressupostos, e a pena em abstrato do fato, resultar na perda da liberdade do acusado, é possível a decretação da prisão preventiva. 328 MARQUES, Durval Bráulio. Uma (re)definição da ordem pública. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, a. 5, n. 27, p. 69, ago./set. 2004. 329 FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão decorrente de decisão de pronúncia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 41, p. 141, jan./mar. 2003. 144 5.5.1.4 Ordem pública e periculosidade do agente Fórmula usual invocada para a decretação da prisão preventiva por garantia da ordem pública está baseada na periculosidade do agente, podendo ser aferida pelo cometimento de novos crimes ou pela probabilidade de cometê-los, situações explicadas por Gabriel Bertin de Almeida: No primeiro caso não há presunção de periculosidade, pois só cometendo novo crime, subseqüente ao anteriormente cometido, que ensejou o pedido de prisão, poderia o agente vir a ser preso. Neste sentido já decidiu o STJ que: A reiteração da mesma conduta criminosa após ter sido beneficiado com liberdade provisória concedida mediante pagamento de fiança indica personalidade diretamente direcionada ao crime, o que justifica sua prisão preventiva como garantia da ordem pública.330 A periculosidade só se justifica se o acusado continuar a praticar crimes, repugnando qualquer tipo de presunção. Sem dúvida, não há como negar que a decretação da prisão preventiva com o fundamento de que o acusado poderá cometer novos delitos baseia-se, sobretudo, em dupla presunção: a primeira, de que o imputado realmente cometeu o delito; a segunda, de que, em liberdade e sujeito aos mesmos estímulos, praticará outro crime ou, ainda, envidar esforços para consumar o delito tentado.331 330 STJ, RHC, rel Min. Vicente Leal. DJU 23.11.1998, p. 211 (FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (Coord). Código de processo penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: RT, 1999, p. 1979. Apud ALMEIDA, Gabriel Bertin. Afinal, quando é possível a decretação de prisão preventiva para a garantia da ordem pública? Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 44, p. 75, jul./set. 2003. 331 DELMANTO JUNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 179. Apud ALMEIDA, Gabriel Bertin. Afinal, quando é possível a decretação de prisão preventiva para a garantia da ordem pública? Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 44, p. 76, jul./set. 2003. 145 De acordo com Gabriel Bertin de Almeida, grande parte dos que se posicionam dessa forma (presumindo a periculosidade do agente) indica como ‘indícios’ da periculosidade justificadora da prisão a reincidência e os maus antecedentes [...]332. A primeira situação, que salta aos olhos, para justificar a não decretação da prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública, justificada com base na periculosidade do indiciado ou réu, é a inexistência das diversas características da tutela cautelar. Outras motivações também são apresentadas como forma de demonstrar a inconsistência da decretação da prisão preventiva por garantia da ordem pública, com base na periculosidade do agente. Gabriel Bertin de Almeida vale-se da teoria da prevenção para discordar da aplicação do fundamento ordem pública com base na restauração da credibilidade da justiça, acautelamento social, existência de clamor público, periculosidade do agente, para a decretação da prisão preventiva. Justifica. A prisão cautelar não pode basear-se em nenhuma das formas de prevenção? Conforme verificado, segundo nossa doutrina e jurisprudência, a prevenção geral, positiva e negativa, e a prevenção especial positiva não são fundamentos da prisão cautelar. Por que? Justamente porque, segundo nossos tribunais, o chamado periculum libertatis não se configura nesses casos, motivo pelo qual a instrumentalidade desse tipo de prisão não se faz presente. Por isso, não seria o caso de contrariar o consagrado princípio de presunção de inocência, que diz que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5º, LVII). Dessa forma, o que se tem é a intimidação, a confiança institucional no sistema e o caráter ressocializador da pena não se coadunam com o princípio constitucional acima referido e, por isso, só devem fazer-se presentes na prisão pena, e não também na prisão cautelar. A restauração da credibilidade da Justiça, a necessidade de acautelar-se o meio social, a gravidade do crime cometido e a existência do clamor público têm, 332 ALMEIDA, Gabriel Bertin. Afinal, quando é possível a decretação de prisão preventiva para a garantia da ordem pública? Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 44, p. 75-76, jul./set. 2003. 146 nitidamente, funções de prevenção geral, o que não se pode admitir.333 A decretação da prisão preventiva para a garantia da ordem pública, com base na periculosidade do agente, é contrário ao direito penal de ato, que o caso, do Direito Penal Brasileiro, pois a periculosidade por si só, não justifica a privação da liberdade na própria condenação, com muito mais argumentos, não pode justificar a prisão processual334. 5.5.2 Prisão preventiva decretada para a garantia da ordem econômica A decretação da prisão preventiva por garantia da ordem econômica foi introduzida ao artigo 312, do Código de Processo Penal, por força da lei nº 8.884, de 11 de julho de 1994, conhecida como lei antitruste. O artigo 170, da Constituição Federal, embora não conceituando a ordem econômica, relaciona os fundamentos e enumera os seus princípios informadores: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional, II – propriedade privada; III – função social da propriedade; 333 ALMEIDA, Gabriel Bertin. Afinal, quando é possível a decretação de prisão preventiva para a garantia da ordem pública? Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 11, n. 44, p. 75-76, jul./set. 2003, p. 75-76. 334 Id 147 IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio-ambiente; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham a sua sede e a administração no país.335 José Cretella Junior define a dimensão constitucional de ordem econômica, ao destacar que A expressão ordem econômica designa, com as expressões ordem política e ordem social, um universo presidido por princípios e regras rígidas, que as informam, assegurando-lhes condições de existência, resguardo e equilíbrio, endereçando-se, em cada Estado, a regra jurídica constitucional e a lei contra qualquer tipo de ato atentatório perturbador da atividade humana, no seio de cada ordem. [...] De acordo com a Constituição vigente, a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados certos princípios enumerados pela regra jurídica constitucional.336 João Gualberto Garcez Ramos considerando a ordem econômica como especialização da ordem pública, assim a define: 335 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 336 CRETELLA. JR, Jose. Elementos de direito constitucional. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2000, p. 243-244. 148 Na mesma linha de raciocínio, a ordem econômica é, faticamente, a convivência ordenada dos agentes econômicos e, normativamente, o conjunto das regras que garante a segurança e a liberdade das relações de produção e circulação de riquezas, bem como das que garantem a valorização do trabalho humano.337 Paulo Roberto da Silva Passos338 destaca que não há razão de existir da bipartição “ordem pública” – “ordem econômica”, afirmando que os sobressaltos decorrentes de ataques à ordem econômica, atingirá, indubitavelmente a ordem econômica. Sempre que os fundamentos ou princípios previstos no artigo 170 da Constituição Federal forem de qualquer forma atingidos, haverá, por conseqüência, o atentado à ordem econômica, possibilitando, em tese, a decretação da prisão preventiva para garantir a ordem econômica. Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, ao comentar a prisão preventiva, observa que Lei modificativa do Código de Processo Penal acrescentou a ordem econômica (art. 86 da Lei 8.884/94). E, de novo, convém repelir a ‘porosidade’. A evidência, no objeto jurídico-penal ordem econômica não serve para o encontro do conceito processual penal (arts. 4º, 5º, 6º, bem como respectivos incisos, da Lei 8.137/90 e arts. 1º, e 2º da Lei 8.176/91). Menos ainda, a imagem constitucional (art. 170 e incisos). Já antes não se procurou a idéia da paz pública, no Código Penal (arts. 286 a 288). Observa-se, pela ordem econômica, e os interesses da sociedade, a ela pertinente. A ordem econômica, em palavras simples, integra a ordem pública. Violar, ou ameaçar a economia gravemente, sem atingir a ordem pública, parece impossível. Tenha-se em mente, contudo, que tão só, quebranta, ou coloca em grave risco, a ordem econômica o comportamento que compromete, de forma concreta, o funcionamento do específico sistema, ou de parte dele. Fere, portanto, a ordem econômica material tudo quanto atingir, por impacto frontal, a ponto de tirar a paz dos povos. Enseja prisão 337 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 144. 338 PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 65-66. 149 preventiva, porém e tão só a mencionada situação real que convenha ao processo de conhecimento de índole condenatória.339 Semelhantemente à prisão preventiva decretada para a garantia da ordem pública, a segregação decretada para a garantia da ordem econômica também não apresenta as características de medida coercitiva cautelar, visto que está ausente a referibilidade, conforme expõe João Gualberto: A medida de prisão preventiva para a garantia da ordem econômica, como a anterior, não é, obviamente, cautelar, porque não se refere a uma situação de periclitação do direito (pretensão condenatória e pretensão executória) ou do instrumento (processo penal condenatório), visa à defesa dos referidos valores econômicos e sociais. Também não é antecipatória, pois fundada em razões externas ao processo penal condenatório. Isto é, não é referível à pretensão condenatória em jogo. Em síntese, a prisão preventiva decidida por garantia da ordem econômica não é cautelar nem antecipatória, mas medida judiciária de polícia.340 Fernando da Costa Tourinho Filho classifica a medida como esdrúxula e propõe alternativa à aplicação da medida extrema. Sua esdruxularia repousa na circunstância de não ser ela a medida ideal para coibir os abusos contra a ordem econômica. Antes, tem acentuadas e inequívocas funções repressivas. Se a medida visa a preservá-la, evitando a 339 PITOMBO, Sergio Marques de Mores. Prisão preventiva, em sentido estrito. In: PENTEADO, Jaques de Camargo (Coord.). Justiça penal, 7: críticas e sugestões: justiça criminal moderna: proteção à vítima e à testemunha, comissões parlamentares de inquéritos, crimes de informática, trabalho infantil, tv e crime. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 128. 340 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 145. 150 ganância, a auri sacra fames, o certo seria adotar uma medida que seja espécie de medida de segurança, à maneira daquelas que havia, entre nós, até antes da reforma da parte geral do nosso Código Penal. Que se estabeleçam sanções contra a empresa, como, por exemplo, seu fechamento por determinado tempo... Se a farmácia vende um produto por preço extorsivo, que se instaure processo crime contra o proprietário e, ao mesmo tempo, que se aplique, provisoriamente, esta ou aquela medida de segurança de natureza patrimonial em relação ao estabelecimento. Os resultados seriam bem melhores... Para o ganancioso, meter-lhe a mão no bolso é castigo maior.341 Está evidente que a decretação da prisão preventiva por garantia da ordem econômica não é medida de natureza cautelar, porém, o atentado à ordem econômica justifica a segregação provisória, conforme defende Áureo Rogério Gil Braga. Contexto que permite antever a estrutura dorsal desta modalidade de segregação provisória. Primeiro porque estabelece um comportamento processual distinto e não imiscuído nas demais possibilidades de prisão provisória: prisão temporária, prisão em flagrante, prisão em decorrência de sentença de pronúncia e prisão em decorrência de sentença penal condenatória recorrível. Modalidades de custódia provisória, por ora, distintas do específico objeto de indagação do presente trabalho. No mais, deve-se realçar os contornos específicos às prisões privativas de liberdade definitiva e preventiva, impossibilitando-se confundir os efeitos genéricos daquela (repressão e prevenção) com o caráter instrumental desta medida (cautelar). Com efeito, na precisa lição de Paulo Rangel,342 não há que se imiscuir um juízo de periculosidade com culpabilidade. Estabelecida tal premissa, insta acrescer que a antevista possibilidade de decretação da prisão preventiva junto aos crimes contra a ordem tributária está direcionada ao cenário da macrocriminalidade e suas inferências e desdobramentos neste âmbito específico. Isso, porque não é possível dar o mesmo tratamento legal para situações que exigem uma imediata resposta do poder de império da lei.343 341 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20. ed. rev. mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 476-477. 342 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999, p. 272. Apud BRAGA, Áureo Rogério Gil. A decretação da prisão preventiva em sede da ocorrência de condutas criminosas contra a ordem tributária. Revista dos Tribunais, a. 92, n. 814, p. 457, set. 2003. 343 BRAGA, Áureo Rogério Gil. A decretação da prisão preventiva em sede da ocorrência de condutas criminosas contra a ordem tributária. Revista dos Tribunais, a. 92, n. 814, p. 458, set. 2003. 151 Áureo Rogério Gil Braga, citando Eduardo Frederico de Andrade Carvalho, assevera que A prática reiterada e permanente de crimes de colarinho branco – no caso, sonegação fiscal – com grave repercussão financeira negativa ao erário, representa uma ameaça permanente à ordem pública, representando uma periculosidade silenciosa, maligna, amorfa e sub-retícia alarmante que merece, por parte do Judiciário, uma enérgica e corajosa tomada de atitude para coibir, quando chamado a atuar dentro do devido processo legal, a prática desses delitos causadores da falência da nação. Esse objetivo pertinaz de lesar os cofres públicos atenta, sem sombra de dúvida, contra os princípios básicos da Constituição Federal, contra os direitos e garantias fundamentais, contra os direitos sociais e até da organização dos poderes do Estado.344 A disseminação de práticas que atentem contra os fundamentos e princípios constitucionais que norteiam a ordem econômica encontra campo fértil ante a vontade legislativa de descriminalizar tais condutas. A manifestação desta intenção pode ser exemplificada nas seguintes elaborações legislativas: extinção da punibilidade pelo pagamento (art. 34 da lei 9.249/95); a tentativa da vinculação da instância judicial ao encerramento do procedimento administrativo fiscal (art. 83 da lei 9.430/96); a possibilidade da substituição da pena privativa de liberdade até 4 anos por penas restritivas de direitos (art. 44 da CP); os programas de refinanciamentos de dívidas fiscais (Refis); e, as disposições limitativas da atividade fiscal e das atribuições do Ministério Público à persecução destas espécies delitivas, ambas inseridas no Projeto 344 BRAGA, Áureo Rogério Gil. A decretação da prisão preventiva em sede da ocorrência de condutas criminosas contra a ordem tributária. Revista dos Tribunais, a. 92, n. 814, p. 458, set. 2003. 152 do Código do Contribuinte em tramitação no Congresso Nacional (Projeto de Lei do Senado Federal 646/99).345 Com propriedade, Paulo Roberto da Silva Passos, em estudo sobre a matéria, assegura que além disso, o passeio pela história da Justiça Penal Brasileira leva a concluir que não é de nossa tradição punir os delitos econômicos, a não ser nas raras ocasiões em que as injunções político-partidárias tal o exijam346. A alteração introduzida no Código de Processo Penal pela lei nº 8.884, de 11 de julho de 1994, ataca a macrocriminalidade organizada, marcada pela mescla de atividades lícitas e ilícitas, tendentes a mascarar o perfil e a empresa criminosa idealizada e concretizada347, nos quais os crimes, geralmente, são de difícil identificação, visto que as organizações criminosas, necessariamente, são compostas por especialistas, além de contarem com a colaboração de pessoas infiltradas nos mais diversos setores da sociedade. Isto fica evidenciado na classificação de organizações criminosas feita por Rodolfo Tigre Maia, citado por Áureo Rogério Gil Braga: ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS. UMA TIPOLOGIA. 17. São incontáveis as OC em atuação em todo o mundo. Adotando, parcialmente, apenas para fins de ilustração, o mesmo critério usado por Donald Lavey, membro do FBI e dirigentes da Interpol, e acrescentando categorias adicionais consentâneas com nossa visão da matéria, podemos dividir as organizações criminosas em cinco grupos: 345 BRAGA, Áureo Rogério Gil. A decretação da prisão preventiva em sede da ocorrência de condutas criminosas contra a ordem tributária. Revista dos Tribunais, a. 92, n. 814, p. 458, set. 2003. 346 PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 65. 347 BRAGA, op. cit., p. 456. 153 o primeiro inclui organizações caracterizadas pela presença de ‘hierarquias estruturadas, regras internas de disciplina, código de ética e diversidade de negócios legais e ilegais [...]’, nas quais já existe um equilíbrio entre as atividades ilícitas e as resultantes da infiltração da empresa em negócios legítimos, além de uma intensa atuação internacional e redução do nível de violência em prol do incremento da corrupção [...]; o segundo grupamento pode ser designado por ‘organizações profissionais’, ‘profissionais porque seus membros são especializados em uma ou duas atividades ilegais específicas [...]’; o terceiro grupo é formado por quadrilhas integradas ou comandadas por colarinhos brancos que utilizam a criação de instituições financeiras, formalmente autorizadas ou não a funcionar pelo governo, como ‘fachada’ para a prática de ilícitos no âmbito do sistema financeiro e da economia popular, ou, com a mesma finalidade, aproveitam-se dos lugares-chaves que ocupam em empresas legitimamente constituídas [...]; o quarto grupo é representado pela criminalidade do Estado, entendida não como o conjunto de atos ilícitos (corrupção, concussão, etc) praticados por funcionários públicos beneficiados individualmente por tais práticas, mas por organizações incrustadas no aparelho do Estado para a prática de crimes (ex., grupos de fiscais corruptos, grupos de extermínio composto por policiais) [...]; o último e mais controvertido grupo congrega as organizações terroristas que permanecem em atuação, inclusive internacionalmente, praticando atentados contra pessoas e bens, muitas vezes com uso de explosivos [...].348 Os crimes praticados por qualquer um dos grupos há pouco descritos são de difícil averiguação e constatação, e, com exceção do último, (cujos crimes se apresentam repugnantes), nos demais, em razão do não uso de violência, embora danosos à sociedade no seu conjunto, não despertam a atenção negativamente, o mesmo acontece em razão da abrangência, tendo divulgação limitada ou distorcida pela grande mídia, que, igualmente, se beneficia do resultado das atividades destes grupos, dificultando, sobremaneira a aplicação da prisão preventiva, com fundamento na garantia da ordem econômica. 348 MAIA, Rodolfo Tigre. O Estado desorganizado contra o crime organizado. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, p. 27-34. Apud BRAGA, Áureo Rogério Gil. A decretação da prisão preventiva em sede da ocorrência de condutas criminosas contra a ordem tributaria. Revista dos Tribunais, a. 92, n. 814, p. 456, set. 2003. 154 5.5.2.1 Prisão preventiva decretada pela magnitude da lesão ao sistema financeiro artigo 30 Lei 7.492/86 Conhecida como a lei do colarinho branco, a lei 7.492/86 tem por bem jurídico protegido o sistema financeiro nacional, conforme ensina Weliton Militão dos Santos: Conclui-se, inarredavelmente, ser o Sistema Financeiro Nacional o bem jurídico materializado pela Lei 7.492, de 16/6/1986, isso, de maneira imediata, consubstanciando-se, de maneira mediata, na propriedade inerente a cada qual que possui toda espécie de ativo financeiro, cuja fidúcia repousa no aludido sistema.349 Além da definição de crimes contra o sistema financeiro nacional, entre outras providências procedimentais a prisão preventiva está prevista expressamente no artigo 30, da lei 7.492/86, verbis: Art. 30. Sem prejuízo do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal, aprovado pelo dec.-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941, a prisão preventiva do acusado da prática de crime previsto nesta lei poderá ser decretada em razão da magnitude da lesão causada (vetado)350. Este texto foi alvo de duras críticas. Exemplo é a manifestação de Manoel Pedro Pimentel, citado por João Gualberto Garcez Ramos: 349 SANTOS, Weliton Militão dos. Lei 7.492/86: os artigos 30 e 31 da Lei 7.492/86 e o principio inocência; confronto com o artigo 32 do CPP. Revista da AJUFE: Associação dos Juizes Federais do Brasil, a. 18, n. 60, p. 88, jan./mar. 1999. 350 Id. 155 A verdade é que este artigo [...] não deveria existir. É inteiramente desnecessário para os fins colimados. Ressalvando que o dispositivo se aplica sem prejuízo do disposto no art. 312 do CPP (e seria displicência a menção ao decreto-lei que o editou, uma vez que ao tempo da promulgação da lei em estudo o único Código de Processo Penal em vigor era aquele) o legislador não trouxe, além do que já estava estatuído, nenhuma novidade. Dizendo que a prisão preventiva poderá ser decretada em razão da magnitude da lesão causada, mas sem prejuízo do disposto no art. 312 da lei adjetiva penal, a norma apenas apontou um motivo que já se encontrava implícito na expressão garantia da ordem pública, inserida no artigo 312 da lei penal. A relevância do motivo para a decretação da prisão preventiva – ao examinar o requisito da garantia da ordem pública, certamente deve ser ponderada pelo juiz. Por outro lado, como se há de aferir esse elemento normativo – magnitude da lesão causada – se não for através do critério subjetivo, que pode variar amplamente, já que a lei não define quantitativa ou qualitativamente tal magnitude.351 João Gualberto Garcez Ramos aprofunda a análise sobre a possibilidade da decretação de prisão preventiva em razão da magnitude da lesão causada ao sistema financeiro nacional. Ele dispõe a questão sob a ótica do binômio antecipação da tutela versus cautelaridade da medida. Citando situação hipotética, expõe que é imaginável uma hipótese de macro-lesão sem perigo à credibilidade do sistema financeiro nacional como um todo. Um crime desse jaez, que envolva os patrimônios de um número certo de investidores, sem a mais remota possibilidade de atingimento de outros, pode envolver situação de macro-lesão sem perigo à credibilidade do sistema inteiro. O dano é enorme, mas está perfeitamente circunscrito a um número, maior ou menor de investidores, e os demais investidores, nem por hipótese, sentem-se ameaçados. Pois bem. Aplicada a regra a uma situação como essas, estaria ocorrendo a antecipação de uma condenação só pelo fato da magnitude da lesão. Essa antecipação não está tipicamente autorizada pela Constituição, como em outros casos. Daí poder-se afirmar que a aplicação pura e simples da regra 351 PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o sistema financeiro nacional: comentários á Lei n. 7.492, de 16/6/86. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 191. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 145. 156 contida no artigo 30 da Lei 7.492/86, sem a ocorrência de perigo real à ordem econômica, é inconstitucional352. Nesta hipótese fica fácil imaginar que os danos resultantes ao sistema financeiro e à ordem econômica nacional, em razão de possível decretação da prisão preventiva, seriam maiores do que os causados pela atividade criminosa propriamente dita, já que ela atingiria número certo de investidores, enquanto a notícia da segregação cautelar poderia atingir e influenciar o sistema todo. Considerando a tendência jurisprudencial no sentido de que a decretação da prisão preventiva por magnitude da lesão causada somente teria cabimento se contasse com pelo menos um dos pressupostos do artigo 312 do Código de Processo Penal353, Weliton Militão dos Santos defende a aplicação da medida, nos termos como está exposta no artigo 30, da Lei 7.492/86: Em que pese a tendência complacente, de modo a prestigiar o princípio da inocência com o status libertatis elevado à derradeira potência, como se o princípio geral do in dúbio pro reo também fosse aplicado durante o tramitar processual, ou que durante a apuração não preponderasse a exceção a tal regra, ou seja, o in dúbio pro societa, o certo é que a magnitude da lesão está sempre a autorizar a decretação da prisão preventiva, ainda que seja o único elemento justificativo para o exercício do poder geral de cautela, eis que, como já mencionado, estando como garantidora do direito de propriedade, constitucionalmente assegurado, portanto, bem jurídico de elevado potencial, não poderia ser vista como inoperante, ou como letra morta constante do artigo, tendo de ser lembrado 352 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, 146. 353 “[...] a exemplo do que tem decidido os Egrégios Tribunais Federais das 2ª, 3ª, 4ª e 5ª Regiões, quase indiscrepantemente, bem como de algumas Turmas Isoladas do Eg. Tribunal Federal da 1ª Região, cujo entendimento ocorre no sentido de que a magnitude da lesão só teria sentido para a decretação da prisão preventiva caso estive conformada com pelo menos um dos pressupostos previstos no prefalado art. 312 [...]” SANTOS, Weliton Militão dos. Lei 7.492/86: os artigos 30 e 31 da Lei 7.492/86 e o princípio inocência; confronto com o artigo 32 do CPP. Revista da AJUFE: Associação dos Juizes Federais do Brasil, a. 18, n. 60, p. 88, jan./mar. 1999, p. 92. 157 ensinamento do inigualável LIEBMAN, para quem na lei não existem palavras ociosas.354 O autor critica a prisão pela magnitude da lesão causada no sentido da sua perenidade, enquanto os pressupostos do artigo 312 do CPP são todos de natureza sazonal, fato que, segundo alguns doutrinadores, por si só bastaria para não aplicar a tutela cautelar. Weliton Militão dos Santos acentua que, com muito mais razão há que se aplicar a prisão preventiva, porque o sentido de perenidade e a magnitude da lesão justificam o juiz a lançar mão do poder geral de cautela. O autor entende que a prisão não ofende o princípio da presunção de inocência ante o permissivo constitucional (art. 5º, LXI CF), que estabelece a possibilidade da prisão fundamentada. 5.5.3 Prisão preventiva decretada por conveniência da instrução criminal A prisão preventiva também pode ser decretada como forma de assegurar a instrução criminal, fórmula viável de ser interpretada sob vários ângulos. Partindo-se da definição jurídica do vocábulo, temos: Instrução. Na terminologia forense é empregada para exprimir a soma de 354 SANTOS, Weliton Militão dos. Lei 7.492/86: os artigos 30 e 31 da Lei 7.492/86 e o princípio inocência; confronto com o artigo 32 do CPP. Revista da AJUFE: Associação dos Juizes Federais do Brasil, a. 18, n. 60, p. 88, jan./mar. 1999, p. 92-93. 158 atos e diligências que, na forma das regras legais estabelecidas devem ou podem ser praticados, no curso do processo, para que se esclareçam as questões ou fatos que constituem o objeto da demanda ou do litígio [...] Tecnicamente evidencia-se a reunião ou procura de provas, conseqüentes dos atos praticados ou das diligências feitas, que determinam a procedência ou improcedência dos fatos alegados, quando em processo civil ou, dos fatos imputados a alguém, quando em processo penal.355 A partir desta definição, sempre que houver, de qualquer forma, influência no sentido de impedir, dificultar, ou influir na reunião ou procura de provas, objetivando demonstrar os fatos imputados a alguém, no processo penal poderá ser decretada a prisão preventiva. A influência na reunião e procura de provas pode ocorrer de várias formas, conforme explicita João Gualberto Garcez Ramos: É razoável pensar que a maior parte da doutrina do processo penal considera que a dita fórmula refere-se à necessidade urgente de por cobro, através da prisão, à atuação ilegal do acusado contra as provas que talvez sejam produzidas no processo.356 Tal atuação deletéria, ainda segundo a doutrina majoritária, dá-se através de ameaça ou aliciamento de testemunhas, da destruição de provas documentais, de vestígios ou pegadas, através da peita ou tentativa de corrupção de outros auxiliares da justiça e outras situações análogas. Acerca dessa espécie de prisão, escreve Galdino Siqueira que, como meio de instrução, ela tem por função evitar que o delinqüente faça desaparecer os vestígios do crime, que suborne testemunhas, que se concerte com os cúmplices para o plano de evitar a descoberta da verdade.357 355 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Atualizado por Hagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 753. 356 Cf. NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1971, p. 163; BATISTA, Weber Martins. Liberdade provisória: modificações da Lei 6.416 de 24 de maio de 1977. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 17; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, v. 3, p. 478-479; JARDIM, Afrânio da Silva. Visão sistemática da prisão no código de processo penal. In: _____. Direito processual penal: estudos e pareceres. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 364. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo: Atlas, 1991, p. 369 apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 132. 357 SIQUEIRA, Galdino. Curso de processo criminal. 2. ed. São Paulo: Livraria Magalhães, 1930, p. 129. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 132. 159 Fernando da Costa Tourinho Filho manifesta-se, de forma incisiva, contrariamente a prisão preventiva por garantia de ordem pública. Admite, todavia, a medida como necessidade da instrução criminal: Assim, se o indiciado ou réu estiver afugentando testemunhas que possam depor contra ele, se estiver subornando quaisquer pessoas que possam levar ao conhecimento do Juiz elementos úteis ao esclarecimento do fato, peitando peritos, aliciando testemunhas falsas, ameaçando vítimas ou testemunhas, é evidente que a medida será necessária, uma vez que, do contrário, o Juiz não poderá colher, com segurança, os elementos de convicção de que necessitará para desate do litígio penal. Aí, sim, o poder coercitivo do Estado se justifica para impedir que o réu prejudique a atividade jurisdicional.358 Fernando Luiz Ximenes Rocha adverte ao sentenciar que não se deve confundir a destruição de provas com a sonegação por parte do acusado de elementos probatórios que lhe sejam desfavoráveis, uma vez que ninguém pode ser compelido a fornecer meios de provas contrários à sua defesa. Afinal, compete à acusação obtê-los com o auxílio da polícia judiciária. Constranger o indiciado a isto é afrontar o seu sagrado direito de ampla defesa, assegurado constitucionalmente.359 Considerara-se para fins da decretação da prisão preventiva, não somente a influência do acusado nas provas que estão sendo produzidas no processo, mas, sua influência na fase processual em que se dá a atividade instrutória360. Há a possibilidade da decretação da prisão preventiva por conveniência da 358 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Considerações sobre a prisão preventiva. Revista Cejap, a. 6, p. 9, fev. 2005, p. 11. 359 ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. A Constituição e a prisão penal cautelar. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, p. 61, jul./dez. 1993. 360 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 134. 160 instrução criminal quando o próprio imputado interessa ao processo, já que o acusado é também prova no processo361, sendo sua presença necessária para esclarecimentos úteis ao processo, à sua própria defesa e para o seu reconhecimento, caso em que, necessariamente, há a exigência da sua presença. Merece destaque a observação feita por João Gualberto Garcez Ramos362 à afirmação de Vicente Greco Filho, salientando que a decisão que decreta a prisão preventiva por conveniência da instrução criminal não pode ser colocada em termos de conveniência, mas em termos de necessidade363. O professor paranaense justifica ilustrando com caso hipotético no qual o imputado faz ameaças a uma testemunha, de um total de cinco, acabando por matá-la, restando quatro. Neste caso, a prisão cautelar se apresentaria como conveniente, porém, não como necessária. No mesmo sentido, Hélio Tornaghi garante que melhor seria que se houvesse dito: necessidade para a instrução criminal. De qualquer modo, tratando-se de providência restritiva de liberdade, deve entender-se conveniente a prisão para a instrução criminal somente quando estritamente necessária, isto é, quando sem ela a instrução não se faria ou se deturparia. 364 A simples falta aos atos processuais, ainda que reiterada, de acordo com Hélio Tornaghi365, não justifica o decreto segregatório cautelar por conveniência da instrução criminal, pois o juiz pode lançar mão de meio menos oneroso e, igualmente eficaz, consistente na condução forçada do réu, conforme previsão do artigo 260, do Código de Processo Penal. Num confronto entre os requisitos gerais do procedimento cautelar do 361 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 134.. 362 Id.. 363 GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 243. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 134. 364 TORNAGUI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 93. 365 Id. 161 processo penal percebe-se a perfeita congruência entre elas e a natureza jurídica da prisão preventiva, decretada por conveniência da instrução criminal, visto que motivadas pela urgência, sendo formal e materialmente sumária, fundada na aparência, é temporária, não gera coisa julgada material, apresenta ‘com a situação de perigo e conectada a persecutio criminis366. Considerando a excepcionalidade da medida e a circunstância de ser a prisão preventiva decretada por conveniência da instrução criminal, a duração da medida cautelar instrumental do processo penal deverá ser limitada ao tempo em que se fizer necessária. Decretada a custódia em razão de ameaça às testemunhas, que, ouvidas, cessa a necessidade da prisão. Da mesma forma, sendo necessária a presença do acusado em audiência, quer para reconhecimento ou para outros esclarecimentos, uma vez ouvido, deverá ter revogada a prisão. Situação interessante levantada por Paulo Roberto da Silva Passos consiste na interferência da atividade instrutória em favor do acusado, por terceira pessoa que não o acusado, mas sendo ele quem tem a prisão preventiva decretada: Nos reportamos aos casos, não incomuns, em que terceiras pessoas, dizendo-se interlocutoras do acusado, tomam as atitudes reprovadas pela doutrina supra-citada, comumente se prestando ao constrangimento de testemunhas. Presente no processo a notícia de ameaça, não raramente, o juiz determina a custódia preventiva, invocando em sua decisão a figura em estudo (‘conveniência da instrução’). Também ao nosso ver, nesse caso, a cautela deve ser redobrada, na análise da prova pelo julgador. Com efeito, ainda deve fazer parte da motivação, para que a argumentação 366 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 136-137. 162 judicial se revista da legalidade esperada, a discussão sobre o caso em tela, quando se apresenta a situação. Não basta, daí em silogismo errôneo, ou simplista por excelência, concluirse que se o benefício da ameaça canalizou-se em direção do réu, deve ele, obrigatoriamente, ser encarcerado para que seja preservada a instrução.367 O caso é ilustrado na análise do processo nº 5.181.120 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo368, caso que ganhou notoriedade. O réu Igor Ferreira da Silva, integrante, à época, do quadro do Ministério Público do Estado de São Paulo, acusado de ter matado a esposa, teve a prisão preventiva decretada para garantir a instrução processual, embora, reconhecidamente, tenha participado de qualquer das diligências dos fatos determinantes da decretação da custódia cautelar: Embora o denunciado Igor Ferreira da Silva não tenha comparecido aos locais já mencionados...(fls10), o Sr. Procurador Geral da Justiça, intuindo que o acusado participara da manobra que o beneficiaria (embora prova alguma apontasse, concretamente, quanto a tal), entendem por bem requerer-lhe a prisão preventiva sob o fundamento de que ‘assim torna-se evidente que, caso o denunciado permaneça solto, continuará a fazer manobras fraudulentas para fazer provas no processo e poderá assim, perseguir e intimidar testemunhas ou suprimir provas [...] Há a necessidade de se assegurar a aplicação da lei penal, evitando novas manobras criminosas dessa espécie, sendo conveniente, ainda, para a instrução criminal, que o denunciado seja preso, pois irá, certamente tumultuar o processo, mercê de tramas e fraudes semelhantes às ora reveladas’ (fls. 10/11).369 A representação pela prisão preventiva foi acolhida pelo Tribunal de Justiça 367 PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 70. 368 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Processo nº 5181120. Apud PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 71. 369 PASSOS, op. cit., p. 70-71. 163 do Estado370 de São Paulo. Paulo Roberto da Silva Passos relata voto do desembargador Alves Braga, que justificou Dir-se-á há não haver prova de que o indiciado houvesse participado daquela tentativa de, mediante pagamento em dinheiro e outras vantagens, encontrar para impor a autoria do crime, um capro espiatore qualunque. Mas cui bono? A quem aproveita todo o empenho de seu pai e seus irmãos, outorgados seus advogados, em montar aquela encenação...? Não há prova direta de que o indiciado participou das negociações para que Genivaldo assumisse, mediante compensação, autoria da morte de Patrícia. Mas, é claro que não iria o denunciado inteligente e solerte, como informam os colegas, participar pessoalmente daquela farsa. Deixou a cargo de seu irmão, seu advogado, o contato com o preso e sua amásia [...] Os indícios, portanto são suficientes ao apontar o indiciado como autor daquele crime e partícipe do episódio da compra de um bode expiatório. (fls.67).371 A prisão preventiva no caso em apreço foi decretada e fundamentada em ilações e presunções de que o acusado poderia influenciar na instrução criminal, embora, reconhecidamente, os atos que representaram a influência na atividade instrutória foram praticados por terceiros. 5.5.4 Prisão preventiva decretada para a aplicação da lei penal O acusado pode ter a prisão preventiva decretada de acordo com o artigo 312, do Código de Processo Penal, com fundamento na aplicação da lei penal. Os motivos ensejadores da decretação da prisão preventiva com fundamento na aplicação da lei penal são novamente balizados por José Frederico Marques: 370 PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 71. 371 Id. 164 Mas, se tudo indica que o réu, temeroso do resultado do processo, fuja do distrito da culpa, ou, então, provável seja essa fuga, por não apresentar garantias suficientes à Justiça, visto lhe ser indiferente a vida errante pelos perseguidos órgãos de repressão penal, a prisão preventiva terá cabimento ‘para assegurar a aplicação da lei penal’.372 João Gualberto Garcez Ramos, de forma clara, identifica três possibilidades de decretação da prisão preventiva com fundamento na aplicação da lei penal, a primeira representada pelo perigo da fuga, a segunda quando a fuga já ocorreu e a terceira, a perigo de aplicação da lei penal é representada pela hipótese de ser o imputado vadio ou de identidade desconhecida. 373 Analisando a prisão preventiva com o fundamento de seu caráter antecipatório ou de polícia, João Gualberto Garcez Ramos374 salienta que na prisão preventiva, decretada para assegurar a aplicação da lei penal, estão contidos todos os requisitos essenciais ao procedimento cautelar, visto que é motivada por situação de urgência; seja qual for a hipótese – fuga do iminente ou consumada – o encetamento das providências práticas para a captura do imputado não pode tardar, pois a demora do início da perseguição – ao menos a experiência comum, revela isso – torna cada vez mais difícil o sucesso da tarefa e, por conseqüência, a aplicação da lei penal. Está inserido em procedimento sumário, no qual o exercício do direito de defesa é arrefecido em favor da urgência que motiva a medida. Isso porque nem o imputado nem a parte técnica responsável pela defesa são ouvidos quando da sua decretação, mas somente após. A jurisdição cautelar, em se tratando de prisão preventiva, pode funcionar sem a propositura da ação respectiva [...] No entanto, quase sempre atuam 372 MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 62- 63. 373 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 130. 374 Ibid., p. 131. 165 os que estão legitimados [...]. Através de qualquer dessas formas é instrumentada a ação cautelar, e por força dela, o juiz decide inaudita alterar parte. Nem sempre poderia regulamentar essa ação por outra forma, visto que a urgência e a difícil concretização da medida, somente admitida em crimes de maior gravidade e contra pessoas de reconhecida periculosidade, tornam impossível a sua imposição mediante prévia audiência do indiciado. Tal providência tornaria ilusória a prisão do réu, notadamente quando ela visa a evitar que ele fuja, dificultando a realização do processo. Mas, nem por isso ocorre a impossibilidade de ser amplamente discutido, julgado e criticado o que se decidiu através da jurisdição cautelar. Esta funciona, a priori, depois de concedida a prestação jurisdicional, vários meios existem para discutir a sua legitimidade375. Da mesma maneira, há nela sumariedade material: o âmbito de cognição do Juiz é reduzido à sua situação de urgência mesma e não se estende ao juízo sobre a censuralidade à conduta do imputado. A decisão, além disso, baseia-se na aparência de que a pretensão executória do Estado, ainda, in fieri, periclita. Como qualquer medida cautelar, é temporária e não gera coisa julgada material. Conforme Romeu Pires de Campos Barros, a sentença nela proferida, assentando-se num juízo de probabilidade, é daquelas que se denominam sobre o estado do ato, permanecendo enquanto as coisas não se modificam [...]. Daí a sua revogabilidade ampla admitida pelo artigo 316 do Código de Processo Penal. A característica de referebilidade da medida também é evidente, pois liga-se ela umbilicalmente à situação de perigo e à persecutio criminis. Motivada integralmente pela situação de perigo, a aplicação da lei penal tem a mesma sorte dela.376 Paulo Roberto da Silva Passos377 entende que a aplicação do fundamento da aplicação da lei penal, para a decretação da prisão preventiva, ante a fuga do imputado, leva a uma imbricação com a prisão preventiva decretada para a garantia da instrução criminal, já que ambas buscam proteger a dificuldade do andamento do processo. Por conseqüência, acontece a proteção da atividade instrutória, admitindo, somente uma forma de prisão preventiva, qual seja a da conveniência da instrução criminal. 375 BARROS, Romeu Pires de Campos. Processo penal cautelar. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 205-206. Apud RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 131. 376 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 131-132. 377 PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 73. 166 O mesmo autor não vê a fuga do imputado como causa para fundamentar o decreto segregatório cautelar: Ora, qual o perigo incontornável ocorreria nesse momento processual com a fuga do acusado, perguntamos? [...] Afinal é de se imaginar em primeiro lugar a temeridade do decreto, eis que, ao término da instrução as provas coligidas, diferentemente do que se pensava no início (e não se esqueça que a fuga pode se dar em plena fase de investigação policial quando os indícios são fragilíssimos) podem apontar para a não culpa. Em segundo lugar, que o aparelho estatal, sob pena de falência, vai sempre ter como pôr as mãos no condenado; e, em terceiro lugar, se já houve a fuga, tanto faz para o Estado que a prisão se dê agora ou mais tarde.378 Paulo Roberto da Silva Passos379 também afirma que os prejuízos decorrentes da ausência do imputado, de regra, serão em detrimento do próprio réu, visto que pormenores da causa, que poderiam auxiliar o defensor, eventuais testemunhas a serem relacionadas na defesa prévia, deixarão de vir ao processo, em franco prejuízo do acusado, já as provas que exigem a presença do imputado levam novamente a citada imbricação com a conveniência da instrução criminal380. Alberto Zacharias Toron381 fez um interessante estudo sobre a fuga do acusado após ter sido decretada a sua prisão preventiva. Parte de produção jurisprudencial da fuga do acusado milita em seu desfavor, e, por si só, justifica o decreto prisional, idéia representada pela decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região: 378 PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da prisão e da liberdade provisória: aspectos polêmicos – doutrina e jurisprudência. Bauru: Edipro, 2000, p. 74. 379 Ibid., p. 73. 380 Ibid., p. 75. 381 TORON, Alberto Zacharias. A fuga após a prisão preventiva. Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 12, n. 149, p. 4-5, abr. 2005. 167 [...] a lei penal deve ser cumprida, as ordens judiciais devem ser observadas, posto que representam esteio para que a ordem social possa ser mantida, para que reinem, em suma, a segurança e a harmonia no âmbito da comunidade, não podendo jamais o judiciário aceitar que possa o acusado foragido condicionar sua apresentação à revogação de sua prisão preventiva, pois, se assim agisse, estaria sendo admitida a transação com valores maiores que não estão adstritos à titularidade ou à esfera privada de denunciado, mas que dizem respeito à própria sociedade, ao Estado, que tem interesse que a norma penal seja reverenciada em todos os seus termos.382 De acordo com Alberto Zacharias Toron383, pelo julgado citado, o magistrado encarna a figura do Führer, preconizada por ideólogos do porte de Carl Schmitt, quando a autoridade integradora da nação era infalível, suprema e não permitia qualquer contestação. O autor não prega a desobediência à lei, à ordem ou à Justiça. Considera a infalibilidade das decisões judiciais, mormente no caso da decretação da prisão preventiva, que apresenta elevado grau de subjetividade. Alberto Zacharias Toron conclui salientando que de um ponto de vista estritamente jurídico, para finalizar, há duas coisas que obrigatoriamente devem ser realçadas: uma, repetindo a lição de Luiz Flávio Gomes, é a significação tridimensional da presunção de inocência que ultrapassa a esfera do ônus da prova e projeta igualmente seus efeitos sobre a esfera das garantias da defesa e do tratamento devido ao acusado no decorrer do processo; a outra é a dimensão preventiva do habeas corpus que não exige o prévio recolhimento daquele que teve contra si decretada a prisão preventiva; admitir o contrário, conduziria o aplicador da lei a introduzir no sistema processual, pela via exegética, a exigência de o investigado recolher-se ao cárcere para poder discutir a legalidade de sua prisão processual.384 382 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL-3. HC 16.346. 5ª Turma. Relator: Des. Fed. Suzana Camargo. Diário da Justiça, 16 mar. 2004. Apud TORON, Alberto Zacharias. A fuga após a prisão preventiva. Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 12, n. 149, p. 4, abr. 2005. 383 TORON, Alberto Zacharias. A fuga após a prisão preventiva. Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 12, n. 149, p. 4, abr. 2005. 384 Id. 168 É necessário distinguir a fuga do acusado da omissão ao comparecimento em juízo, fato muitas vezes interpretado como fuga, escoando na decretação de medida extrema, quando, contrariamente, poderia ser equacionada através da sua condução forçada aos atos processuais. 5.5.5 Prisão preventiva com a finalidade de aplicação de medidas protetivas de urgência nos casos de violência doméstica contra a mulher Em 22 de setembro de 2006, entrou em vigor a Lei 11.340/2006, denominada de Lei Maria da Penha, numa alusão à Senhora Maria da Penha Maia Fernandes, que vítima de tentativa de homicídio por parte de seu marido, como resultando ela ficou paraplégica, sendo que o marido agressor somente dezenove anos e seis meses depois é que foi preso, tendo cumprido dois anos de prisão. O fato teve tão grande repercussão que foi alvo de denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, resultando em responsabilização do Estado Brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando a adoção de várias medidas, entre elas simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual.385 A Lei Maria da Penha inova ao prever uma série de medidas de caráter cautelar no âmbito processual civil como no âmbito processual penal, e contempla a possibilidade de prisão preventiva em qualquer momento a partir do início da persecução penal – artigo 20 - e ao acrescentar o inciso IV ao artigo 313 do Código de Processo Penal, possibilitando a prisão preventiva para a aplicação de medidas protetivas de urgência. 385 DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 14. 169 O artigo 20 da Lei Maria da Penha tem a seguinte redação: Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial. Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Embora a afirmação de tratar-se da velha prisão preventiva386, nota-se que entre os legitimados a requerer a prisão preventiva, ausente o querelante, o que representa uma diminuição em relação ao artigo 311 do Código de Processo Penal, não havendo assim a possibilidade da vítima representar pela prisão preventiva, já que a interpretação, no caso, deve ser restritiva, pois se trata de restrição à liberdade pública, devendo vigorar o princípio da proibição do excesso (J.J. Gomes Canotilho)387, o que é visto como uma imperfeição da Lei Maria da Penha388. Também é questionada a iniciativa instrutória do juiz ao possibilitar que este de oficio decrete a prisão preventiva, visto que estaria adentrando à seara reservada privativamente ao Ministério Público, conforme explica Marcellus Polastri Lima Porém, advindo a Constituição de 1988m a decretação da prisão preventiva 386 BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria Penha” – alguns comentários. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord.). Estudos sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 140. 387 SOUSA, Luiz Antônio de, Kümpel, Vitor Frederico. Violência doméstica contra a mulher: lei 11.340/2006. São Paulo: Método, 2007, p. 137. 388 LIMA, Marcellus Polastri. Primeiras observações sobre as medidas cautelares previstas na Lei “Maria da Penha”. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord.). Estudos sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 152. 170 de ofício, no caso de investigação penal, passa a ser inconstitucional, em vista do disposto no art. 129, I, da CF, pois, agora, em vista do dispositivo constitucional, o magistrado, no processo penal, deve se abster de promover de ofício atos na investigação da ação penal pública.389 Em razão da disposição constitucional citada, mesmo a representação do delegado, de acordo com o Doutrinado citado, deverá ser ratificada pelo Ministério Público para não haver a aludida nulidade. Ainda em relação a iniciativa, embora a inexistência de previsão de representação por parte da vítima, Marcelo Lessa Bastos, vislumbra a possibilidade de decretação da prisão preventiva, mesmo em ação de iniciativa privada: Poderia, em tese, por absurdo, a medida se afigurar imprescindível num crime de injuria, após falharem todas as medidas protetivas de urgência estabelecidas em favor da mulher, diante da insistência do agressor em continuar freqüentando os locais que ela freqüenta para, sistematicamente, humilhá-la (vide art. 7º, II, e V, da Lei “Maria da Penha”).390 Observa-se que a regra do artigo 20 da Lei Maria da Penha, se estende aos crimes punidos com detenção, independentemente das condições subjetivas do agressor, lembrando que o artigo 312 do Código de Processo Penal, prevê a possibilidade da prisão preventiva nos casos de crimes punidos com detenção somente nos casos de ser o indiciado vadio ou no caso de impossibilidade de sua identificação.A possibilidade da decretação da 389 LIMA, Marcellus Polastri. Primeiras observações sobre as medidas cautelares previstas na Lei “Maria da Penha”. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord.). Estudos sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 152.. 390 BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria Penha” – alguns comentários. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord.). Estudos sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p 143. 171 prisão preventiva, mesmo nos casos de crimes apenados com a detenção, que interpretada como um avanço por Maria Berenice Dias391, ao possibilitar a prisão, mesmo quando incabível a prisão em flagrante, recebe duras críticas: Entendemos ser totalmente imprópria a previsão, pois em vista do princípio da proporcionalidade não se pode decretar a prisão preventiva se a pena final não comportar a efetiva prisão. Como a pena da lesão corporal leve não levará o agente à prisão, em vista de ser cabível a substituição por restritiva de direitos, o sursis, ou mesmo o cumprimento em regime aberto (isto se levarmos em conta que foi vedada a possibilidade de conciliação e a transação penal, como quer o legislador), não há qualquer razoabilidade de se permitir a decretação da prisão preventiva. Portanto, totalmente esdrúxula a previsão de prisão preventiva in casu.392 A inovação, de acordo com Marcelo Lessa Bastos, é representada pelo acréscimo do inciso IV ao artigo 313 do Código de Processo Penal, que admite a decretação da prisão preventiva se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência. Da leitura do artigo 42 da Lei Maria da Penha, que resultou no acréscimo do inciso IV ao artigo 313 do Código de Processo Penal, inferimos que a prisão preventiva poderá ser aplicada nos crimes dolosos, independentemente da pena cominada e das condições subjetivas do agressor, como forma de garantir a execução de medidas protetivas de urgência previamente determinadas. As medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor são previstas no artigo 22 da Lei Maria da Penha: 391 DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.103. 392 LIMA, Marcellus Polastri. Primeiras observações sobre as medidas cautelares previstas na Lei “Maria da Penha”. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord.). Estudos sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 154. 172 Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios. § 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público. § 2o Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso. § 3o Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial. § 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil). Note-se que mesmo as medidas protetivas de urgência,mesmo de natureza cível, serão apreciadas pelo Juízo Criminal, enquanto e onde não existir o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, por força da disposição do artigo 33 da Lei Maria da Penha. A decretação da prisão preventiva, com fundamento no inciso IV do artigo 313, exige a aplicação pelo juiz, de uma das medidas protetivas previstas, ou mesmo alguma outra que o juiz achar necessário, já que o rol é exemplificativo, caso estas por si só se mostrarem ineficazes, assumindo assim um caráter essencialmente excepcional e 173 subsidiário393. A excepcionalidade da medida se justifica porque na execução das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz usar subsidiariamente os § 5º e § 6º do artigo 461 do Código de Processo Civil, que possibilita a aplicação de ações diversas tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial. Embora a execpcionalidade da medida representada pela custódia preventiva, há casos em que esta se justifica Todavia haverá momentos em que a prisão preventiva será necessária, mesmo em face de lesões leves ou ameaças sérias, pois não se pode mais incorrer em autêntica “crônica de uma morte anunciada” para deixar a vida ou a integridade física da mulher ao alvedrio de seu autoproplado algoz. Quando as demais medidas protetivas não tiverem êxito, e o agressor venha transitando uma via de crescente ameaça à incolumilidade ou à vida da vítima, a prisão cautelar se impõe como última ratio, para evitar desdobramentos de atroz gravidade.394 Marcelo Lessa Bastos, adotando uma posição crítica, recomenda cautela na aplicação da medida, quando tratarem-se de crimes de pequeno potencial ofensivo É preciso, portanto, principalmente nos crimes de menor potencial ofensivo, como os acima mencionados, em virtude da pequena quantidade de pena privativa de liberdade cominada, que o juiz aja com bastante prudência na hora de decidir pela prisão do agressor, medida esta que só pode ser reservada à ultima ratio e, em nenhuma hipótese, pode exceder, em tempo de 393 BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria Penha” – alguns comentários. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (Coord.). Estudos sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 142. 394 PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica e familiar contra a mulher: Lei 11.340/-6 – análise crítica a sistêmica. Porto Alegre. Livraria do Advogado. 2007, p. 106. 174 duração, á projeção da aplicação da pena privativa de liberdade cominada, em caso de condenação, o que faria com que se perdesse o contorno de cautelaridade que se deve exigir da prisão preventiva.395 O inciso IV do artigo 313 do Código de Processo Penal, vincula a hipótese de decretação da prisão preventiva a um fato típico, mas à garantia de efetivação de uma das medidas protetivas de urgência, previamente determinadas pelo juiz, mesmo que de natureza civil, assim, estaria contemplada uma hipótese, ainda que absurda, da decretação da prisão preventiva pela inércia na prestação de alimentos provisionais ou provisórios. 5.6 Condições de Admissibilidade da Prisão Preventiva As condições de admissibilidade da prisão preventiva estão expressas no artigo 313, do Código de Processo Penal. Art. 313. Em qualquer das circunstâncias previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos: I – punidos com reclusão; II – punidos com detenção, quando se apurar que o indiciado é vadio ou, havendo dúvidas sobre sua identidade, não fornecer ou não indicar elementos para esclarecê-la; III – se o réu tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitado em julgado, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 46 395 BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria Penha” – alguns comentários. In: TAVARES DE FREITAS, André Guilherme (coord). Estudos sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06): doutrina e legislação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2007, p. 142. 175 do Código Penal.396 A norma autoriza a decretação da prisão preventiva apenas para crimes dolosos, estando, desta forma, afastada a possibilidade de decretação da medida em se tratando de delito culposo, quando a matéria é pacífica. A regra para a decretação da prisão preventiva entra em vigência quando acontece o cometimento de crime doloso, que tem que ser punido com a reclusão. A prisão preventiva pode ser decretada excepcionalmente nos crimes dolosos, a serem punidos com detenção, no caso de réu vadio, ou, quando ele não for identificado, não fornecer a identificação ou, ainda, quando ele não apresentar elementos suficientes para a sua identificação. Neste particular, há duas questões que merecem destaque, a saber: a definição de vadio e a garantia constitucional do silêncio ou de não produzir provas contra si. Vadio, no conceito legal, segundo a compreensão de Hélio Tornagui é o sujeito que voluntariamente vive ocioso, isto é, aquele que precisa e pode trabalhar mas não o faz ou vive de ocupação ilícita. A lei não considera vadio quem não trabalha por não precisar, por ter rendas que lhe assegurem a subsistência. O rico desocupado, indolente, mandrião, é moralmente censurável, mas não incide na reprovação da lei penal. Igualmente não pode ser considerado vadio quem não trabalha por não poder fazê-lo, como o incapacitado físico e o usual desempregado.397 A Lei da Maria da Penha, conforme já abordado, nos casos de violência 396 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Código de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 397 TORNAGUI, Helio. Curso de processo penal. 9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 94. 176 doméstica contra a mulher, prevê a possibilidade da decretação da prisão preventiva, independentemente da pena cominada ao crime e das condições pessoais do criminoso, para garantir a aplicação das medidas protetivas de urgência previstas na Lei. 5.7 Revogação da Prisão Preventiva O artigo 316, do Código de Processo Penal, prevê a possibilidade da revogação de prisão preventiva quando restarem cessadas as medidas justificadoras da sua decretação, bem como a possibilidade de nova decretação, sobrevindo, razões que a justifiquem. José Frederico Marques fundamenta a possibilidade da revogação ao afirmar que A razão de ser dessa norma está em que a sentença sobre a prisão preventiva descansa sobre um juízo de probabilidade e é proferida segundo o estado da causa. [...] a revogabilidade da providência coativo-cautelar deriva da natureza da própria sentença que a decreta. Isto é, de decisão proferida segundo o estado da causa. Sendo assim, tudo quanto se refira aos elementos pertinentes à aparentia júris em que se funda a medida cautelar está sujeito a ulterior apreciação, uma vez que se comprove não haver mais elementos que mostrem ser provável a imputação em face das provas colhidas no curso da instrução.398 Em certos casos, a revogação é obrigatória. Atentemos: 398 MARQUES, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 66. 177 Não parece totalmente acertado falar em revogação facultativa ou em revogação obrigatória da prisão preventiva. Nem o Juiz está totalmente obrigado à revogação da prisão, nem pode negar-se a revogá-la por simples capricho, como quem dispõe de um bem seu. Há casos em que a lei determina a revogação, restando ao Juiz pouco espaço para decidir contrariamente: a essa situação, meramente por comodidade terminológica, chama-se obrigatoriedade. A tardança exagerada e injustificada dos prazos processuais, segundo interativa jurisprudência de diversos tribunais do país, é um exemplo dessa situação, em que o sistema compele o Juiz a revogar a prisão preventiva anteriormente decretada.399 Segundo João Gualberto Garcez Ramos400, a medida que revoga a prisão preventiva está baseada no poder de polícia da autoridade judiciária. Mesmo que seja urgente e sumária, não gera coisa julgada material, não está baseada na aparência, não há a ocorrência da sumariedade material, não é medida temporária e, também, não apresenta referibilidade. 399 RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 237-238. 400 Ibid., p. 238-239. 178 6 QUESTÕES POLÊMICAS SOBRE A PRISÃO PREVENTIVA 6.1 Medidas Alternativas à Prisão Preventiva No Código de Processo Penal brasileiro não se encontram medidas cautelares outras que não sejam as diversas espécies de prisões processuais, levando muitas vezes a aplicação da prisão, quando por medidas menos gravosas ao indivíduo, alcançariam plenamente os fins do processo penal, possibilitando, inclusive, maior participação do imputado na instrução probatória. A restrição da liberdade, representada pela prisão processual, deve ser reservada a casos extremos. Se for necessária alguma constrição do raio de liberdade individual, a atividade estatal deve principiar a atividade coercitiva com a previsão legal e a aplicação concreta de medidas cautelares reais que, atuando na esfera de direitos patrimoniais do imputado, preservem a sua liberdade pessoal. Nas hipóteses de comprovada ineficácia da coação processual real, sempre em face da prévia legislação pertinente, é legítima a coerção sobre a pessoa do imputado que, todavia, deve ser iniciada por medidas de restrição à liberdade individual (proibição de se ausentar de certos locais, vedação de comparecimento em outros, presença à sede judicial em datas regulares, recolhimento domiciliar e medidas semelhantes). Somente nos casos previamente especificados em lei e depois de 179 regularmente apurada a ineficácia das medidas precedentes pode ser efetivada a privação de liberdade individual. A falta de previsão legal de medidas alternativas à prisão processual enfraquece a missão estatal de reprimir ilicidades penais e fere o princípio da garantia da liberdade individual em face da prisão processual daqueles que poderiam ser contidos em suas eventuais condutas danosas ao escopo do processo com a sujeição a medidas restritivas de sua liberdade pessoal401. A inexistência de medidas alternativas à prisão processual e a aplicação sistemática da medida como forma de se garantir a instrução processual tem se apresentado como paradoxo em confronto com a política criminal. Na compreensão de José Laurindo de Souza Netto, O direito penal hodierno tem se caracterizado pela difusão de sistemas alternativos à punição pela prisão, estabelecendo como política criminal a intervenção mínima. Já na legislação processual penal, a tônica tem sido o endurecimento institucional, como resposta à argumentação de que as leis do processo e os meios disponíveis para a averiguação dos crimes são inoperantes. Tal contradição conduz à situação de que, no campo penal, substitui-se a prisão como pena, mantendo-a como medida cautelar.402 César Roberto Bitencourt403, partindo de crise da pena de prisão, e da ineficácia da função ressocializadora da pena, propõe o aperfeiçoamento da pena restritiva de liberdade e a substituição desta sempre que possível, afirmando que o problema da prisão é a própria prisão, citando a advertência do Claus Roxin que afirma não ser exagero dizer que a 401 PENTEADO, Jaques de Camargo. Tempo da prisão: breves apontamentos. Revista dos Tribunais, a. 92, v. 814, p. 427, ago. 2003. 402 SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 76-77. 403 BITENCOURT, César Roberto. Novas penas alternativas: análise político criminal das alterações da Lei n. 9.714/98. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 2-3. 180 pena privativa de liberdade de curta duração, em vez de prevenir delitos, promove-os. Como resultado de debates jurídicos, políticos e acadêmicos, em que se esperava um grande avanço no sistema de aplicação de penas alternativas, pela Lei 9.714/98, foram criadas duas novas espécies de penas alternativas, consistentes na prestação pecuniária e perda de bens e objetos e valores, que de acordo com César Roberto Bitencourt404 visam num primeiro plano abastecer a arcas do Tesouro Nacional, o que, paradoxalmente, leva a um locupletamento do Estado com a criminalidade que deveria combater. O estudo citado tem o foco na substituição da privação da liberdade, por ocasião da aplicação da pena, e aplicáveis a crimes de menor potencial ofensivo, porém, deve ser usado como subsídio a estudos que visem a adoção de medidas alternativas à prisão preventiva. A inovação vem da Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, que expressamente prevê uma série de medidas protetivas de urgência, nos casos de violência doméstica contra a mulher, reservando a prisão preventiva, como meio coercitivo para garantir a execução das medidas protetivas anteriormente aplicadas. O artigo 42 da Lei Maria da Penha, acrescentou o inciso IV, artigo 313 do Código de Processo Penal, permitindo a prisão preventiva se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução de medidas protetivas de urgência. Como já estudado, as medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, visam a proteção integral à mulher, com medidas de natureza penal, de família e patrimonial, mas que tem como o fundamento a existência da violência doméstica, aplicadas, enquanto não forem efetivadas as Varas dos Juizados Especiais de Violência Doméstica, pelo juízo criminal. 404 BITENCOURT, César Roberto. Novas penas alternativas: análise político criminal das alterações da Lei n. 9.714/98. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 116-117. 181 Ao reservar, a aplicação da prisão preventiva ao agressor, para os casos de garantia da execução das medidas protetivas de urgência previstas na lei, lembrando que o rol não é apenas exemplificativo, podendo ser aplicadas outras medidas, criou-se uma série de possibilidades intermediárias entre a prisão e a liberdade. O Código de Processo Penal, até então, estabelecia apenas a liberdade provisória como medida intermediária entre a prisão cautelar e a liberdade. O princípio da legalidade é o fundamento para a não-aplicação de outras medidas que não sejam as permitidas por lei. A aplicação de medidas alternativas à prisão de parte de juízes é defendida por José Laurindo de Souza Netto com amparo no princípio da proporcionalidade. Observa-se que Apesar da falta de previsão legal, é possível defender a possibilidade de os juizes aplicarem medidas alternativas à prisão cautelar, atendendo-se o princípio da proporcionalidade e da interpretação das normas no sentido mais favorável à efetividade dos direitos fundamentais.405 As condições para a aplicação de medidas substitutivas da prisão processual estabelecem que Para isso, impõe-se, além da previsão em lei da medida mais gravosa (prisão cautelar), a idoneidade e menor lesividade da medida substitutiva (da prisão). Desde que a medida menos gravosa seja suficientemente eficaz para alcançar a finalidade perseguida pela prisão, torna-se desproporcional 405 SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 76-77. 182 a adoção desta última.406 José Laurindo de Souza Netto apresenta medidas alternativas à prisão cautelar para preservar a instrução processual. Em recente encontro do Comitê de Ministros do Congresso da Europa foram apresentadas as seguintes medidas alternativas: liberdade mediante caução, vigilância por terceiros, obrigação de comparecimento periódico perante autoridade, internamento em instituição especializada, prisão domiciliar, obrigação de permanecer no país, proibição de freqüentar determinados lugares, proibição de entrar em contato com certas pessoas, retirada do passaporte, retirada da carteira de motorista, restrições ao exercício de atividades profissionais em funções e serviços públicos, retenção de armas. A relação de medidas alternativas precisa ser adotada como exemplo, já que outras podem garantir o processo, sem prejuízo ao processo penal. 6.2 Prazo de Duração da Prisão Preventiva O Código de Processo Penal Brasileiro é omisso quanto ao tempo de duração da prisão processual, seja qual for. Em razão desta deficiência, ela pode durar até à prolação da sentença. O prazo usado como balizador resulta da construção jurisprudencial. 406 SOUZA NETTO, Jose Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2005, p. 77. 183 A jurisprudência brasileira incumbiu-se de solucionar a falta de uma definição legal sobre os prazos para o encerramento do processo penal tendo em vista que ‘tanto ao Estado, por razões de ordem pública, como aos sujeitos processuais, convém o rápido desfecho da ação penal, principalmente ao réu preso’,407 estatuindo que, no máximo de 81 dias, a prestação jurisdicional deve ser efetivada.408 O prazo de 81 dias para a prestação jurisdicional ao caso concreto, conforme consta da súmula 52, do Superior Tribunal de Justiça, foi deslocado da sentença de mérito para o final da instrução acusatória, no início da fase do artigo 499, do Código de Processo Penal. A jurisprudência se encarregou de promover outras alterações na fixação do prazo-limite da instrução processual, conforme estudos de Antônio Scarance Fernandes: o tempo de oitenta e um dias é exigível para o encerramento da instrução e não para a prolação de sentença, havendo mesmo forte inclinação a se exigir a observância desse prazo somente até o encerramento da prova acusatória; vários motivos justificam a superação dos oitenta e um dias - grande número de réus, complexidade da causa, necessidade de expedição de precatórias, instauração de incidentes (insanidade mental, dependência toxicológica, falsidade documental); não haveria constrangimento quando o excesso resultasse de manobras da defesa ou de diligências de seu interesse; o constrangimento deve ser verificado em cada caso, dentro de um critério de razoabilidade. Pode-se afirmar que o prazo de oitenta e um dias resultou de um marco para a verificação do excesso. Só isso. A sua superação não traduziria mais, segundo a jurisprudência, constrangimento ilegal, que deveria ser verificado em cada caso concreto em face das razões que determinarem a 407 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. TACRIM. HC nº 276.240/7. Rel. Marcio Bártoli. 10ª Cam. Diário da Justiça, 16 ago. 1995. 408 MARONNA, Cristiano Ávila; CIASCA, Renata Strang. O excesso de prazo na prisão cautelar e a súmula 52 do STJ. Boletim IBCCRIM, São Paulo, p. 268, jun. 1988. 184 demora.409 É possível e não raro que o prazo da custódia cautelar, em razão da extrapolação dos prazos da segregação cautelar, seja superior à pena definitiva, ainda mais se for considerada a possibilidade de livramento condicional e progressão de regime, situação que ocorre, justamente, pela inexistência de qualquer previsão quanto ao prazo da prisão preventiva ou da prisão provisória no seu sentido estrito. Em recente atualização da letra da Carta Constitucional, numa clara afirmação à imposição do princípio do devido processo legal, foi acrescentado ao texto da Constituição, o inciso LXIIIV, no artigo 5º, que cuida, exatamente, das garantias individuais do cidadão, visando à celeridade processual: a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação410. Entende-se que a inclusão, em se tratando de processo penal, representa, simplesmente, a afirmação ao princípio do devido processo legal, contemplado no inciso LIV, do artigo 5º, da Constituição, uma vez que, em obediência ao princípio do devido processo legal, os prazos processuais devem ser rigorosamente observados. O ordenamento processual penal prevê, expressamente, os prazos procedimentais de cada fase processual. Assim, considerando que a inclusão constitucional silencia quanto à determinação de prazos e a simples obediência ao princípio do devido processo legal, que representa a observação do procedimento legal previsto, o novo texto afirma a obrigatoriedade da obediência aos prazos estabelecidos. 409 FERNANDES, Antonio Scarance. Novo Maximo de prisão cautelar: 180 dias. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 32, p. 3, ago. 1995. 410 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 185 O excesso de prazo das várias modalidades de prisões provisórias representa uma das violações aos direitos humanos do acusado no processo penal. Isto é o que observa Rogério Lauria Tucci. Verifica-se, enfim e induvidosamente também, que o disposto no art. 8º., 1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, vem sendo, numa regra quase sem exceção, manifestamente contrariado pela longevidade do curso dos procedimentos penais em nosso país, aos quais faltam os exigíveis mecanismos de sua agilização.411 A importância de marco na duração do processo, e, por conseqüência, da prisão cautelar, aparece pela caracterização do constrangimento ilegal quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei, a ser atacado via habeas corpus nos termos do artigo 648, II do Código de Processo Penal412. A lei 9.034/95, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e a repressão de ações praticadas por organizações criminosas, estabelece no artigo 8º, o prazo máximo de 180 dias para a prisão processual, aos crimes previstos na lei. Antônio Scarance Fernandes defendo que, na falta de prazo previsto em lei, seja aplicado o prazo previsto na lei 9.034/95: Ora, a previsão pela Lei do Crime Organizado de um prazo máximo de prisão cautelar impõe novas reflexões e exige resposta a três indagações fundamentais: 411 TUCCI, Rogério Lauria. Processo penal e direitos humanos no Brasil. Revista dos Tribunais, a. 87, n. 755, p. 477, set. 1998. 412 FERNANDES, Antonio Scarance. Novo Maximo de prisão cautelar: 180 dias. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 32, p. 3, ago. 1995, p. 3. 186 como se adequar o prazo global de cento e oitenta dias ao prazo de oitenta e um dias criado pela jurisprudência? Esse prazo máximo de cento e oitenta dias deve abranger toda a fase recursal e, nos processos de júri, incluir a fase posterior à pronúncia até o julgamento em plenário? Este prazo global pode se aplicar a outros crimes além dos regulados pela lei 9.034/95? A primeira questão é de solução aparentemente simples. O prazo de oitenta e um dias continua sendo um marco para se avaliar eventual constrangimento ilegal, enquanto o prazo de cento e oitenta dias passa a ser o prazo máximo, a partir do qual não mais se admitiria qualquer excesso, ficando o juiz impedido de justificar, no caso, o atraso por situações especiais ou em virtude de um critério de razoabilidade. Mais difícil é a resposta à segunda questão. A redação do texto parece não deixar dúvidas de que o prazo é fatal, pois está escrito ser o período de cento e oitenta dias o tempo máximo de prisão. Provavelmente, contudo, não será possível realizar nesse período os julgamentos dos processos de júri e dificilmente terão os tribunais condições de apreciar os recursos de modo a evitar a superação do prazo de cento e oitenta dias. Ante essa situação facilmente constatável e sem que a nova lei preveja prorrogação de prazos, é bem possível que a jurisprudência dê ao texto orientação restritiva, adequando-o às interpretações anteriores, ou seja, que venha a considerar aquele prazo máximo até a pronúncia ou até a sentença. Não é, entretanto, o que se extrai do texto. A última questão deve ter resposta positiva. Falta no CPP a previsão de um prazo máximo de prisão. Assim, é admissível que, por interpretação analógica, aplique-se a norma a todos os processos, suprindo-se a lacuna.413 As previsões de Antônio Sacarance Fernandes no sentido de que se daria interpretação restritiva à lei 9.034/95 foram confirmadas por várias decisões do Superior Tribunal de Justiça, que continua justificando a extrapolação dos prazos processuais com o fundamento do princípio da razoabilidade. Há que se considerar como prazo máximo da duração da prisão preventiva, desde a decretação até a sentença, caso persistam os motivos autorizadores da prisão preventiva, por aplicação analógica do artigo 8º, da lei 9.034/95, o tempo de cento e oitenta 413 FERNANDES, Antonio Scarance. Novo Maximo de prisão cautelar: 180 dias. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 32, p. 3, ago. 1995, p. 3. 187 dias, não comportando qualquer extrapolação. Cláudio Porto do Amaral414 faz importantes considerações sobre a situação das prisões cautelares em caso de greve, considerando a possibilidade de greves de serventuários da Justiça, com a conseqüente paralisação dos processos, dificultando a compreensão da idéia da razoabilidade temporal dos atos processuais, já que os atos processuais não se realizam. A abordagem do magistrado é feita sob dois ângulos. O primeiro considera o princípio de presunção de inocência do segregado cautelarmente. Leva em conta os princípios da brevidade e da excepcionalidade da prisão preventiva, no caso em que se considera absolutamente inadmissível alguém permanecer custodiado, aguardando julgamento sem a perspectiva da retomada do curso normal do processo. Sob outra ótica, defende, partindo do pressuposto de que a greve como parte da sociedade contemporânea brasileira, posto que se trata de uma sociedade democrática e que aspira fundamentalmente à liberdade e à igualdade, e que, por tanto, fenômeno autorizado pelo Direito, com efeitos sobre todos os cidadãos. Da mesma forma, seus efeitos se estenderiam aos indivíduos presos preventivamente, que deveriam aceitar os efeitos da greve com a mesma resignação que o restante da sociedade, já que a prisão preventiva é medida legítima desde que observados os pressupostos e os requisitos necessários a sua decretação. Sendo assim, a inércia do processo em razão da greve não faz cessar os motivos autorizadores do decreto prisional como forma de justificar sua posição. Cláudio Prado Amaral exemplifica: Imagine-se um réu preso provisoriamente por crime doloso contra a vida, que possui diversas condenações definitivas recentes por crimes praticados 414 AMARAL, Cláudio Prado. Greve e prisão cautelar. Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 12, n. 143, p. 12-14, out. 2004. 188 com violência e grave ameaça contra a pessoa – todos com intensa crueldade – e cuja prisão cautelar foi decretada justamente para evitar novos delitos, tudo baseado num juízo de probabilidades. Deve ser admitido, ainda, que em relação a este réu existem indícios de autoria sobre a acusação à qual está respondendo preso. Indaga-se: o advento greve aniquila o elemento ‘necessidade’ dessa prisão? Certamente, não. Seria correto libertá-lo para aguardar em liberdade o julgamento, ainda que existam testemunhas ameaçadas e vítimas juradas de morte? Também não. Agora, vamos agudizar a hipótese acima. Imaginemos uma greve longa: 1 ano. Deveria o réu aguardar tanto tempo? Depende. Não se sabe o que deve ser considerado ‘prazo razoável’ para a conclusão do processo mesmo ante uma greve. Não existe critério com numerus clausus para definir a expressão ‘prazo razoável’. Já que a compreensão da expressão – e conseqüentemente a sua quantificação com o termo a quo e termo ad quem – está em boa parte deixada ao sabor de interpretação que pode variar muito, a situação hipotética de greve de um ano incitaria o julgador a uma atitude que é considerada proibida no processo penal, qual seja, o exame mais aprofundado das provas até então colhidas como fato determinante da soltura ou manutenção da custódia do acusado.415 Considerando-se o direito de greve como forma de causar prejuízo, o preso preventivo é quem arcaria com o prejuízo decorrente da paralisação do processo, porém, como forma de minimizar o prejuízo do réu, caberia ao juiz, ao analisar as provas colhidas na fase inquisitorial, fazer que a decisão se aproximasse o máximo possível da decisão de tutela final buscada pela acusação e defesa. Em ordenamentos processuais alienígenas é constatada a fixação de prazos limites para a duração da prisão preventiva. O Código de Processo Italiano, de acordo com comentários feitos por Francesco Carnelutti, apresenta dificuldades em relação à estreita obediência dos prazos processais fixados: Sob este aspecto é oportuno fazer referência desde já aos limites de duração da detenção preventiva, tal como são estabelecidos, com uma valoração 415 AMARAL, Cláudio Prado. Greve e prisão cautelar. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 12, n. 143, p. 12-14, out. 2004, p. 12-14. 189 infelizmente muito otimista. Pela lei: resulta do art. 272 que somente depois de 4 meses, para a instrução formal, e de quarenta dias, para a instrução sumária, deve o juiz começar a preocupar-se com a aceleração do processo; quatro meses de detenção preventiva são, portanto, para o legislador, um evento que não sai dos limites da normalidade; mas, quando se reflete que sobre a medida da pena suficiente para determinar a captura não entram em jogo circunstâncias atenuantes, as quais, todavia, em certos casos podem fazer a pena diminuir de três quartos (art. 67² do Código Penal), damo-nos conta que a duração prevista para a detenção preventiva, embora prescindindo de particular periculosidade do imputado, pode superar o mínimo da pena que lhe será aplicada; um imputado de um delito punível com um mínimo de um ano de reclusão, o qual, no caso de concurso de várias atenuantes, poderia ser condenado a apenas três meses, pode, de acordo com a lei, sem que isso dê lugar a nenhuma anormalidade, permanecer em estado de captura durante quatro meses. Deve-se observar que estes cálculos são feitos sobre o que me permite chamar valorações otimistas da lei quanto à duração da detenção preventiva; mas a fim de que tais valorações correspondessem à realidade conviria que, pelo menos, houvesse juízes e, em geral, funcionários judiciais suficientes para realizar o trabalho penal e, portanto, para fazer andar o processo, se não propriamente às carreiras, pelo menos numa marcha normal; agora, bem, o leito conhecedor das verdadeiras condições do ambiente judiciário, ainda deixando de lado crises particulares graves, como a que atravessamos, sabe que os prazos previstos pelo art. 272 são, infelizmente, insuficientes para as possibilidades normais da instrução, de maneira que a confrontação entre a pena correspondente à imputação e a duração média da detenção prevista, para ser, teria de ser feita sobre outras bases. Isto quer dizer também o instituto da captura do imputado, numa reforma do processo penal, deve ser objeto de novo exame com provável resultado de restringir os limites da potestade coercitiva. 416 Francesco Carnelutti expõe uma série de situações, que num comparativo representam a realidade atual do judiciário brasileiro e que levam, inexoravelmente, à extrapolação dos prazos, propondo a redução dos prazos relativos à duração máxima da prisão preventiva. No Direito Processual Penal Português encontramos prazos estabelecidos para a duração do encarceramento preventivo. Até a entrada em vigor do código processual atual, em 1987, o prazo máximo da efetivação da prisão preventiva, até a acusação, poderia alcançar 150 dias, prazo que foi alargado no código vigente, podendo, agora, chegar, de 416 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Trad. Francisco Jose Galvão Bueno. Campinas: Bookseller, 2004, p. 177. 190 acordo com interpretação de Germano Marques da Silva417, a 15 meses. Segundo cálculos de Frederico Isasca418, pode chegar a quatro anos e meio, considerando-se todas as fases processuais, começando pela realização do inquérito policial, passando pela instrução e julgamento, até a apreciação de possível recurso. Houve assim um alargamento do prazo operado no procedimento português, conforme o estudioso lusitano Germano Marques da Silva419, o que representou um retrocesso, já que o Código de Processo anterior trazia marcas do autoritarismo, em confronto com a celeridade processual exigida pela Constituição: Comentava ironicamente Salgado Zenha, referindo-se às reformas de cariz autoritários dos anos quarenta do século passado em confronto com as de legislação precedente, que ‘a primeira surpresa é que quanto menos idôneos são os funcionários instrutores, maiores são os poderes que se lhes conferem’420. É evidente que não é essa agora, como não o era então, a verdadeira causa, mas a crescente complexidade da criminalidade não justifica tudo, até porque o alargamento dos prazos abrange toda a espécie de crimes. Não são também razões de natureza política a ditar o alargamento, como de certo modo sucedia no tempo a que se referia Salgado Zenha, mas o alargamento do prazo da prisão até a acusação não deixa de ser contraditório com a dinâmica da vida do nosso tempo e com o direito à celeridade que a Constituição também garante, e até com a exigência legal de que só seja aplicada quando no processo tenham sido recolhidos fortes indícios da prática do crime. É nosso entendimento que aquele alargamento dos prazos se deve em grande medida à sobrevalorização da eficácia da investigação e da segurança pública com prejuízo do direito à liberdade, por uma parte, mas também, e principalmente, à contemporização com a insuficiência do aparelho judiciário para responder às crescentes solicitações, por outra parte. Sucede que a conjuntura daquelas razões é agravada pelo efeito multiplicador da incipiente cultura democrática ambiente a fazer esquecer que a idéia de democracia inere o absoluto respeito pelos direitos dos outros e que seu sacrifício, ainda quando consentido para realização de interesses também 417 SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In: ANDRADE, Manuel da Costa (Org.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Ed., 2003, p. 1368-1369. 418 ISASCA, Francisco. Prisão preventiva e as restantes medidas de coação. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, a. 13, n. 3, p. 367-385, jul./set. 2003, p. 379. 419 SILVA, op. cit., p. 1.369. 420 ZENHA, Francisco Salgado. Notas sobre a instrução criminal. Braga, 1968. p. 61. Apud SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In: ANDRADE, Manuel da Costa (Org.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Ed., 2003, p. 1368-1369. 191 merecedores da tutela, deve ser reduzido ao mínimo indispensável.421 A doutrina portuguesa também não chegou a bom termo em relação ao prazo máximo do encarceramento preventivo. É criticada quanto à divergência entre prazos fixados. É o caso, por exemplo, do prazo para a duração da prisão preventiva e outro, fixado para a duração da instrução processual. Invocando Francisco Isasca pelo princípio da concordância ou harmonia dos prazos, e, reclamando por maior celeridade processual, externa Finalmente, uma última palavra quanto à prisão preventiva. Se um sistema de justiça não é capaz de responder com eficiência e celeridade ditando o direito ao caso concreto, de duas uma: ou o sistema está mal, ou não são criadas as condições mínimas para que funcione. No caso português, estou absolutamente convicto que, no essencial, o defeito não está no sistema. Mas também estou absolutamente convicto que não é aceitável – num Estado de Direito Democrático – permitir, à velocidade em que decorre a vida no século XXI, que uma medida cautelar, como o é da prisão preventiva, possa ter a duração de quatro anos e meio! Creio que dois anos ou mesmo dois anos e meio é o limite do admissível.422 O doutrinador Germano Marques da Silva se manifesta no mesmo sentido: É urgente cumprir a Constituição e conformar a lei ordinária para que a prisão preventiva adquira o seu carácter de excepção e essa conformação passa necessariamente pelo encurtamento dos prazos porque é dificilmente 421 SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In: ANDRADE, Manuel da Costa (org.) Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Ed., 2003, p. 1369. 422 ISASCA, Francisco. Prisão preventiva e as restantes medidas de coação. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra, ano 13, n. 3, p. 367-385, jul./set. 2003, p. 385. 192 conciliável com os princípios de presunção de inocência e da liberdade423, que são a base de nossa civilização, uma prisão preventiva que possa atingir 15 meses imposta a quem, ‘sendo embora argüido de um crime, não está ainda pronunciado ou acusado’424 e praticamente impossibilitado de se defender, sobretudo em razão de uma pratica processual de matiz autoritária.425 A doutrina lusitana, embora apresente contradições quanto à interpretação do prazo máximo da duração da medida de encarceramento preventivo, revela congruência de idéias no sentido da celeridade processual máxima quando o acusado se encontra preso cautelarmente. 6.3 Proposta de Contagem de Prazo da Prisão Preventiva A legislação em vigor determina que a contagem de prazo do preso segregado por custódia preventiva, bem como por quaisquer das modalidades das prisões processuais, medida de segurança ou administrativa, mesmo que seja cumprida no exterior, se opere a detração, instituto previsto no artigo 42, do Código Penal. Na contagem de tempo é computado, para fins de detração, um dia de pena a ser cumprido de acordo com a sentença, para cada dia cumprido provisoriamente, qualquer 423 “A prisão preventiva não pode deixar de ser temporalmente limitada, e, de acordo com a sua natureza, estritamente limitada”. CANOTILHO, J. J. Gomes; BUENO, Vital. Constituição da Republica Portuguesa anotada. 3. ed. 1993, p. 190. Apud SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In: ANDRADE, Manuel da Costa (Org.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Ed., 2003. 424 CANOTILHO, J. J. Gomes; BUENO, Vital. Constituição da Republica Portuguesa anotada. 3. ed. 1993, p. 190. Apud SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In: ANDRADE, Manuel da Costa (Org.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Ed., 2003. 425 SILVA, Germano Marques da. Sobre a liberdade no processo penal ou do culto a da liberdade. In: ANDRADE, Manuel da Costa (org.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Ed., 2003, p. 1370. 193 que for a duração da prisão cautelar. Observa-se na prática processual que, dificilmente, um processo tem a sentença prolatada no prazo processual previsto, e que, de acordo com as somas dos prazos previstos no Código de Processo Penal, no processo de rito ordinário, decidiu-se pela jurisprudência em 81 dias, caso não sejam requeridos incidentes que possam aumentar o prazo, como a oitiva de testemunhas por carta precatória, incidente de sanidade, além de outros. Ao elaborar o projeto de Reforma do Código Penal e da Lei de Execuções Penais para a Argentina em 1992, (estudo que não passou do projeto),Raul Eugênio Zaffaroni sugeriu a adoção de sistema progressivo da contagem do tempo da prisão cumprida provisoriamente, medida que resultaria na aceleração natural do processo , bem como uma certa compensação pela violação do princípio da presunção de inocência, como explica o Doutrinador Argentino: Temos sugerido, também, um sistema de computo da prisão preventiva. A prisão preventiva realmente é uma pena. Temos que admitir esta conseqüência inevitável, mas temos pensado que seria muito bom imputar à pena de prisão preventiva, regra que leva à conclusão de que um dia de prisão preventiva vale um dia de prisão como se fosse definitiva, até os 6 meses. Depois, de 6 meses a um ano, um dia de prisão preventiva valerá 2 dias de prisão como pena definitiva; de um ano a 18 meses, um dia de prisão preventiva eqüivalerá a 3 dias de prisão como pena definitiva, e, dos 18 meses para frente, um dia de prisão preventiva valerá 4 dias de prisão como pena. No sistema progressivo há um incentivo ao preso, com obrigação dos tribunais, com o fim de acelerar o processo. No fundo, a prisão preventiva é uma pena inevitavelmente violatória dos princípios da presunção de inocência, mas não podemos prescindir da prisão preventiva. A prisão preventiva viola os princípios da presunção de inocência, é uma pena, e quanto maior for a prisão preventiva, progressivamente vai violando mais profundamente o princípio da presunção da inocência. Estamos reconhecendo esta violência ao imputar à pena esta progressividade, na tentativa de reparar o princípio da presunção de inocência. 426 426 ZAFARONI, Raul Eugenio. A reforma penal argentina e nos paises latino-americanos. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 30, p. 11-22, 1994. 194 A proposição, segundo nossa compreensão, seria de boa aplicação e caberia ao processo penal brasileiro como forma de impor obrigação aos condutores do processo, de observar o princípio do devido processo legal, principalmente no que diz respeito à obediência dos prazos processuais, sendo, inclusive, os marcos para a aplicação da progressividade. Assim, por exemplo, num processo ordinário, sem qualquer incidente, a partir dos 81 dias seria aplicada a progressividade, e, a cada transcurso deste período, poderia se computar um dia a mais de pena cumprida provisoriamente como pena definitiva, o que promoveria a progressão. Até os 81 dias de pena cumprida provisoriamente, um dia de prisão equivaleria a um dia de pena definitiva. A partir de 82 até 162 dias cada dia de pena provisória equivaleria a dois dias de pena definitiva. A partir de 163 até 243 dias cada dia de prisão provisória equivaleria a três dias de pena cumprida definitivamente, e, assim, sucessivamente, observados, evidentemente, os prazos exatos para a realização dos incidentes processuais e cumprimento de cartas precatórias afastando-se o princípio da razoabilidade, invocado pelo Superior Tribunal de Justiça427 para justificar as demoras injustificadas e decorrentes das deficiências do aparelho judiciário, para a manutenção das segregações provisórias. 6.4 Inexistência de Prisão Preventiva no Juizado Especial No Juizado Especial se aplica, com muito mais razão, o princípio da excepcionalidade da prisão preventiva. Isto também acontece com os demais princípios 427 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 43439/RJ - Habeas corpus 2005/0064594-4. Relator Ministro Felix Fischer. Órgão Julgador . Quinta Turma. Julgamento 15 set. 2005. Diário da Justiça, p. 356, 24 out. 2005. 195 norteadores do processo penal, notadamente da presunção de inocência. O artigo 61, da lei 9.099/95, estabelece a competência dos Juizados Especiais. As infrações a serem julgadas por este Juízo são as contravenções penais e crimes punidos com pena máxima não superior a um ano. O limite temporal foi aumentado para pena não superior a dois anos pela aplicação, em beneficio do réu, da lei 10.259/2001, lei dos Juizados Especiais Federais. Assim, por aplicação do artigo 69 da lei 9.099/95, não haverá a prisão em flagrante, já que em havendo a infração penal, a autoridade policial lavrará termo de infração penal. Na análise do disposto no artigo 313, do Código de Processo Penal, considerando os tipos penais de competência dos Juizados Especiais, percebe-se que somente em alguns casos seria cabível a prisão preventiva. Trata-se dos casos previstos no inciso II do artigo citado, ou seja, indiciado por crime doloso, punido com detenção, sendo vadio ou se houver dúvida quanto a sua identidade, ou, quando o indiciado não fornecer elementos para a sua identificação. José Laurindo de Souza Netto apresenta posição firme sobre a impossibilidade da medida cautelar nos crimes de competência dos Juizados Especiais. Acontece que o tratamento legal dispensado para os delitos de menor potencial ofensivo é incompatível com encarceramento preventivo diante da imperiosa presença do acusado no procedimento, embora o argumento não seja por evidente cabal. Definitivo, este sim, é o argumento que indica o sentido de ser um contrasenso o fato do imputado vir a sofrer mais durante o processo do que com a pena que, eventualmente, venha a receber em caso de condenação.428 428 SOUZA NETTO, Jose Laurindo de. Processo penal: modificação da lei dos juizados especiais criminais à luz dos princípios processuais. Curitiba: Juruá, 1998, p. 115. 196 A convicção de José Laurindo de Souza Netto é fundada, basicamente, na aplicação do princípio da proporcionalidade, aplicado aos procedimentos penais italiano e português: O Código de Processo Penal Português, no seu artigo 193º, 1, estabelece que as medidas de coação a aplicar devem ser proporcionais à gravidade do crime e as sanções que, previsivelmente, venham a ser aplicadas. No mesmo sentido, o disposto no art. 321, do Código de Processo Penal Brasileiro, garante uma situação de liberdade plena quando o réu se livra solto. O encarceramento preventivo no Juizado apresenta-se desproporcional com a pena que se espera, superando-a em gravidade. O Código de Processo Penal Italiano determina, no art. 274, ‘b’, que não será imposta medida cautelar quando o Juiz antevê a possibilidade de que o apenamento a ser aplicado não ultrapassar dois anos. Deste modo, a existência de poder estatal, para privar os indivíduos de liberdade, no sistema do Juizado, leva à revigoração do princípio do estado de inocência.429 Integrantes da 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de São Paulo, ao concederem ordem de habeas corpus, justificaram a concessão da revogação da prisão preventiva levando em conta a aplicação dos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da excepcionalidade da medida cautelar. O acórdão destaca: Por outro lado, curial salientar que o crime de desobediência, irrogado ao paciente, inclui-se entre aqueles considerados de menor potencial ofensivo pelo art. 2º, § único, da Lei n° 10.259/01, instituidora dos Juizados Especiais Federais, e a decretação da prisão preventiva, nestas condições, possui um caráter desproporcional, diante não só da possibilidade de 429 SOUZA NETTO, Jose Laurindo de. Processo penal: modificação da lei dos juizados especiais criminais à luz dos princípios processuais. Curitiba: Juruá, 1998, p. 115. 197 transação penal (art. 76 da Lei n° 9.099/95) e de suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n° 9.099/95), mas também, na hipótese de condenação, de eventual concessão de sursis (art. 77 do Código Penal), multa substitutiva (art. 60, §2° do Código Penal) ou aplicação de pena restritiva de direito (art. 44 do Código Penal). A desproporcionalidade da medida fica ainda mais nítida se considerarmos que em delitos de menor potencial ofensivo sequer é cabível a prisão em flagrante do autor do fato, se este for encaminhado ao Juizado competente ou assumir o compromisso de a ele comparecer, ex vi do art. 69, § único da Lei nº 9.099/95. Desta feita, a determinação de recolhimento preventivo em casos envolvendo delitos considerados de menor expressão ou de pouco potencial ofensivo atenta contra o princípio da razoabilidade, devendo ficar reservada a prisão preventiva a hipóteses graves e excepcionalíssimas, o que não corresponde ao caso vertente nos presentes autos.430 Há, todavia, quem defenda a possibilidade da decretação da prisão preventiva em sede de Juizado Especial em condições especialíssimas: Apesar de raríssima e de contra-indicada, pode ser cabível, no Juizado, a representação ou o pedido de prisão preventiva se, por exemplo, provar-se que o autor do fato está coagindo testemunhas. Neste aspecto devemos estar atentos para um dos elementos da prisão provisória, qual seja a homogeneidade: las medidas cautelares son homogéneas, aunque no idênticas, con las medidas ejecutivas a las que tienden a preordenar.431 A Turma Recursal Única, do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, emite manifestações nos dois sentidos: pela inviabilidade da prisão preventiva, em razão da sua característica de excepcionalidade e, pela cominação de penas restritivas de direitos aos 430 BRASIL. JEF. Habeas Corpus nº 200403000202440 SP. Órgão Julgador 1ª Turma Recursal – SP. Relator Juiz Federal Hélio Egydio M. Nogueira. Decisão: 16 nov. 2004. Disponível em: <http://daleth.cjf.gov.br/Jurisp/Juris.asp>. Acesso em 28 jan. 2006. 431 MOREIRA, Rômulo de Andrade. Juizados especiais criminais: considerações gerais. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 285, 18 abr. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5078>. Acesso em: 20 out. 2005. 198 crimes e contravenções de competência dos Juizados Especiais432. No recurso 2003.00002963, de habeas corpus criminal, a Turma Recursal entendeu cabível a decretação da prisão preventiva, conforme se percebe na ementa: É assente na jurisprudência a aplicação dos artigos 312 e 313, II, ambos do Código de Processo Penal, para fundamentar o decreto de prisão preventiva daquele que, respondendo por crime apenado com detenção e não comprovando atividade laboral lícita, reitera a prática delituosa. 2. Em casos tais, não se configura constrangimento ilegal a prisão cautelar, posto que emanada para garantia da ordem pública.433 É possível observar que a lei 9.099/95 se coaduna com os princípios gerais das Regras de Tóquio, adotadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas através da resolução 45/110, de 14 de dezembro de 1990, que tem por finalidade a intervenção mínima e a aplicação de medidas não restritivas de liberdade ao máximo. Preceituando em relação à prisão preventiva determina 6. A prisão preventiva como último recurso. 6.1. No procedimento penal só se recorrerá à prisão preventiva como último recurso, tendo devidamente em conta a investigação do suposto delito e a proteção da sociedade e da vítima. 6.2. As medidas substitutivas da prisão preventiva se aplicarão o antes possível. A prisão preventiva não deverá durar mais que o tempo que seja 432 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Turma Recursal Única. Recurso em Sentido Estrito 2003.0000329-2. Ação Originária 1999.10. Comarca de Origem Quedas do Iguaçu. Relator: Juiz Edgard Fernando Barbosa. 17 maio 2004. Disponível em: <http://www.tj.pr.gov.br/csp/turmarec/ConsultaVerbete02.csp?Operacao=PR>. Acesso em: 28 jan. 2006. 433 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Turma Recursal Única. Recurso 2003.0000296-3 - Habeas Corpus Criminal. Ação Originária 2002.110 Comarca de Origem Astorga - 1º JECri. Relator: Juiz Edgard Fernando Barbosa. Julgamento 01 set. 2003. Disponível em: <http://www.tj.pr.gov.br/csp/turmarec/ConsultaVerbete02.csp? Operacao=PR>. Acesso em 28 jan. 2006. 199 necessário para o logro dos objetivos indicados da regra 6.1. 6.3. O delinqüente terá direito a apelar ante uma autoridade judicial ou outra autoridade independente e competente nos casos em que se imponha a prisão preventiva.434 Não há como se conceber a aplicação da prisão preventiva ao acusado, que, em sentença penal condenatória, provavelmente não seja sentenciado a pena privativa de liberdade, mas restritiva de direitos. 6.5 Prisão Preventiva Diante dos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos Diante da importância da aplicação de tratados de direitos humanos, mormente quando se trata de proteger o cidadão, faz-se necessária breve explanação sobre a forma como eles ingressam no ordenamento jurídico brasileiro, bem como sobre o seu status normativo. A Carta Constitucional de 1988, inspirada em experiências de constituições que evidenciam os princípios da dignidade humana e os direitos humanos, apresenta o que há de mais avançado em relação à matéria435, o que pode ser observado já no preâmbulo da Carta Maior. A Constituição Federal já estabelecia, anteriormente, a aplicação imediata 434 Regras Mínimas das Nações Unidas sobre Medidas não Privativas de Liberdade (Regras de Tókio). Adotadas pela Assembléia Geral em sua resolução 45/110, em 14 de dezembro de 1990, citado por MAIA NETO, Candido Furtado. Direitos humanos do preso: lei de execução penal, Lei nº 7.2210/84. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 257. 435 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos, o princípio da dignidade humana e a Constituição Brasileira de 1988. Revista dos Tribunais, a. 94, n. 833, p. 48, mar. 2005. 200 de normas que tratassem sobre direitos fundamentais no §1º, do artigo 5º, bem como a aplicação das normas e dos princípios decorrentes de tratados adotados pelo Brasil, no §2º, do artigo 5º. O fato, entretanto, gerou discussões doutrinárias sobre a hierarquia das normas internacionais. Com a inclusão do §3º, do artigo 5º, da Constituição Federal, pela Emenda Constitucional nº 45, promulgada em de 08 de dezembro de 2004, (o tratado internacional que versa sobre matéria de direitos humanos é inserido no ordenamento jurídico interno), passa a ser equiparada à emenda constitucional, inclusive, em relação à validade e à eficácia dela, unificando, assim, as várias vertentes doutrinárias acerca da receptividade dos tratados internacionais, a partir de simples interpretação da emenda: Pela parte final da redação do §3º, do artigo 5º, da Constituição Federal, pode-se concluir que, embora os tratados internacionais que versam sobre matéria de direitos humanos sejam equiparados a emendas constitucionais, dependem, para isto, da aprovação, inclusive em dois turnos, pela maioria qualificada dos membros de cada casa do Congresso Nacional: Câmara de Deputados e Senado. Caso não atendam à exigência, se igualam à lei ordinária, como ocorria com o entendimento anterior à Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004. A necessidade da equiparação entre os tratados internacionais que versam sobre matéria de direitos humanos à emenda constitucional no ordenamento jurídico pátrio há muito tempo está sendo discutida pela doutrina. Para ilustrar o afirmado, pode-se citar o eminente constitucionalista português, J.J Gomes Canotilho, em comentários feitos à constituição portuguesa: Dada à não atribuição expressa pela Constituição, de um valor específico às normas de direito internacional geral, várias soluções poderão ser 201 apontadas quanto ao valor dessas normas: (1) valor constitucional – as normas de direito internacional geral fariam parte integrante do direito constitucional português e a sua violação desencadearia o fenômeno da inconstitucionalidade; (2) valor infraconstitucional, mas supra legislativo – as normas de direito internacional geral não podem valer contra a Constituição, mas têm primazia hierárquica sobre o direito interno anterior e posterior, devendo os tribunais ou quaisquer outros órgãos aplicadores do direito recusar-se a aplicar o direito interno contrário ao direito internacional geral; (3) valor equivalente ao das leis – podendo, revogar actos legislativos anteriores e ser revogados por leis posteriores; (4) valor supra-constitucional, como expressamente estatui a constituição holandesa em que as normas de direito internacional têm primazia sobre as normas constitucionais.436 Mesmo sem previsão legal expressa sobre as normas de direito internacional, já havia, na doutrina, a possibilidade da aplicação de várias teorias, na tentativa de inseri-las em contexto social, dentre os quais está a primazia sobre as normas constitucionais. A inclusão do §3º, ao artigo 5º, da Carta Magna, dificultou a inserção dos tratados de direitos humanos ao ordenamento jurídico, já que determina a aprovação da maioria qualificada dos membros do Congresso Nacional. Pela interpretação da cláusula aberta do §2º, do artigo 5º, da Constituição Federal, os tratados internacionais de direitos humanos já possuíam força constitucional sem a necessidade da aprovação por maioria absoluta do Congresso Nacional. Isto é o que assevera Valério de Oliveira Mazzuoli: De outra parte, a assertiva de que os tratados internacionais de proteção dos direito humanos ‘ingressam como lei ordinária’ no nosso ordenamento interno não prospera. Se a própria Constituição estabelece que os direitos e as garantias nela elencados podem ser complementados por outros, provenientes de tratados, não se poderia pretender que esses outros direitos e garantias tivessem um grau hierárquico diferente do das normas constitucionais em vigor. Ademais, a afirmativa de que ‘senão por meio de 436 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 796. 202 tratados teríamos emendas constitucionais a alterar a Constituição’, em virtude de ter tratado posterior, não podem modificar a Constituição nem se tornar petrificado por antecipação, como veremos, é, data máxima vênia, absolutamente descabida. Primeiro, porque os tratados de proteção dos direito humanos de que o Brasil é parte tornam-se, sim, petrificados por antecipação, pelo fato de terem aplicação imediata, segundo o mandamento do §1º, do artigo 5º, da Carta de 1988, desde a data de respectivas ratificações. Segundo, porque, como veremos, sem embargo de não poderem tais tratados ‘emendar’ o texto constitucional, podem, entretanto, em caso de conflito com uma norma constitucional menos benéfica, fazer com que se inaplique o dispositivo constitucional prejudicial, aplicando-se o texto do tratado que traz disposição sobre a mesma matéria, de forma mais favorável ao cidadão.437 O entendimento é viável porque a redação do §2º, do artigo 5º, da Constituição Federal, estabelece que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”438. Consoante ao estabelecido, pode-se consagrar que somente os tratados internacionais versando sobre matéria de direitos humanos é que são equiparados às emendas constitucionais e possuem inclusão imediata pelo sistema jurídico nacional, conforme regra prevista no §1º, do artigo 5º, da Constituição Federal, enquanto que, os demais tratados internacionais, inseridos no ordenamento jurídico pátrio, têm índole infraconstitucional e não podem ser congregados imediatamente. O inciso II, do artigo 4º, da Carta Magna, estabelece: Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: 437 MAZUOLLI, Valério de Oliveira. Direito humanos provenientes de tratados: exegese dos §§1º e 2º do art. 5º da constituição de 1998. Revista Jurídica, a. 48, n. 278, p. 41, dez. 2000. 438 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 203 [...] II – prevalência dos direitos humanos;439 Fazendo-se leitura sistemática do artigo, percebe-se que a Carta Magna determina que as relações exteriores são dirimidas pela prevalência dos direitos humanos. Diante disto pode-se subtender que, em conjunto com a cláusula aberta do §2º, artigo 5º, da Constituição Federal, sempre vai ser aplicada a norma mais benéfica, qual seja, a do princípio da primazia da norma mais benéfica para dirimir as relações interestatais: Quanto ao caráter aberto da cláusula constitucional constante do art. 5º, parágrafo 2º, é ele evidenciado por José Afonso da Silva, quando leciona a circunstância de a Constituição mesma admitir outros direitos e garantias individuais não enumerados, quando, no parágrafo 2º, do art. 5º, declara que os direitos e garantias previstos neste artigo não excluem outros, decorrentes dos princípios e do regime adotado pela Constituição e dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.440. Antes da inserção do §3º, ao artigo 5º, da Constituição Federal, era atribuído aos tratados internacionais de direitos humanos caráter de emenda constitucional, por conta da “cláusula aberta” do §2º, do artigo 5º, da Constituição Federal, que permite a inclusão do rol de princípios da própria Constituição e, de outros, provenientes de tratados, sendo que o §3º do mesmo dispositivo legal, pôs fim às discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da sua hierarquia. Como a primeira forma de limitação ao poder supremo do Estado, a Magna 439 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 22. 440 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos, o principio da dignidade humana e a Constituição Brasileira de 1988. Revista dos Tribunais, a. 94, n. 833, p. 48, mar. 2005. p. 80. 204 Cartha Libertatum representa um dos principais documentos históricos a afirmar a liberdade, prevendo, ao mesmo, as possibilidades de se efetuar a prisão: Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos e nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país.441 A afirmação da liberdade originou-se em dois movimentos marcantes: a independência dos Estados Unidos da América, marcada pela Declaração do Bom Povo da Virgínia, de 16 de julho de 1776, e, a Revolução Francesa, da qual resultou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 26 de agosto de 1779, que, todavia, mesmo ao assegurar o direito à liberdade, impôs os limites no artigo 4º: Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.442 Marco divisor na internacionalização dos direitos humanos surge no final da 441 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/documentos/historicos/magna_carta.html>. Acesso em: 04 ago. 2007. 442 TEXTOS básicos sobre derechos humanos. Trad. Marcus Cláudio Acqua Viva. Madrid: Universidad Complutense, 1973. Apud FERREIRA FILHO, Manoel G. et al. Liberdades públicas. São Paulo: Saraiva, 1978. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/documentos/historicos/magna_carta.html>. Acesso em: 04 ago. 2007. 205 Segunda Guerra Mundial, (medida que ela própria representou) série de violações de toda a sorte dos direitos humanos, que poderiam ser evitadas diante da presença de sistema efetivo de proteção internacional de direitos humanos. É o que assegura Valério de Oliveira Mazzuoli: Esta última atribuição do direito internacional é bastante recente e não encontra eco nessa arena até o final do século XIX. Mas, em decorrência das inúmeras violações de direitos humanos, ocorridas a partir das primeiras décadas do século XX – principalmente com as duas grandes guerras mundiais – a idéia de um jus puniendi em plano global começa a integrar a ordem do dia da agenda internacional, rumo à instituição de uma moderna Justiça Penal Internacional.443 Interessante é ressaltar a criação do Tribunal de Nüremberg, resultado do acordo de Londres, firmado em 08 de agosto de 1945. Sem entrar no mérito da sua legitimidade, objeto de críticas por violar princípios norteadores do processo penal ao vedar a criação de tribunais de exceção e o princípio da legalidade, ele teve os seus julgamentos lastreados basicamente no direito costumeiro internacional, como fonte do direito, a exemplo do que ocorreu, por ocasião da redação do Estatuto da Corte de Haia, em 1920. No documento foram citados como fontes do Direito Internacional os tratados, os costumes e os princípios gerais do Direito, sendo fontes auxiliares a jurisprudência e a doutrina, e, facultativamente, o uso da eqüidade444. A partir da criação da Organização das Nações Unidas pode-se dizer que os documentos internacionais relativos à proteção dos direitos humanos foram multiplicados de forma acelerada, a começar pela Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada 443 MAZUOLLI, Valério de Oliveira. Tribunal penal internacional e as perspectivas para a proteção intencional dos direitos humanos no século XXI. Revista Jurídica, a. 93, n. 830, p. 422, dez. 2004. 444 REZEK, J. Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 9. 206 pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948. A Declaração Universal dos Direitos Humanos representa grande avanço em relação às declarações de direitos do século XVIII, (declaração francesa de 1789 e a declaração americana de 1776), que consagravam a ótica contratualista liberal pela qual os direitos humanos se reduziam aos direitos à liberdade, à segurança e à propriedade, complementados pela resistência à opressão sob os ideais de Locke, Montesquieu e Rosseau, enquanto que a Declaração Universal dos Direitos Humanos consagrou a universalidade destes direitos e introduziu a idéia de indivisibilidade ao conjugar, imediatamente, o catálogo dos direitos civis e políticos com o catalogo dos direitos econômicos, sociais e culturais445. Tratados internacionais referem-se de forma clara à restrição da liberdade do cidadão antes da prestação jurisdicional final pelo Estado juiz, seja impondo limites, seja estabelecendo regras processuais quanto ao tratamento recluso, preventivamente. Na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, realizada em San José de Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, foi elaborada, e aberta a assinaturas, a Convenção Americana de Direitos Humanos denominada de Pacto de San José da Costa Rica, subscrita pelo Brasil em relação à prisão preventiva, reafirmou, basicamente, o contido na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, inovando na área da privação de liberdade, a proibição da prisão por dívidas. Já o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, e incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro através do decreto-legislativo 226, de 12 de dezembro de 1991, promulgado pelo decreto 592, de 06 de julho de 1992, prevê, de modo expresso, a excepcionalidade da prisão preventiva, no artigo 9º, parágrafo 3º: 445 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos, o princípio da dignidade humana e a Constituição Brasileira de 1988, Revista dos Tribunais, a. 94, n. 833, p. 48, mar. 2005. p. 146. 207 A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência e a todos os atos do processo, se necessário for, para a execução da sentença.446 Advindo daí, foram elaborados vários documentos internacionais objetivando preservar as garantias de presos e detentos. Pode-se destacar, entre outros, o conjunto de princípios para a proteção das pessoas sujeitas a qualquer forma de detenção ou prisão, adaptados pela Assembléia Geral das Nações Unidas através da resolução 43/173, de 09 de dezembro de 1998, que, especificamente, resguarda o princípio da presunção de inocência e da prisão como última ratio no princípio nº 36, do documento: A pessoa detida, suspeita ou acusada da prática de infração penal presumese inocente, devendo ser tratada como tal até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida no decurso de um processo público em que tenha gozado de todas as garantias necessárias à sua defesa. Só se deve proceder à captura ou detenção da pessoa assim suspeita ou acusada, aguardando a abertura da instrução e julgamento quando o requeiram necessidades da administração da Justiça pelos motivos, nas condições e, segundo o processo prescrito por lei. É proibido impor a essa pessoa, restrições que não sejam estritamente necessárias para os fins da detenção; para evitar que dificulte a instrução ou a administração da justiça, ou para manter a segurança e a boa ordem no local de detenção.447 Outros documentos foram elaborados com a mesma finalidade. Foi o caso 446 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Adotado pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 16.12.1966. Entrou em vigor a 23.03.1976, em conformidade com o artigo 49 do mesmo Pacto, após haver a Tcheco-Eslováquia (35º Estado) depositado seu instrumento de ratificação a 23.12.1975. O Brasil ratificou o Tratado, tendo-o promulgado pelo Decreto 592, de 06.12.1992 (DO de 07 do mesmo e ano). Aprovação do Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo 226, de 12.12.1991. RANGEL, Vicente Marotta (Org.). Direito e relações internacionais. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 686. 447 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 43/173, de 09 de dezembro de 1998. 208 das regras mínimas para o tratamento de reclusos, emitidas durante o primeiro Congresso das Nações Unidas sobre a prevenção de crime e o tratamento de delinqüentes realizado em Genebra, no ano de 1955. Posteriormente, elas foram aprovadas pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas através das resoluções 663 C (XXIV), de 31 de julho de 1957, e, 2.076, (LXII), de 13 de maio de 1977. A primeira delas (663 C) estabeleceu regras que, seguramente, não são seguidas no Brasil, como é a questão da separação que precisa acontecer entre presos provisórios e condenados, sem considerar as condições mínimas de espaço, ventilação, higiene e outras que, lamentável e infelizmente, não são seguidas em prisões brasileiras. Além dos tratados internacionais já mencionados, Cândido Furtado Maia Neto cita série de documentos internacionais que visam a limitar ao máximo a prisão preventiva. No 8º Congresso Mundial das Nações Unidas sobre a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente é reafirmada a excepcionalidade da prisão preventiva, ao recomendar aos Estados-Membros, que Tenham em conta, no marco das sanções não privativas de liberdade, disponibilidades de medidas substitutórias da prisão preventiva às que se pode recorrer com maior freqüência. Evitem, reduzem ou eliminem a superpopulação nas prisões estudando a possibilidade de combinar fatores como os seguintes: redução das penas de prisão impostas, substituição das penas de prisão por sanções ou penas não privativas de liberdade e redução do recurso à prisão preventiva facilitando a liberação prévia ao juízo ou à liberdade sob fiança e cauções juratórias; Examinem métodos para garantir que não se veja obstaculizado o acesso das pessoas em regime de prisão preventiva à assistência letrada ou a outro tipo de assistência ou assessoramento e que as condições de detenção não sejam mais restritivas que o necessário para assegurar a custódia segura dessas pessoas; Façam o necessário para conseguir uma aplicação mais completa das 209 regras mínimas para o tratamento dos reclusos.448 Há recomendação firme no sentido da aplicação de medidas substitutórias da prisão preventiva. Confrontando-se com nosso ordenamento jurídico, observa-se facilmente que ele não contempla qualquer medida substitutiva à medida extrema representada pela prisão preventiva. Assim, por exemplo, para se evitar que alguma pessoa se furte à aplicação da lei penal pela saída do Brasil, o que poderia ser evitado pelo simples recolhimento do passaporte, é atacado via prisão preventiva. O avanço experimentado aconteceu pela adoção dos Juizados Especiais Civis e Criminais, visando às infrações de menor potencial ofensivo, embora, teoricamente seja possível, mesmo em sede de procedimentos de competência da justiça especializada, a aplicação da prisão preventiva. 448 CONGRESSO MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A PREVENÇÃO DO DELITO E TRATAMENTO DO DELINQÜENTE, 8.: Milão-Itália: 1985. Apud MAIA NETO, Candido Furtado. Direitos humanos do preso: lei de execução penal, Lei nº 7.2210/84. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 251. 210 CONCLUSÃO Considerando as pesquisas realizadas no presente estudo, considerando a liberdade de interpretação que nos é possibilitada pela Teoria Crítica do Direito, considerando, ainda, a proposta do curso que, colocando o homem numa perspectiva que considera o meio social, econômico, político e jurídico, sem, todavia, desprezar as contribuições históricas, com a finalidade de resgatar a dignidade do cidadão e a jurisdição como elemento de inclusão social do cidadão, nos leva a concluir que I. O texto Constitucional, que por um lado apresenta-se como limitador a atividade discricionária do Estado, no que tange o procedimento penal e principalmente a restrição de liberdade do cidadão, ao mesmo tempo legitima a prisão processual, antes da sentença penal condenatória com transito em julgado. II. A tutela de urgência no processo penal brasileiro continua sofrendo fortes influências da doutrina civilista, porém, os avanços doutrinários alcançados nos últimos tempos permitem supor que em futuro próximo, o tema será objeto de solidificação, com influência direta dos textos constitucionais, em matéria de liberdades do cidadão. III. A prisão preventiva que, por definição, deveria ter natureza eminentemente cautelar, medida instrumental ligada umbilicalmente ao processo penal condenatório, como acontece quando ela é decretada para a conveniência da instrução criminal e aplicação da lei penal, não é respeitada sob esta ótica. Em se tratando de ato para garantir a ordem pública, a prisão preventiva apresenta finalidade diversa, com amplitude que 211 possibilita afirmar que serve desde a prevenção, passando por medida de antecipação de pena, ou, mesmo, medida de segurança, aparecendo como verdadeira medida judiciária de polícia. IV. O Supremo Tribunal Federal, cimeiro do nosso Judiciário, está reservando, gradativamente, com base nos preceitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal, a prisão preventiva para os casos de extrema necessidade, sem, contudo, aboli-la totalmente. O Poder Judiciário não se presta a resolver problemas de política criminal através da privação indiscriminada da liberdade do cidadão, nem procura acalmar a população por causa de estardalhaços gerados pelos meios de comunicação. V. Os preceitos constitucionais que impõem limites à atuação do Estado, que elevam o homem a condição de parte do processo penal e que consagram a regra da liberdade têm a aplicação maximizada à medida que vão galgando as instâncias do Poder Judiciário, partindo de decisões baseadas em fundamentos de fatos, usadas para acalmar o alarma social, prestigiando a dignidade da justiça em detrimento da dignidade da pessoa humana, e, culminando em decisões que consideram as razões de direito, fundadas em preceitos. VI. Embora o avanço experimentado na direção de proteção ao cidadão, e rumo a excepcionalidade da prisão preventiva, representado pela produção doutrinária com o conseqüente reflexo na jurisprudência, ainda há um caminho a ser trilhado na busca da solidificação do instituto. VI. A Lei Maria da Penha, embora mereça algumas criticas quanto à possibilidade de decretação da prisão preventiva nos casos de crimes de pequeno potencial ofensivo, inova ao adotar uma série de medidas cautelares, e, reserva a prisão preventiva como um meio de coação para que as medidas sejam efetivadas. VII. O sistema processual penal brasileiro está defasado. O mesmo também acontece com os projetos de reforma do processo penal; alguns dos quais consideram 212 proposições para estabelecer sistema acusatório pleno. Outros, infelizmente, fundamentados no direito penal do terror, representam verdadeiro retrocesso ao sistema inquisitivo, esquecendo, principalmente, a parte mais interessada no processo: a vítima. 213 REFERÊNCIAS ACOSTA, Walter P. O processo penal: teoria – pratica – jurisprudências – organogramas. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1989. ALEMANHA, Corte Constitucional Federal. BVerf|GE 17,108. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). 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