UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
ALEXANDRA PATROCÍNIO NOGUEIRA
LIÇÕES DE LITERATURA NO PROGRAMA GESTAR II
Salvador- Ba
2015
ALEXANDRA PATROCÍNIO NOGUEIRA
LIÇÕES DE LITERATURA NO PROGRAMA GESTAR II
Dissertação apresentada ao Programa de Pós
Graduação Mestrado em Estudo de
Linguagens da Universidade do Estado da
Bahia, como requisito parcial para obtenção
do título em Mestre em Estudo de
Linguagens.
Orientadora: Prof.ª Drª Márcia Rios da Silva
Salvador- Ba
2015
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaboração: Sistema de Biblioteca da UNEB
Bibliotecária: Maria das Mercês Valverde – CRB 5/1109
Nogueira, Alexandra Patrocínio
Lições de literatura no Programa GESTAR / Alexandra Patrocínio Nogueira. - Salvador, 2015.
140 f.
Orientadora: Marcia Rios da Silva
Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas Campus I. Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudo de Linguagens
Contém referências e anexos
1. Literatura - Estudo e ensino. 2. Professores de literatura - Formação. 3. Professores de Ensino
fundamental - Formação. I. Silva, Marcia Rios da. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento
de Ciências Humanas.
CDD: 807
TERMO DE APROVAÇÃO
ALEXANDRA PATROCÍNIO NOGUEIRA
LIÇÕES DE LITERATURA NO PROGRAMA GESTAR II
Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de
Linguagens da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens, pela seguinte banca
examinadora:
___________________________________________________
Profª. Dra. Márcia Rios da Silva (Orientadora)
Doutorado em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia
____________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Helena da Rocha Besnosik
Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo
____________________________________________________
Prof.ª Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro
Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, PUC
Salvador, 27 de março de 2015
A Deus, autor e consumador da minha fé.
A Luidivan, pelo apoio nas horas difíceis.
Gabriela, minha filha, por suportar pacientemente às ausências.
PALAVRAS DE AGRADECIMENTOS
Aqueles que semeiam chorando, levando na mão a semente
para semear, voltarão cantando, cheios de alegria, trazendo
nos braços os feixes da colheita.
Salmo 126:6
Hoje eu quero agradecer a você, que esteve ao meu lado nas horas em que
chorei, nas horas em que lamentei, nas horas em que pensei em desistir, mas
também nas horas em que sorri ao ver os frutos do árduo trabalho de escrever se
concluir, ainda que provisoriamente, pois todo saber é provisório. “Escrever é um
caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se” [...] afirma Gilles
Deleuze.
Agradeço a Deus pela presença constante e silenciosa.
Agradeço à professora Márcia Rios da Silva, pela sua orientação segura e
paciente, frente aos desafios de uma orientanda que sentiu na pele as
consequências de uma formação precária no curso de Letras.
À minha irmã Jusiene, por cuidar de mim, e dos meus nos momentos de
solidão que a escrita exigiu.
Ao meu irmão Carlos e Lavínia Patrocínio.
Aos amigos e família por compreenderem o distanciamento.
A Daniele e Max, pelos socorros prestados nos momentos de completa
escuridão.
Aos colegas mestrandos do PPGEL, em especial, os que hoje posso chamar
de amigos: Bruna, Diego, Eumara, Jober, Leila, Ricardo e Roberto, pelas
contribuições nas discussões teóricas e pelas alegrias nos momentos de
descontração.
Aos membros da Banca Examinadora, Prof.ª Dra. Maria Helena da Rocha
Besnosik e Prof.ª Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro pela leitura atenciosa do texto
na qualificação e pelas preciosas sugestões que busquei acatá-las.
Aos professores do PPGEL, que desde os primeiros contatos em sala de aula
propuseram situações de confronto frente ao nosso objeto, chegávamos com
algumas certezas e saíamos das aulas com a sensação de que nada sabíamos.
Aos funcionários do PPGEL, Camila, Geyza e Danilo, pelas informações
prestadas sempre com serenidade, segurança e civilidade.
À professora Maria Antônia, regente da disciplina do Tirocínio Docente, pelo
carinho e generosidade em compartilhar sua experiência como professora da
disciplina Literatura em um curso de Pedagogia.
À minha colega de trabalho e amiga Alaíde Barreto pelas constantes
elucidações sobre o programa Gestar II.
À Cleidenalva, coordenadora do Gestar II em nossa escola, por dirimir minhas
dúvidas sempre com presteza e muita competência.
Aos professores da Escola Estadual Dona Jenny Gomes, muito obrigada!
A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando
estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais
próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer
compreender melhor o mundo e nos ajuda a viver. Não que ela
seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma;
porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu
percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro
(TODOROV, 2012, p. 76).
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo desenvolver um estudo do Programa Gestar II
da área de Língua Portuguesa, com o intuito de entender o lugar da literatura em um
programa de formação continuada de professores. O estudo parte da análise dos
materiais didáticos impressos, trabalhados durante o curso da formação,
particularmente os Cadernos de Teoria e Prática. Neles busca-se entender as
concepções de literatura, como forma de arte e conhecimento, veiculadas nas
definições e conceituações, bem como nas atividades de leitura propostas. Para
tanto, contempla-se o processo de escolarização da literatura. A pesquisa constata a
necessidade de se repensar as formas de apropriação da literatura pela escola, num
contexto marcado por transformações sociais e culturais.
Palavras-chave: Literatura; Ensino; Formação docente; Programa Gestar II.
ABSTRACT
This study aims to develop a study program Gestar II of the Portuguese language
area, in order to understand the place of literature in a continuing education program
for teachers. The study of the analysis of printed educational materials, worked
during the course of training, particularly the Theory and Practice Books. In them we
seek to understand the concepts of literature as a form of art and knowledge,
conveyed in the definitions and concepts, as well as the reading proposed activities.
Therefore, it is contemplated the literature of schooling. The research finds the need
to rethink the forms of literature appropriation by the school, in a context of social and
cultural changes.
Keywords:
Literature;
education;
Teacher
training;
Gestar
II
Program.
11
INICIANDO UMA CONVERSA
Este estudo decorre de uma trajetória trilhada no devir das experiências
docentes como professora de Língua Portuguesa e Língua Inglesa, das séries finais
do Ensino Fundamental II da Rede Estadual de Educação da Bahia, e vice-diretora
de uma escola estadual em Salvador-Bahia. A trajetória conferiu-me certos saberes
e sabores somente passíveis de serem experimentados nesse lugar e, a partir
dessas
experiências
formativas,
interessei-me
pelo
Programa
Gestão
da
Aprendizagem Escolar II (GESTAR II).
Nesse contexto, a partir de 2009, ano que experienciava pela primeira vez a
gestão de uma escola estadual, em concomitância com o exercício da docência,
comecei a me interessar pelas políticas públicas, em especial, as de formação
continuada de professores. Quando em exercício da gestão, enfrentei dificuldades
para dirimir algumas dúvidas de colegas que buscavam orientação para fazer os
cursos ofertados de formação continuada pelo governo federal.
Assim, foi através dessas experiências que construí, pela primeira vez, ideias
sobre a formação continuada do professor, tendo como referência o Programa
Gestar II, um “programa de formação continuada semipresencial orientado para a
formação de professores de Matemática e de Língua Portuguesa, objetivando a
melhoria do processo de ensino aprendizagem" (BRASIL, 2010, p. 14). Quando na
vice-direção, participei do referido Programa na condição de cursista. Portanto, além
de fazer parte das atividades do curso, costumava acompanhar as reuniões de
atividades de coordenação, nas quais os professores da área de Língua Portuguesa
se reuniam para discutir e planejar as aulas e atividades propostas pelo Programa,
tendo em vista sua efetivação em sala de aula.
No entanto, em um dado momento, essa travessia profissional, na vicedireção, implicou na minha “saída” do curso de formação do Gestar II como cursista,
devido às demandas inerentes à função gestora e à necessidade de redistribuição
interna da minha carga horária em outros turnos. Por outro lado, tal fato permitiu-me
a entrada nas salas de aula de colegas que compartilhavam os desafios, entraves e
vitórias obtidas em cada aula ministrada.
12
Nesse processo de acompanhamento dos docentes, deparei-me, mais uma
vez, com muitas situações difíceis que emergiam das condições materiais e
subjetivas, especificamente no que se refere às concepções de prática de ensino e
que delineavam as realidades contraditórias vivenciadas pela maioria dos
professores. Problemas como o excesso de carga horária de trabalho, a
precarização das condições estruturais de ensino, salas de aulas superlotadas de
discentes com diferentes necessidades e demandas, violência, drogas e ausência
do acompanhamento familiar representavam alguns dos problemas que os
professores compartilhavam entre si e que eram, igualmente, compreendidos por
eles como um conjunto de entraves “extraclasse”, isto é, vistos como problemas
externos que impediam o melhor desenvolvimento do GESTAR II na sala de aula.
É importante ressaltar que, na função de vice-diretora, passei por uma
situação conflituosa, pois, de um lado, representava o controle do Estado, através da
Secretaria de Educação da Bahia para transformar a realidade escolar, via
implementação do Programa de formação continuada Gestar II, na escola que
representava. De outro, esbarrava-me nas condições materiais e subjetivas do
trabalho docente, criadas e gerenciadas pelo próprio Governo, através da estrutura
social e educacional que oferecia ao sistema público de ensino.
Com esse trabalho, junto às professoras, colegas de profissão, comecei a
perceber que muitos docentes não compreendiam a sala de aula como um lócus
privilegiado de investigação e de produção intelectual, cultural e política, vinculada
às questões sociais mais amplas. Foi a partir dos desabafos dessas professoras,
muitas vezes acompanhados de lágrimas, que surgiu o interesse inicial por este
estudo, provocado por inquietações pessoais que emergiram a partir dos relatos
dessas experiências.
Em se tratando dos relatos das professoras, destaca-se que as queixas, na
maioria das vezes, giravam em tornos de problemas estruturais e sociais, mas,
também, de plano subjetivo, isto é, da capacidade psicológica/emocional que cada
uma tinha de resistir às condições adversas, como a violência e hostilidade de
muitos alunos em sala de aula. Tais situações contribuíam para que a compreensão
da realidade fosse superficial, por vezes enviesada, impedindo que as professoras
tomassem “consciência” da importância de suas ações para manutenção e/ou
transformação da realidade frente às propostas prontas, estigmatizadas, com
práticas de ensino tecnicista e discursos direcionados.
13
Nessa perspectiva, e surpreendentemente, poucas foram as queixas em torno
da metodologia e dos conteúdos de língua, principalmente do conteúdo de literatura,
foco desta pesquisa, abordados nos Cadernos de Teoria e Prática de Língua
Portuguesa do Programa Gestar II. Pelo contrário, evidenciou-se uma aceitação
ampla do Programa por parte dos professores. Nos encontros pedagógicos ocorridos
frequentemente entre as escolas de Salvador, realizados pela Diretoria Regional de
Educação (DIREC 1A e 1B), as conversas de corredores e as experiências
compartilhadas revelavam a satisfação dos professores de Língua Portuguesa, os
quais viam no Programa uma excelente ferramenta de construção do saber. Notavase, também, que nos encontros realizados no Instituto Anísio Teixeira (IAT)
costumavam ocorrer relatos de experiências semelhantes.
Assim, de modo geral, constata-se que os professores de Língua Portuguesa
gostam do material didático do Programa e não veem problemas de ordem
estrutural, teórica ou metodológica. Tais impressões, dentre outros aspectos, podem
indicar a necessidade de repensarmos a formação inicial e continuada do professor
nos cursos de licenciatura. Dito em outras palavras, os professores, ao terminarem a
graduação, parecem sentir-se despreparados para adentrar as salas de aula. Por
isso, um material que ofereça modelos de aulas prontas, explicações, respostas dos
exercícios e todo aparato teórico-metodológico correspondente ao conteúdo
proposto dá ao professor uma sensação de segurança na efetivação da proposta
pedagógica em sala de aula.
Os professores parecem gostar do material didático porque lhes oferecem um
conteúdo seguro, tendo em vista a formação precária da graduação em Letras. Cabe
enfatizar que a última reformulação do projeto pedagógico dos cursos de Letras no
país ocorreu em 2002, conforme diretrizes curriculares estabelecidas pela
Resolução do CNE/CES/2002. Contudo, parece que essa reformulação ainda não
recebeu a devida atenção, como objeto de estudo, por boa parte de pesquisadores e
docentes da área, ao se constatar que os cursos de gradução não vêm
considerando os questionamentos que emergem acerca dos currículos escolares.
Conforme Masetto (2003), as chamadas metodologias ativas adquirem força maior
exigindo do docente do ensino superior outras atitudes, outras posturas e outras
competências. Contudo, afirma o autor que, via de regra, o docente não está
capacitado para trabalhar com um currículo tão diferente do tradicional, no qual está
bem definido que ele é o responsável pelo conteúdo da disciplina ministrada e nada
14
mais. Frente a essa realidade descrita, os novos professores reproduzem os
modelos dos mestres, mesmo de posse de concepções teóricas contemporâneas
sobre o ensino das disciplinas.
Em decorrência disso, a formação continuada no Brasil se expandiu, contudo,
percebe-se a precariedade da formação inicial em nível de graduação, sobretudo
com políticas de formação docente aligeiradas. Assim sendo, nas últimas décadas, a
formação continuada de professores tem recebido especial atenção por parte de
pesquisadores e estudiosos da área, como: Falsarella (2004), Carvalho et al (1999),
Balzan (1996), Victorio Filho (2002), Nóvoa (1992,1995), Mizukami (1996),
Huberman (1992), Candau (1996) e Gatti (2008), os quais chamam à atenção para
as novas demandas da sociedade que, consequentemente, exigem da escola novas
práticas pedagógicas que preparem os alunos para viver em sociedade.
Desse modo, Vera Maria Candau (1996) aponta alguns caminhos na busca
de uma nova concepção de formação, os quais vêm conquistando um terreno
consensual entre pesquisadores e profissionais da educação, a saber: 1) o lócus da
formação a ser privilegiado deve ser a própria escola; 2) todo processo de formação
continuada tem que ter como referência fundamental o saber docente, o
reconhecimento e a valorização do saber docente; 3) para um adequado
desenvolvimento da formação continuada, é necessário ter presentes as diferentes
etapas do desenvolvimento profissional do magistério, haja vista que as
necessidades e os problemas dos professores, em fase inicial, daqueles que
possuem mais tempo de experiência docente e dos que estão no final de carreira
são diferentes. Assim sendo, não se pode oferecer situações de formação
padronizadas e homogêneas para todos.
Ademais, estudos revelam que é a partir dos saberes adquiridos na prática
cotidiana
que
os
professores
julgam,
estruturam
e
reestruturam
seus
conhecimentos. Com isso, pode-se inferir que é a partir do cotidiano escolar, do
pisar no chão da escola1 que o professor dá continuidade à formação iniciada na
universidade. Como ressalta Candau (1996, p. 144), a escola deve ser considerada
como um lócus de formação continuada na busca de superar o modelo clássico de
formação, como forma de construir uma nova perspectiva na área de formação
continuada de professores.
1
Compreendido como sala de aula, lugar de trabalho, da prática do professor na escola; Lócus de
investigação/formação do professor.
15
Portanto, ora partindo das inquietações que emergiram da minha prática
escolar, ora partindo de questionamentos sobre a formação do professor, o presente
trabalho propõe uma análise sobre a presença da literatura no Programa Gestão da
Aprendizagem Escolar – Gestar II. O Programa foi criado em 2004 pelo Ministério da
Educação
(MEC),
em
uma
ação
conjunta
com
o
Fundo
Nacional
de
Desenvolvimento da Educação (FNDE) e Secretarias Estaduais e Municipais de
Educação. Faz parte da política nacional de formação continuada para professores,
visando promover a melhoria do processo de ensino e aprendizagem, através da
atualização dos saberes profissionais dos professores da área de Língua
Portuguesa e Matemática.
A fundamentação legal do GESTAR II visa atender às disposições legais da
Constituição Federal, especificamente do artigo 214, que estabelece o Plano
Nacional de Educação com a finalidade de elevar o nível da qualidade do ensino no
país, e a Lei 10.172, de 9 de janeiro de 2001, a qual estabelece a necessidade de
atingir, no menor prazo, as metas previstas para a educação básica no Plano
Nacional de Educação (PNE). A formação continuada em exercício do Gestar II é
regulamentada pela Resolução /CD/FNDE nº 35, de 13 de julho de 2009. 2
Pela necessidade de se pensar questões que uma formação continuada
suscita, analisa-se a presença da literatura na proposta pedagógica e nas
concepções teóricas e metodológicas dos Cadernos de Teoria e Prática do
Programa Gestar II, bem como se questiona a política institucionalizada de formação
docente de Língua Portuguesa, no âmbito do próprio programa Gestar II. A análise
perpassa por algumas questões: critério de seleção de autores, gêneros e obras
literárias; forma de explorar as atividades de compreensão e interpretação; forma
como os textos são explorados; forma como os conteúdos foram apresentados;
forma como Gestar II conduz esta formação continuada. Nesse sentido, é pertinente
demarcar a questão que orienta esta pesquisa: Como a literatura é compreendida
nos Cadernos de Teoria e Prática do Programa Gestar II de Língua Portuguesa?
2
I - DO PROGRAMA E SEUS PARTICIPANTES: Art. 2° O GESTAR II tem por objetivo propiciar
acesso aos conhecimentos linguísticos e matemáticos a todos os alunos dos anos ou séries finais do
Ensino Fundamental, por meio da capacitação de professores em exercício nesses anos/séries nos
sistemas federais, estaduais e municipais de educação. Art. 3° O programa GESTAR II, como parte
da Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica e do Plano de
Desenvolvimento da Educação (PDE), visa reorientar a prática docente com base em conhecimentos
adquiridos pelos professores-cursistas em cursos com carga horária de 300 horas, nos quais se
combinam estudo individual e atividades presenciais coordenadas por professores-formadores
(tutores). (BRASIL, Resolução/CD/FNDE nº 35, de 13 de julho de 2009).
16
Do levantamento realizado no Banco de Teses e Dissertações da CAPES,
foram encontradas oito dissertações de mestrado acadêmico e duas teses de
doutorado sobre o Programa Gestar II de Língua Portuguesa. Esse conjunto de
trabalhos acadêmicos apresenta como questão investigativa aspectos da língua e da
formação docente,3 o que instiga uma reflexão sobre o modo pelo qual à literatura é
concedido um espaço. Em síntese, o interesse em investigar a literatura, neste
Programa, se deu a partir da congruência de questões como a minha experiência
docente e a receptividade positiva do Gestar II entre boa parte dos professores de
Língua Portuguesa. Minha incursão no Programa de Pós-Graduação em Estudo de
Linguagens foi fundamental para ampliar minha compreensão acerca de questões
como a relação entre literatura e ensino, o meu processo de formação e exercício da
docência, e olhar mais criticamente para as políticas de formação continuada e o
papel da literatura na escola.
Dito isso, esta dissertação está estruturada em três seções de modo a
contribuir para uma compreensão global das discussões do objeto em questão. Na
primeira Seção, intitulada “Crenças e forças de uma gestação”, aborda-se o
Programa Gestão da Aprendizagem Escola II - GESTAR II como proposta de política
educacional de formação docente, elaborada com o intuito de fazer uma intervenção
na escola que altere o quadro de insucessos do processo ensino-aprendizagem,
particularmente no âmbito da leitura e escrita, apresentados por diferentes
3
Das dissertações: Vanda Rocha (2011) - Universidade Federal do Ceará. Título: “Gestar II Língua
Portuguesa: Concepções de professores das escolas municipais de Fortaleza” – Mestrado Acadêmico em
Educação; Thais Veiga (2011) – Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Título: “O ensino
de Gêneros Textuais no programa Gestão da Aprendizagem Escolar II” – Mestrado Acadêmico em Estudos
de Linguagens; Miguel Alves (2011) – Universidade Federal de Mato Grosso. Título: “Dizeres de
professoras em relato da prática pedagógica: O Gestar II em foco” – Mestrado Acadêmico em Estudos de
Linguagem; Ariane Melo (2011) - Universidade Federal de Mato Grosso. Título: “A internet nossa de cada
dia: Efeitos identitários na mobilização subjetiva para a aprendizagem de Língua Inglesa” - Mestrado
Acadêmico em Estudos de Linguagens; Glaucia Costa (2011) – Fundação Universidade Federal de
Sergipe. Título: “A formação continuada de professores de Português – uma abordagem discursiva do
Gestar II” – Mestrado Acadêmico em Letras; Lívia Silva (2012) – Universidade Federal de Goiás. Título: “A
disciplinarização docente” – Mestrado Acadêmico em Letras e Linguística; Rute Silva (2011) –
Universidade Federal de Mato Grosso. Título: “Gestar II: Desafio das práticas de escrita em material de
formação continuada do professor de Língua Portuguesa” – Mestrado Acadêmico em Estudos de
Linguagem; Ivana Sacramento (2011) – Universidade do Estado da Bahia. Título: “Percursos de letramento
de professoras: movimentos entre o lar, a formação e o ensino”- Mestrado Acadêmico em Crítica Cultural.
Das teses de doutorado: Márcia Esbrana (2012) – Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul. Título: “A constituição do sujeito professor e sua aprendizagem em situação de formação continuada”
– Doutorado em Educação; Joelma Bressanin (2012) – Universidade Estadual de Campinas. Título:
“Políticas de formação continuada de professores em Mato Grosso do Sul: uma análise discursiva do
programa Gestar” – Doutorado em Linguística.
17
instrumentos de avaliação, nacionais e internacionais. Nessa análise, consideram-se
indicadores como a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar/ANRESC, conhecida
como Prova Brasil, o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), bem
como resultados da pesquisa realizada “Retratos da Leitura no Brasil”, desenvolvida
pelo Instituto Pró-Livro/Câmara do Livro no Brasil. Subsidiam essas análises e
discussões os documentos oficiais do Programa Gestar II e os Parâmetros
Curriculares Nacionais, bem como as contribuições teórico-críticas de Bernard
Charlot (2000), Maria de Lourdes Dionísio (2014), Marisa Lajolo (2012) Márcia Abreu
(2001; 2003) e Magda Soares (2010). Considerando que um programa de formação
continuada intenta uma atualização profissional, visando aprofundar questões
relacionadas ao exercício da docência, para que o professor contribua com o
processo de ensino-aprendizagem, ainda nesta seção o programa Gestar II, em seu
formato semipresencial, é analisado, buscando apoio nos estudos de Preti (2000),
Neder (2000) e Magnavita (2003), os quais fazem uma crítica sobre educação à
distância que costuma oferecer modelos pedagógicos aplicáveis a tudo e a todos.
Em seguida, a discussão trata da formação docente no Brasil na perspectiva de
Bernardete Gatti (2008), pesquisadora que questiona os princípios de uma formação
continuada que se restringe a uma correção de percurso formativo.
Na segunda Seção – “Nos guias e manuais, a concepção do programa” –
tem-se uma apreciação da gênese do Programa Gestar II de Língua Portuguesa,
tomando como ponto de partida o Guia Geral, uma carta de intenção orientando o
funcionamento do curso, sua organização e etapas. Em seguida, busca-se
depreender uma concepção de ensino de literatura nos “textos de apresentação” do
Guia Geral e dos Cadernos de Teoria e Prática e da ementa da disciplina Língua
Portuguesa. Nessa discussão, considera-se a configuração dos manuais didáticos
atuais, elaborados com o fim de atender, num contexto de expansão do ensino
público, ao trabalho docente. São considerados ainda a organização e os objetivos
dos Cadernos de Teoria e Prática, de modo a depreender o lugar dado à literatura,
minimizado, pela ênfase dada do Gestar no ensino da língua. Contempla-se também
a entrada das teorias linguísticas nos currículos escolares, desde os anos 1980, que,
respaldadas na crença da cientificidade, ganham espaço no estudo das línguas,
enquanto o ensino de literatura vai perdendo força, por ser tida como um saber que
não produz os discursos da verdade, como adverte Foucault. São também acolhidas
as reflexões de Regina Zilberman (2009), em suas críticas à sua pedagogização, de
18
Inara Ribeiro Gomes (2010), por discutir fatores externos e internos que deslocam o
prestígio da literatura, como um saber a ser ensinado, e Regina Janiaki Copes
(2007), que problematiza programas de políticas públicas de incentivo à leitura.
Na terceira e última Seção – “Nas páginas dos Cadernos, um gênero
chamado literatura” – busca-se compreender a concepção de literatura no Programa
Gestar II, analisando os Cadernos de Teoria e Prática, considerando a literatura um
conteúdo que se destaca nos manuais como uma escrita marcada pela
especificidade do literário, particularmente expressa essa singularidade nas
elaborações conceituais e definições apresentadas sobre o “que é literatura”.
Consideram-se ainda as atividades propostas para trabalhar os textos literários.
Para a discussão torna-se imprescindível entender os processos de escolarização
da literatura no Programa Gestar II. Para tanto, têm-se as contribuições de
pesquisadores como Basil Bernstein (1996), Marcuschi (1996), Magda Soares
(2011), (2012), Silvana Oliveira (2009), entre outros. A despeito da singularidade do
literário, da sua especificidade, como ressaltado nos Cadernos de Teoria e Prática, a
literatura
aí
se
apresenta
aprisionada
por
um
aparato
teórico-conceitual
escolarizado, o que culmina numa simplificação dos conteúdos e de um saber
ensinado, flagrante nas tentativas de caracterização da linguagem literária e dos
gêneros. Por acreditarmos no valor da literatura na formação dos sujeitos,
consideramos as reflexões de Roland Barthes (2007) e Tzvetan Todorov (2012) para
que se repense o ensino de literatura, particularmente em um Programa de
formação, que deveria ser um espaço de reflexão sobre os saberes escolarizados e
as práticas docentes, de modo a se construir novos conhecimentos.
Dito isso, com esta investigação pretende-se contribuir para o conhecimento
das realidades que estão postas pelo Programa Gestar II frente ao ensino de
literatura na escola e avaliar até que ponto um Programa de formação continuada
favorece a manutenção de práticas sedimentadas de ensino. Sem um olhar crítico,
de desconfiança para os ditos, perde-se a oportunidade de pensar em práticas
inovadoras de ensino. Aí sim podemos assegurar a força libertadora da literatura,
preservando assim a sua função social.
19
1 CRENÇAS E FORÇAS DE UMA GESTAÇÃO
Criado em 2004 pelo Ministério da Educação (MEC), em uma ação conjunta
com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e Secretarias
Estaduais e Municipais de Educação, o Programa Gestar II faz parte da política
nacional de formação continuada para professores, visando promover a melhoria do
processo de ensino e aprendizagem, através da atualização dos saberes
profissionais dos professores dos componentes curriculares de Língua Portuguesa e
Matemática.4
A proposta inicial do Ministério da Educação originou-se em 2001 com a
criação do GESTAR I, o qual visa à formação continuada dos professores do 2º. ao
5º. ano do Ensino Fundamental da rede pública escolar. O MEC define o programa
como uma proposta capaz de desenvolver a competência e a autonomia dos
professores em suas práticas pedagógicas, visando à construção de conteúdos e,
sobretudo, ao desenvolvimento da linguagem escrita e da linguagem matemática.
Os Programas Gestar I e II foram criados inicialmente para atender às regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste, as quais apresentam, historicamente, altas taxas
de analfabetismo e baixa escolaridade em função da má distribuição de renda por
regiões, decorrentes do descaso político, responsável por estigmatizar tais regiões
como os espaços pobres do país, vitimados pelo flagelo da seca e da pobreza. Em
2008, a Secretaria de Educação Básica estendeu a abrangência do programa para
as demais regiões, tendo em vista as pressões internacionais frente aos resultados
negativos dos estudantes brasileiros, forçando o governo a investir em políticas de
formação continuada, pelo entendimento de que a má formação docente é uma das
causas do fracasso escolar dos alunos.
4
A fundamentação legal do GESTAR II visa atender às disposições legais da Constituição Federal,
especificamente do artigo 214, que estabelece o Plano Nacional de Educação com a finalidade de
elevar o nível da qualidade do ensino no país, e a Lei 10.172, de 9 de janeiro de 2001, a qual
estabelece a necessidade de atingir, no menor prazo, as metas previstas para a educação básica no
Plano Nacional de Educação (PNE). Além disso, tem como desafio alcançar, em 2022, um nível de
desenvolvimento da educação básica equivalente à média dos países integrantes da Organização
para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nesse cenário, emerge para atender
às disposições da Política Nacional de Formação de Profissionais da Educação, instituída pelo
Decreto nº 6.755, de 29 de janeiro de 2009, que estabelece orientações para a formação de
professores no âmbito do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).
20
Em meio a uma série de insucessos da escola, apresentados por diferentes
instrumentos de avaliação, nacionais e internacionais, destacam-se os baixos
índices dos alunos brasileiros em proficiência da leitura e da escrita. Expostos esses
índices, emerge a necessidade de políticas educacionais voltadas para a formação
continuada do professor, a exemplo do programa Gestar II. Assim, o Programa
Gestão da Aprendizagem Escolar II – Gestar II - soma-se a tantos outros propostos
com o intuito de superar um quadro negativo, diagnosticado como fracasso, do
ensino público do país. Tem sido frequente nessas políticas a responsabilização dos
professores e dos alunos por tal “fracasso”, o que oblitera questões de ordem
estrutural do sistema educacional, envolvem a má administração dos recursos
públicos.
Assim, a criação de políticas educacionais no Brasil, a exemplo dos
programas de avaliações da educação e de políticas de formação continuada de
professores, entre outras, visa reparar os índices do “fracasso” escolar, que
historicamente acompanha o ensino, desde sua expansão, a partir dos anos 1970,
para os segmentos sociais e culturais diversos. Tal expansão, acentuada pelas
políticas inclusivas desde o início do século XXI, não tem sido acompanhada de
qualidade. Ao contrário, está marcada pela precarização da infraestrutura e das
condições do trabalho docente, a qual se perpetua até os dias atuais, um histórico
que expõe os altos índices de evasão escolar ou baixo desempenho dos alunos nas
avaliações formais promovidas pelas escolas.
1.1 Na lousa, os dados do “fracasso”
No Brasil, ganham visibilidade muito grande na mídia os resultados do baixo
desempenho dos estudantes no processo ensino-aprendizagem, quase sempre
identificado como um fracasso do indivíduo, nesse caso o aluno, e atribuído à falta
de compromisso e responsabilidade dos professores. Esse quadro chama a atenção
de órgãos internacionais, a exemplo da Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), da Organização das Nações Unidas (ONU)
e Banco Mundial, os quais, por sua vez, pressionam as autoridades políticas
brasileiras para proporem estratégias de correção de tais índices, sob pena de
21
receberem sanções no cenário internacional. Os referidos órgãos, inseridos no
contexto capitalista, não só financiam as políticas públicas educacionais, como
participam da sua elaboração e implementação, definindo princípios e ações para o
campo educacional.
Para entender esse suposto fracasso, tão explorado pela mídia e endossado
pela sociedade de um modo geral, é interessante analisar as forças ou princípios
que levam à criação de instrumentos de avaliação que “medem” as capacidades dos
alunos. De antemão, não se pode perder de vista a crítica de Bernard Charlot (2000)
acerca do “fracasso escolar”. Para esse educador, trata-se de uma construção
ideológica e genérica, utilizada para denominar o fracasso do aluno, do professor e
da escola pública, “um modo cômodo para designar um conjunto de fenômenos que
têm, ao que parece, algum parentesco [...]” (CHARLOT, 2000, p. 16). Para o autor,
não há fracasso escolar: “o que existe, são alunos fracassados, situações de
fracasso e histórias escolares que terminam mal” (CHARLOT, 2000, p. 16). Por esse
entendimento, o fenômeno do fracasso é desnaturalizado.
Frente à necessidade do acompanhamento e monitoramento da educação
brasileira, o Ministério da Educação criou em 1990 o Sistema de Avaliação da
Educação Básica (SAEB), com o objetivo de avaliar a qualidade do ensino oferecido
pelo sistema educacional brasileiro a partir de testes padronizados e questionários
socioeconômicos, o que é um modo de minimizar os índices do chamado fracasso
escolar. O MEC justifica a criação das avaliações de aprendizagem como
instrumentos que podem definir ações voltadas ao aprimoramento da qualidade da
educação no país e à redução das desigualdades existentes, promovendo, por
exemplo, a correção de distorções e debilidades identificadas e direcionando seus
recursos técnicos e financeiros para áreas identificadas como prioritárias.
O SAEB compreende três avaliações em larga escala: a) Avaliação Nacional
da Educação Básica/ANEB, aplicada de maneira amostral entre alunos das escolas
públicas e particulares das zonas urbanas e rurais, do 5º ano e 9º ano do Ensino
Fundamental, e no 3º ano do Ensino Médio. Esta avaliação tem o foco nas gestões
dos sistemas educacionais; b) Avaliação Nacional do Rendimento Escolar/ANRESC,
conhecida como Prova Brasil, uma avaliação censitária, extensa e detalhada com
foco em cada unidade escolar, aplicada bianualmente pelo Instituto de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) entre alunos do 5º e 9º ano do
22
ensino fundamental das escolas públicas das redes municipais, estaduais e federal. 5
c) Avaliação Nacional da Alfabetização/ANA, também censitária, é aplicada
anualmente entre os alunos do 3º ano do Ensino Fundamental das escolas públicas,
visando avaliar níveis de alfabetização e letramento em Língua Portuguesa,
alfabetização Matemática e condições de oferta do Ciclo de Alfabetização das redes
públicas.6
Considerando os resultados da penúltima avaliação da Prova Brasil, em 2011,
dos alunos do 5º e 9º ano, a média nacional das proficiências de Língua Portuguesa
dos alunos do 5º ano do Ensino Fundamental foi de 190,58. A média de pontos por
regiões foi a seguinte: a) Distrito Federal: 209,66; b) Sudeste: 201,56; c) Sul: 199,39;
d) Centro-oeste: 197,79; e) Norte: 176,66; f) Nordeste: 174,55, onde se destaca a
Bahia com 174,25 pontos. Entre os alunos do 9º ano, média nacional, 243,00. Os
resultados por regiões registraram a seguinte proficiência: a) Distrito Federal:
254,63; b) Sudeste: 251,13; c) Sul: 249,26; d) Centro-oeste: 245,66; e) Norte:
233,07; f) Nordeste: 229,43, em destaque também a Bahia com 229, 4 pontos.7
Nos testes aplicados os estudantes respondem a questões de Língua
Portuguesa, com foco em leitura, e Matemática. No tocante à escala de proficiência
de Língua Portuguesa do 5º e 9º ano, a literatura se faz presente nos conteúdos ou
atividades sobre gêneros textuais. Contudo, os níveis de aprendizagem requeridos
são medidos pela capacidade que têm os alunos de localizarem informações no
texto e realizarem atividades linguísticas, a exemplo da competência leitora aferida
no 5º e 9º ano (Nível 2:150 -175): ” a) localizar informação explícita; b) identificar o
tema de um texto; c) inferir informação em texto verbal (características do
personagem) e não- verbal (tirinha); d) interpretar pequenas matérias de jornal,
5
Conforme o INEP (2011), a Prova Brasil visa atender à demanda dos gestores públicos,
educadores, pesquisadores e da sociedade em geral por informações sobre o ensino oferecido em
cada município e escola. O objetivo específico desta avaliação é auxiliar os governantes nas decisões
e no direcionamento de recursos técnicos e financeiros, como orientar a comunidade escolar no
estabelecimento de metas e na implantação de ações pedagógicas e administrativas, visando à
melhoria da qualidade do ensino.
6
A Avaliação da Alfabetização Infantil, conhecida como Provinha Brasil, uma avaliação diagnóstica,
visa investigar o desenvolvimento das habilidades relativas à alfabetização e ao letramento em
Língua Portuguesa e Matemática. Aplicada duas vezes ao ano (no início e no final), a avaliação é
dirigida aos alunos que passaram por, pelo menos, um ano escolar dedicado ao processo de
alfabetização. A Provinha Brasil é elaborada pelo INEP e distribuída para todas as secretarias de
educação municipais, estaduais e do Distrito Federal. Sua adesão é opcional, e a aplicação fica a
critério de cada secretaria de educação das unidades federadas (INEP, 2011).
7
Os resultados da última edição da Prova Brasil, em 2013, foram divulgados em novembro de 2014
através de boletins online, por escola. Até o momento, não foi divulgada a sinopse do INEP com as
tabelas de média das proficiências por área do conhecimento, dependência administrativa, regiões e
estados. Assim, só é possível cada escola conhecer seu próprio resultado.
23
trechos de enciclopédia, poemas longos e prosa poética; e) identificar o conflito
gerador e finalidade do texto”. Os estudantes que não conseguem realizar tais
atividades no texto não alcançam a média desejável nesta avaliação (INEP, 2011).
Os resultados da Prova Brasil 2011 são retratos de uma realidade que
persiste no País, a desigualdade social que, durante décadas, segregou algumas
regiões brasileiras. Ao observar os números dessa avaliação, nota-se a
permanência de um ranking entre os estados, uma vez que as maiores pontuações
estão mantidas nas regiões sul e sudeste, além do Distrito Federal. Assim, esses
resultados acabam por reforçar um discurso, que é preconceituoso, da superioridade
destas regiões em relação às regiões com baixos índices de competência leitora.
Critérios semelhantes aos da avaliação da proficiência de Língua Portuguesa
dos alunos encontram-se no Programa Internacional de Avaliação de Alunos/PISA,
desenvolvido
e
coordenado
pela
Organização
para
a
Cooperação
e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), apontado como um importante instrumento de
avaliação internacional da educação dos países participantes. Embora o Brasil não
faça parte da OCDE, tem participado como convidado desde sua primeira aplicação
em 1998. A avaliação do PISA é aplicada a cada três anos a alunos de 15 anos de
idade nas áreas de linguagem, matemática e ciências. Gestores escolares e
professores também participam e são avaliados através de questionário.
No Brasil, o PISA é coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), criado com o objetivo de produzir
indicadores que contribuam para a discussão da qualidade da educação nos países
participantes, de modo a subsidiar políticas de melhoria do ensino básico. A
avaliação aborda múltiplos aspectos dos resultados educacionais, buscando verificar
o letramento em leitura, matemática e ciências, considerando os conteúdos ou
estruturas que os alunos precisam adquirir em cada área e observando a
competência para aplicar tais conhecimentos em seus devidos contextos.
A avaliação do letramento em leitura é realizada através de três
características principais: Situação (contexto), Texto e Aspectos. A matriz de
avaliação de leitura para a edição 2012 do PISA distingue quatro tipos de situação
de leitura, considerando principalmente o propósito com que o texto foi elaborado: a)
pessoal – um tipo de leitura que atende aos interesses dos indivíduos. Os conteúdos
incluem cartas pessoais, textos de ficção, biografias e informativos lidos por
curiosidade, como parte de atividades recreativas. No meio digital inclui a troca de e-
24
mails, mensagens instantâneas e blogs pessoais: b) público – este tipo de leitura
permite a participação em atividades amplas na sociedade. Inclui documentos
oficiais, assim como informações sobre eventos públicos, notícias de interesse da
coletividade, e sítios de notícias públicas; c) educação – textos desenhados
especificamente para uso no ambiente escolar com o propósito instrucional. As
atividades destes textos geralmente são voltadas para a aquisição de informação
como parte de um processo de aprendizagem mais amplo; d) ocupacional – textos
associados ao local de trabalho, voltados ao “ler para fazer”. De acordo com o PISA,
a finalidade da leitura prevalece sobre o uso que é feito do texto. Por exemplo, um
texto literário normalmente é caracterizado como pessoal, embora seja amplamente
utilizado no ambiente escolar (INEP, 2013).
Para efeitos de avaliação, o PISA distingue itens que devem ser enfocados
com mais ênfase, os quais foram agrupados em três principais aspectos que
compõem as sub escalas de Leitura, e um quarto aspecto (complexo) combina e
depende desses três. 1) Localizar e recuperar informação; 2) Integrar e interpretar;
3) Refletir e analisar; 4) Complexo - algumas atividades de texto digital foram
classificadas como complexas devido à maior liberdade que esse meio permite e
cujas atividades não são facilmente definidas (INEP, 2013). A matriz de referência
do PISA 2012 faz uso do texto literário para a aquisição de informações, com fins de
letramento linguístico, minimizando a importância da dimensão estética e fruidora
que a leitura de obras literárias propicia. Essa compreensão de leitura compromete o
lugar da literatura nesta avaliação, pois falar de competência da leitura evoca pensar
os usos que se faz da literatura.
Em 2012, a avaliação do PISA contou com a participação de 18.589 alunos,
apresentando um resultado negativo de 410 pontos. 8 Na Bahia, os resultados de
2012 somaram 388,0 contra 396,8 em 2009, demonstrando que o rendimento dos
estudantes baianos caiu. No cenário internacional, o Brasil ocupa 58ª posição do
ranking de leitura, entre 65 países que fizeram a prova, abaixo de países como
Chile, Uruguai, Romênia e Tailândia. Cabe ressaltar que quase metade (49,2%) dos
alunos brasileiros não alcançou o nível 2 de desempenho, na avaliação que tem o
nível 6 como teto. Isso significa, conforme os critérios estabelecidos pela OCDE, que
esses alunos não são capazes de deduzir informações do texto, de estabelecer
8
O resultado anterior, em 2009, contou com a participação de 20.127 alunos, e um total de 412
pontos, observou-se que o número de participantes diminuiu e os resultados também.
25
relações entre diferentes partes do texto, dentre outros procedimentos básicos de
leitura. Para uma melhor definição desses procedimentos de leitura, têm-se as
proposições do PISA sobre a concepção de leitura do programa:
O letramento em leitura inclui um largo conjunto de competências,
que vão da decodificação básica ao conhecimento de palavras,
estruturas e características linguísticas e textuais ao conhecimento
sobre o mundo. Inclui também competências metacognitivas, como
clareza e habilidade para utilizar uma variedade de estratégias
apropriadas para a compreensão de textos. A leitura é vista como um
processo “ativo”, que implica não apenas a capacidade para
compreender um texto, mas a capacidade de refletir sobre ele e de
envolver-se com ele, a partir de ideias e experiências próprias
(BRASIL, 2012, p. 38).
No Brasil, os resultados do PISA exerceram forte influência nas políticas
educacionais brasileiras, principalmente na educação básica, culminando em
propostas como Gestar II (2004), Programa de Formação de Gestores Escolares da
Educação Básica (2005), Ensino Médio Inovador (2009), Programa Mais Educação
(2010), Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (2012), Pacto Nacional
pelo Fortalecimento do Ensino Médio (2013), entre outros. Além da implantação
desses programas, tais resultados motivaram a criação de algumas organizações
sem fins lucrativos que objetivam mapear a realidade da leitura no país, além de
proporem ações que visam sanar as distorções apontadas nas avaliações nacionais
e internacionais9
Esses instrumentos de avaliação são muitas vezes questionados nos
princípios, valores ou metodologias que os orientam. Tais modelos, elaborados com
fins de controle da qualidade educacional, são regulados por movimentos de
homogeneização e padronização, é o que afirma Maria de Lourdes Dionísio (2014),
ao analisar o “lugar” da literatura em três avaliações internacionais no âmbito da
leitura10, a partir do seu contexto, Portugal. A despeito de ser um estudo de outra
9
O INAF/Indicador de Alfabetismo Funcional, por exemplo, uma iniciativa do Instituto Paulo
Montenegro, avalia os níveis de alfabetismo funcional da população adulta brasileira. Esse Instituto é
uma organização sem fins lucrativos, criada em 2000, pelo Grupo IBOPE como parte do programa de
responsabilidade social da empresa, com o objetivo de desenvolver ações que contribuam para a
melhoria da qualidade do sistema de ensino no país. Nesta pesquisa, são consideradas as
habilidades e práticas de leitura, escrita e de cálculo dos brasileiros entre 15 e 64 anos de idade.
10
São elas: PIAAC – Programa para a Avaliação Internacional das Competências dos Adultos; PISA Programa para Avaliação Internacional de Estudantes, já discutido acima, e o PIRLS – Estudo
Internacional sobre o Progresso em Alfabetização e Leitura, o qual avalia exclusivamente a
26
realidade, as reflexões da autora são relevantes para se pensar a nossa realidade,
uma vez que os desafios da leitura literária transpõem as “barreiras” de cultura e
nação, se é que possível falar desses constructos tão frágeis em tempos de
globalização e internet.
Ao comentar os objetivos do PISA referentes à leitura, Dionísio considera que
essas avaliações costumam medir capacidades e competências necessárias à
participação da vida em sociedade. Os objetos de leitura valorizados em tais
avaliações, afirma a autora, tendem a ser da esfera do cotidiano e no âmbito de
usos funcionais dos textos. Assim, não garantem um lugar à literatura, já que se
espera desta o cumprimento de sua função de mediadora na formação dos leitores.
Tais avaliações representam “um quadro cujo privilégio vai para a eficácia, metas,
produtos, e em que, portanto, a literatura, lugar do indeterminado e difuso, sem
lugares de chegada nem respostas convergentes, poderá não ter lugar” (DIONÍSIO,
2014, p. 101).
Para a autora, o foco funcional tem negligenciado a singularidade da
literatura: “pouca atenção tem sido prestada às especificidades da compreensão de
textos literários e aos processos cognitivos, motivacionais e emocionais dos
processos que lhes estão subjacentes” (p.100). Contudo, contrariamente aos
objetivos de leitura na perspectiva funcional, Dionísio observa que na tabela da
OCDE de 1999 – que trata da relação entre esferas de leitura, posição dos sujeitos
na atividade, finalidade e textos – só 16% das tarefas dizem respeito às práticas de
leitura da esfera laboral/ocupacional, enquanto as práticas de leitura referentes às
práticas sociais da esfera privada, da esfera pública e educacional e de formação
ocupam 28% cada uma, o que é positivo.
Esse estudo constata ainda que nos testes aplicados (PIAAC, PISA, PIRLS)
há forte presença da literatura nas avaliações do desempenho das crianças,
enquanto tal presença ocorre em menor intensidade nas avaliações do desempenho
dos adolescentes e adultos.
[...] parece ser possível dizer que a leitura literária que ressalta das
avaliações está próxima das conclusões de estudos de outros
discursos: a de ser uma atividade sobretudo infanto-juvenil. E
também escolar, na medida em que aparece como parte
competência de leitura de crianças do 4º ano de escolaridade. No Brasil, o PIAAC e o PIRLS não são
aplicados.
27
complementar de um processo educativo formal (DIONÍSIO, 2014, p.
176).
De suas análises, conclui o seguinte:
Geradas em contextos de novos mercados e economias, onde
ressaltam conceitos e fenômenos como competitividade,
flexibilização, responsabilização, qualidade e quantidade, as
avaliações de literacia11 parecem à primeira vista não ser lugar para
acolher a literatura e a experiência da sua leitura, como no início
dissemos. Mas como se verificou, a literatura acaba por “andar por
lá”. Das várias funções que se lhe têm atribuído, a de
desenvolvimento de competências cognitivas é a que esses
discursos reproduzem, em coerência, aliás, com os objetivos dessas
avaliações que visam informar os sistemas educativos sobre os
melhores caminhos para serem parte de economias mais eficazes e
competitivas. Embora contribua para alargar, em alguns contextos, o
entendimento de literacia, muitas vezes confinado a competências
básicas, indispensáveis para “funcionar” em sociedade, talvez não
seja ainda possível dizer que a leitura literária é já aqui “uma
competência socialmente relevante” (DIONÍSIO, 2014, p. 116).
Nesse contexto de novos mercados e economias, é realizada a pesquisa
“Retratos da Leitura no Brasil”, tendo sua 1ª. edição divulgada em 2001, promovida
pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), Câmara Brasileira do Livro
(CBL), Associação Brasileira de Editores de Livros (ABRELIVROS) e Associação
Brasileira de Celulose e Papel (BRACELPA). A partir da 2ª. edição, em 2008, a
pesquisa passou a ser de responsabilidade do Instituto Pró-Livro/IPL, criado em
2006 como uma associação de caráter privado e sem fins lucrativos, mantida com
recursos constituídos, principalmente, por contribuições de entidades do mercado
editorial (SNEL, CBL, ABRELIVROS).12
A 3ª. edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, realizada entre 11 de
junho e 3 de julho de 2011, ouviu 5.012 pessoas, em 315 municípios, com uma
11
No Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, uma edição portuguesa online,o verbete “literacia”,
do inglês literacy, substantivo feminino, tem as seguintes definições: “1. capacidade de ler e de
escrever; 2. Capacidade para perceber e interpretar o que é lido. Sinônimo geral: Letramento”.(2013).
Disponível em: http://www.priberam.pt/DLPO/literacia. De emprego comum no português de Portugal,
também significa alfabetização ou alfabetismo.
12
Sua criação foi uma resposta do mercado editorial a compromisso assumido entre representantes
do governo e entidades do livro frente à desoneração fiscal, tendo como objetivo principal o fomento à
leitura e à difusão do livro. Por isso, o IPL desenvolve projetos próprios ou apoia programas e
projetos desenvolvidos por outras organizações sem fins lucrativos ou órgãos públicos por meio de
financiamento, assessoria ou doações.
28
população brasileira residente com 5 anos ou mais, independente de serem
alfabetizadas ou não. Feita a cada três anos, essa pesquisa conta com a parceria do
IBOPE Inteligência13 para fazer um levantamento nacional do número de brasileiros
considerados leitores, nesse caso, entrevistados que haviam lido ao menos um livro,
inteiro ou em partes, nos três meses que antecederam a pesquisa. Além de serem
utilizados como diretriz de formulação de políticas públicas para correção dos
índices de uma crise da leitura, esses resultados ganham credibilidade da mídia e
parte da sociedade civil, que a veem como o maior e mais completo estudo sobre o
comportamento leitor do brasileiro de todas as regiões do País.
Conforme dados apontados pela 3ª.edição, o índice de leitores oscilou
negativamente da 2ª edição, de 2007, para esta, passando de 55% para 50%. Essa
oscilação ocorreu em praticamente todas as regiões, com exceção do Nordeste,
onde permaneceu estável. Quando abordados apenas os estudantes (64% da
população), o número de exemplares de livros lidos chega a 3,41 nos últimos três
meses. Desse índice, 2,21 livros são indicados pela escola, sendo divididos em 1,72
livros didáticos e 0,49 de literatura. Os estudantes revelam que leem 1,20 livros por
iniciativa própria, divididos entre literatura (0,47), Bíblia (0,15), livros religiosos (0,11)
e outros gêneros (0,47). Estatisticamente, tem-se o seguinte percentual: livros
indicados pela escola representam 47%. Desse total, 30% são didáticos e 17%, de
literatura. Desse modo, a 3ª.edição da pesquisa constata que os brasileiros leem em
média quatro livros por ano, entre literatura – contos, romances –, livros religiosos e
didáticos. Desse total, os brasileiros leem 2,1 livros inteiros por ano e dois em partes.
Ainda de acordo com essa edição, o Brasil é composto por 50% de leitores, cerca de
88,2 milhões de pessoas.
Frente aos resultados da 3ª. edição, Marisa Lajolo (2012) levanta alguns
questionamentos acerca da metodologia aplicada a tal pesquisa. Inicialmente,
problematiza a representatividade da amostragem, um total de 5.012 brasileiros
entrevistados, a despeito de se ter quase duas centenas de milhões de brasileiros
no País, além de ser um número muito próximo da tiragem de 1ª. edição de um livro.
A autora ressalta o fato de que este número é bastante próximo de tiragens de
romances de José de Alencar e Machado de Assis no século XIX.
13
O IBOPE Inteligência é unidade de negócios do IBOPE ,a maior empresa privada de pesquisa da
América Latina e a 13ª maior do mundo, que há mais de sete décadas observa, descreve, mede e
monitora a América Latina.
29
Lajolo aventa algumas hipóteses possíveis para explicar o declínio no número
de leitores em relação à pesquisa de 2007. Primeiro, deve-se considerar a
transferência de valores implícitos nas perguntas para as respostas fornecidas.
Ainda que a pesquisa de 2011 tenha alterado a ordem das questões, a negociação
de imagens entre entrevistador e entrevistado pode afetar a credibilidade das
respostas fornecidas. Sem falar que a alteração de sequências das questões tornou
a avaliação de 2001 mais sensível, portanto, capaz de levantar dados mais rigorosos
do que o levantamento de 2007, ou talvez pela rígida definição do objeto livro que se
adotou na pesquisa atual. Lajolo ressalta ainda que é preciso considerar a
complexidade do universo da linguagem, pois é sempre arriscado entender
literalmente o que se ouve, uma vez que a linguagem oral, tanto quanto a linguagem
escrita, tem suas entrelinhas.14
Também Márcia Abreu (2001) levanta algumas questões acerca dos
resultados da 1ª. edição da pesquisa “Retrato da Leitura no Brasil” 15, feita em 2001.
Guardadas as devidas proporções entre a pesquisa de 2001 e a 3ª. edição, em
2011, as considerações da autora ainda são pertinentes. Decorrida uma década,
embora se tenham observado alguns avanços na proficiência da leitura no país,
muito ainda há para se conquistar. Portanto, suas críticas ajudam a compreender os
problemas que tais resultados não trazem. A autora chama a atenção para o fato de
a pesquisa ser encomendada por empresários do setor livreiro, os quais visam os
compradores de livros. Portanto, a pesquisa leva em conta, entre outras questões, o
número de compradores de livros e não o de leitores, deixando de pontuar, assim,
aqueles leitores que leem através de empréstimos em bibliotecas ou em acervos de
escolas. Na 3ª. edição, os resultados mostram que a principal forma de acesso ao
livro é através da compra (48%), o que pode revelar uma sensível melhora na
condição social do brasileiro.
Para Márcia Abreu (2001), a 1ª. edição da pesquisa acabou por revelar
algumas questões, à medida que se constata que os leitores brasileiros demonstram
apreciar os livros, creditando neles valor para fazer a vida melhorar. Se assim o é,
afirma a autora, não é necessário fazer campanhas de incentivo à leitura para
divulgar a ideia de que ler é um prazer e faz bem às pessoas. Elas já acreditam
14
A autora propõe o entrecruzamento de dados da pesquisa “Retratos da leitura no Brasil” com outras
sobre o universo da leitura como forma de superaras possíveis falhas da metodologia adotada.
15
Na 1ª. edição, o nome da pesquisa era “Retrato da leitura no Brasil” e não Retratos da leitura no
Brasil, no plural.
30
nisso. Em sua opinião, o que se faz necessário é criar condições sociais para que o
desejo de ler se torne realidade. E isso só é possível enfrentando as desigualdades
sociais do Brasil. Ainda, é preciso possibilitar a toda população o acesso a escolas
de qualidade e distribuir melhor a renda, não só para que mais gente possa comprar
livros, mas para que mais gente permaneça na escola por mais tempo.
As ponderações da autora exigem que se pense o diagnóstico que se tornou
lugar comum: a de que se vive uma crise de leitura. Para Abreu (2003, p. 40),
“aqueles que apregoam a crise da leitura não pensam na leitura em geral, e sim na
leitura de certo tipo de livros – aqueles que formam a tradição erudita nacional e
internacional”. Ignoram, assim, outras formas de leitura, novos suportes, produzidos
pela cultura digital, por exemplo. É preciso considerar os diferentes modos de ler,
principalmente, na faixa etária dos jovens entre 11 anos e 17 anos, período
apontado pela pesquisa como aquele em que se verifica menos tempo dedicado à
leitura de livros, até mesmo como obrigação escolar. Ressalte-se que essa faixa
etária representa uma geração nascida na era da cultura digital, e, portanto, usam
outros suportes de leitura que não o livro impresso, a exemplo das mídias, o que não
significa dizer que os jovens leiam menos.
Os dados do “fracasso” sobre a proficiência em leitura, expostos por essas
avaliações, têm sido veiculados pela mídia como um veredito final, a última palavra
em termos de resultados referentes às práticas de leitura no Brasil. Contudo, para
muitos estudiosos, escapam a essas investigações um rigor nas análises e uma
perspectiva de abordagem que considere os contextos socioculturais. Afirma Magda
Soares (2010, p. 9): “a ausência ou quase ausência da perspectiva antropológica,
em estudos, pesquisas e ações de letramento em nosso país, cria uma lacuna que
me parece séria”. Continua:
Lacuna de estudos, pesquisas e ações não propriamente sobre
diferentes culturas, o que só se aplica, em nosso país, às
remanescentes populações indígenas, mas sobre as muitas
subculturas que estas, nós as temos, em um país tão grande como o
nosso, com tantas e tão marcadas diferenças culturais e linguísticas,
entendendo aqui por subculturas as culturas de grupos de diferentes
condições sociais e econômicas, com diferentes níveis de acesso
aos bens culturais, com diferentes graus de acesso a material
escrito, portanto, grupos que atribuem diferentes valores às práticas
de leitura e escrita, que vivenciam práticas sociais de leitura e escrita
peculiares (SOARES, 2010, p. 9).
31
Assim, corre-se o risco, frente à enxurrada de resultados negativos vinda de
todos os lados, de se sedimentarem certas crenças históricas em relação à leitura e
ao leitor. Desse modo, não é difícil encontrar professores, que por desconhecerem
os usos da leitura e da escrita em diferentes camadas populares, acabam
reproduzindo os valores expressos por essas pesquisas – ao reforçarem a ideia de
que os brasileiros têm lido menos nas últimas décadas – ao invés de questionarem
os métodos de análises empregados e os interesses pessoais ou mercadológicos
que contribuem para a realização dessas avaliações.
Para Magda Soares (2010), muitos professores, sobretudo os da escola
pública, se queixam da pouca familiaridade das crianças das camadas populares
com a leitura e a escrita, e atribui isso à falta de livros e material escrito, em geral,
em seu contexto familiar, social e cultural. A autora amplia o entendimento dessa
questão:
Na verdade, o que nos falta é conhecer os usos da leitura e da
escrita nessas camadas, suas diferenças em relação aos usos
escolares, que são aqueles valorizados pelas camadas
hegemônicas. Ou seja: o que nos falta são estudos e pesquisas na
perspectiva antropológica dos eventos de letramento em camadas
populares, estudos e pesquisas que venham esclarecer as
diferenças nas relações com a cultura escrita entre as diferentes
subculturas a que pertencem os alunos presentes nas salas de aula
(SOARES, 2010, p. 9).
Infelizmente, no Brasil, o olhar para as práticas de leitura ainda tem girado em
torno da avaliação, uma vez que, o que se observa, é a necessidade constante de
se obter bons resultados. Nessa direção, têm-se as proposições de Magda Soares
(2010, p. 10):
Eu diria que temos avaliado muito, e pesquisado pouco ou nada,
sobre as causas e as circunstâncias que podem explicar os baixos
resultados ou o fracasso das nossas crianças em leitura, os baixos
níveis de letramento da população jovem adulta. Uma primeira
implicação para os estudos e as pesquisas na área de alfabetização
e letramento é, pois, a necessidade de pesquisas sobre as causas e
os determinantes desses baixos níveis de alfabetização e de
letramento de alunos, de crianças, e da população em geral.
Diante desse contexto de baixo desempenho dos estudantes brasileiros nas
áreas de linguagem e matemática, constatado pelos indicadores das avaliações
32
internas e externas que introjetam na sociedade o discurso/estratégia de
responsabilização docente pelo “fracasso” escolar, Magda Soares chama à
responsabilidade os pesquisadores e os formuladores de políticas públicas. Para
essa educadora, os pesquisadores não estão conseguindo fazer chegar os
resultados das pesquisas às mãos dos formuladores de políticas, os quais têm
urgência de soluções:
[...] mas é preciso reconhecer que a urgência de soluções exige
intervenção imediata, enquanto a pesquisa é lenta. Não se pode ter
urgência na pesquisa. A implicação desse descompasso é que talvez
caiba a nós, pesquisadores, usar ou descobrir estratégias que façam
a ponte entre nossas pesquisas e os formuladores de políticas
(SOARES, 2010, p. 12).
Para a autora, muitos pesquisadores ainda ignoram temas cuja investigação é
necessária para fundamentar políticas ou explicar o fracasso delas.
Diante dos maus resultados dos alunos em avaliações de
alfabetização e letramento, avaliações realizadas por iniciativa de
políticas educacionais, estamos sempre discutindo hipóteses de
explicação, mas não a temos submetido à comprovação, por meio de
pesquisas. Há pouca ou quase nada de pesquisas que busquem
identificar as causas dos resultados negativos das avaliações que
vêm sendo feitas no país. Talvez por isso as políticas têm sido
medidas emergenciais que não atacam as causas, porque não as
temos esclarecido – fixam-se patamares a serem alcançados dentro
de um prazo prefixado, obrigam-se as escolas a reformular seus
projetos de ensino... e continuamos chegando a maus resultados de
alfabetização e letramento (SOARES, 2010, p. 12)16.
Considerando as reflexões da autora, o que vem sendo feito para corrigir os
índices da proficiência em leitura tem tido pouco impacto, os programas de formação
continuada de professores no Brasil. Todavia, se desacompanhados de mudanças
estruturais, não reverterão o retrato da leitura no país. Apenas terão um caráter
compensatório.
16
Este estudo foi apresentado no I e II Colóquio Internacional sobre Letramento e Cultura Escrita,
realizados na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, em 2007 e
2008.
33
1.2 A formação continuada: preenchendo lacunas
O Programa Gestão da Aprendizagem Escolar II se insere na política pública
de formação continuada em serviço de professores, conforme o que está expresso
no Guia Geral do Programa e na Resolução/CD/FNDE nº 35, de 13 de julho de
2009.
É um programa de formação continuada semipresencial orientado
para a formação de professores de Matemática e de Língua
Portuguesa, objetivando a melhoria do processo de ensino
aprendizagem. O foco do programa é a atualização dos saberes
profissionais por meio de subsídios e do acompanhamento da ação
do professor no próprio local de trabalho (BRASIL, 2010, p. 14).
A formação continuada em exercício do Gestar II é regulamentada pela
Resolução /CD/FNDE nº 35, de 13 de julho de 2009, conforme podemos observar
abaixo:
I - DO PROGRAMA E SEUS PARTICIPANTES:
Art. 2° O GESTAR II tem por objetivo propiciar acesso
conhecimentos linguísticos e matemáticos a todos os alunos
anos ou séries finais do Ensino Fundamental, por meio
capacitação de professores em exercício nesses anos/séries
sistemas federais, estaduais e municipais de educação.
aos
dos
da
nos
Art. 3° O programa GESTAR II, como parte da Política Nacional de
Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica e do
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), visa reorientar a
prática docente com base em conhecimentos adquiridos pelos
professores-cursistas em cursos com carga horária de 300 horas,
nos quais se combinam estudo individual e atividades presenciais
coordenadas por professores-formadores (tutores). (BRASIL,
Resolução/CD/FNDE nº 35, de 13 de julho de 2009).
A formação semipresencial do Gestar II é fundamentada pela teoria e pelos
pressupostos da educação à distância, que oferece estratégias de estudos
individuais. De acordo com Preti (2000), a concepção de formação semipresencial
ganhou força aqui no Brasil com a criação da LDB 9.394/96, que a inseriu ao
sistema educacional brasileiro, e também através de várias portarias e decretos que
foram
publicados,
buscando
oferecer
maior
esclarecimento
acerca
dessa
modalidade. De acordo com o autor, a concepção de ensino em EAD na Portaria
34
2.494/98 é vista como produto industrial, no sentido da utilização de técnicas e
centrada na autoaprendizagem.
Segundo Neder (2000), através dessas definições percebe-se que a EAD é
compreendida como um meio, uma forma de se possibilitar o ensino. Desse modo,
tais definições apontam para o aspecto instrumental, denunciam uma visão de
educação não como processo, ou prática social, mas como um sistema – coisa –
descolado da realidade socioeconômica e cultural. Essa modalidade de ensino
contraria a própria concepção do Gestar II como prática social, evidenciando, assim,
um descompasso entre a formação pretendida e a realizada.
De acordo com Magnavita (2003), a crítica relativa à EAD surge quando
muitas vezes se pensa modelos pedagógicos que sejam aplicáveis a tudo e a todos.
Neste sentido, pode se inferir que há um grande desafio para os programas de
formação de professores de Língua Portuguesa: como propor um ensino de língua e
literatura que fuja desses modelos de homogeneização do ensino? Contudo, sabese que o ensino a distância costuma arrebatar um discurso acalorado quanto à sua
eficácia, considerado como uma importante ferramenta para a formação continuada
do professor, principalmente para aqueles distantes dos grandes centros de
produções do saber. Porém, questiona-se: como garantir a igualdade de direitos à
formação continuada a todos os professores da rede pública de ensino, por
exemplo, sem, com isso, homogeneizar os sujeitos e tutelar o ensino? Talvez esta
seja ainda uma pergunta sem respostas.
O Programa Gestar II atesta o crescimento elevado de implementação de
políticas públicas para a formação continuada dos professores, sobretudo de Língua
Portuguesa da educação básica ao tempo em que comunga de uma crença
contemporânea: a de que a atualização da informação e do conhecimento é
requisito indispensável à vida profissional dos sujeitos, devido, principalmente à
velocidade das transformações tecnológicas, que alteram consequentemente o
conhecimento. Embora os termos “informação” e “conhecimento” pareçam
sinônimos, entende-se por informação todo conteúdo disponibilizado, seja ele virtual
ou não. Porém, essa disponibilidade só se torna conhecimento quando o indivíduo
atribui sentidos às informações recebidas.
Frente às mudanças no mundo do trabalho, decorrentes das transformações
tecnológicas e do conhecimento, Bernardete Gatti (2008) avalia que nos últimos
35
anos do século XX a necessidade da formação continuada se tornou ainda mais
urgente, como modo de se atualizar as informações e o conhecimento:
[...] tornou-se forte, nos mais variados setores profissionais e nos
setores universitários, especialmente em países desenvolvidos, a
questão da imperiosidade de formação continuada como um requisito
para o trabalho, a ideia da atualização constante, em função das
mudanças nos conhecimentos e nas tecnologias e das mudanças no
mundo do trabalho. Ou seja, a educação continuada foi colocada
como aprofundamento e avanço nas formações dos profissionais.
Incorporou-se essa necessidade também aos setores profissionais
da educação, o que exigiu o desenvolvimento de políticas nacionais
ou regionais em resposta a problemas característicos de nosso
sistema educacional (GATTI, 2008, p. 3).
Neste sentido, importa destacar a relevância da formação continuada do
professor, tendo em vista as muitas exigências e mudanças rápidas de informações
que, consequentemente, acarretaram em novas exigências ao trabalho docente,
exigindo do professor uma formação contínua. Nessa nova configuração, o professor
precisa estar sempre atualizado e informado em relação aos acontecimentos
mundiais e em relação aos conteúdos curriculares de sua disciplina. Para isso, é
necessário que ele compreenda as múltiplas realidades do trabalho docente,
buscando uma formação contínua que lhe capacite a exercer uma prática
pedagógica contextualizada, e atenta às especificidades dos sujeitos envolvidos no
processo de aprendizagem. Para Bernardete Gatti (2011), tal configuração, exige do
professor uma postura profissional que vai além de competências cognitivas, que
exige uma adoção de valores e atitudes favoráveis capaz de criar e ensaiar
alternativas para transpor os desafios cotidianos que se impõem à prática educativa.
Para se compreender a formação continuada, é necessário um entendimento
da docência. Assim a consideram Tardif e Lessard (2005), em sua investigação
sobre o trabalho docente no cotidiano escolar:
[...] uma forma particular de trabalho sobre o humano, ou seja, uma
atividade em que o trabalhador se dedica ao seu „objeto‟ de trabalho,
que é justamente um outro ser humano, no modo fundamental da
interação humana. [...] as condições, as tensões e os dilemas que
fazem parte desse trabalho feito sobre e com outrem, bem como a
vivência das pessoas que o realizam diariamente (TARDIF;
LESSARD, 2005, p. 8).
36
Assim, é salutar que o professor compreenda o trabalho docente, suas
implicações e saberes necessários à sua execução, o que certamente implicaria
numa boa formação inicial e numa boa formação continuada.
A formação continuada no Brasil vem sendo compreendida sob vários
aspectos, de acordo com Bernardete Gatti (2008). Ora como um curso estruturado e
formalizado, presencial ou a distância, oferecido após a graduação ou ingresso no
magistério, ora vista de modo amplo e genérico, como qualquer tipo de atividade que
venha contribuir para o desempenho profissional, a exemplo dos trabalhos coletivos
na escola, reuniões pedagógicas, trocas cotidianas com os pares, participação na
gestão escolar, congressos, seminários, ou ainda cursos diversos oferecidos pelas
Secretarias de Educação ou outras instituições. Neste caso, propõe-se pensá-la
como um processo permanente de aperfeiçoamento dos saberes docentes, ou seja,
uma formação contínua que acontece logo após a formação inicial.
Nesse contexto, vale destacar a criação do Gestar II que, apesar de ter sido
elaborado com o intuito de promover uma formação logo após a formação inicial,
tem preenchido as lacunas da formação inicial. A exemplo disso, têm-se os
testemunhos de muitos professores que relatam desconhecerem muitos conteúdos
do componente curricular Língua Portuguesa, a exemplo de “gêneros textuais”,
quando fizeram sua formação inicial.
Todavia, é importante considerar que a formação continuada não dispensa
uma boa formação inicial. Por isso, é de suma importância a criação e
implementação de políticas públicas que garantam a qualidade da formação inicial.
E, também, precisa estar claro que uma boa formação inicial não descarta a
formação continuada. A ênfase na clareza dos limites de cada formação é
necessária porque, no Brasil, a formação continuada possui peculiaridades que a
distinguem da de outros países. Aqui, assumiu um caráter compensatório que visa
preencher lacunas deixadas pela formação inicial. Neste sentido, Gatti (2008)
destaca que no País a formação continuada ganhou contornos diferentes daqueles
propostos pelos chamados países desenvolvidos, os quais a compreendem como
aprofundamento e avanço na formação dos profissionais, tendo em vista a
necessidade
de
atualização
constante,
em
função
das
mudanças
nos
conhecimentos e nas tecnologias e, principalmente, das transformações no mundo
do trabalho.
37
Assim, no Brasil, para a autora essa proposta ampliou-se e passou a
abranger muitas iniciativas que, na verdade, são de suprimento de uma formação
precária pré-serviço e nem sempre são de aprofundamento ou ampliação de
conhecimentos. Isto é, as iniciativas públicas de formação continuada no setor
educacional brasileiro adquiriram forma de programas compensatórios, realizados
com a finalidade de suprir aspectos da má-formação docente, alterando o propósito
inicial dessa educação, posto nas discussões internacionais. Isso se explica por uma
particularidade brasileira: a precariedade em que se encontram os cursos de
formação de professores em nível de graduação, em todas as áreas, e, obviamente,
no nosso caso, a formação em Letras.
As diretrizes curriculares para os cursos da área de letras prevê que a
formação docente, em sua proposta ampla, deve formar profissionais culturalmente
competentes, capazes de refletir criticamente sobre temas e questões variadas
relativos aos estudos literários e linguísticos. Dito em outras palavras, o profissional
formado em Letras, em tese, é um intelectual com sólida formação em língua e
literatura. Contudo, os cursos dessa área parecem não estar preparando os futuros
professores para enfrentarem a realidade das salas de aula do ensino básico,
marcada, na contemporaneidade, pela diversidade cultural, pelos avanços
tecnológicos e pela presença de novos objetos artísticos e culturais.17
Marcos Bagno (2012) ressalta o anacronismo dos cursos de Letras no País,
com suas matrizes curriculares muito parecidas com as dos primórdios de sua
criação, no século XIX, orientada pelas belas-letras.18 Para esse pesquisador,
muitos conteúdos estão defasados, ao tempo em que se constata um nível de
letramento muito baixo dos estudantes da graduação em Letras, boa parte deles
trazendo lacunas da Educação Básica, a exemplo de um restrito repertório de leitura
de obras literárias, ausência de domínio da norma culta e fragilidades na escrita.
Para Bagno (2012), é urgente que os cursos de Letras promovam o letramento dos
17
A última reformulação do projeto pedagógico dos cursos de Letras no país ocorreu em 2002,
conforme diretrizes curriculares estabelecidas pela Resolução do CNE/CES/2002. Contudo, tal
reformulação manteve, em sua base, a concepção das matrizes iniciais.
18
Em sua conferência de abertura, intitulada “Curso de Letras? Pra quê?”, no VII Encontro
Brasiliense de Estudantes de Letras/EBREL, realizada na UNB, em 2012,Bagno chama a atenção
para o nome do curso, o qual remonta a uma concepção de educação que vigorava no século XIX.
Para esse pesquisador, na contemporaneidade não se justifica a permanência do nome Letras, tendo
em vista as constantes revoluções tanto na ciência quanto na sociedade. Assim, ao ingressar no
curso de Letras, o estudante encontra uma estrutura acadêmica obsoleta, anacrônica, construída há
pelo menos duzentos anos.
38
graduandos. E, para atender às demandas contemporâneas da educação, devem
dispor de um projeto político e pedagógico que fundamente a prática da sala de
aula. Segundo o autor, a especificidade da licenciatura em Letras é, sobretudo,
formar professores de língua portuguesa, literatura e línguas estrangeiras e não
grandes escritores e críticos literários, gramáticos e linguistas, filólogos e
pesquisadores, ainda que seja possível. Nesse sentido, cabe destacar o papel das
universidades, que precisam rever seus programas de ensino, considerando as
novas demandas sociais e os contextos socioculturais dos seus graduandos.
Tendo em vista o diagnóstico dos cursos de Letras feito por Bagno (2012),
pode-se endossar a constatação de que os programas de formação continuada vêm
a ser uma correção de percurso e expõem o fosso entre a universidade e a
Educação Básica. O fato de a formação continuada adquirir características de
programas compensatórios não a transforma necessariamente em um programa
refutável. Pelo contrário, é sabido por muitos, principalmente nas últimas décadas,
que o Brasil tem criado mecanismos para enfrentar anos de desigualdades sociais e
econômicas, rompendo com a noção de mérito tal como o liberalismo clássico o
concebeu. Isso não significa dizer que não haja políticas concomitantes para atacar
a raiz do problema, a formação inicial.
Em relação a isso, o que não se pode conceber é a ausência de uma efetiva
política pública de educação básica que garanta a igualdade de oportunidades a
todos. Porém, como historicamente esse direito foi negado, principalmente às
camadas populares da sociedade, é justo que se implementem políticas de correção
até que todos estejam em “pé de igualdade”. Assim, no contexto brasileiro, a
formação continuada, nos moldes em que se apresenta, torna-se igualmente
importante na formação dos professores.
Vale ressaltar que a preocupação com a formação continuada de professores
é uma exigência mundial. Para Gatti (2008), isso se explica pela congruência de dois
fatores: primeiro, pelas pressões do mundo do trabalho, como já dito anteriormente,
que vem se informatizando, e, segundo, pela constatação feita por sistemas de
governo, da precariedade do desempenho escolar de grande parte da população.
Gatti (2008) destaca alguns documentos internacionais do Banco Mundial que
enfatizam a necessidade de mudança, através da reformulação do currículo e da
formação continuada do professor. São eles: Programa de Promoção das Reformas
Educativas na América Latina (PREAL, 2004), Declaração mundial sobre a
39
educação superior no século XXI (UNESCO, 1998), Declaração de princípios da
Cúpula das Américas (2001) e os documentos do Fórum Mundial de Educação
(Dacar, 2000). Segundo Gatti (2008, p. 6), em todos eles, “menos ou mais
claramente, está presente a ideia de preparar os professores para formar as novas
gerações para a “nova” economia mundial e de que a escola e os professores não
estão preparados para isso.” Daí a ênfase no trabalho por competências, a serem
desenvolvidas com os professores e os alunos. Ressalta a autora: “As ações
políticas em educação continuada (em educação em geral) instauraram-se nos
últimos anos com essa perspectiva” (p.6).
Com relação ao trabalho por competências, já se encontram algumas
resistências e questionamentos. Gatti (2008) tece uma crítica ao trabalho
estruturado por competências, pois, segundo essa educadora, em última instância,
pode-se inferir que ser competente é condição para ser competitivo, social e
economicamente. Nos últimos anos, uma visão de educação pautada na ideia de
preparar professores que venham a formar novas gerações para a nova economia
mundial tem norteado as ações políticas em educação. Neste contexto, Gatti (2008)
traz sérias críticas e provocações à formação de professores e alunos baseada na
concepção de competência.
A equação proposta quando se coloca a questão como foi
anteriormente delineada é simples: melhorando a economia,
melhoram as condições de vida e pode-se ser mais feliz. A educação
ajuda a melhorar a economia, pela qualificação das pessoas para a
sociedade do conhecimento e do consumo. Cabe perguntar: essa
equação é mesmo verdadeira? É suficiente para uma civilização
mais compreensiva, cooperativa, democrática? Por que não se
discute a educação como fator de aprimoramento dos humanos para
um mundo mais ético? Claro que não estamos descartando a
necessidade de uma formação educacional sólida para todos em prol
de vagos culturalismos ou modismos emergentes, mas estamos
perguntando se, na ordem dos valores, apenas os materiais e
econômicos devem prevalecer nas perspectivas educacionais? Onde
ficam as preocupações com a formação humana para uma vida
realmente melhor para os humanos enquanto seres relacionais e não
apenas como homo faber, como homem produtivo? (GATTI, 2008, p.
7).
Assim, as competências são postas como metas a serem seguidas, como se
fossem ingredientes rotulados para cada função.
40
Colocam-se como metas, como elementos para acrescentar na
formação básica ou continuada de professores e alunos,
competências e habilidades enunciadas como se fossem
ingredientes rotulados, “habilidade tal...”, “competência tal...”, que
estão disponíveis, empacotadas e colocadas em uma prateleira para
pronto uso. É como se estivesse numa cozinha e dissesse: “põe mais
sal no molho, põe mais manteiga no purê...”. A crítica aqui é
conceitual, é das práticas históricas e das concepções de ser
humano, como também vem do aporte de investigações científicas
que nos fazem ter dúvidas quanto à equação “competência XY
induzida = sucesso profissional”. Para não dizer da dificuldade em
“isolar” uma competência e das dificuldades em definir o constructo
“competência”, dificuldade bem mostrada na bibliografia
especializada (GATTI, 2008, p.7, grifos do autor).
Para Gatti (2008), o discurso da competência e habilidade veio para contornar
a dificuldade que se tem até hoje, em certos círculos, de falar em domínio de
técnicas para o trabalho docente e formação em tecnologias, que ficou descartada
sob o rótulo de tecnicismo, o qual adquiriu ideologicamente sentido pejorativo.
Ademais, considera Gatti (2008), é de suma importância destacar o
documento brasileiro que regula a educação no país, a LDB 9394/96, a qual trata da
necessidade de processos de educação continuada. Nos artigos 67 e 80,
encontram-se os deveres e obrigações de cada esfera do poder público quanto à
formação continuada. A LDB 9394/96 prevê que os sistemas de ensino deverão
promover a valorização dos profissionais da educação, inclusive propondo o
licenciamento periódico remunerado para esse fim, devendo o Poder Público
incentivar o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em
todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada. Gatti (2008, p.
68) ressalta os altos investimentos que têm sido feitos com os programas de
formação continuada no Brasil, levantando uma questão:
[...] não seria melhor investir mais orçamento público para a
ampliação de vagas em instituições públicas para formar licenciados
e investir na qualificação desses cursos, em termos de projeto, de
docentes, de infra-estrutura, deixando para a educação continuada
realmente os aperfeiçoamentos ou especializações?
Portanto, a despeito de tantas ações políticas, como a criação de leis,
reformulação dos cursos de Letras, questões sociais e econômicas e da
imperiosidade da formação continuada, é preciso considerar que a questão dos
41
baixos índices de competência leitora apontados nas avaliações não pode ser
revertida apenas por tais providências, pois a questão é complexa. Envolve a escola,
enquanto instituição, no enfrentamento dos desafios que lhe são impostos e o que
dela se espera.
Poucos resultados serão obtidos com a formação continuada se não se der
atenção às questões emergentes que a escola precisar enfrentar. Nesse sentido,
Viviane Mosé (2013), dando continuidade a uma concepção de educação Freiriana,
traz uma reflexão sobre os desafios contemporâneos postos à escola. Em primeiro
lugar, é preciso considerar o contexto atual em que a escola está inserida, que é de
mudanças, provocadas pelo avanço tecnológico, um contexto em que presenciamos
uma desintegração dos valores e saberes fixos e rígidos, tornando-os mutáveis,
provisórios. Para Mosé, contraditoriamente, a tecnologia, que surgiu para nos
alienar, traz uma nova revolução: “ao fazer nascer a sociedade em rede, a revolução
tecnológica permitiu a democratização do acesso à informação e ao conhecimento,
em outras palavras, ao poder” (MOSÉ, 2013, p. 23).
Por isso, a autora ressalta a necessidade da escola abandonar modelos de
ensino em massa, que ignoram os sujeitos, para priorizar a educação
individualizada, que favorece ao aluno construir seus conhecimentos nesse contexto
de mudanças. E por isso a escola deve abandonar o ensino fragmentado, que leva o
aluno a acreditar que se estuda para alguém e por alguém, não para si. Em vez de
ensinar, é preciso promover a aprendizagem. Para Mosé, o ensino fragmentado é
uma forma de controle social, uma vez que o pensamento fragmentado compromete
a capacidade das crianças e jovens de relacionar a experiência particular ao todo da
vida, submetendo-os a “processos e engrenagens que os tornam tão pequenos e
insignificantes que não se sentem potentes para tranformar aquilo que os oprime”
(MOSÉ, 2013, p. 52).
Viviane Mosé afirma que a escola contemporânea precisa entender que todo
conhecimento está sujeito a mudanças, que todo saber é provisório. Portanto, não
cabe atribuir-lhe função de ensino. É preciso compreender que “a escola atual é a
escola das incertezas, nasce especialmente da instabilidade do trabalho e da
desvalorização da formação profissional, dadas as inovações tecnológicas que criam
sempre novas demandas” (MOSÉ, 2013, p. 54). Conclui a educadora:
42
O que precisamos de fato encarar é que ou a escola passa a ser um
espaço vivo de produção dos saberes, de valorização da curiosidade,
da pesquisa, da arte e da cultura, da criatividade, da reflexão – um
espaço de convivência ética e democrática no qual se exercita a
cidadania, um espaço vinculado à comunidade a que pertence, bem
como à cidade, ao país, ao mundo – ou se tornará obsoleta e estará
fadada ao desaparecimento (MOSÉ, 2013, p. 56).
Ainda com Viviane Mosé, para a escola ser esse espaço de convivência é
preciso garantir também que ela seja um lugar da ação e não da passividade, onde
os conteúdos se relacionem com a vida dos alunos, que façam sentido, além de
valorizar os conhecimentos prévios que eles já possuem. Mas, acima de tudo, “a
escola deve estimular o gosto por aprender, o que significa entender que a fome de
saber, a vontade de conhecer é mais eficiente para o processo de aprendizagem do
que a manutenção dos deveres cumpridos” (MOSÉ, 2013, p. 57).
Considerando as questões levantadas por Viviane Mosé, um programa de
formação continuada só terá impacto se gestado por crenças e valores que
coloquem professores e alunos em uma situação permanente de aprendizagem,
aqui entendida como um processo que promove a reinvenção da escola na
produção do conhecimentos, num movimento de liberdade e criação.
43
2 NOS GUIAS E MANUAIS, A CONCEPÇÃO DO PROGRAMA
O
Programa
Gestar
II
compreende
a
formação
de
Professores
Formadores/Tutores e a formação de Professores Cursistas para cada uma das
áreas – Língua Portuguesa ou Matemática. Cada curso desenvolve-se na
modalidade semipresencial, através de atividades individuais e presenciais, com o
uso de materiais didáticos e um serviço de apoio aos participantes. Para frequentar
o curso de Formador/Tutor, o profissional deverá ser indicado pela Secretaria de
Educação, ou órgão competente, atendendo aos seguintes critérios: ser professor
concursado da rede pública de ensino e licenciado em Letras ou Matemática. O
curso tem carga horária total de 300 horas, assim distribuídas: a) formação inicial de
40 horas; b) 2 seminários de acompanhamento com 24 horas cada; c) 1 seminário
de avaliação com 16 horas; d) Atividades à distância para cada área temática com
196 horas.19
As funções atribuídas ao Formador/Tutor são diversas. Contudo, cabe
destacar algumas: a) planejar os encontros presenciais, os planos de aulas e o
processo de avaliação diagnóstica; b) participar da apresentação e divulgação do
Gestar II; c) realizar o acompanhamento da prática pedagógica do professor; c)
executar as sessões presenciais.
O curso de formação para o professor cursista destina-se aos professores
efetivos da rede pública, em exercício da docência, nos componentes curriculares de
Língua Portuguesa ou Matemática, nos anos finais do Ensino Fundamental. Este
curso constitui-se de carga horária total de 300 horas, distribuídas da seguinte
forma: a) “Estudos individuais” com 120 horas; b) “Estudos coletivos” – oficinas com
80 horas; c) “Lição de casa ou socializando o conhecimento”, com 60 horas; d)
“Elaboração do projeto”, com 40 horas. Nota-se que a maior parte da carga horária
19
A carga horária nos permite inferir que a maior parte das atividades é à distância. O Guia Geral
explica que isso ocorre pela própria natureza do programa que é semipresencial, o que significa dizer
que, na maior parte do tempo, os estudos dependerão do próprio professor/formador estudando em
casa o material impresso do curso. A frequência mínima exigida para fins de certificação e
remuneração, sob a forma de bolsa, é de 75% do total da carga horária presencial de formação com
a Instituição de Ensino Superior, sendo que, para as 40 horas iniciais, exigem-se 100% de frequência.
De acordo com o primeiro parágrafo da Resolução CD/FNDE nº 24, de 16 de agosto de 2010,
receberão bolsa de estudo os professores formadores/tutores que sejam considerados participantes
regulares do programa Gestar II.
44
recai sobre atividades destinadas a estudos individuais e à “lição de casa ou
socializando o seu conhecimento”, o que é justificado pelo formato semipresencial,
dependendo, na maior parte do tempo, da ação do professor, conforme o Guia Geral
do programa: “[...] depende de você ler, escrever, resolver problemas, elaborar
questões e colocar em prática os seus conhecimentos” (BRASIL, 2010, p. 52). 20 O
Programa oferece aos professores cursistas um material didático impresso e de
apoio, plantão pedagógico, acompanhamento pedagógico, oficinas coletivas e um
sistema de avaliação próprio.21 O curso está estruturado em dois módulos, a ser
realizado com os livros didáticos elaborados pelo MEC. O Módulo I compreende 3
Cadernos de Teoria e Prática (TP1, TP2,TP3). O Módulo II é composto por mais 3
Cadernos de Teoria e Prática (TP4,TP5,TP6).
O conjunto do material impresso do Programa Gestão da Aprendizagem
Escolar II compreende as seguintes publicações 22: a) 01 Guia Geral - um caderno
que preconiza as especificidades do Programa, como sua proposta pedagógica,
implementação e definição dos papéis dos sujeitos participantes; b) 01 Caderno do
Formador – com propostas das oficinas de estudo coletivo e orientações
metodológicas para a sua execução, distribuído apenas para os formadores/tutores;
c) 06 Cadernos de Teoria e Prática (TP) – com propostas do currículo de Língua
Portuguesa e os pressupostos do ensino-aprendizagem que as fundamentam; d) 06
cadernos de Atividades de Apoio à Aprendizagem (AAA, versão para o professor); e)
06 cadernos de Atividades de Apoio à Aprendizagem (AAA, versão para o aluno). 23
20
A frequência mínima exigida para fins de certificação é 75% do total da carga horária presencial de
formação com o formador/tutor.
21
.Quanto aos idealizadores do Programa na área de Língua Portuguesa, a proposta do GESTAR II
foi construída, via MEC, por especialistas e consultores da educação, contratados, mediante
processos licitatórios, pelo Governo Federal, para o desenvolvimento de projetos educacionais
voltados para a melhoria da aprendizagem escolar. A proposta do Programa Gestão da
Aprendizagem Escolar II foi coordenada por Silviane Bonaccorsi Barbato, doutora em Psicologia e
professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UNB). Com sua equipe de autoras,
selecionou e produziu o material teórico e metodológico do Gestar II de Língua Portuguesa.São elas:
Cátia Regina Braga Martins, Mestre em Educação pela Universidade de Brasília; Leila Teresinha
Simões Rensi, Mestre em Teoria Literária da UNICAMP; Ma. Antonieta Antunes Cunha, Doutora em
Letras/Língua Portuguesa, da UFMG; Ma. Luiza Monteiro Sales Coroa, Doutora em Linguística pela
UNICAMP, professora da Universidade de Brasília/UnB; Elciene de Oliveira Diniz, especialista em
Língua Portuguesa pela Universidade Salgado de Oliveira/UNIVERSO; Lúcia Helena Cavasin Zobotto
Pulino, doutora em Filosofia pela UNICAMP e professora.
22
Assinam a elaboração das publicações: Cátia Regina Braga Martins, os Cadernos de Atividades de
Apoio à Aprendizagem no. 4, 5 e 6; Leila Teresinha Simões Rensi, o Caderno de Teoria e Prática no.
5 (TP05) e os de Atividades de Apoio à Aprendizagem no.1 e 2; Maria Antonieta A. Cunha, os
Cadernos de Teoria e Prátican. 1, 2, 4, 6.
23
Os cadernos AAA contêm sugestões de atividades para serem aplicadas em sala de aula, a critério
do professor, não constituindo em atividade obrigatória do curso.
45
As principais atribuições do professor cursista consistem em: a) frequência
obrigatória às atividades presenciais do programa, seminários e Oficinas coletivas;
b) leitura dos Cadernos de Teoria e Prática para discussão nas Oficinas coletivas
com o formador; c) realização de atividades pedagógicas recomendadas no
programa; d) realização e entrega, de acordo com o previsto no Caderno de Teoria e
Prática, das atividades denominadas: “Lição de casa ou Socializando o seu
Conhecimento”; e) elaboração do Projeto para se conseguir a certificação; f)
compromisso de realizar o planejamento de ensino com base nas diretrizes do
programa.24
Em relação ao aspecto gráfico do material didático do Gestar II, é importante
destacar que sua qualidade é insatisfatória, contrastando até com o que preconizam
o Programa Nacional do Livro Didático25 (PNLD) e o “Edital de Convocação” que
precede o Guia do PNLD. Este contém as especificações técnicas para a inclusão
das coleções no Programa. Nesses dois documentos, encontram-se os critérios
norteadores para a avaliação do livro didático, os quais abarcam o projeto gráficoeditorial.
O Guia do PNLD/2014 de Língua Portuguesa chama a atenção para a
adequação da estrutura editorial e do projeto gráfico aos objetivos didáticopedagógicos da coleção: “a proposta didático-pedagógica de uma coleção deve
traduzir-se em um projeto gráfico-editorial compatível com suas opções teóricometodológicas, considerando-se, dentre outros aspectos, a faixa etária e o nível de
escolaridade a que se destina” (BRASIL, 2013, p. 12).
Nos manuais do Gestar II, alguns critérios técnicos do PNLD/2014 são
atendidos, como: legibilidade, bibliografia, sumário, manual do professor, sugestões
de leituras, organização clara. Contudo, em seu aspecto gráfico e visual, as capas
dos livros do Gestar II são pouco atraentes aos jovens e adolescentes. Não há
ilustrações nem cores atraentes. Por certo, em função dos custos, o material
impresso tem papel de baixa qualidade, capas sem criatividade e uma quantidade
24
É importante salientar que a certificação do professor cursista dependerá de quatro fatores: a)
frequência; b) conceitos emitidos pelo formador referentes à Lição de Casa ou a Transposição
Didática, desempenho nas oficinas e avaliações; c) auto avaliação pelo professor cursista; d)
apresentação do projeto a ser implementado na escola em que trabalha.
25
Criado pelo Ministério da Educação em 1985, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) tem
como principal objetivo subsidiar o trabalho pedagógico dos professores por meio da distribuição de
coleções de livros didáticos aos alunos da educação básica. Após a avaliação das obras, o Ministério
da Educação (MEC) publica o Guia de Livros Didáticos com resenhas das coleções consideradas
aprovadas.
46
considerável de textos sem imagens. As poucas imagens não têm qualidade gráfica,
o que compromete a sua apreciação ou leitura.
2.1 Entendendo o passo a passo da formação
O Guia Geral do Programa Gestar II foi criado em 2008 e passou por uma
reformulação em 2010. É um material de apoio elaborado exclusivamente para
ajudar o professor cursista e o formador a fazerem um uso proveitoso dos Cadernos
de Teoria e Prática. Considerado o fio condutor do programa, esse Guia traz dois
textos de apresentação.
No primeiro texto, encontram-se os objetivos do Guia Geral, definidos como
uma proposta de trabalho participativa e interativa, visando orientar os professores
cursistas nos seguintes aspectos: a) na compreensão do programa Gestar II para as
séries finais do ensino Fundamental do 6º ao 9º ano; b) na construção coletiva da
Proposta Pedagógica do Gestar II; c) na implementação do Gestar II; d) na definição
dos papéis dos atores do Gestar II. Com um grau de formalidade maior, nesse
primeiro texto são anunciados os objetivos e conteúdos, dirigindo-se ao professor
como “Caro Educador”. 26
O segundo texto, intitulado “Iniciando os estudos do Guia Geral”, em tom de
conversa, refere-se ao professor como “Caro colega”, convidando-o a estudar o
material como forma de compreender a proposta de trabalho do Gestar II.
Caro Colega,
No estudo e discussão do Guia Geral, em cada início de Unidade,
você será convidado a refletir sobre questões que serão abordadas
por meio de atividades ora individuais, ora coletivas.
Essas atividades serão coordenadas pelo formador/tutor municipal
ou estadual, que deverá administrar o tempo, organizar os grupos de
trabalho, promover debates, sintetizar ideias e registrá-las.
A própria leitura e o estudo do Guia serão conduzidos de forma
interativa e já são, eles mesmos, estruturados como um trabalho de
construção coletiva deste documento do programa.
26
Cf. Anexo 1.
47
Pois bem: vamos estudar o Guia e compreender o Gestar II!
(BRASIL, 2010, p.5)27
Conforme o Guia Geral, o Programa apóia-se em uma concepção sócioconstrutivista na construção do conhecimento e tem o professor como o mediador.
Nesta visão, tanto professores quanto alunos constroem o conhecimento em sala de
aula conjuntamente. Dessa forma, o papel do professor é o de mediador entre
alunos e o conhecimento social e historicamente construído.
Ainda de acordo com o Guia, o Gestar II compreende a sala de aula como um
espaço educativo, no qual se dão oportunidade de criar novas estratégias de ensino,
cabendo ao professor a correta adequação delas em sua sala de aula. Assim, a sala
de aula é o lócus privilegiado do Gestar II, seja do ponto de vista do conteúdo
pedagógico ou das relações.
O currículo do Gestar II compreende sua proposta pedagógica a partir da
concepção de competência de Perrenoud, particularmente expressa em Dez novas
competências para ensinar (2000).
De acordo com Perrenoud (2000), pode-se definir competência como
a capacidade que os indivíduos têm de atuar em uma situação
complexa, mobilizando conhecimentos, habilidades intelectuais e
físicas, atitudes e disposições pessoais. No caso dos professores,
essa mobilização se dá no ato de identificar os elementos presentes
na ação docente, dando-lhes sentido e um tratamento apropriado na
perspectiva de garantir uma educação de qualidade. As
competências referem-se a ações e operações que utilizamos para
estabelecer relações entre os objetos, situações e fenômenos que
desejamos conhecer.Embora as competências refiram-se a
esquemas mentais mais globais, elas devem ser contextualizadas
em cada área profissional e especificamente na prática pedagógica
(BRASIL, 2010, p. 24).
Apesar das críticas dispensadas ao ensino por competências, que visam,
sobretudo, a educação para o trabalho, o Programa Gestar II segue a premissa da
Lei de Diretrizes e Base/9393/96, documento elaborado, em tese, com a
participação da sociedade. Em seu artigo 1º, a LDB/9393/96 estabelece que os
objetivos da educação devem abranger os processos formativos que se
27
O Guia Geral se divide em cinco Unidades. São elas: a) Unidade 1: trata do Gestar II como
programa de formação continuada em serviço; b) Unidade 2: a proposta pedagógica do Gestar II; c)
Unidade 3: a implementação do Gestar II; d) Unidade 4: o Gestar II, as expectativas de mudança e a
especificidade do programa em cada escola; e) Unidade 5: procedimentos para a utilização dos
cadernos de atividades de apoio à aprendizagem do aluno.
48
desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições
de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e
nas manifestações culturais. Em seu parágrafo 2º, encontra-se a seguinte definição
para o ensino: “a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à
prática social” (BRASIL, 1996).
O desafio que se impõe a esta questão não está em termos uma educação
voltada para o trabalho, mas unicamente para ele. O problema reside no
cumprimento parcial da lei, a qual propõe que a educação escolar deve se vincular
ao mundo do trabalho e à prática social. Contudo, muitos programas de formação
vigentes, tanto de professores quanto de alunos, têm focado na preparação para o
trabalho, esquecendo-se dos desafios que se impõem à carreira docente e às novas
gerações quanto às suas relações sociais.
Cabe ressaltar que, neste sentido, o currículo do Gestar II de Língua
Portuguesa propõe desenvolver nos alunos habilidades que favoreçam sua inserção
não só no mundo do trabalho, como na sociedade. Conforme se pode observar,
[...] um trabalho que propicie aos alunos o desenvolvimento de
habilidades de compreensão, interpretação e produção dos mais
diferentes textos. Este processo de escolarização visa à inserção dos
alunos na sociedade, como cidadãos conscientes, capazes não só
de analisar as várias situações de convivência social como também
de se expressar criticamente em relação a elas (BRASIL, 2010, p.
34).
Quanto aos objetivos na perspectiva do professor, o Gestar II propõe:
O programa busca a valorização profissional e pessoal do professor,
destacando as suas características e histórias particulares, a sua
visão de sociedade, de relações e de compromissos com ela. A
complexidade cada vez maior de nossa sociedade exige que o
trabalho do profissional da educação se embase em uma visão
ampla e crítica dos fenômenos da vida moderna. É essencial que o
professor, além de usuário qualificado da Língua, tenha também a
função de mediar a criação de situações mais diversas de interação
de seus alunos e de estimular os processos de elaboração e reflexão
sobre os diversos usos da linguagem nas diferentes situações sócio
comunicativas (BRASIL, 2010, p. 34).
Contudo, não se pode negar que há um descompasso entre a formação
pretendida e a realizada. Ainda que os objetivos do Gestar II sejam o de contemplar
49
uma formação humana global, tais objetivos parecem se dissolver na composição
estrutural do programa.
Ainda com relação aos objetivos na perspectiva do professor, o Programa
concebe sua formação por competências, reforçando mais uma vez a formação para
o trabalho, neste caso, aceitável, já que se trata da formação do professor, embora
não se queira dizer com isto que a formação humana não esteja imbricada. Assim, o
currículo do Gestar II propõe algumas competências desejáveis aos professores
durante a realização da formação, ao se constatar que o Programa deseja que o
professor alcance determinadas competências ao final do curso, como: a) usuário da
língua; b) profissional da educação; c) professor de Língua Portuguesa.
Das competências mencionadas acima, nota-se no material do curso que as
atividades propostas dão ênfase à formação de competências “como usuário da
língua”, o que indica a correção de percurso formativo do professor. Por isso, a
proposta pedagógica do Programa sugere o desenvolvimento do letramento do
professor.
Ademais, a partir das competências citadas, pode-se inferir que a
preocupação com a formação do professor leitor é minimizada, pois, para as
autoras, esta é uma competência esperada para ele, apenas como usuário da língua
e não como educador e profissional de educação. Embora seja difícil compreender
um objetivo tão subjetivo quanto este, indaga-se: seria possível delimitar as linhas
tênues que separam a ação do professor em sala de aula, como usuário da língua,
profissional da educação e professor de Língua Portuguesa, tendo em vista a
formação integral do homem? O Programa Gestar II supõe que sim.
A proposta pedagógica do Gestar II visa ao “[...] desenvolvimento do
letramento do professor (e consequentemente do aluno), a partir da discussão e da
análise das situações sócio-comunicativas, tendo o texto como eixo central da
resolução de problemas” (BRASIL, 2010, p. 36). Em síntese, as autoras definem a
concepção do Programa baseando-o na relação desenvolvimento-aprendizagem em
Língua Portuguesa:
Concepção da relação desenvolvimento-aprendizagem em Língua
Portuguesa. A concepção central no Gestar II da linguagem como
interação já esclarece a importância do trabalho com Língua
Portuguesa, na medida em que a aprendizagem é sempre um
processo de interação, seja com os professores, seja com os colegas
50
(ideia básica do desenvolvimento proximal), seja com documentos ou
outras manifestações humanas (BRASIL, 2010, p. 36-37).
Apresentar o passo a passo da formação do Gestar II possibilita entender a
forma como esse Programa compreende o ensino da língua materna, ao tempo em
que buscar pistas para se interrogar sobre o lugar que reserva à literatura. Assim, se
faz necessário conhecer a ementa do programa de Língua Portuguesa, encontrada
no Guia Geral, a fim de que se tenha uma visão panorâmica da proposta pedagógica
quanto aos conteúdos e temas abordados em cada Caderno de Teoria e Prática: a)
variantes linguísticas: dialetos e registros; b) o texto como centro das experiências
no ensino da língua; c) a intertextualidade; d) gramática: seus vários sentidos; e) a
arte: formas e função; f) gêneros textuais: do intuitivo ao sistematizado; g) tipos
textuais; h) leitura, escrita e cultura; i) estilo, coerência e coesão; j) leitura e
processos da escrita. A literatura está no tópico “arte: formas e função”.
A partir da seleção dos conteúdos apresentados nos Cadernos, constata-se
que a ementa de Língua Portuguesa do Gestar II está de acordo os critérios
estabelecidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) quanto ao ensino da
língua materna nos anos finais do ensino fundamental, o qual pode se verificar no
tópico intitulado “Objetivos de Ensino” desse documento: “compreende o ensino da
língua voltado para o domínio da expressão oral e escrita em situações de uso
público da linguagem, levando em conta a situação de produção social e material do
texto” (BRASIL, 1998. p. 49). Ou seja, o aluno deve ser capaz de compreender a
existência de diferentes procedimentos e posturas a serem tomados frente a
diferentes leituras.
Outro aspecto a ser considerado no Guia Geral diz respeito à linguagem de
fácil compreensão, buscando a clareza, de modo que haja um entendimento dos
materiais, uma leitura direcionada para a execução das ordens propostas, isto é,
para o correto manuseio, na escola, dos materiais do programa. Fica exposto o
objetivo dessa formação, que é de instrumentalizar o professor, apresentando novos
conceitos da área ou esclarecendo-os, orientando o fazer da sala de aula, e como
fazer, para que o seu trabalho se efetive com um uso seguro dos materiais didáticos.
Fica descartada, assim, uma concepção de formação que leve a uma ampliação dos
conhecimentos. Esta é uma questão recorrente em materiais pedagógicos de
51
formação de professores que reforçam a ideia do letramento do professor, conforme
já definido nos objetivos do próprio Gestar II.
Além do Guia Geral, tem-se o Caderno do Formador, de uso exclusivo do
professor formador/tutor. Nesse caderno, são propostas 12 oficinas que deverão ser
desenvolvidas ao longo do estudo com os cursistas. Tais oficinas têm uma duração
de 4 horas e devem ser planejadas e executadas a cada duas unidades, sempre
após as unidades pares dos Cadernos de Teoria e Prática, podendo ser conduzidas
a cada quinzena ou de acordo com a dinâmica combinada com o grupo.
O objetivo dessas oficinas é proporcionar aos professores cursistas um
momento de reflexão sobre a sua prática de sala de aula. “Elas possuem uma
sequência de atividades e instruções a serem desenvolvidas, tanto individualmente
quanto em pequenos grupos” (BRASIL, 2010, p. 46), como se pode averiguar na
padronização sugerida: a) título da oficina; b) objetivo; c) parte I – retomada do
processo de estudo e questionamentos sobre as Unidades; d) parte II – trabalho
sobre a Lição de Casa; e) parte III - desenvolvimento de uma atividade; f) parte IV –
avaliação da oficina e retomada dos objetivos de aprendizagem; g) parte V –
introdução das novas Unidades com perguntas instigadoras.
Feita uma apresentação dos manuais do Gestar II, convém trazer algumas
reflexões de Magda Soares (2001) sobre os manuais. Em seu texto “Que
professores de português queremos formar?“, a autora afirma que, no Brasil, o
Português, como disciplina, é incorporado nos currículos escolares nas últimas
décadas do século XIX, e o processo de formação do professor para tal disciplina só
teve início nos anos 1930. Até 1940, essa disciplina mantém a tradição dos estudos
da gramática, da retórica e da poética, ensinada por professores que integravam
uma elite social e para ela ensinava. As análises de textos literários se faziam
presentes nos estudos de Retórica e Poética.28
28
Para a autora, “à medida que a oratória foi perdendo o lugar de destaque que tinha até meados do
século XIX tanto no contexto eclesiástico quanto no contexto social, a retórica e a poética foram
assumindo o caráter de estudos estilísticos, tal como hoje os conhecemos, e foram-se afastando dos
preceitos sobre o falar bem, que já não era uma exigência social, para substituí-los por preceitos
sobre o escrever bem já então exigência social”. Isso explica que na disciplina denominada Português
persistissem, “embutida nelas, as disciplinas anteriores, até mesmo com individualidade e autonomia,
o que se comprova pela convivência na escola, nas quatro primeiras décadas deste século, de dois
diferentes e independentes manuais didáticos: as gramáticas e as coletâneas de textos. Evidenciam
essa convivência com independência a publicação concomitante de gramática e seletas, ambos os
gêneros com forte presença na escola, nas primeiras décadas do século XX” (SOARES, 2001a, p. 1).
52
Só a partir da década de 1950 é que algumas mudanças nas condições de
ensino e aprendizagem do Português começaram a ganhar força, ocasionado por
fatores internos e externos. Dos fatores externos, a autora cita as tranformações das
condições sociais e culturais, decorrentes das constantes mobilizações populares,
que revindicavam o direito à educação, resultando na expansão do acesso à escola,
que, por sua vez, exigiu uma reformulação das suas funções e objetivos para
receber o novo alunado que se juntou aos filhos dos burgueses que lá estavam.
Como consequência da democratização da escola, a autora afirma que, na
década de 1960, o aumento do número de alunos quase triplicou, exigindo, assim,
um recrutamento mais amplo e, portanto, menos seletivo de professores, embora
estes fossem formados nas Faculdades de Filosofia, os quais possuíam
conhecimentos não só em conteúdos de língua e de literatura, como em pedagogia
e didática. No entanto, dos fatores internos, pode se dizer que quase não houve
alterações. A gramática continuou a ser estudada como instrumento de expressão
para fins retóricos e poéticos.
Contudo, Magda Soares (2001) chama a atenção para a concepção de
professor, a qual se altera, principalmente a partir da década de 1950, o que pode
ser evidenciado nos manuais didáticos. Tais manuais substituem os conteúdos de
gramática e as antologias por um único livro, que apresenta conhecimentos
gramaticais e textos para leitura, e, sobretudo, traz exercícios de vocabulário, de
interpretação, de redação e gramática. Para a autora, essa nova configuração altera
o papel do professor e o que se esperava dele. Por exemplo, nas primeiras décadas
do século XX, os professores de Português eram estudiosos autodidatas da língua e
da literatura, possuíam uma boa formação humanística e eram profissionais
formados em diversas áreas do conhecimento, como médicos, advogados,
engenheiros, profissionais liberais e funcionários públicos, considerados atualmente
como professores “leigos”. 29
De acordo com Soares (2001), a competência atribuída a esses professores
era tamanha, que os manuais não possuíam caráter didático, apenas expunham a
gramática normativa, sem comentários pedagógicos e sem propostas de exercícios
29
Magda Soares destaca nomes como os de João Ribeiro, Júlio Ribeiro, Franklin Dória, Carlos de
Laet, Fausto Barreto, Antenor Nascentes, Francisco da Silveira Bueno, Eduardo Carlos Pereira,
conhecidos por suas publicações de gramáticas, antologias, estudos filológicos e estudos literários.
53
e atividades para serem desenvolvidas pelos alunos. Nessa configuração, o
professor da disciplina Português era aquele que dominava a gramática e a literatura
da língua, a Retórica e a Poética. Portanto, não necessitava de informação adicional
alguma nos manuais. Bastava-lhe a exposição gramatical ou os excertos de textos
literários, cabendo-lhe somente comentar, discutir, analisar e propor questões e
exercícios para os alunos. Na configuração atual dos manuais, o autor do livro
didático assume essa responsabilidade e tarefa, que os próprios professores
passam a esperar dele, o que surpreende, pois os docentes de hoje são
profissionais formados em cursos específicos.
Algumas razões talvez expliquem esse aparente paradoxo. Uma delas,
apontada por Magda Soares (2001), tem a ver com o recrutamento amplo de
professores de Português, decorrentes da multiplicação do número de alunos,
resultando no rebaixamento salarial e na intensificação do processo de depreciação
da função docente. Consequentemente, têm-se as precárias condições de trabalho,
obrigando os professores a buscarem estratégias de facilitação da atividade
docente, vindo a transferir para o livro didático a tarefa de preparar aulas e
exercícios. Somando-se a isso, a autora destaca o fato de que o rebaixamento
salarial e a perda de prestígio social da função docente, bem como a
democratização do ensino superior, mudou, significativamente, a clientela dos
cursos de Licenciatura em Letras, os quais começaram a atrair para o magistério
estudantes oriundos de contextos pouco letrados, com precárias práticas de leitura e
de escrita.
Outra razão apontada por Magda Soares (2001) diz respeito à formação dos
formadores de professores, nas Faculdades de Filosofia, que desconheciam as
condições de letramento desses novos alunos, futuros professores, além de
desconhecerem também a nova realidade da escola e dos alunos à espera desses
futuros professores. Isso pode ser explicado pelo contexto social e educacional em
que esses professores foram formados. Por isso, não se propunham propriamente
ao objetivo de formar professores, mas estudiosos da língua e da literatura.
Em relação ao público ao qual se destina o Programa Gestar II, trata-se de
professores em serviço da docência, os quais possivelmente passaram por uma
formação inicial sem que houvesse uma atenção devida à sua inserção no cotidiano
escolar, ainda que tenham feito uma licenciatura na área. Há uma geração de
professores que fizeram seus cursos de licenciatura em Letras e cursaram as
54
disciplinas, que são de fundamentação, da área de educação nos cursos de
pedagogia. Muitos destes professores desconhecem, pela formação, especificidades
do ensino de Língua Portuguesa. Geralmente nas disciplinas preparatórias de
estágio, e o seu acompanhamento, é que se conta com a presença de docentes da
área de Letras, alocados nos departamentos de educação. Com a reforma curricular
dos cursos de Letras, (Resolução do CNE/CES/2002) quando se deu ênfase às
disciplinas da área de pedagogia, em detrimento de conteúdos daquela área, alguns
componentes curriculares são ministrados por docentes formados em Letras, mas
sem formação em educação.
Ficam evidentes duas questões decorrentes da formação inicial, que leva à
proposta de um programa de formação como o Gestar II: as lacunas do percurso na
construção do conhecimento e o distanciamento criado entre a formação e a
realidade da sala de aula a ser enfrentada pelos professores.
2.2 Fazendo as lições de casa
Como o livro didático se tornou o maior suporte do trabalho pedagógico nas
escolas da rede pública, pelas razões já destacadas, o Programa Gestar II reforça
essa lógica, com um diferencial. A conhecida “versão do professor” é o livroreferência da formação. Ele será o objeto de estudo, a ser lido, comentado,
discutido, de modo que o professor saiba usá-lo na sala de aula. Por isso, esse
manual, particularmente os Cadernos de Teoria e Prática, difere de outros manuais
didáticos, posto que está a serviço da formação continuada.
Os seis Cadernos de Teoria e Prática que formatam os dois módulos do
Programa Gestar confirmam essa peculiaridade. Os conteúdos de Língua
Portuguesa vêm acompanhados de textos que explicam alguns aspectos pertinentes
a esses conteúdos. Tais textos, elaborados pelas autoras dos manuais, trazem
explicações de conceitos, sugestões e orientações de tarefas ou comentários sobre
algum tema abordado em determinado texto inserido no manual. Simula-se, em tom
de conversa, a presença das organizadoras do livro didático, como se estivessem
em um contexto de sala de aula.30
30
Cf. Anexo 2.
55
Os Cadernos de Teoria e Prática, identificados como TP1, TP2, TP3, TP4,
TP5, TP6 (doravante referidos como Caderno1, Caderno 2, e assim por diante),
apresentam, cada um, quatro Unidades com três seções cada, totalizando 12
seções por TP. Os cadernos foram elaborados com o objetivo de apresentar as
propostas do currículo de Língua Portuguesa e os pressupostos do ensinoaprendizagem. Cada um deles está assim seccionado: Parte I – apresentação das
unidades; Parte II: “Lição de Casa ou Socializando”; Parte III – Oficinas ou Sessão
Coletiva. O Sumário visibiliza sua organização: a) parte 1: apresentação das
unidades; b) unidades; c) leituras sugeridas; d) bibliografia; e) ampliando nossas
referências; f) correção das atividades31; g) parte II: lição de casa 1 e 2; h) parte III:
oficina 1 e 2. Em sua organização interna, por tópicos, apresentam uma mesma
estrutura: 1) título da unidade e nome do autor; 2) Iniciando a nossa conversa: tópico
reservado para a introdução à Unidade; 3) Definindo nosso ponto de chegada:
espaço reservado para apresentar os objetivos de aprendizagem; 4. Seções: são
subdivisões da unidade.
As seções possuem uma organização padronizada. De acordo com o Manual
do Gestar II, “as seções possuem o título, os objetivos de aprendizagem e o
desenvolvimento do conteúdo. Para desenvolver o conteúdo, são utilizados vários
recursos de aprendizagem marcados por ícones específicos” (BRASIL, 2010, p. 45):
a) “Atividades”: cada seção conta com, no mínimo, duas e no máximo seis
atividades de estudo, totalizando de seis a dezoito atividades por unidade; b) “Indo à
sala de aula”: são as atividades que se referem à aplicação do conteúdo estudado;
c) “Avançando na Prática”: momento em que o professor é convidado a aplicar, em
sala de aula, o que estudou nos TPs; d) “Importante”: Box explicativo de conceitos e
sínteses do tópico em estudo; e) “Recordando”: box com notas sobre conteúdos
tratados anteriormente; f) “Resumindo”: box reservado para sintetizar o conteúdo da
seção. Ao final de cada unidade, temos os itens que se seguem: a) Bibliografia; b)
Leituras Sugeridas; c) Ampliando nossas referências 32.
31
O tópico “correção das atividades” traz a “chave de correção” para o professor conferir suas
respostas sobre questões elaboradas sobre os textos, das seções das unidades. Desse item
constam, também, as respostas às questões sobre o “Ampliando nossas Referências”. Embora o
manual justifique que a chave de respostas é para o uso do professor, como cursista, corre-se o risco
dessas respostas se tornarem gabaritos, tendo em vista o excesso de carga horária e as inúmeras
atribuições da função docente.
32
O “Ampliando nossas Referências” é uma seção em que são apresentados textos das autoras dos
Cadernos, nos quais há reflexões, com apoio de contribuições teóricas, sobre conteúdos a serem
trabalhados. Devem ser estudados na semana em que não haverá o encontro presencial/quinzenal.
56
Todos os cadernos do Gestar II têm início com dois textos de apresentação,
logo após o sumário. Contudo, convém destacar que sempre o primeiro texto é
padronizado por módulo. Portanto, este será mencionado apenas quando
necessário. Esses textos pressupõem uma interlocução entre as autoras dos
manuais e professores, como modo de minimizar os efeitos negativos possíveis com
a ausência das organizadoras nessa formação à distância. Por isso, há um cuidado
em apresentar o caderno evocando a presença dos cursistas:
Como já lhe adiantamos, neste primeiro caderno vamos tratar de
questões mais gerais, que, fundamentando todo o trabalho com a
Língua Portuguesa, vão obrigatoriamente ser retomadas em
determinados pontos dos demais TPs, tal a importância delas para a
sua prática. Com isso, imaginamos facilitar o caminho a ser
percorrido neste ano de estudos (BRASIL, 2008. Não paginado).
No primeiro texto, intitulado “Apresentação”, as autoras explicam a
importância de se construir ou rediscutir com os cursistas pontos considerados
relevantes no processo de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa, aqueles
que constituem, segundo elas, a base para o desenvolvimento da competência
comunicativa do aluno. Assim, propõem não só discutir conceitos, como
estabelecem o modo pelo qual tais conteúdos podem e devem ser trabalhados em
sala de aula. Nessa apresentação, encontra-se também uma breve descrição sobre
temas e conteúdos a serem abordados em cada caderno do Módulo 1.
O segundo texto de apresentação de cada caderno é intitulado pelo nome do
Programa, número do Caderno de Teoria e Prática e nome da disciplina,
endereçado ao professor (a). Trata dos objetivos específicos do caderno,
enfatizando a proposta de trabalho e justificando os critérios de seleção dos textos e
conteúdos selecionados pelas autoras. Nesse contexto, propõe-se apresentar os
conteúdos elencados no material para cada caderno, iniciando sempre pelo segundo
texto de apresentação.
No Caderno 1 (Unidades 1, 2, 3, 4), as autoras expõem no texto de
apresentação33os conteúdos e temas a serem abordados em cada unidade.
Tal leitura configura-se como uma atividade obrigatória e faz parte da carga horária do cursista,
podendo ser realizada individualmente ou em grupo. O objetivo do texto de referência é provocar no
professor uma reflexão sobre a sua prática docente.
33
Cf. Anexo 3.
57
Ressaltam que, na seleção dos textos, foram contemplados temas transversais, em
particular, família e escola, assim justificados:
Você já sabe também que, para tornar nossa proposta ainda mais
ligada à sua atuação em sala de aula, decidimos, na seleção de
textos a serem trabalhados, privilegiar os temas transversais. Nas
quatro primeiras unidades que constituem o TP1, nossos textos
estão ligados aos temas da família e da escola, vistas de variados
ângulos e em diversas formas: ao final delas, poderemos ter
ampliada e aprofundada nossa visão sobre as questões que
envolvem essas instituições que, mesmo com todas as
transformações da sociedade, se apresentam como da maior
importância, ainda hoje (BRASIL, 2008. Não paginado).
A literatura se faz presente, como texto, nas análises de variantes linguísticas:
“vamos trabalhar a oralidade e a escrita, a norma culta e o texto literário, procurando
esclarecer a importância da compreensão mais ampla desses acontecimentos
linguísticos” (BRASIL, 2008. Não paginado). Intitulado “Linguagem e Cultura“, esse
caderno tem como eixo central o texto e as variantes da língua, consideradas uma
decorrência da relação entre linguagem e cultura, e intertextualidade.
No Caderno 2 (Unidades 5, 6, 7, 8), o texto de apresentação34 da Unidade
demonstra uma preocupação com a sistematização dos conteúdos, propondo uma
atividade de metacognição, uma vez que provoca o professor a refletir sobre o
conteúdo já discutido e relacioná-lo com os novos conhecimentos. Nesse caderno
há uma proposta de se trabalhar a “análise literária” e a “análise linguística”, do
mesmo modo que se trabalhou com o texto no TP1, associando-o sempre à vida
cotidiana do aluno e do professor. Por isso, a autora explica, no texto de
apresentação ao professor, a importância de se trabalhar com a análise linguística e
com a gramática, assuntos que “costumam ser mal vistos por alunos e muitos
professores”, ressalta.
Na apresentação desse Caderno, destaca-se “a necessidade de o texto, em
qualquer de suas formas, originar as atividades de língua portuguesa”. Os “textos
vão ajudar-nos a fazer uma reflexão mais sistemática sobre a língua” (BRASIL,
2008.Não paginado).
34
Cf. Anexo 4.
58
Esse trabalho que desenvolvemos obrigatoriamente pelo simples uso
da língua pode tornar-se mais consciente e mais aprofundado, ao
longo de nossa vida. O processo de ensino-aprendizagem de Língua
Portuguesa avança nessa direção, por meio da chamada análise
linguística.
Vamos trabalhar a análise linguística do mesmo modo que
estudamos os textos: procurando ajudá-lo a “ver” melhor o assunto
abordado. Só podemos refletir sobre o que observamos, e
observamos melhor o que faz parte de nossa vida, do nosso
cotidiano (BRASIL, 2008. Não paginado).
Nesse sentido, a autora propõe repensar essa percepção, acreditando na
possibilidade de se trabalhar a análise linguística e a gramática de forma agradável
e frutífera. Nesse contexto, observa-se na apresentação das unidades o cuidado em
acolher os professores, explicando-lhes os passos seguintes que serão tomados
para realizar análise linguística e da gramática. No capítulo 5, do Caderno 2, propõese uma reflexão sobre gramática e seus diversos sentidos, de forma a compreender
as várias acepções que a palavra gramática tem nos estudos linguísticos, e como a
confusão entre tais acepções pode gerar dificuldades no ensino-aprendizagem da
língua.
Além dessa proposta, no capítulo 6, o tópico “A frase e sua organização” traz
um estudo sobre as várias formas linguísticas de estruturar o texto, das mais simples
às mais complexas, e como ajudar os alunos a compreenderem e usarem essas
estruturas. O texto de apresentação das Unidades se encerra anunciando os
capítulos 7 e 8: “vamos tratar da arte, suas características, em especial, da
literatura.Vamos começar a primeira unidade! ” (BRASIL, 2008. Não paginado). A
despeito de se ressaltar supostas características da arte e pretender tratar, “em
especial”, da literatura, não há argumentos, palavras de convencimento da razão de
sua presença em tais Unidades, como ocorre quando o assunto diz respeito ao
estudo da língua.
Desse modo, é sublinhada a importância das análises linguísticas, cujo objeto
são os textos escritos, enquanto, em relação à literatura, não são dispensadas ao
menos “algumas palavrinhas”. A centralidade do texto escrito, posta na concepção
do Programa Gestar II para o ensino da língua materna, termina por fazer prevalecer
um uso pragmático ou funcional da literatura – visto que prevalece a ideia de que o
texto é o centro, a unidade geradora das atividades – a despeito de apresentá-la
destacando sua singularidade.
59
O Caderno 3 (Unidades 9, 10, 11, 12), intitulado “Gêneros e Tipos Textuais”,
abre-se com uma reflexão sobre os conteúdos abordados nos cadernos anteriores.
Em seguida, propõe discutir questões ligadas à nova conceituação de “Gêneros dos
textos” e “tipos de discursos”, compreendidos neste caderno como classificações
que não se sustentam sozinhas, embora o enfoque seja taxonômico, mas como
procedimentos de análise que juntos esclarecem os mecanismos textuais.
No texto de apresentação, as autoras explicam como serão trabalhados os
textos e antecipam, em linhas gerais, as diferenças entre gênero textual e tipos
textuais, para que o professor comece a se familiarizar com esses conceitos, de
certo modo novo na escola.Com relação a isso, comentam: “[...] os enfoques
apresentados nas unidades deste caderno podem trazer algum estranhamento, já
que envolvem conceitos não muito familiares à nossa prática docente“ (BRASIL,
2008. Não paginado).
Nesse caderno, os textos selecionados têm como tema transversal o trabalho,
jusitificado do seguinte modo:
O tema transversal que permeará as unidades deste caderno é o
trabalho. Essa foi uma escolha proposital: queremos que você,
juntamente com seus alunos, reflitam sobre diversas ideias de
trabalho que coexistem na nossa cultura e compreendam porque
falar (ou escrever) é uma forma de trabalho (BRASIL, 2008. Não
paginado)
Os textos são enfocados na sua dimensão social e cultural, o que leva a
classificá-los quanto ao gênero. Já a abordagem na dimensão informacional leva à
classificação de tipos textuais, como as conhecidas tipologias “narração“ e
“dissertação“, por exemplo. Por isso, na Unidade 11 as autoras propõem conceituar
e classificar “tipos textuais“, em oposição a uma classificação de gêneros. E depois,
na Unidade 12, sugerem um trabalho com o intuito de averiguar como as duas
classificações se correlacionam.
Ainda no Caderno 3, os conteúdos abordados são os seguintes: diferenças e
semelhanças na organização dos textos utilizados em diversos contextos; gêneros
textuais e a competência sócio-comunicativa; classificação de gêneros textuais;
características de gênero literário e gênero não-literário; o gênero poético e suas
formas de realização. Tipos textuais no processo de ensino-aprendizagem:
descritivo, narrativo, injuntivo (ou instrucional), expositivo e argumentativo; ainda
60
com a inter-relação entre gêneros e tipos textuais e a relação entre sequências
tipológicas em gêneros textuais. Tais conteúdos revelam a crença de que os aportes
das teorias linguísticas asseguram habilidades e competências de leitura e escrita.
O Módulo 2 tem início com o Caderno 4 (Unidades 13,14,15,16), cujo foco é
“Leitura e Processo de Escrita I”. No texto de apresentação, as autoras explicam os
objetivos desse caderno, que é o de sistematizar o trabalho em torno da leitura e da
produção de textos. Assim, trabalha processos de leitura e escrita, iniciando com um
texto sobre leitura, escrita e cultura e seguindo, nas Unidades 14 e 15, com a
discussão sobre processos de leitura.
No Caderno 5 (Unidades 17,18,19,20) intitulado “Estilo, Coerência e Coesão”,
o texto de apresentação começa convocando os professores a uma reflexão sobre
leitura e escrita, as quais devem ser compreendidas como resultado de um processo
significativo que envolve relações lógicas, opções estilísticas e várias estratégias de
construção de sentido. Em seguida, são anunciados temas a serem tratados nesse
caderno: estilística, coesão, coerência e as relações lógicas nos textos, além de
conteúdos que tratam da noção de estilo e o objetivo da estilística, componentes
semânticos e morfológicos, combinação das palavras na frase, elementos
linguísticos, mecanismos de coesão referencial e sequencial, temporalidade e
identidade na construção dos sentidos e relações lógicas de construção de
significados implícitos na leitura.
O Caderno 6 (Unidades 21,22,23,24) propõe desenvolver uma discussão
sobre a argumentatividade na linguagem e dar continuidade à reflexão sobre as
práticas de escrita e leitura. Intitulado “Leitura e Processos da Escrita II”, é
apresentado como um caderno que desdobrará os estudos com gêneros e
argumentação, além promover uma reflexão sobre “literatura para adolescentes”. 35
Pelo exposto, constata-se que nesse caderno ganham destaque as análises
linguísticas, leitura e produção de textos.
Para finalizar o caderno, as autoras se propõem a discutir crenças e práticas
pedagógicas na produção textual, chamando a atenção para a necessidade de se
pensar a escrita como atividade de “produção” de textos. É um processo de
transformação do conhecimento, que requer motivação, pesquisa, leituras, uma
metodologia
35
que
evita
a
desgastada
Esse tópico será tratado no Capítulo 3.
atividade
“fazer
uma
redação”,
61
descontextualizada, quase sempre tomando os alunos de surpresa com o tema
proposto. Ressaltam a importância de se construir um texto – com suas fases de
planejamento, escrita, revisão e edição, ressaltando que na escola a escrita se
desenvolve por meio de atividades sistemáticas.
Em síntese, o objetivo primeiro do Módulo 1 é ampliar o estudo e atividades
de leitura e produção de textos, ambas, tidas como essenciais ao ensino e à
aprendizagem da língua portuguesa na escola. Assim, o Módulo 2 aborda o tema do
letramento, que compreende escrita e leitura como práticas sociais, e é base para
todo ensino a partir de textos, conforme se pode notar no texto de apresentação:
“apesar de ter entrado recentemente nos estudos sobre a linguagem, não será novo
para você: o letramento, que considera tanto a escrita como a leitura como práticas
sociais e é a base para todo ensino a partir de textos” (BRASIL, 2008. Não
paginado).
Feitas essas considerações sobre os Cadernos de Teoria e Prática, cabe
apresentar os Cadernos de Atividades de Apoio à Aprendizagem, de uso dos alunos,
chamados de Atividade de Apoio à Aprendizagem (doravante AAA). Para cada
Caderno de Teoria e Prática, há um caderno de atividade (AAA) equivalente. O que
os diferencia é que os TPs trazem uma fundamentação teórica, sugestões de aulas,
chaves de respostas, sugestões de leitura, entre outras atividades, ou seja, os TPs
assemelham-se ao livro didático do professor, além de ser o seu material de uso
como cursista.36 O que significa dizer que os professores se tornam alunos nos
encontros presenciais com os professores formadores e fazem atividades
semelhantes às de seus alunos na escola, ao prepararem as aulas. Reforça-se,
assim, a proposta metodológica do Gestar II como um programa de formação de
professor, ainda que abranja a formação do aluno.
A criação do AAA “visa oferecer um banco de planos de aula que possa
enriquecer as atividades em sala de aula e proporcionar, por meio da discussão, a
ampliação do entendimento dos temas conceituais explanados pelo professor”
(BRASIL, 2008, p. 68). Assim, os objetivos desse material de apoio se constituem na
oferta de várias situações didáticas a fim de: a) subsidiar as aulas com atividades
individualizadas aos alunos que se diferem quanto ao ritmo e forma de
36
Os AAAs produzidos para o professor trazem um problema do qual muitos professores se queixam:
o tamanho das letras, reduzido, nas atividades propostas para os alunos, dificultando a leitura e a
concentração do professor quando do planejamento de suas aulas.
62
aprendizagem; b) promover atividades para ensinar conteúdos que o aluno não
aprendeu
anteriormente
e
sanar
deficiências
detectadas
nas
Avaliações
Diagnósticas. A versão para o aluno apresenta aulas com várias atividades
diversificadas a serem ministradas pelos professores em sala de aula. Contudo,
esse material é entregue a cada Secretaria de Educação em formato de CD ROM
para a reprodução local. 37 Fica facultado, a cada Secretaria de Educação, a
reprodução impressa integral ou parcial.38
Chama a atenção na proposta curricular do Programa Gestar II a eleição dos
temas transversais: família, escola e trabalho. Nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (1997), a proposta de incorporar tais temas está assentada na ideia de
que os educadores devem tratar com seus alunos de questões contemporâneas,
vivenciadas pela sociedade. Alguns deles ficam estabelecidos nos PCN‟s: ética,
pluralidade cultural, meio ambiente, saúde e orientação sexual, trabalho. É uma
abertura, nos currículos, frente a “situações escolares não programáveis,
emergentes, às quais devem responder, e, para tanto, necessitam ter clareza e
articular sua ação pontual ao que é sistematicamente desenvolvido com os alunos”
(BRASIL, 1997). No texto de apresentação emitido pela Secretaria de Educação
Fundamental, ressalta-se que “os Temas Transversais correspondem a questões
importantes, urgentes e presentes sob várias formas, na vida cotidiana”. Estão
assentados no princípio de que a “educação para a cidadania requer, portanto, que
questões sociais sejam apresentadas para a aprendizagem e a reflexão dos alunos”.
(BRASIL, 1997, p. 25).
Com a proposição de se trabalhar com temas transversais, parte-se da
constatação de que a escola deve aproximar-se da realidade abordando “questões
37
Em relação ao material fornecido no CD ROM, a Secretaria Estadual de Educação da Bahia –
SEC/BA produziu os módulos de Atividades de Apoio à Aprendizagem do Aluno parcialmente, através
de uma equipe de especialistas que não foram identificados nos cadernos. Foi feita uma seleção de
textos e atividades julgados apropriados a cada série, cujos critérios não estão explicitados
oficialmente nos cadernos. Contudo observa-se que todos os conteúdos e temas do AAA nacional
foram mantidos em menor representatividade. Há uma crítica à ordenação dos cadernos por séries,
elaborados pela SEC-BA, organização que contraria a recomendação das autoras do Programa
quanto à utilização das atividades: “o professor deve ter autonomia para utilizar as aulas nas
sequências didáticas que melhor atendam às necessidades a serem ministradas” (BRASIL, 2010, p.
68). Com essa organização seriada, a ser distribuída entre os alunos, corre-se o risco de limitar as
ações do professor, invalidando a proposta do Programa que é da livre escolha dos textos e
atividades sem a preocupação com séries específicas, mas com as necessidades de cada turma.
38
A SEC/BA criou a “Avaliação Complementar” do Gestar II, que começou a ser aplicada no terceiro
bimestre de 2013, visando aferir o processo de aprendizagem dos alunos na área de Língua
Portuguesa, após a adesão ao Programa Gestar II pela escola. Porém, até o presente momento, não
há dados estatísticos desta avaliação.
63
sociais na perspectiva da cidadania” (BRASIL, 1997, p. 38). Por certo que temas não
sugeridos pelos PCN‟s, como família e escola, por exemplo, podem ser
contemplados, para que sejam trabalhados em sala de aula, discutidos e
problematizados à luz da contemporaneidade. No Programa Gestar II, no entanto,
tais temas são justificados, sobretudo para a seleção de textos a serem trabalhados
nos Cadernos de Teoria e Prática, no caso dos temas “família” e “escola”, ou para,
em relação ao tema “trabalho”, comentar as diferentes formas de labor, dentre elas,
“falar ou escrever”. Nos seis Cadernos que compõem o material do Gestar II, não se
verifica uma abordagem ampliada desses temas, na perspectiva sugerida pelos
PCN‟s.
2.3 Anotações nas margens dos Cadernos
Apresentado esse material do Programa Gestar II, e após apreciação dos
conteúdos, constata-se a ênfase no ensino da língua, como sistema, no ensino da
gramática normativa e nos gêneros textuais, e fica explicitado também o foco na
leitura e na produção textual, enquanto ficam subsumidos os conteúdos de literatura.
Em relação ao ensino da língua, nota-se que o Programa II traz questões ou
abordagens atuais, a exemplo do texto como centro das experiências no ensino de
línguas, dos gêneros textuais, dos pactos de leitura, intertextualidade, entre outros.
Contudo, em relação à literatura, persistem antigas abordagens dos textos literários
– gênero literário, linguagem literária, categorias ou aspectos estruturais da
narrativa. Muitas vezes, são explorados como pretexto para se trabalhar a língua, a
despeito de tantas críticas feitas.
Ficam evidentes as influências dos estudos linguísticos no ensino da língua,
bem como ganha destaque a força das reflexões contemporâneas sobre leitura e
produção textual, tidas como atividades que dão protagonismo aos estudantes.
Pode-se também considerar que leitura e produção textual, como conteúdos ou
atividades propostas na disciplina Língua Portuguesa, têm esse peso por pressões
advindas dos baixos índices nos resultados de proficiência de leitura e escrita,
apresentados por instrumentos de avaliação como Prova Brasil e PISA.
64
O histórico do ensino do Português no Brasil, apresentado por Magda Soares
(2001), explica a permanência do ensino da língua através do estudo da gramática
normativa. A persistência, até os anos 1940, de um ensino da língua, entendido
como estudos de gramática, retórica e poética, deve-se ao fato “de que o
conhecimento que se tinha da língua era aquele transferido do conhecimento da
gramática do latim, da retórica e da poética aprendidas de e em autores latinos e
gregos” (SOARES, 2001, p. 1). Estudava-se na disciplina Português, até essa
década, “a gramática da língua portuguesa, e analisavam-se textos de autores
consagrados, ou seja, persistiu, na verdade, a disciplina gramática, para a
aprendizagem sobre o sistema da língua, e persistiram a retórica e a poética, estas
adquirindo, é verdade, novas roupagens ao longo do tempo” (SOARES, 2001, p. 1).
Ainda com Soares, as modificações nas condições de ensino e de
aprendizagem da disciplina Português, a partir dos anos 1950 – contexto marcado
por um alunado radicalmente diferente e professores formados em instituições
específicas – não mudam o ensino dessa disciplina. A língua “continuou a ser
concebida como um sistema cuja gramática deveria ser estudada, e como um
instrumento de expressão para fins retóricos e poéticos”. Ressalta a autora uma
mudança nesse período:
[...] gramática e texto, estudo sobre a língua e estudo da língua,
começam a deixar de ser duas áreas independentes, e passam a
articular-se: ora é na gramática que se vão buscar elementos para a
compreensão e a interpretação do texto, ora é no texto que se vão
buscar estruturas lingüísticas para a aprendizagem da gramática.
Assim, ou se estuda a gramática a partir do texto, ou se estuda o
texto com os instrumentos que a gramática oferece (SOARES, 2001,
p. 2).
Enfim, o ensino dessa disciplina “continuou a orientar-se por uma concepção
da língua como sistema, continuou a ser ensino sobre a língua, quer como ensino de
gramática normativa, quer como leitura de textos para conhecimento e apropriação
da língua padrão” (SOARES, 2001, p. 2). Magda levanta a hipótese de que o
distanciamento entre os fatores externos – mudança de perfil de alunos, com a
democratização do ensino e do perfil de docentes, e a criação de cursos específicos
na área – e internos – que dizem respeito ao ensino da língua – pode explicar o
fracasso do ensino e da aprendizagem.
65
Mantém-se assim cristalizado o ensino da gramática normativa, com a
transmissão de conteúdos e regras no aprendizado da língua. Tal como se
apresenta na escola, é visto como um modo seguro de avaliar e controlar o
estudante, respondendo, desse modo, a uma representação da língua portuguesa
elaborada pelo imaginário letrado e até mesmo popular de que há um português
correto, um falar e escrever bem a língua materna. Segundo Magda Soares (2001),
a partir de 1980 teorias como a Linguística, depois a Sociolinguística e, mais
recente, a Linguística Aplicada, a Psicolinguística, a Linguística Textual, a
Pragmática e a Análise do Discurso, começam a ser incorporados nos cursos de
Letras. Essas “ciências” chegam à escola nos anos 1990, aplicadas ao ensino da
língua portuguesa. O teor de cientificidade que é reivindicado para essas teorias
contribui para que se dissemine uma abordagem científica nos estudos da língua, ao
se constatar nos livros didáticos uma série de conceitos ou reflexões teóricas
oriundas do campo da linguística. Tais reflexões não modificam na base as práticas
de ensino da língua materna.
Magda Soares (2001) ressalta a emergência de novas áreas de estudo, em
concomitância com as teorias linguísticas, as quais sinalizam para que o ensino da
língua se faça também por uma perspectiva histórica, sociológica e antropológica.
São elas: “a História da Leitura e da Escrita, a Sociologia da Leitura e da Escrita, a
Antropologia da Leitura e da Escrita, especializações da História, da Sociologia e da
Antropologia”. Tais estudos favorecem que se possa “investigar e analisar, a
primeira, as práticas históricas de leitura e escrita, a segunda, as práticas sociais de
leitura e escrita, a terceira, os usos e funções da leitura e da escrita em diferentes
grupos culturais” (SOARES, 2001, p. 2).
Tais áreas vão ter, sem dúvida, um rebatimento na escola, orientando novas
práticas do ensino da língua, o que explica, de certo modo, uma renovação de
conteúdos e metodologias, com a introdução, nos currículos, de 2 grandes tópicos:
“Leitura” e “Produção textual”, ao lado da “Gramática”, enquanto a literatura vai se
retraindo, principalmente por não se constituir ciência, mas uma arte, um saber que
desloca ou questiona o que é da ordem do instituído, como a própria escola, o
ensino de língua e de literatura.
Nos livros didáticos, não só nos Cadernos do Gestar II, a singularidade da
literatura se dilui nos estudos da língua e os gêneros literários merecem referências
apenas como uma prática discursiva entre outras, ainda que haja um tópico dos
66
conteúdos que se propõe a tratar da especificidade da literatura. Esse lugar que lhe
é reservado, pois muitas vezes não se sabe como trabalhá-la na escola, termina por
reforçar uma antiga polaridade: ciência versus arte.
Ao expor essa questão, convém esclarecer que não se trata de medição de
forças entre a língua ou Linguística e a literatura, reivindicando superioridade de
uma em detrimento da outra, mas de considerar as especificidades, tanto da língua
quanto da literatura. Com a entrada das teorias linguísticas na escola, percebe-se
sempre um embate acalorado no que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa,
de um lado, entre aqueles que militam pela Linguística, e de outro, e os que militam
pelo ensino de literatura.
Com a consolidação do campo da Linguística, constata-se que os estudos
linguísticos sempre ocuparam lugar de destaque nos currículos de Língua
Portuguesa, respaldado em uma crença na cientificidade dessa área de
conhecimento, enquanto a literatura é vista como um saber que não produz os
discursos de verdade da razão. Segundo Foucault (2002), esse desejo de verdade
que sempre perseguiu o homem, através da oposição do verdadeiro e do falso, a
vontade de produzir discurso verdadeiro que acompanha o homem desde a
antiguidade, e que, ainda hoje, observa-se com certa frequência, é o que ainda
permeia os contornos da memória, levando-nos quase que instintivamente à prática
de medição e classificação em relação ao grau de importância das disciplinas e
conteúdos.
Assim, essa vontade de verdade exclui outros discursos. E esse olhar
desconfiado que se lança à literatura a coloca, no entendimento de Foucault (2002),
no lugar ocupado pela loucura, como aquela que não produz os discursos
semelhantes aos nossos, que está acima dos abusos da língua, como um possível
lugar fora do poder. A literatura é um saber que não reproduz os discursos
convencionais. Ao contrário, questiona os ditos, as verdades estabelecidas. Como
texto ficcional, a literatura, por produzir o verossímil e não o “verdadeiro”, é excluída
pelo discurso dominante da razão, que a estigmatiza como a não ciência. Por ser
livre para dizer o que quer, como quer e nas circunstâncias que quer, lançando mão
da fantasia e da imaginação, anula-se o seu discurso com o interdito – não no
sentido de impedimento de produzir discursos, mas, associando-a ao conceito de
verdade, de real, de desejo de vontade de verdade, como se seu discurso só tivesse
autoridade se vinculado ao discurso de verdade da razão (FOUCAULT, 2002).
67
Ao indagar “o que pode uma literatura? ”, Todorov comenta sobre a
especificidade da literatura, a qual não pode ser comparada à ciência, uma vez que
esta não precisa da aprovação dos seres humanos para ser legitimada, ao contrário
da ciência, que precisa ser submetida à comprovação. Afirma o autor (2012):
A verdade dos poetas ou de outros intérpretes do mundo não pode
pretender ter o mesmo prestígio que a verdade da ciência, uma vez
que, para ser confirmada, precisa de aprovação de numerosos seres
humanos, presentes e futuros; de fato, o consenso público é o único
meio de legitimar a passagem entre, digamos, “gosto dessa obra” e
“essa obra diz a verdade”. Ao contrário, o discurso do cientista – que
aspira alcançar uma verdade de correspondência e se apresenta
como uma afirmação – pode ser submetido de imediato a uma
verificação, pois será refutado ou (provisoriamente) confirmado. Não
precisamos esperar por séculos e interrogar leitores de todos os
países para saber se o autor diz ou não a verdade. Os argumentos
relacionados logo suscitam contra-argumentos: inicia-se um debate
racional em lugar de se ceder à admiração e ao devaneio. O leitor do
texto científico se arrisca menos a confundir sedução e exatidão
(2012, p. 78-79; grifos do autor).
Regina Zilberman (2009) tece uma crítica ao pragmatismo das atividades
pedagógicas nos textos literários e à crença recorrente de que a literatura, na
condição de texto artístico, não ensina nada (e nem se pretende a isso), portanto, é
considerada improdutiva pela sociedade capitalista, que não tolera uma atividade
não rentável e sem aplicação. Antes, valoriza o “falar bem” e “escrever bem”,
competências geralmente exigidas nas relações sociais e profissionais. Por não
atender a uma visão utilitarista que permeia a lógica do capital, a literatura torna-se
um excesso, e muitas vezes a escola não sabe como acolhê-la.
Em seu artigo “(In)certos discursos sobre a leitura literária”, Inara Ribeiro
Gomes (2009) reforça as proposições de Magda Soares (2001) ao destacar alguns
aspectos que podem contribuir para entender a perda de espaço da literatura nos
livros didáticos, consequentemente na escola, da qual se espera a contribuição na
formação do leitor.39 Para a autora, o ensino de literatura, “[...] que já ocupou um
lugar inquestionavelmente relevante na educação linguística e leitora, hoje
dificilmente é defensável sem que se coloque a necessidade de seu deslocamento
em prol de outras práticas e gêneros do discurso” (GOMES,2009, p. 1). Acrescenta:
39
Anais do 17º Congresso de Leitura do Brasil – COLE, em 2009. Disponível em
http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem04/COLE_3874.pdf.
68
“esse deslocamento tem causas sociais e culturais e, portanto, exteriores ao
contexto escolar, e causas internas, pertinentes ao sistema de ensino, à trajetória
histórica da escola e à formação de professores de língua” (GOMES, 2009, p. 1).
Para a autora, se na educação linguística o domínio da norma tida como
padrão se torna consenso para a inserção social do aluno, em relação à literatura o
seu papel é incerto, o que se pode observar nos documentos oficiais, como os
PCN‟s. Alguns fatores contribuíram para essa perda de espaço, ressalta Gomes,
alguns deles, já destacados por Magda Soares (2001), quando traz um panorama da
formação do professor de Língua Portuguesa. Primeiro, desde meados do século
XX, constata-se uma diversificação e redefinição dos usos da palavra escrita, em
decorrência de novas tecnologias e em que os “meios de comunicação audiovisual
assumiram o papel de mediadores privilegiados dos bens culturais”. Há, assim,
nesse contexto de sociedades pós-industriais, uma redução do valor e importância
da leitura e da produção literária como práticas sociais.
As novas formas culturais e artísticas desenvolvidas nesse contexto
provocaram uma mutação na formação do imaginário coletivo,
presidindo gostos e necessidades de fantasia e modificando o
sentido social da literatura, tal como ela havia se constituído e
consolidado desde o século XVIII até meados do século XX.
(GOMES, 2009, p. 1).
A crise dos estudos literários é destacada por Inara Gomes (2010) como um
segundo fator, a qual é deflagrada com a emergência dos estudos culturais, ou os
chamados estudos de cultura, que vão, a partir dos anos 1980, levantar, no âmbito
dos estudos acadêmicos, uma série de questões que põem em xeque a
“especificidade do literário”. Ao buscarem entender a dimensão estética da literatura
considerando os contextos socioculturais de produção, os estudos culturais vão
contribuir para enfraquecer um consenso acerca do literário e de um conjunto de
obras e escritores que representariam o cânone literário, ressalta a pesquisadora.
Tais fatores terão rebatimento na escola. Nesta, se fazem presentes “novos
discursos que desacreditam o prestígio tradicional das humanidades como
disciplinas formadoras das elites sociais e dentro das quais a literatura sempre
ocupou lugar de destaque” (GOMES, 2010, p. 2), ao tempo em que permanece na
escola, afirma Gomes, o problema da escolarização da literatura, ou seja, dos usos
que são feitos dos textos literários.
69
Importa destacar que o foco na leitura que vem sendo dado atualmente nos
currículos escolares, como constatado na disciplina Língua Portuguesa, não alterou
significativamente a escolarização da literatura, no sentido de se propor abordagens
literárias que demandem um leitor participativo e criativo, ao se verificar a
permanência de um modo convencional de trabalhar a literatura na escola:
apresenta-se o texto literário, ou um excerto dele, lança-se uma série de perguntas,
e, às vezes, é proposta uma atividade de produção textual.
As contribuições da História da Leitura e da Escrita, da Sociologia da Leitura e
da Escrita e da Antropologia da Leitura e da Escrita parecem que ainda não
ganharam força na escola para transformações substanciais em sala de aula – na
qual venha se efetivar a leitura como prática social –, nem nos cursos de graduação
em Letras, impactando a formação inicial. Tampouco os resultados incipientes de
proficiência em leitura, apresentados por instrumentos de avaliação como o Prova
Brasil e o PISA, parecem ter sido analisados de modo a provocar aquelas
transformações no cotidiano escolar. Não se trata de considerar tais instrumentos
referência para o estudo da questão, tendo em vista as metodologias aplicadas
nessas investigações com critérios passíveis de questionamentos. Contudo, esses
resultados podem fornecer pistas para se refletir sobre a validade de se prosseguir
com um trabalho com a literatura que não tem feito diferença na formação.
Frente a esse cenário escolar, chama atenção o número expressivo de
Programas de incentivo à leitura, cercados de campanhas de divulgação na mídia,
destinados aos estudantes da rede pública, que poderiam impactar as práticas de
leitura em sala de aula. Contudo, como demonstram algumas pesquisas, muitos
desses programas deixam à margem, quando de sua concepção, a comunidade
escolar, particularmente gestores, professores e bibliotecários, convocados apenas
na fase de implementação do programa na escola. Ou, o que também é apontado
nas pesquisas, uma determinada comunidade desconhece o programa.
Nos anos 1990, assiste-se à expansão de programas de incentivo à leitura de
obras literárias, patrocinados pelo Governo Federal, com a ampliação de acervo de
livros de literatura infanto-juvenil das escolas públicas. Em sua pesquisa sobre o
Programa Literatura em Minha Casa, lançado em 2001, Regina Janiaki Copes
(2007) faz um levantamento de outros programas, criados pelo governo federal e
70
órgãos não-governamentais, como políticas públicas de incentivo à leitura. 40 Já nos
anos 1970 o Instituto Nacional do Livro lança projetos de financiamento de obras
literárias. Na década de 1980, a Fundação Nacional do Livro, em parceria com a
iniciativa privada, patrocinou projetos de incentivo à leitura.
O Programa “Literatura em Minha Casa” foi implementado pelo MEC em
2001, com recursos do Plano Nacional de Desenvolvimento da Educação, e está
vinculado ao Programa Nacional Biblioteca da Escola. De acordo com o portal do
FNDE, “o acervo foi composto por seis coleções diferentes, cada uma com cinco
títulos: poesia de autor brasileiro, conto, novela, clássico da literatura universal e
peça teatral”. As escolas também receberam quatro acervos para sua biblioteca. Em
2002, dando continuidade ao Programa, “o acervo foi composto de oito coleções de
diferentes editoras, cada uma com cinco títulos: poesia de autor brasileiro, conto,
novela, clássico da literatura universal e peça teatral. Os alunos da 4ª série foram
contemplados com uma coleção e as escolas receberam um acervo para suas
bibliotecas”.
Marcado pelo alto investimento, o Programa Literatura em Minha Casa,
implantado com o objetivo de integrar nas práticas de leitura a escola e a família,
promoveu a distribuição gratuita de obras literárias aos alunos da 4ª a 8ª séries do
Ensino Fundamental das escolas públicas. A ideia era que o aluno levasse o livro
para casa, propiciando leituras compartilhadas entre familiares e amigos. A autora
constata a pouca visibilidade desse programa, desconhecido de muitos agentes da
escola – gestores, professores, bibliotecários –, o que a leva a questionar o modo
pelo qual são implantadas e implementadas as políticas públicas educacionais e de
leitura no país.41 Em relação ao Programa Literatura em Minha Casa, a
pesquisadora apresenta algumas considerações:
40
Nesse levantamento, Regina Copes destaca a criação do PROLER e o PRÓ-LEITURA, ambos na
década de 1990, o primeiro, com o intuito de dinamizar uma rede de programas para consolidar
práticas leitoras, e o segundo, com o objetivo de oferecer formação continuada, teórica e prática,
sobre leitura. Em 1997, o MEC, em parceria com a Secretaria de Ensino Fundamental (SEF), criou o
Plano Nacional de Biblioteca Escolar (PNBE) com a intenção de prover recursos diversificados para a
promoção da leitura no Ensino Fundamental.
41
A autora constata que o fracasso do Programa Literatura em Minha Casa deveu-se aos equívocos
de sua implementação: “a) a maioria dos gestores escolares desconhecia os programas, os projetos
e as campanhas de incentivo à leitura emanados do Governo Federal; b) os livros não chegaram nas
escolas da forma como estava proposto nos documentos oficiais; c) os alunos não receberam os kits
conforme o prescrito no projeto; d) em algumas escolas, tanto nas estaduais quanto nas municipais,
há resíduo de volumes nas estantes das bibliotecas e nas salas de leitura e; e) as escolas receberam
uma quantidade de kits muito aquém da demanda de matrículas.” (p. 6). Pelo alto investimento no
71
a) ele pode ser definido como uma política pública, no campo do livro
e da leitura, que se caracterizou pela mera distribuição de livros com
poucos critérios sobre a qualidade da aplicação, dentro e fora das
escolas; b) não apresenta definição de estratégias de
acompanhamento e avaliação do projeto; c) o Estado, como agente
de controle e como consumidor, definiu e determinou os livros que os
alunos iriam ler e; d) pelo conteúdo propagandista, pelas estratégias
de implantação, pelos recursos de grande monta investidos, se
enquadra como política de governo e não como política pública de
Estado (COPES, 2007, p. 115-116).
Ressalte-se a criação do Plano Nacional do Livro e Leitura/PNLL em 2006,
selando as diretrizes para uma política pública voltada à leitura e ao livro no Brasil, à
biblioteca e à formação de mediadores. Tais instâncias são convocadas pelo seu
papel “no desenvolvimento social e da cidadania e nas transformações necessárias
da sociedade para a construção de um projeto de nação com uma organização
social mais justa”.42 Quatro eixos orientam a organização do Plano: 1)
democratização do acesso; 2) fomento à leitura e à formação de mediadores; 3)
valorização institucional da leitura e incremento de seu valor simbólico; 4)
desenvolvimento da economia do livro.43
É possível que o insucesso dessas iniciativas de incentivo à leitura se deva ao
fato de não haver um envolvimento da comunidade escolar, nem interesse do
governo federal, quando da implantação de políticas públicas de leitura, em analisar
questões sociais que afetam o sistema educacional. Tais iniciativas não têm impacto
Programa e pelas denúncias de não cumprimento de sua finalidade, a autora informa que o Tribunal
de Contas da União solicitou, em 2002, do então presidente Fernando Henrique Cardoso, um estudo
para se avaliar os rumos do projeto, mas não foi atendido (COPES, 2007, p. 116).
42
O Plano Nacional do Livro e Leitura/PNLL foi instituído por meio da Portaria Interministerial Nº
1.442, de 10 de agosto de 2006, pelos ministros da Cultura e da Educação. E, em 1º de setembro de
2011, foi instituído por meio do decreto Nº 7.559, firmado pela presidente Dilma Roussef. Conforme o
texto institucional divulgado no site do Ministério da Cultura, o PNLL resulta de mais de “150 reuniões
públicas em todo o País nos anos de 2005 e 2006, ocasião em que sugestões para o Plano eram
colhidas”. Delas participaram “representantes de toda a cadeia produtiva do livro – editores, livreiros,
distribuidores, gráficas, fabricantes de papel, escritores, administradores, gestores públicos e outros
profissionais do livro –, bem como educadores, bibliotecários, universidades, especialistas em livro e
leitura, organizações da sociedade, empresas públicas e privadas, governos estaduais, prefeituras e
interessados em geral”. O texto final do Plano foi aprovado em 2006, “em reunião da Câmara Setorial
do Livro e Leitura (CSLL), com a participação de representantes do Estado e da sociedade”.
Disponível em http://www.cultura.gov.br/pnll. Acesso em 04 de janeiro de 2015.
43
Para o Ministério da Cultura, esse Plano guarda uma dimensão de política de Estado, “de natureza
abrangente, que possa nortear, de forma orgânica, políticas, programas, projetos e ações
continuadas desenvolvidos no âmbito de ministérios – em particular os da Cultura e da Educação –,
governos estaduais e municipais, empresas públicas e privadas, organizações da sociedade e, em
especial, todos os setores interessados no tema”.
72
na escola, o que acaba por manter limitada a presença da literatura nos currículos
escolares, o que se repete em um programa de formação continuada como o
Programa Gestar II, que deveria promover a oportunidade dos docentes ampliarem
seu repertório de leitura, seus conhecimentos na área, e não recebê-los
encadernados, como chegam pelos manuais.
73
3 NAS PÁGINAS DOS CADERNOS, UM GÊNERO CHAMADO LITERATURA
A inclusão da literatura no Programa Gestar II atende às exigências dos
Parâmetros Curriculares Nacionais quanto aos conteúdos a serem contemplados
nas disciplinas de Língua Portuguesa. E a literatura, conforme a Lei de Diretrizes
Curriculares 9394/96, deve ser compreendida como unidade básica no campo da
linguagem. Nos Cadernos de Teoria e Prática a literatura compreende três grandes
áreas – “Gramáticas”, “Literatura” e “Produção textual” – compartimentada,
entretanto, a despeito da interdisciplinaridade sugerida pelos PCNs, que preveem
que tais esferas não devam ser trabalhadas isoladamente.
Pelo exposto, o lugar que a literatura ocupa hoje nos manuais didáticos
decorre das transformações e mudanças no currículo. Segundo Melo e Klinke
(2009), desde os anos 1970 a disciplina Língua Portuguesa é segmentada em língua
e literatura – esta última, com especial atenção para a literatura brasileira – o que
repercutiu na organização curricular: separação entre gramática, estudos literários e
redação, orientando também na produção de livros didáticos e programas
educacionais.
No elenco dos conteúdos da disciplina Língua Portuguesa, os Cadernos do
Gestar II priorizam o ensino da língua e a produção textual, inclusive trazendo
conceitos atualizados, elaborados na área dos estudos linguísticos, como noções de
gêneros textuais, gêneros discursivos, letramento e intertextualidade. Em relação
aos conteúdos de literatura são poucas as abordagens que indicam uma renovação
de perspectiva. Ressalte, nesse caso, a de tomar o texto literário como gênero
textual, o que, de certo modo, retira da literatura uma aura de inacessibilidade, ainda
cultuada, embora esse deslocamento do literário seja alvo de crítica por justamente
manter em segundo plano um trabalho com as obras literárias.
Para compreender o trabalho com a literatura nos Cadernos de Teoria e
Prática, deve-se considerar, de início, o processo de escolarização. Neles os textos
são apresentados como “texto em forma de aula”.
Portanto, nos cadernos, exploramos o texto como ferramenta de
transformação, de problematização e de elaboração de conceitos.
Assim, o texto contido no material não é um artigo científico e nem
um texto literário, mas é um texto em forma de aula; um texto que
74
leva o leitor a construir conhecimento; é um texto que ensina.
(BRASIL, 2010, p. 15-16; grifo nosso).
Trata-se, portanto, de textos que passaram por um processo de didatização,
ou seja, um conhecimento que foi escolarizado, organizado em torno dos gêneros
textuais, correspondendo assim às diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais,
que propõem que o texto seja visto “como uma unidade básica do trabalho com o
ensino de Língua Portuguesa” e entendem que “os gêneros não se desvinculam dos
textos” (BRASIL, 2008, p. 55). No Programa Gestar II, a centralidade no texto está
assim posta na apresentação do Caderno 3:
[...], as unidades deste caderno apontam para duas direções: o texto
como atuação social e o texto como organização de informações.
Essas duas dimensões textuais estão intimamente interrelacionadas, mas vamos olhá-las separadamente, apenas para fins
didáticos. (BRASIL, 2008, p. 11).
Pelo processo de escolarização passaram também os textos que trazem
reflexões ou aportes teóricos, inseridos nos Caderno de Teoria e Prática para
subsidiar o trabalho do professor cursista na formação continuada. Cada Caderno
traz em suas Unidades ímpares a seção “Ampliando nossas referências”, na qual se
encontra um texto de “referência” – “artigo científico” ou seu fragmento – chamado
de “texto teórico” pelas autoras.
Como sempre vai ocorrer nas unidades ímpares, apresentamos-lhe
um texto teórico, chamado de referência, que representa um outro
olhar sobre o assunto da unidade e vai ser analisado sobretudo na
relação com a sua sala de aula. Nesse texto, tanto quanto nos
nossos, desejamos que você faça uma leitura crítica: não temos de
aceitar as posições expostas, desde que tenhamos argumentos para
defender outros modos de encarar a questão em foco (BRASIL,
2008, p. 44).
Com o intuito de que os textos da seção “Ampliando nossas referências”
contribuam para uma reflexão do professor acerca do assunto principal de
determinada Unidade, tais textos são, em boa parte, excertos de publicações –
artigos, livros ou capítulos de livros – que tratam de tópicos como variação
linguística, leitura e produção textual, gêneros textuais, descrição e dissertação,
75
estilística, coesão textual, argumentação, ensino da arte. Como se vê, não há um
texto específico dos estudos literários. O conteúdo “literatura” está no texto sobre
arte, “Didática do ensino da arte: a língua do mundo: poetizar, fruir e conhecer arte”,
inserido naquela seção do Caderno 2 (Unidade 7). Com presença majoritária nos
Cadernos, os textos que versam sobre estudos lingüísticos acompanham o privilégio
dos estudos da língua nos Cadernos. Esse critério se repete nas bibliografias
sugeridas ao professor cursista, em uma seção específica ao final das Unidades,
como também na bibliografia em que se apoiaram as autoras para a elaboração dos
Cadernos.
Situada essa direção do Gestar II, faz-se necessário refletir sobre a
escolarização da literatura, para analisar as formas pelas quais os textos literários
dos Cadernos do Gestar II passam por esse processo.
Segundo Bernstein (1996, p.129), o que ocorre na escola é o chamado
discurso instrucional:
um processo de recontextualização do discurso pedagógico que se
dá através de um processo de descontextualização de qualquer
discurso científico da sua fonte original para originar um discurso
simplificado, condensado para se configurar em materiais didáticos.
Para o autor, posteriormente esse discurso científico é refocalizado para as
diversas áreas do conhecimento, a fim de que receba o formato de um discurso
instrucional, que, por sua vez, se submete ao discurso regulativo.
Para Bernstein (1996), um discurso científico, quando é “pedagogizado”,
ganha nova classificação como “o quê” e “como”, ou seja, um novo enquadramento,
um modo de transmissão dessas categorias, conteúdos e relações. Daí uma
questão pontuada por Aracy Evangelista (1999, p.5) com relação ao que é colocado
por Bernstein:
Se isso acontece com o discurso científico, como se dá a relação
entre o discurso pedagógico e o discurso literário, enquanto objeto de
estudo escolar? Como dialogariam esses discursos, se é próprio da
natureza do discurso pedagógico a simplificação e a condensação,
além da classificação e do enquadramento, de caráter instrucional e
regulativo e se é da própria natureza do discurso literário o contato
direto com a obra em sua essência, nos processos de recepção e de
produção da leitura?
As questões colocadas por Aracy Evangelista contribuem para entender
porque, muitas vezes, na escola prevalece um ensino sobre literatura, ou seja, um
76
falar sobre as obras literárias. Quando há oportunidade do contato com elas, vem
mediado por orientações de como lê-las, através de manuais, como ocorre com no
Programa Gestar II.
3. 1 O saber literário nas atividades de leitura
À primeira vista, o quantitativo de textos literários inseridos nos Cadernos do
Programa Gestar II poderia nos levar a inferir que a literatura tem lugar de prestígio
nessa formação. Contudo, a despeito do número elevado desses textos, em todas
as Unidades, nos 06 Cadernos de Teoria e Prática, com quatro Unidades cada, a
literatura está subsumida, em relação à gramática, leitura e produção textual. 44 Os
Sumários dos Cadernos demonstram uma presença rarefeita, bem como o uso
pragmático dos textos literários nas atividades de compreensão e interpretação, com
roteiros repetitivos e previsíveis. Os textos de apresentação dos conteúdos
confirmam tal constatação, a exemplo do texto do Caderno1: “[...], vamos não só
discutir conceitos como variação linguística, texto, intertextualidade, gramática, arte
e literatura, gêneros textuais, mas vamos mostrar como esses conteúdos podem e
devem entrar nas suas aulas para alunos dos 3º e 4º ciclos” (BRASIL, 2008. Não
paginado).45 Tais conteúdos ou conceitos são justificados como relevantes para
promover um bom desempenho dos alunos, que vem apresentando baixa
competência no uso da linguagem (BRASIL, 2008. Não Paginado).
Os Sumários dos 06 Cadernos de Teoria e Prática já sinalizam o modo pelo
qual a literatura entra em sala de aula.46 Como tópico ou conceito, aparece apenas
em duas Seções das Unidades 2 (caderno 1), cujo assunto é “Variantes linguísticas:
desfazendo equívocos”, e Unidade 10 (caderno 3), que tem como assunto
“Trabalhando com os gêneros textuais”
44
47
Dentre os fragmentos de textos literários encontrados nos cadernos, predominam fragmentos de
poemas e contos e pelo menos um texto representativo de gêneros como crônicas, romances,
novelas, cordel, letras de músicas, além de textos de propaganda, de divulgação científica e artigo
jornalístico (Cf. Anexo 5).
45
Cabe lembrar que em cada caderno há dois textos de apresentação. No primeiro, padronizado,
têm-se os conteúdos que serão estudados em todos os Cadernos. No segundo, uma apresentação
específica dos conteúdos de cada Caderno, um sumário comentado.
46
Cf. Anexo 6.
47
A Unidade 1 tem como tópico central “Variantes linguísticas: dialetos e registros”. A Unidade 10 tem
como tópico central “Gêneros textuais: do intuitivo ao sistematizado”.
77
Unidade 2: Variantes linguísticas: desfazendo equívocos
Seção 1: A norma culta
Seção 2: O texto literário
Seção 3: Modalidades da língua
Unidade 10: Trabalhando com gêneros textuais
Seção 1: Gênero literário e não-literário
Seção 2: O gênero poético
Seção 3: Uma subclassificação do gênero poético: o cordel
(BRASIL, 2008. Não paginado).
Na Unidade 2, os pontos das seções são tidos como polêmicos pelas autoras,
dada a dificuldade de caracterização, da falta de consenso. Com esses conteúdos,
pretende-se que o professor “seja capaz” de “1 – caracterizar a norma culta; 2 –
caracterizar a linguagem literária; 3 – caracterizar a língua oral e a língua escrita” (p.
57). Em relação ao “texto literário”, assim está posta a finalidade: “vamos mostrar a
grande característica do texto literário: a total possibilidade de liberdade de
construção” (p. 57). Para “caracterizar” a linguagem literária, a Unidade traz o poema
“Caso do vestido”, de Carlos Drummond de Andrade, que já se fez presente na
Unidade 1 desse Caderno, com a crônica “Retrato de velho”, para ilustrar as
interrelações entre língua e cultura (seção abordada nessa Unidade). Ressalte-se a
tônica na explanação dos conteúdos de literatura e de língua, tidas como objeto de
estudo: uma apresentação de supostas características, identificação de traços
comuns, tidos como inerentes, classificação – ao tempo em que estabelece
hierarquias – o que demonstra que a taxonomia, tão criticada, ainda é o eixo do
processo ensino-aprendizagem.
No segundo texto de apresentação do Caderno 2, a literatura é anunciada
brevemente como conteúdo: “nas unidades 7 e 8 vamos tratar da arte, suas
características, em especial, da literatura” (BRASIL, 2008. Não paginado). Na
Unidade 7, a literatura é apresentada como arte, em meio a outras produções
artísticas, linguagens verbais e não-verbais, como a pintura, a escultura, a dança, o
teatro, a música, o cinema e os quadrinhos, ganhando destaque na Unidade 8, como
se pode ver no Sumário do Caderno 2:
Unidade 7 – A arte: formas e função
Seção 1: Arte e cotidiano
Seção 2: A arte: classificação e características
78
Seção 3: As funções da arte
Unidade 8 – Linguagem figurada
Seção 1: A expressividade da linguagem cotidiana
Seção 2: Figuras e linguagem literária
Seção 3: Elementos sonoros e sintáticos da expressividade
Na Unidade 7, pretende-se discutir o “papel e as características da linguagem
da arte, para chegar a um elemento constante na obra literária: a linguagem
figurada”.48 É ressaltada a necessidade de se sistematizar os tópicos centrais das
Unidades 7 e 8, tendo em vista que, segundo a autora, se as pessoas não se
sentem à vontade para falar sobre arte é por duas razões: “ou porque a
consideramos assunto para especialista ou por que não é tema importante, temos
nossas preferências, gosto não se discute. Continua: “Cremos que não é assim tão
simples”. “Talvez você não se sinta um bom ou frequente fruidor de arte, aquela
pessoa que procura entrar em contato com obras artísticas e se deleita com sua
percepção”. Talvez tenha dúvidas quanto ao que considerar arte, nos dias atuais”.
“Às vezes, não temos clareza quanto ao poder da arte, num mundo marcado pela
concorrência e pela luta no mercado de trabalho, cada vez mais ávido de
informações. Nesse quadro cultural, que papel cabe à arte e, mais especialmente, à
literatura, a arte da palavra? (BRASIL, 2008, p. 75).
No Caderno 3, ressalte-se que no texto de apresentação não há qualquer
comentário acerca do conteúdo “literatura”, apesar de se constatar que, na Unidade
10 desse Caderno, intitulada “Trabalhando com os gêneros textuais”, as três seções
tratam do gênero literário: 1) “Gênero literário e não-literário; 2) O gênero poético; 3
Uma subclassificação do gênero poético: o cordel”. As autoras classificam o gênero
literário como aquele que “tem como principal finalidade explorar o aspecto lúdico,
estético, da linguagem. Poemas, contos, romances, novelas são exemplos de
gêneros literários” (p. 68). Nessa classificação, mantêm-se velhas hierarquias,
estabelecidas pela cultura dominante, ao se trazer o cordel como uma
subclassificação do gênero poético.
No Caderno 6, a literatura será trabalhada na Unidade 24. Nesta, afirma a
autora, “vamos retomar e sistematizar atividades e discussões que estiveram
presentes durante todo o curso, ainda que não tenhamos explicitado o assunto: a
48
Anexo 7.
79
literatura para adolescentes [...]” (BRASIL, 2008. Não paginado). No tópico
“Iniciando a nossa conversa”, dessa Unidade, destaca-se a presença da literatura
em todas as unidades.
O texto literário acompanhou você desde a primeira unidade. Se
folhear qualquer volume, verá também que em torno dele foram
sugeridas atividades bastante variadas e que sublinhávamos, a cada
momento: “Leia o livro de onde extraímos este trecho e leve-o para a
sua turma” (BRASIL, 2008, p. 165; grifos da autora).
Contudo, nos Cadernos, prevalecem os estudos da língua, com aportes do
campo da linguística, leitura e produção textual. 49
Na Unidade 24, dedicada à literatura para adolescentes, é importante
destacar o cuidado em conduzir uma reflexão acerca da importância do professor na
formação leitora. Portanto, são propostos três temas para a Unidade: a)
adolescentes, leituras e professores; b) a qualidade literária é primordial na literatura
para adolescentes?; c) existem boas formas de explorar a literatura na escola?
Concluem as autoras:
Com as reflexões e atividades propostas ao longo da unidade,
esperamos que você seja capaz de: a) avaliar o envolvimento do
professor com o que os adolescentes leem; b) conhecer as principais
tendências na produção de uma literatura para adolescentes e
critérios de seleção de obras; c) desenvolver atividades capazes de
despertar o aluno para o prazer e o valor da literatura (BRASIL, 2008,
p. 166).
O intuito está em promover uma discussão e orientação quanto ao papel do
professor cursista no trabalho com a literatura. Para a autora, a escola precisa criar
esse espaço de presença da literatura, para que, pelo menos em algum momento da
vida, as pessoas se lembrem da experiência gratificante de ouvir ou ler literatura (p.
165). “Queremos enfatizar a importância de acender, na cabeça e no coração dos
alunos, pelo menos uma pequena chama de interesse pela literatura” (BRASIL,
2008, p. 165).
49
Conforme levantamento de gêneros textuais encontrados nos Cadernos (Anexo 8), 27,5% dos
textos são considerados literários, enquanto 72,5% são textos não literários. Há uma quantidade
significativa de textos funcionais (47,59%), aqueles cuja finalidade maior é a informação. Há um
percentual razoável, 33,3%, de textos literários no Caderno 3, que trata dos gêneros e tipos textuais;
seguido dos Cadernos 2 e 5, com18,3% cada. Boa parte dele é trabalhada no estudo de gramática.
80
No Caderno 6, reitera-se a concepção de literatura como arte, ao se ressaltar
a relevância da função da literatura na formação dos homens, desenvolvendo a sua
sensibilidade.
Ao colocá-lo no centro da fantasia, ao criar as muitas possibilidades
de interpretação, a arte põe no fruidor a responsabilidade de
descobrir significados, de jogar o jogo, de montar o quebra-cabeça.
Então, são convidados a atuar a sensibilidade e o espírito crítico do
leitor, qualidades fundamentais para o sujeito transformado em
cidadão. A arte é talvez o reduto especial em que – pela emoção
primeiramente – reagimos a uma ordem de coisas que nos parece
atrapalhada, reconhecemos vozes que têm semelhança com a nossa
e que nos fazem sentirmo-nos irmãos, ligados talvez por um fio de
esperança (BRASIL, 2008, p. 177).
Portanto, como expresso ainda no Caderno 6, “a arte é um convite à (re)
interpretação do mundo”.
A literatura é, portanto, uma possibilidade especial do
desenvolvimento da interpretação, que vai além do conhecimento de
dados, da simples informação. Como toda arte, ela informa, mas
pode fazer muito mais, e, em geral, faz: procurando na expressão do
outro a palavra que desvende o mundo, o leitor procura desvendar a
si mesmo e, procurando entender-se, caminha na compreensão do
outro. Mais do que qualquer forma de conhecimento, a arte (e em
especial a literatura) desvenda verdades sobre a condição humana.
Segundo um de nossos maiores poetas, José Paulo Paes, a arte, a
ficção, amplia a nossa humanidade. O contato com as artes e
sobretudo com a literatura deve ser um objetivo claro de qualquer
projeto educacional, ao lado do contato com outras formas de
conhecimento, inclusive o científico (BRASIL, 2008, p. 178).
Os Cadernos do Gestar II destacam a singularidade da literatura, pela
linguagem, como arte da palavra, “caracterizada” pela expressividade dos jogos
sonoros e rítmicos e por figuras. Em relação à linguagem figurada, mantém-se a
tradição da retórica orientando a identificação e interpretação de variados tropos nos
textos
literários:
metáfora,
personificação,
hipérbole,
antítese,
comparação,
metonímia etc. O poema “Serão de junho”, de Augusto Meyer, é trabalhado na
Unidade 8 do Caderno 2 com tal fim:
Ouve: – alguém bateu na porta...
Janelas brilham no escuro.
Cada casa é uma estrelinha.
Cada estrela é uma família.
E o minuano, pobre diabo,
81
que não quer ficar no escuro,
bate, bate, empurra a porta,
praguejando como um doido:
– Pelo amor de Deus, eu quero
a esmola rubra do fogo!
Mas ninguém abre ao minuano.
Que noite fria lá fora...
Cada casa é uma estrelinha.
Há mais estrelas na terra
do que no céu, Deus do céu!
Lá fora que noite fria ...
E o minuano, pobre diabo,
andando sempre, andarengo,
para enganar a miséria,
geme e dança pela rua
enquanto assovia - chora,
e enquanto chora – assovia
(BRASIL, 2008, p. 118).
Segue-se o exercício de compreensão e interpretação proposto para o
poema:
A) Podemos perceber três vozes diferentes nesse poema. Indique
quais são elas. Justifique.
B) Por causa dessas vozes, de onde "vemos" a cena? Justifique.
C)Que características o minuano apresenta, no poema?
D)Como é sugerida a força do vento?
E)Transcreva abaixo a comparação que aparece no poema e
justifique o paralelo entre os elementos comparados.
F) Identifique no poema:
a) uma sequência de metáforas:
b) um pensamento exagerado:
c) uma sequência de ações ou atitudes opostas:
(BRASIL, 2008, p. 118-119).
Após as perguntas de localização e inferência, solicita-se que sejam
identificadas algumas figuras de linguagem, considerando a classificação pelos
estudos retóricos: metáfora, personificação, hipérbole (“pensamento exagerado”),
antítese e ironia, ainda que muitas vezes tais classificações se mostrem confusas,
imprecisas. No E-dicionário de termos literários, Carlos Ceia (2010) situa as figuras
de linguagem nos estudos retóricos, questionando sua validade:
Tradicionalmente, há um repertório infindo de figuras de linguagem,
com nomenclaturas diversas, heterogêneas e, até, contraditórias. A
própria ambiguidade da classificação das figuras revela a natureza
conotativa de todo discurso: a denotação seria, então, uma utopia, na
82
medida em que o poeta, por exemplo, almeja que a palavra seja a
coisa, o ícone seja o real, o signo seja o ser. Para além da
polissemia de todo enunciado, as figuras também se misturam,
configurando um concerto significativo (CEIA, 2010. Não paginado).
O autor chama atenção para o trabalho inócuo no ensino de figuras de
linguagem:
O estudo das figuras de linguagem - ou figuras de retórica ou, ainda,
figuras de estilo – não deve resultar numa inócua taxonomia,
fastigiosa para o aluno do segundo grau e mais enfadonha ainda e
infindável para o estudante universitário. Com efeito, as figuras
estruturam a própria linguagem, potencializam o discurso, carregam
com expressividade a fala, realçam o que Roman Jakobson
denomina “função poética da linguagem”, sendo que toda linguagem
é poièsis, vale dizer, criação (grifos do autor).
Enquanto a tradição retórica, assentada na taxonomia, encontra um vasto
elenco de figuras que expressariam diferentes formas de pensamento, Roman
Jakobson inova o entendimento dos processos de construção do pensamento, como
ressalta ainda Ceia:
Com sua longa, gloriosa e inglória história, a retórica renova-se no
século XX: Roman Jakobson articula duas fundamentais figuras de
retórica - a metáfora e a metonímia - e duas importantes categorias
da linguagem - a seleção e a combinação -, e formula esta hipótese
fulcral: “la fonction poétique projete le príncipe d’équivalence de l’axe
de la sélection (ou: paradigmatique) surl’axe de la combinaison (ou:
syntagmatique)”, correlacionando os pólos metafórico e metonímico
que configuram a estrutura lingüística; [...]. 50
Por essa perspectiva de Roman Jakobson, vê-se que o intuito de identificar,
caracterizar e classificar as figuras termina por criar embaraços à própria atividade
de compreensão e interpretação. Chama atenção nos Cadernos o fato de ser
sempre ressaltada a dificuldade de se trabalhar com classificações, uma vez que os
objetos e os conhecimentos não são fixos e imutáveis. Contudo, apesar de um
discurso que aponta para a abertura do literário, na prática a condução ao estudo da
língua e da literatura está apoiada em classificações, conceituações e definições
questionáveis.
50
“A função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção (ou paradigmático) sobre o
eixo da combinação (ou sintagmático)” (JAKOBSON, 1992).
83
Em uma Unidade do Caderno 3, tem-se um fragmento do poema “José”, de
Carlos Drummond de Andrade, explorado “para caracterizar a linguagem poética”
(BRASIL, 2008, p. 57): “E agora, José?/A festa acabou,/a luz apagou,/o povo
sumiu,/a noite esfriou,/e agora, José?/e agora, você?/você que é sem nome,/que
zomba dos outros,/você que faz versos,/que ama, protesta?/E agora, José?” (p. 57).
Abaixo do poema, há uma nota intitulada “Recordando”, com definições de
“aspectos formais do poema”: estrofe, ritmo poético, rima e métrica, com vistas à
atividade elaborada para a análise do poema.
Atividade 1
Como obra representativa do modernismo, as rimas desse poema
não são rimas tradicionais ou clássicas. Procure em livros de seu
conhecimento estrofes que apresentem rimas tradicionais.
a) Transcreva um poema ou, ao menos, uma estrofe, sublinhando a
última sílaba tônica (forte) de cada verso.
b) Compare com o trecho transcrito de José. Por que consideramos
que as rimas desse poema não são clássicas?
c) Por que, mesmo não tendo o padrão clássico de rimas poéticas, o
trecho de José pode ser considerado poético?
d) As repetições usadas no poema são comumente usadas em
textos escritos? Por que você acha que são usadas nesse poema?
(BRASIL, 2008, p. 58).
Propõe-se aí uma apreciação do efeito conseguido com a sílaba tônica, com
as repetições, no intuito de mostrar que o texto poético não se constrói apenas com
rima e métrica, mas com o jogo de sílabas tônicas, fonemas vocálicos e
consonantais e a pontuação, importantes na obtenção do ritmo poético. Assim,
importa o estudo do texto na sua imanência: conhecer sua estrutura como texto
poético.
A atividade colabora sem dúvida com o que se pode chamar de educação
estética, ainda que apresente perguntas cujas respostas estão localizadas no texto,
que asseguram o controle das atividades, podendo atestar o “êxito” da
aprendizagem. Ressalte-se que as seções “Avançando na prática”, presentes nos
Cadernos do Gestar, trazem sugestões de outras atividades – diferentes das
repetitivas atividades de “leitura, compreensão e interpretação” – o que amplia as
possibilidades de contato dos alunos com as obras literárias.
84
Apesar de destacar a dificuldade de conceituar a literatura, os Cadernos do
Gestar II ressaltam a sua singularidade ainda pela distinção entre “literário” e “nãoliterário”, mesmo que sinalize a imprecisão dessa distinção:
Tanto os textos considerados literários, quanto os não literários, são
assim classificados por um conjunto de fatores que não podem ser
considerados isoladamente. Dependendo da função maior que um
texto exerce na interação, sua classificação pode variar. Nem o tema,
nem a maneira de organizar e explorar o vocabulário podem, por si
só, justificar uma classificação. Os textos considerados literários
põem, em geral, em relevo o plano da expressão, da sonoridade, do
jogo de imagens, mas a definição do que seja texto literário, ou
poético, pode variar, segundo as escolas literárias. Em geral, os
textos não literários (funcionais ou utilitários) têm como finalidade
maior a informação e, por isso, aspectos estéticos da linguagem – ou
a exploração do plano sonoro ou da linguagem figurada – são
considerados em segundo plano (BRASIL, 2008, p. 67).
Prevalece, como já ressaltado, uma visão de literatura consagrada por uma
tradição literária, que visa à especificidade do literário, postulada pelas abordagens
formalistas e estruturalistas, que privilegiam o estudo imanente dos textos,
analisando linguagem, estrutura narrativa, categorias como tempo, espaço, foco
narrativo, personagens. Tais abordagens terminaram por modular conceitos e
definições do literário, de modo essencializado.
Para Terry Eagleton (2003), “a definição de literatura fica dependendo da
maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido” (p.11).
Para o autor, a existência de certos tipos de escritos, como poemas, peças de
teatro, romances, entre outros, que obviamente não são pragmáticos, mas isso não
garante que serão realmente lidos dessa maneira. Ressalta: “o que importa pode
não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se
decidirem que se trata de literatura, então o texto será literatura, a despeito do que o
autor tenha pensado” (p.12).
Assim, “não existe uma essência da literatura, qualquer fragmento de escrita
pode ser lido como literatura não-pragmaticamente, se é isso que significa ler um
texto como literatura, assim como qualquer escrito pode ser lido poeticamente”
(p.12). Contrariando essas definições, Eagleton (2003, p. 14) argumenta: “literatura”
talvez signifique o oposto: qualquer tipo de escrita que, por alguma razão, seja
altamente valorizada.
85
Ao tratar da literatura na educação básica, Ana Cristina Viegas (2012)
constata que prevalece no ensino médio um trabalho focado na historiografia
literária, enquanto no ensino fundamental o texto literário passa por um processo de
escolarização, sobretudo com a fragmentação de textos literários, processo já
apontado por Magda Soares. Segundo Viegas (2012, p. 2), “após uma breve análise
dos livros já nos deixa perceber que são constituídos de retalhos e recortados de
diferentes orientações teóricas”, além de prevalecer uma metodologia de leitura
orientada pelos exercícios de compreensão e interpretação. Contudo, o ensino de
“literatura depende muito do modo como a leitura do texto literário é vista pelos
professores” (VIEGAS, 2012, p. 2).
Ao que parece, pelo analisado no Programa Gestar II, a literatura ganha
importância nas aulas de Língua Portuguesa à medida que contribui para o
desenvolvimento da competência textual, no qual se inclui um domínio da gramática
normativa. Essa configuração de ensino encontrado nos livros didáticos muitas
vezes restringe o contato direto com as obras literárias, pois a escola concebe o
ensino de literatura numa visão utilitarista de leitura de literatura, como ressalta
Regina Zilberman. Constata-se assim que “[...] o conceito de leitura e de literatura
que a escola adota é de natureza pragmática, aquele que só se justifica quando
explicita uma finalidade – a de ser aplicado, investido, num efeito qualquer”
(ZILBERMAN, 1988, p. 111). Nesse sentido, a escola continua a reproduzir uma
concepção redutora de ensino de literatura, apoiada no ler para fazer.
Ao analisar a questão da escolarização da literatura, Magda Soares a entende
como uma “apropriação, pela escola, para atender a seus fins específicos, de uma
literatura destinada à criança, ou que interessa a criança” (SOARES, 2011, p. 20).
Para essa pesquisadora, historicamente a escolarização é um termo rotulado como
pejorativo, depreciativo, quando associado ao conhecimento, saberes e produções
culturais. Ou seja, há uma conotação pejorativa em “escolarização do conhecimento”
e nas expressões “conhecimento escolarizado” e “arte escolarizada”, “literatura
escolarizada”. Todavia, para a autora tal conotação não é justa, pelo menos em
tese, pois não há conotação pejorativa na expressão “escolarização da criança” ou
“criança escolarizada”.
É próprio da escola o processo de escolarização de conhecimentos, saberes
e artes, pois o surgimento da escola está indissociavelmente ligado à constituição
dos saberes escolares. Assim, não há como ter escola sem a escolarização dos
86
saberes,“que se corporificam e se formalizam em currículos, matérias e disciplinas,
programas, metodologias, tudo isso exigido pela invenção, responsável pela criação
da escola, de um espaço de ensino e de um tempo de aprendizagem” (SOARES,
2011, p. 20). Portanto, o foco principal dessa discussão deve ser o processo de
didatização:
[...] o que se pode criticar, o que se deve negar não é a escolarização
da literatura, mas a inadequada, a errônea, a imprópria escolarização
da literatura, que se traduz em sua deturpação, falsificação,
distorção, como resultado de uma pedagogização ou uma
didatização mal compreendida que, ao transformar o literário em
escolar, desfigura-o o, desvirtua-o, falseia-o. (SOARES, 2011, p. 22).
Segundo a autora, a literatura pode ser escolarizada em três instâncias
básicas: a biblioteca escolar; a leitura e estudo de livros de literatura, em geral
determinada e orientada por professores de Português; a leitura e o estudo de
textos, em geral componente básico de aula de Português. 51
Em relação às duas últimas instâncias, Soares traz os resultados da sua
pesquisa realizada em coleções de livros didáticos do Ensino Fundamental. 52 Nelas,
constata formas inadequadas de escolarização da literatura 53: a) fragmentação
inadequada de textos literários; b) recorrência dos mesmos autores e obras; c) uso
dos textos literários para análise do aspecto formal do texto; d) ausência de critérios
apropriados para a seleção de autores não “canônicos”; e) falta de referências
bibliográficas e biográficas; f) títulos que não representam bem o trecho de texto
selecionado; g) distorção que sofre o texto ao ser transportado para a página do livro
didático (p. 25-43).
Algumas dessas formas de escolarização ainda se fazem presentes nos livros
didáticos, incluindo-se os Cadernos de Teoria e Prática do Programa Gestar II. Em
51
Segundo Magda Soares (2011) as formas de leitura depreendidas das duas últimas instâncias
dizem respeito a leitura de livros de literatura orientada e determinada por professores de Português,
ou pelo livro didático. Neste caso, a leitura sempre vai se constituir como tarefa ou dever escolar,
sejam quais forem as estratégias para mascarar esse objetivo, mesmo que os professores peçam aos
alunos escolherem as obras que desejam ler ou que leiam as obras indicadas por eles, jamais a
leitura de livros no contexto escolar será uma leitura caracterizada como uma leitura “ler para ler”,
compreendida como leitura essencialmente por lazer, por prazer que se faz fora da escola, e se quer
fazer quando se quer fazer. Sem falar que na escola a leitura é sempre avaliada, mesmo que não se
admita isso, mascarando também as formas de avaliação.
52
No texto da autora não há indicação do ano em que a pesquisa foi realizada. Ressalte-se que a 1ª.
edição da publicação desse estudo é de 1999.
53
Magda Soares emprega o termo “escolarização” no mesmo sentido de “didatização e
pedagogização”.
87
relação ao Gestar, há que indagar sobre o sentido de uma formação continuada que
não contempla uma reflexão com os professores cursistas acerca da escolarização
da literatura. Ao contrário, o professor participa de uma formação cujo objetivo maior
é aplicar com êxito um conjunto de saberes escolarizados sob a forma de manual
didático.
Das formas de escolarização elencadas por Magda Soares, constata-se nos
Cadernos de Teoria e Prática, como ponto positivo, um conjunto de textos
selecionados, de autoria diversificada, assim justificado:
Considerando que o professor do 6º ao 9º ano é um profissional formado no
curso superior e que leciona nas diversas regiões do país, a nossa proposta
é que o trabalho com os textos clássicos e consagrados se mescle com os
dos autores regionais e as formas da cultura popular, ao mesmo tempo em
que se fazem pontes com os assuntos mais relevantes no plano
54
internacional (BRASIL, 2010, p. 36).
Contudo, alguns autores são recorrentes em livros didáticos, sobretudo Carlos
Drummond de Andrade, Monteiro Lobato e Manuel Bandeira. 55Alguns deles,
inclusive, são apresentados nos Cadernos de modo superlativo, como “o maior”, “o
mais prestigiado” etc. Certamente a permanência dos mesmos autores nos manuais
escolares pode contribuir para uma compreensão de que o que se convencionou
chamar literatura é representado por um número restrito de escritores. Ainda com
relação à seleção de autores, Magda Soares (2011) afirma ser comum às coleções
didáticas, quando não repetem textos já canônicos, lançarem mão de autores com
baixa representatividade e obras de pouca qualidade.
54
Esse é o levantamento de autores encontrados nos Cadernos: Escritores nacionais: Adriana
Falcão, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Murilo Rubião, Machado de Assis, José de
Alencar, Monteiro Lobato, Lygia Bojunga Nunes, Millôr Fernandes, Sérgio Porto, Fernando Sabino,
Fernando Pessoa, Mario Quintana, Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Patativa do Assaré, Marcelino
Freire, Ferreira Gullar, Ruth Rocha, Lygia Fagundes Telles, José Paulo Paes, Antônio de Alcântara
Machado, Affonso Romano de Sant´Anna, Maria Clara Machado, Ziraldo, Augusto Meyer, Ângela
Lago, Tatiana Belinky, José Nêumane Pinto, Raul Drewnick, Carlos Heitor Cony, Veríssimo de Melo,
Guilherme Mansur, Silvana Zandomeni, Marcelo Coelho, José Costa Leite, João Martins de Athayde,
José Roberto Torero, Roseana Murray, Sylvia Orthof, Leo Cunha, Lopes Neto, Mário Palmério, Sérgio
Camparelli, Munduruku. Escritores internacionais: Jon Scieszka, Hans Christian Andersen, Jamie
Lee Curtis, Pablo Neruda, Esopo, La Fontaine, AntonioSkármeta, Michael Ende, Pedro Costa.
Compositores da música popular brasileira: Catulo da Paixão Cearense, Chico Buarque, Zé
Ramalho, Luis Gonzaga, Gabriel o Pensador, Tribalistas, Rita Lee e Roberto de Carvalho, Lulu
Santos, Samuel Rosa e Arnaldo Antunes.
55
Carlos Drummond de Andrade (9 textos); Monteiro Lobato (5); Manoel Bandeira (4); Lygia Bojunga
Nunes (3); Millôr Fernandes (3); Ziraldo, Maria Clara Machado e Luis Fernando Veríssimo, 2 textos
cada. Dentre os compositores, há três letras de música de Chico Buarque.
88
Em artigo em que discute a permanência de uma tradição literária na escola,
Márcia Rios da Silva (2014) ressalta a dificuldade da escola em aceitar novos
autores, particularmente aqueles que, em sua escrita, trazem questionamentos ou
contextos sociais que a escola prefere ignorar. A autora destaca dois episódios
ocorridos em uma escola de Minas Gerais e em outra da Bahia, decorrentes da
inclusão de um trecho de Capão pecado (2005), de Ferréz (2005), em um livro
didático. Pais e professores consideraram pornográfico o conteúdo do fragmento
inserido, vindo a exigir da direção escolar a retirada desse material, fato que
culminou em processo judicial. Para a autora, esse caso revela o quanto ainda é
difícil para a escola romper com o cânone sedimentado, sustentado por um conjunto
de valores, desde a sua formação até a sua manutenção.
Nesse processo de seleção de autores, cercado por questões que escapam
ao que é estritamente estético ou pedagógico, não se deve perder de vista que os
textos tidos como literários se qualificam muito mais pelas diferenças que
apresentam, quando comparado aos não-literários, do que por suas peculiaridades.
Assim, falar de textos literários requer reconhecer infinitas possibilidades e nuances
que assumem na obra de um autor, nos autores de uma mesma geração ou de
épocas distintas. A seleção de textos literários em manuais didáticos de língua
portuguesa e literatura não obedece a critérios rígidos de valor quanto às suas
características, porém, é inegável o peso da avaliação dos críticos literários sobre
tais obras nas escolhas dos autores de coleções didáticas.
Conforme Silvana Oliveira (2009), de um modo geral os manuais de literatura,
sejam eles elaborados com critérios estéticos ou históricos, estabelecem um
trabalho por comparação. Ao “propor uma sequência de obras no tempo ou dentro
de um período estético, o crítico está colocando essas obras em situação
comparativa e, necessariamente, o lugar que elas ocupam na crítica é determinado
por comparação” (OLIVEIRA, 2009, p. 167). Assim, tais manuais têm por objetivo
apresentar ao estudioso um panorama seguro da sequência de produção dos
principais autores de uma nacionalidade e do valor que esses autores alcançam e
sustentam no conjunto da produção literária de um determinado país e época. Esses
manuais, “ao mesmo tempo em que fazem um inventário de época, também
apresentam, subliminarmente, o julgamento dessas obras” (OLIVEIRA, 2009, p.
167), o que contribui para orientar os chamados gostos dos leitores.
89
A seleção de cada texto ou obra não se constitui em uma ação aleatória,
destituída de juízo de valor. O fato de determinada obra constar num material de
literatura já se constitui em um juízo de valor em detrimento de outras. Os critérios
de escolha são variáveis e dependem do aspecto analítico priorizado:
[...] por exemplo, para um estudioso formalista, os elementos a
serem considerados para que se diga se a obra tem ou não valor são
elementos de composição textual e a estrutura formal do texto. Já
para um estudioso marxista, os elementos a serem considerados são
àqueles que determinam a inserção e a influência social que essa
obra teve e mantém no meio em que circula (OLIVEIRA, 2009, p.
168).
Qualquer que seja o critério que norteie a análise do valor de uma obra
literária, ressalta Silvana Oliveira (2009), a comparação será sempre uma estratégia
e uma metodologia presente no processo de avaliação pelo qual passam tais obras
em toda circunstância de análise e estudo.
Ainda, as obras selecionadas serão sempre consideradas dentro de uma
realidade de produção que envolve outras obras existentes. Mesmo a abordagem
mais radicalmente formal e textualista deverá considerar a existência de outras
anteriores que utilizaram os mesmos mecanismos de realização do texto em análise.
Assim, nenhum texto existe isoladamente. Serão sempre múltiplos e diversos, é será
sempre preciso considerar a rede de relações que os textos estabelecem entre si
com aqueles que o precederam, tanto de continuidades, como de tradição e
rupturas.
Na seleção de gêneros literários, observa-se nos Cadernos de Teoria e
Prática, com destaque, o lírico (poemas) e o narrativo (crônicas, contos, romances),
num processo de simplificação, visto que boa parte é de fragmentos de narrativas,
por vezes até de poemas. Tal recurso se impõe pelas circunstâncias das aulas: é
preciso que as atividades de desenvolvimento de habilidades de leitura tenham por
objeto textos curtos, para que possam ser analisados e estudados no tempo
limitado, imposto pelos currículos e horários escolares (SOARES, 2001b, p. 29-30).
Por isso, torna-se relevante efetuar um fragmento que se constitua em unidade
coesa. Desse modo, deve-se considerar a noção de textualidade: um fragmento
deve apresentar aspectos que fazem com que uma sequência de frases se constitua
em texto. Segundo Soares (2001b), a fragmentação ocorre com frequência nos
90
livros didáticos, sobretudo pela alta recorrência de textos narrativos, a estrutura
narrativa se organiza em ciclos sequenciais: exposição da situação inicial (tempo e
lugar, personagens, etc.), uma complicação que evolui para um clímax, seguida da
resolução da complicação.
Nos Cadernos do Gestar, observa-se um cuidado em se recortar um texto
literário preservando uma coesão nessa mínima unidade. Contudo, se entendemos
os gêneros literários como formas narrativas ou poéticas que expressam uma
percepção do real, recriado por parte de um determinado escritor, fica comprometida
nossa incursão, como leitor, nesse universo ficcional. Dito isso, destaquem-se no
Caderno 3 dois fragmentos dos contos “Marina, a intangível”, de Murilo Rubião, e “A
parasita azul”, de Machado de Assis. Segue o recorte do conto de Rubião, do livro A
casa do girassol vermelho.
Atividade 2
Marina, a intangível
[...]
Abri a janela, que dava para o jardim, a fim de sentir melhor o
perfume das rosas. Talvez elas me ajudassem.
Porém, ao descerrar as venezianas, deparei com a fisionomia de um
desconhecido. Rapidamente afastei os olhos noutra direção. Aquela
cara me incomodava. Toda ela era ocupada por um nariz grosso e
curvo. Tornei a observar o intruso e vi que me olhava com
insistência.
Sem alterar o semblante, ou mover os músculos da face, disse-me:
– Recebi o seu recado, José Ambrósio. Aqui estou.
Imobilizei-me ao contemplar-lhe o rosto sem movimento, a cabeça
desproporcionada, tomando boa parte do espaço da janela.
Recuperando-me do espanto que a sua presença me trouxera,
retruquei com vigor:
– Não o conheço, nem disponho de tempo para atendê-lo.
Em seguida, fiz-lhe um sinal para se afastar. A sua figura desajeitada
e estranha atormenta-me, impedia que tentasse elaborar um novo
texto.
Penso que interpretou o meu gesto como um convite para entrar,
pois deu umas passadas miúdas e penetrou na sala pela porta
principal.
91
Deteve-se a alguns passos da minha escrivaninha e continuou a
encarar-me.
[...]
(BRASIL, 2008, p. 101).
Embora o recorte se apresente como uma unidade coesa, o leitor perde a
oportunidade de conhecer a história narrada, do que trata, quem é Marina, por que
“a intangível”, o que pode ser frustrante, até porque não se terá lido o conto, ao
menos se depender de sua divulgação no livro didático.
Com esse fragmento intenta-se “examinar, com mais detalhes, sequências
que relatam ações” (BRASIL, 2008, p. 101), ainda que sacrifique a narrativa de
Murilo Rubião. Assim, o conto foi seccionado para ilustrar o que era de interesse na
Unidade do Caderno 3 – o estudo de tipos textuais e suas relações com gêneros –
com o objetivo de conhecer sequências tipológicas, a saber, descrição e narração,
como se pode observar nas questões elaboradas para o fragmento na Atividade 2. 56
1.Para que espécie de trabalho o narrador buscava ajuda do perfume
das rosas quando foi interrompido?
2.Como se deu essa interrupção?
3.Imagine alguma ação do desconhecido que possa dar continuidade
à situação de surpresa. Escreva um parágrafo final para o texto, que
narre essa ação.
4.Releia o texto, agora completado pelo seu final, e avalie a função
das sequências que descrevem o desconhecido. Por que ele foi
assim descrito?
(BRASIL, 2008, p. 102).
Nas questões 3 e 4, há uma tentativa de evitar possíveis efeitos negativos da
fragmentação, ao propor uma questão que provoca a imaginação dos leitores para
completar a história. Contudo, o recorte, como unidade textual, não conduz ao conto,
sequer ao título para o qual não guarda correspondência.
O fragmento do conto “A parasita azul”, de Machado de Assis, será analisado
nesse Caderno com a finalidade de se relacionar sequências tipológicas à
classificação de gêneros textuais.
A parasita azul
56
A Atividade 1 desse Caderno analisa “sequências tipológicas” no fragmento do conto “O drama da
geada”, de Monteiro Lobato.
92
[...]
Fatigado de assediar inutilmente o coração da moça, e por outro
lado, convencido de que era necessário mostrar uma dessas paixões
invencíveis a ver se a convencia e lhe quebrava a resolução,
planteou Camilo um grande golpe.
Um dia de manhã desapareceu da fazenda. A princípio ninguém se
abalou com a ausência do moço, porque ele costumava dar longos
passeios, quando porventura acordava cedo. A cousa porém
começou a assustar à proporção que o tempo ia passando. Saíram
emissários para todas as partes, e voltaram sem dar novas do rapaz.
O pai estava aterrado; a notícia do acontecimento correu por toda
aparte em dez léguas ao redor. No fim de cinco dias de infrutíferas
pesquisas soube-se que um moço, com todos os sinais de Camilo,
fora visto a meia légua da cidade, a cavalo. Ia só e triste. Um tropeiro
asseverou depois ter visto um moço junto de uma ribanceira,
parecendo sondar com o olhar que probabilidade de morte lhe traria
uma queda.
[...]
Será necessário dizer a dor que sofreu a formosa Isabel quando lhe
foram dar notícia do desaparecimento de Camilo? A primeira
impressão foi aparentemente nenhuma; o rosto não revelou a
tempestade que imediatamente rebentara no coração. Dez minutos
depois a tempestade subiu aos olhos e transbordou num verdadeiro
mar de lágrimas.
[...]
(BRASIL, 2008, p. 146-147).
Apesar de o excerto constituir-se em unidade coesa, não é possível
estabelecer relação com o título do conto, até por ser altamente metafórico. Na
proposta da Atividade, com o recorte de “A parasita azul”, requer-se uma análise de
aspectos similares aos solicitados no exercício elaborado para o fragmento do conto
de Murilo Rubião.
Atividade 2
Considerando os aspectos característicos dos tipos descritivo,
narrativo e injuntivo, e considerando ainda que os trechos acima são
representativos da linguagem desses autores e dessas escolas
literárias, identifique a preferência de cada autor – e escola literária –
em termos de sequências tipológicas.57
57
A autora está se referindo a Machado de Assis e a José de Alencar. Do romance Iracema foi
extraído um pequeno trecho para se trabalhar também a tipologia textual, no confronto com o de
Machado de Assis.
93
1. Que sequências tipológicas você identificou no texto de José de
Alencar? Qual a predominante?
2. Que seqüências tipológicas você identificou no texto de Machado
de Assis? Qual a predominante?
3. A partir desses dois extratos de textos, qual das escolas literárias
você diria que tem preferência pelo tipo descritivo? Justifique,
destacando algumas características da descrição nesse texto.
4. A partir desses dois extratos de textos, qual das escolas literárias
você diria que emprega menos o tipo descritivo? Justifique,
destacando algumas características da descrição nesse texto
(BRASIL, 2008, p. 147-148).
As questões não exploram o conto em sua dimensão estética, sequer o título,
evidenciando, mais uma vez, o uso pragmático do texto literário, a saber, identificar
sequências tipológicas. Além disso, mantém enquadramentos já altamente
questionáveis, como, o de classificar as obras dos escritores pelo crivo das escolas
literárias.
Possivelmente, uma passagem do conto que poderia dar ao leitor a
oportunidade de conhecer a “parasita azul” não ilustra a contento o objetivo definido
no estudo dos gêneros textuais. Segue a passagem: 58
[...]
Não há muitos mistérios para um autor que sabe investigar todos os
recantos do coração.
Enquanto o povo de Santa Luzia faz mil conjeturas a respeito da
causa verdadeira da isenção que até agora tem mostrado a formosa
Isabel, estou habilitado para dizer ao leitor impaciente que ela ama.
– E a quem ama? pergunta vivamente o leitor.
Ama... uma parasita. Uma parasita? É verdade, uma parasita. Deve
ser então uma flor muito linda, - um milagre de frescura e de aroma.
Não, senhor, é uma parasita muito feia, um cadáver de flor, seco,
mirrado, uma flor que devia ter sido lindíssima há muito tempo, no
pé, mas que hoje na cestinha em que ela a traz, nenhum sentimento
inspira, a não ser de curiosidade. Sim, porque é realmente curioso
que uma moça de vinte anos, em toda a força das paixões, pareça
indiferente aos homens que a cercam, e concentre todos os seus
afetos nos restos descorados e secos de uma flor.
Ah! mas aquela flor foi colhida em circunstâncias especiais. Dera-se
o caso alguns anos antes.
Um moço da localidade gostava então muito de Isabel, porque era
uma criança engraçada, e costumava chamá-la sua mulher, gracejo
inocente que o tempo não sancionou (ASSIS, 1873. Não paginado).
58
Seleção nossa.
94
Deve-se considerar que a possibilidade de se recortar um fragmento com o
início da história (a exposição), e também sem o seu final, não representa
necessariamente um problema. Depende do encaminhamento dado pelo professor
ou pelo livro didático. Nesse caso, podem-se explorar essas lacunas com uma
atividade que mobilize os alunos em um trabalho de recriação ou leitura do texto
original, que recuperem o não dito, que levem os alunos a fazerem inferências.
Certamente, para que isso ocorra, devem-se promover estratégias para compensar
a fragmentação, estimulando a imaginação dos alunos.
Nesse sentido, os Cadernos do Gestar II trazem, por vezes, essa
preocupação, em algumas atividades, ao promover estratégias que visam à
compensação da fragmentação. Além do mais, é importante destacar que nos
Cadernos há considerações sobre a importância da leitura do texto completo.
Tais ressalvas, no entanto, nem sempre resultam em recortes bem sucedidos
de textos, particularmente quando na atividade proposta para o fragmento se deixa
de lado uma discussão sobre questões ideológicas flagrantes em determinada
narrativa, como a que se encontra no conto “Negrinha”, de Monteiro Lobato,
publicado no ano de 1918. No Caderno 2, há um fragmento dessa narrativa com o
título “Dona Inácia”, nome da personagem do conto.
Dona Inácia
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca,
mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos viveraos pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos
imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada
dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado
no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na
sala de jantar), ali bordava, recebia amigas e o vigário, dando
audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma –
“dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”,
dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne
viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne,
e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia,
longe, na cozinha, a triste criança, gritava nervosa:
– Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe
da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para
os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de
desespero.
– Cale a boca, diabo! (BRASIL, 2008, p. 121-122).
95
Com esse excerto, explorado como gênero narrativo, pretende-se que o aluno
identifique a linguagem figurada em prosa. Comentam as autoras: “temos aqui um
narrador observador, que não é personagem da história. Ele narra os
acontecimentos “de fora”. No entanto, ele não é neutro. Ao contrário, toma partido
abertamente” (2008, p. 122). Segue a atividade para a análise desse texto:
Atividade 8
A) Em vários momentos o narrador, ao falar de dona Inácia, diz o
contrário do que ele pensa. Indique expressões e passagens em que
isso ocorre.
B) Que recursos usa o narrador para revelar sua simpatia por
Negrinha, além da própria descrição pejorativa da patroa?
C) Que termos se opõem na sequência abaixo e o que significam?
Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste menina, gritava logo
nervosa:
– Quem é a peste que está chorando aí?
D) A menina é chamada de “peste” e de “diabo”.
a) Que figura é usada, nesses casos?
b) Que semelhança existe entre os elementos comparados
implicitamente nesses casos?
c) Que diferença você vê nos dois xingamentos? Um termo usado
pelo narrador mostra que ele de certa maneira atenua a culpa de
uma das mulheres. Qual é?
E) O apelido Negrinha constitui uma metáfora ou uma metonímia?
Justifique.
(BRASIL, 2008, p. 122-123).
Os enunciados “A, B e C” exploram a análise da “ironia”, como figura de
linguagem, recurso empregado pelo narrador para criticar o comportamento da Dona
Inácia, “proprietária” de escrava, o que marca seu posicionamento, como destacado
nos comentários das autoras. No enunciado “D” as questões solicitam uma
apreciação do emprego de metáforas, nas quais fica expresso o sentimento de
desprezo e até aversão, por parte da patroa, em relação à garota. O enunciado “E”,
por sua vez, tem por intuito levar o leitor a deduzir que a palavra “negrinha” é
empregada como um recurso metonímico.
O intuito das questões é levar à identificação e ao reconhecimento de figuras
de linguagem, ressaltando-as como recursos da linguagem literária, embora as
autoras alertem que essa não é uma característica específica do texto literário, mas
também da linguagem cotidiana. O pequeno trecho desse conto deixa flagrante uma
série de palavras, para referir-se à “Negrinha”, com uma carga altamente pejorativa,
96
apesar dos enunciados conduzirem à conclusão de que o emprego da “ironia”
expressa o desprezo do narrador pela patroa e marca seu afeto pela criança.
Contudo, para aqueles que conhecem o conto, o final dado à história – a garota
morre – pode levar a uma desconfiança em relação à ironia do narrador. Ele conta a
história de uma garota, que sequer tem nome, vítima dos atos de crueldade
exercidos por um opressor, na figura de Dona Inácia. O nome “Negrinha”,
designação metonímica por referência à cor da pele, expõe uma forma de violência
ao negar um nome próprio.
Nos Cadernos do Gestar, há um box reservado a uma pequena nota
biográfica dos escritores cujos textos estão inseridos nessa coleção. Na nota
referente a Machado de Assis, no Caderno 3, destaca-se que o “mulato de origem
humilde” “teve o respeito do público e consideração social num Brasil ainda
monarquista e escravocrata” (BRASIL, 2008, p. 147). Em um contexto marcado por
políticas de reparação dos danos causados pela escravidão, do qual emanam duras
críticas a estereótipos ou designações que perpetuam uma inferiorização dos
negros, há que se questionar que um material educativo veicule esse tipo de
expressão, “mulato”, com uma carga altamente pejorativa. 59
Não se trata aqui de impor pontos de vista na concepção dos Cadernos, mas
por entender que, em uma formação continuada de professores, a problematização
dos ditos não pode ser ignorada, nem tampouco ser suficiente uma metodologia
apoiada em estudo de fragmento de textos para se conduzir a formação do Gestar,
ainda que sejam sugeridas leituras ampliadas. Faltou à atividade com o fragmento
do conto de Lobato, como em muitas outras dos Cadernos, avançar na reflexão de
temas contemporâneos, propondo, nesse caso, aos professores cursistas uma
discussão sobre questões etnicorraciais, até para acompanhar a polêmica que recai
sobre esse escritor, a despeito de sua consagração com obras destinadas ao
público juvenil, acusado de racista e preconceituoso em suas obras.
Tal acusação culminou com o veto ao seu livro Caçadas de Pedrinho,
considerado inapropriado para adoção em escolas públicas e particulares pelo
59
O verbete mulato no dicionário de português Michaelis online significa sm (de mulo) 1 Mestiço das
raças branca e negra. 2 Aquele que é escuro ou trigueiro. 3 O mesmo que mu ou mulo. 4 Cor de pelo
do
gado,
laranja
no
dorso
e
preto
no
resto.
Disponível
em:
http:
//
michaellis.uol.com.br/moderno/português/index.phd?lingua=portugues-portugues&palavra=mulato.
Acesso em 27 de janeiro de 2015.
97
Conselho Nacional de Educação, através do PARECER CNE/CEB Nº: 15/2010, uma
vez que o contexto atual do Estado brasileiro assume a política pública antirracista
como política de Estado, baseada na Constituição Federal de 1988, que prevê, no
seu artigo 5º, inciso XLII, que a prática do racismo é crime inafiançável e
imprescritível (BRASIL, 1988, p. 4).
Se analisado o conto “Negrinha” na íntegra, a atividade proposta poderia
levantar questões que levassem a discutir o tratamento desigual dispensado à
menina negra, se confrontado com o que é dado às meninas louras, sobrinhas de
Dona Inácia. Também poder-se-ia levantar uma discussão sobre os princípios da
Declaração Universal dos Direitos da Criança e do Adolescente (1959), do Estatuto
da Criança e do Adolescente (1990) e da Lei Federal nº 10.639/2003, que torna
obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas de
Ensino Fundamental e Médio. Essa lei altera a LDB e tem o objetivo de promover
uma educação que reconhece e valoriza a diversidade, comprometida com as
origens do povo brasileiro.
Segundo Ana Cristina Viegas (2012), “a valorização da identidade, da história
e da cultura afro-brasileira constitui um item fundamental na formação de cidadãos
atuantes e conscientes numa sociedade multicultural” (p. 3). Para a autora, a prática
efetiva do que propõe a lei 10639/03 requer a elaboração de material didáticopedagógico que contemple a diversidade etnicorracial na escola, a reestruturação
curricular, e, somados a isso, um desafio maior à formação de professores com
vistas à sensibilização e construção de estratégias para melhor equacionar questões
ligadas ao combate às discriminações raciais e de gênero (VIEGAS, 2012, p. 3).
Não se está afirmando, com isso, que nos Cadernos do Gestar questões
raciais estejam negligenciadas. No Caderno 1, na Unidade que trata de diferentes
“registros do português” (formal, informal), há uma atividade proposta a partir de uma
ilustração, uma família negra, extraída do livro Tanto, tanto!, da autora inglesa Trish
Cooke.
98
Fonte: Retirado do primeiro Caderno 1. (BRASIL, 2008, p. 35).
Das quatro questões apresentadas na Atividade, três delas dizem respeito ao
tema “família”. A última questão conduz à reflexão sobre o lugar do negro na
literatura: “Você costuma ver famílias negras apresentadas como personagens
principais de uma história feliz e de pessoas aparentemente bem-sucedidas? Teria
algum comentário a fazer sobre isso?” (BRASIL, 2008, p. 35). Sem dúvida, pode ser
a oportunidade para uma discussão alargada, extrapolando os limites da Atividade
de leitura do texto.
Ainda no tocante ao processo de escolarização, quase sempre os gêneros
literários são explorados nos Cadernos como gêneros textuais, através de atividades
de interpretação e compreensão, nas quais se incluem análise de aspectos formais
do texto. Quando são analisados como gêneros literários, os critérios adotados
guardam relação com a antiga divisão tripartite dos gêneros, aristotélica: lírico, épico
e dramático. No Caderno 2, o poema “O eterno amante”, de Luís de Camões, ilustra
o assunto da seção 2, a saber, “O período e a oração”.
Um mover d‟olhos, brando e piedoso,
sem ver de quê; um riso brando e honesto,
quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;
um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
99
uma pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo e gracioso;
um encolhido ousar; uma brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento:
esta foi a celeste formosura
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.
(BRASIL, 2008, p. 53)
Com esse soneto, busca-se analisar particularidades gramaticais: estabelecer
a diferença entre frase, período e oração: “em textos que pretendem captar
momentos, lembranças, emoções, é comum que a frase nominal seja dominante e
até exclusiva” (BRASIL, 2008, p.52), ressalta a autora. Os enunciados poderiam ser
elaborados de modo a que se chegasse a essa constatação. Contudo, prevalece o
intuito de sistematizar os estudos da língua.
Atividade 3
A – Nesse soneto de Camões, que verbos seriam usados, se o poeta
não optasse pela frase nominal?
B – Tais verbos fazem falta, nesse soneto? Justifique (BRASIL, 2008,
p. 54).
Ainda na seção com essa atividade, a autora estabelece uma relação
intertextual, evocando o quadro de Mona Lisa, ou La Gioconda, de Leonardo da
Vinci, para fazer aproximações com a “mulher amada e cheia de mistérios”, de
Camões, ambas tendo em comum o mistério.60 No box intitulado “Vocabulário”
encontram-se o significado de palavras como “soneto”, “gesto”, “despejo” e “Circe”.
Antes de apresentar as questões para análise do poema, a autora antecipa
seus comentários, de certo modo direcionando a atividade de interpretação:
Belo poema, você achou? Vemos aí que as três primeiras estrofes
constituem uma longa frase nominal, em que o poeta sugere a
ambiguidade de determinada mulher: tanto no físico como no
espírito, ela parece encerrar uma contradição, uma dificuldade de ser
definida. No último terceto, quando o poeta revela sua relação com o
60
Embora a intertextualidade seja recorrente nos estudos literários, a abordagem proposta nos
cadernos explora o texto literário apenas como um exemplo de intertextualidade, quando deveria ser
ao contrário, a leitura continuada dos textos literários é que deveria conduzir à descoberta da
intertextualidade, conforme adverte Todorov (2012, p. 28).
100
modelo, continua a sensação do inatingível: a amada é celeste, mas
é também veneno. Entre parênteses: foi em parte esse mistério que
deu a fama à Mona Lisa e a transformou no símbolo da pintura, em
todos os tempos (BRASIL, 2008, p. 53).
Tal citação revela um modelo de atividade recorrente em muitos manuais
escolares. Os autores “traduzem” a linguagem do poema, fazendo uma mediação,
pois julgam que os leitores precisam dela. Assim sendo, legitimam para si o status
de autoridade que lhe é conferido como autor de livro didático. A atividade de análise
desse soneto restringe-se a duas perguntas: “A - Nesse soneto de Camões, que
verbos seriam usados, se o poeta não optasse pela frase nominal? B – Tais verbos
fazem falta, nesse soneto? Justifique.” Logo após esses enunciados, tem-se o
seguinte comentário:
Embora a frase nominal seja muito utilizada nos mais diferentes tipos
de textos, podemos dizer que a situação mais comum é a frase
organizar-se em torno de um verbo, ou de um conjunto de formas
verbais que equivalem a um só verbo – as chamadas locuções
verbais.
Sua mãe acaba acostumando. (acostuma).
Ela vai ter mais sossego sozinha. (terá).
Pode ocorrer, por outro lado, que o verbo não apareça, mas seja
facilmente subentendido (BRASIL, 2008, p. 54).
No enunciado “A”, a pergunta contradiz o princípio de que a função estética é
uma grande força da linguagem literária. Tendo em vista o comentário posto após as
questões, infere-se que a atividade prioriza uma apreensão lógica do sentido do
texto, quando poderia explorar a ideia de que a frase nominal é uma construção
sintática importante para se conseguir determinados efeitos ou resultados, como o
ritmo em um poema, ou se alcançar a linguagem poética.
Ainda como exemplo de texto de determinado gênero literário tomado como
gênero textual tem-se a crônica “Retrato de velho”, de Carlos Drummond de
Andrade, analisada no Caderno 1 com o objetivo de relacionar língua e cultura, ao
tempo em que também se apresenta uma conceituação desse gênero, identificando
características e tipos. Constata-se nos Cadernos do Gestar II a convivência de
101
perspectivas teóricas mais recentes (como a dos gêneros textuais) com antigas
abordagens do texto, a do gênero literário.
A crônica é trabalhada no Caderno 1, na Unidade intitulada como “variações
linguísticas: dialetos e registros”. Nesse texto, está expresso um conflito cultural
entre gerações: “os valores daquele homem de 85 forçosamente são diferentes dos
seus filhos, noras e genros, e, sobretudo de seus netos e até bisnetos” (BRASIL,
2008, p. 17) para explicar a cultura como uma construção histórica que varia no
espaço e tempo. Na crônica, a diferença cultural tem forte componente temporal. As
autoras tecem considerações sobre esse gênero:
Embora cada vez mais se tome o conto pela crônica, sobretudo
quando esta é narrativa, podemos dizer com firmeza que temos aqui
uma crônica: uma composição curta, voltada para os acontecimentos
do cotidiano, que pode contar uma história, tecer comentários sociais
ou políticos, ou ainda apresentar um conteúdo lírico, poético,
apresentando a emoção do autor diante de certo acontecimento.
Muitas vezes, a crônica tem um tom de humor. Todas essas
características têm a ver com o fato de a crônica aparecer
inicialmente em jornais e revistas. (BRASIL, 2008, p. 15; grifo nosso).
A crônica que você leu é uma narrativa. Você vai estudar mais tarde
o gênero chamado narrativa ficcional. Por ora, basta lembrar que a
narrativa se caracteriza por conta uma história, por meio de um
narrador, sobre personagens (humanos, animais, imaginários) que
vivem os acontecimentos desenrolados num espaço e num tempo.
O narrador, que conta a história, pode ser personagem dela, ou pode
ser apenas observador dos fatos. Como narrador-personagem, ele
conta a história em primeira pessoa (eu, nós); como narradorobservador, a narrativa é feita em terceira pessoa (ele, ela, eles)
(BRASIL, 2008, p. 15, grifos do autor).
A despeito das dificuldades de se estabelecer rígidas fronteiras dos gêneros
literários, questão ressaltada nos comentários, no texto de apresentação da crônica
de Drummond a autora é categórica em “dizer com firmeza” que se trata de uma
crônica. Tendo em vista algumas características e generalizações, já sedimentadas,
acerca da estrutura narrativa do conto, haverá leitores que, se for de seu
conhecimento tais características, afirmarão, com segurança, que “Retrato de velho”
é um conto.61
61
As dificuldades de se estabelecer distinção entre os gêneros literários, razão pela qual se opta por
entendê-los como formas híbridas, ressalte-se uma distinção entre conto e crônica: esta parte de um
acontecimento para se desenvolver uma reflexão que tal acontecimento provocou. Portanto, não
102
A – Que tipo de narrador aparece nessa crônica e em que pessoa
a narrativa se constrói?
B– A personagem principal, aqui, tem seu “retrato” minuciosamente
feito pelo narrador. Mas ele usa de dois procedimentos diferentes:
a) ele mesmo, narrador, ou outra personagem, apresenta as
características do pai/sogro/avô;
b) as atitudes e falas do velho falam por si, completam o retrato feito
pelos outros.
Indique abaixo passagens que exemplifiquem os dois procedimentos.
c)Embora os fatos apresentados sejam todos passados, os verbos
aparecem no presente. Que sentido isso traz para você?
d)Que sentimentos das pessoas para com esse velho ficam
evidenciados no texto?
e)No texto, há várias passagens de humor. Indique pelo menos duas
situações em que ele se faz presente.
f)Que intenções você acredita que teve o autor, ao escrever essa
crônica? (BRASIL, 2008, p. 16, grifos nossos).
Embora tal atividade convoque o aluno a participar e interagir com o texto,
instigando-o a emitir opinião, parece que esse tipo de esquema, “leitura” seguida de
“compreensão e interpretação do texto”, não vem funcionando, por ser trabalho
mecânico, repetitivo, além de trazer uma questão acerca da intencionalidade do
autor, já bastante criticada. Os enunciados – “que tipo de narrador...”, “em que
pessoa a narrativa se constrói?” e “a personagem principal...” – priorizam uma
identificação e caracterização da estrutura da narrativa, o emprego de categorias
narrativas. A questão “F” - “que intenções você acredita que teve o autor, ao
descrever essa crônica?”, endossa a tese da intencionalidade do autor, já
questionada nos estudos literários, tida como falácia, mas que permanece nas
atividades de leitura, compreensão e interpretação dos textos literários, na crença de
que a última palavra é a do autor.
Para Antoine Compagnon (2010, p. 49), a crença na intencionalidade do autor
acontece por que “a intenção do autor é critério pedagógico ou acadêmico
tradicional para estabelecer-se sentido literário. Seu resgate é, ou foi por muito
tempo, o fim principal, ou mesmo exclusivo, da explicação dos textos”. O sentido do
texto está centrado em uma suposta intenção do autor, traduzido em “o que o autor
quis dizer”, sem levar em consideração o lugar do leitor. Tal explicação “torna, pois,
a crítica literária inútil [...]. Além disso, a própria teoria torna-se supérflua: se o
sentido é intencional, objetivo, histórico, não há mais necessidade nem da crítica,
teríamos narrador nem personagens em uma crônica. O conto, por sua vez, prima por ficcionalizar um
acontecimento desenvolvendo uma trama, com personagens, conduzida por um narrador.
103
nem tampouco da crítica da crítica para separar os críticos.” (COMPAGNON, p.
49).62
Quanto à caracterização dos gêneros literários, e como se vê em relação à
crônica, tem-se destacada a mobilidade dos gêneros e a dificuldade de caracterizálos. Contudo, as atividades propostas mantêm esse intento, até por uma
compreensão de que a didatização dos conhecimentos passa por uma simplificação,
o que muitas vezes ocorre ao se recorrer a uma taxonomia. O poema de Drummond,
“Caso do vestido”, é trabalhado agora como um gênero literário: “convidamos você a
ler agora um poema, gênero que nós não estudamos ainda. Você já devia estar
sentindo falta dele, não é?” (BRASIL, 2008, p. 67). As atividades propostas analisam
o seu aspecto formal. As autoras comentam:
O simples fato de ver o texto na página já criou uma expectativa em
você, não é? Essas linhas interrompidas, separadas duas a duas,
confirmaram a informação de que iríamos ler um poema, embora às
vezes o poema não se apresente dessa forma. Este aqui é um
poema feito em dísticos, que são estrofes de apenas dois versos.
Vamos à interpretação? (BRASIL, 2008, p. 70).
Atividade 6
A) A primeira pergunta você já sabe qual é: gostou do poema? Achou
triste demais? Achou a mulher Amélia demais? Tente decifrar seus
sentimentos com relação ao poema e aponte-os abaixo.
Atividade 7
Essa forma dialogada deve lembrar a você outro gênero literário.
Qual?
Atividade 8
A – Há muitas misturas de formas de tratamento (sobretudo os
pronomes que usamos para tratar, chamar o interlocutor: tu, você, o
62
Para Compagnon (2010), esse tipo de exegese remonta ao século XIX, constituindo o lugar por
excelência do conflito entre os antigos (a história literária) e os modernos (a nova crítica) nos anos
1960. Tal visão sempre foi o cerne das noções literárias tradicionais. Por isso, Compagnon remete ao
ensaio de Roland Barthes, “A morte do autor”, que inaugura outro ponto de partida, uma nova crítica
para a explicação do texto/obra, ao problematizar e desestabilizar esse lugar canônico do autor,
dando início a uma nova forma de explicar a obra literária, a partir do leitor, de modo a retirar o foco
do autor como princípio produtor e explicativo da literatura/do texto literário.
104
senhor, vós, etc.). Aponte as que lhe pareceram mais importantes e
tente justificá-las.
B – Pelo que se pode deduzir da fala da mãe, a família era abastada.
Onde possivelmente moravam?
C – Eram pessoas cultas? Justifique sua resposta com elementos do
texto.
D – O vocabulário também parece ser de vários níveis. Indique
palavras que mostram isso.
São destacadas nos comentários as características do poema, a hibridização
dos gêneros, com a presença de diálogos, uma marca do gênero dramático.
Na atividade acima, as perguntas parecem ter um intuito de assegurar, ou
medir, a capacidade do professor cursista de fazer interpretações precisas sobre o
sentido que guarda o texto. Embora a questão comece perguntando ao leitor sobre a
sua recepção pessoal do texto, com perguntas subjetivas que aludem ao gosto e ao
sentimento dele frente à leitura da obra, os questionamentos subsequentes parecem
induzir o leitor a um tipo de sentido que se deseja que ele alcance, podendo ser
comprovada nas seguintes perguntas: “Achou triste demais”? “Achou a mulher
Amélia demais”? Nota-se com isso, que tais perguntas pressupõem certo
direcionamento à discussão sobre o texto.
Das atividades propostas para os textos literários, constata-se a persistência
de se trabalhar com roteiros padronizados, um esquema repetitivo que faz pouco
sentido para os alunos. Com frequência, os livros didáticos apresentam atividades
de compreensão e interpretação de textos. Segundo Magda Soares (2011, p. 43), os
exercícios que se costumam propor uma atividade, logo após uma leitura, não
conduzem à análise da dimensão estética do texto: “a percepção de sua
literariedade, dos recursos da expressão, do uso estético da linguagem”. Ao
contrário, “centram-se nos conteúdos, e não na recriação que deles faz a literatura;
voltam-se para as informações que os textos veiculam, não para o modo literário
como as veiculam”. No processo de escolarização da literatura, é necessário que se
fundamente em respostas adequadas às perguntas: “Por que e para que estudar um
texto literário? Os objetivos de leitura e estudo de um texto literário são específicos a
este tipo de texto?” (SOARES, 2011, p. 44).
Para
a
autora,
tais
atividades
são
adequadas
quando
privilegiam
conhecimentos, habilidades e atitudes necessários à formação do leitor. Portanto,
105
devem ser perguntas que levem os alunos a fazerem inferência, analisarem o
gênero do texto, explorarem os recursos de expressão e recriação da realidade,
figuras do autor e do narrador, personagem, pontos de vista, que aludem à
interpretação de analogias, comparações, metáforas, o que torna rica a análise das
figuras de linguagem. E ainda, perguntas que estimulam a identificação de recursos
estilísticos e poéticos. Em síntese, para Magda Soares (2011), uma escolarização
adequada requer uma prática de ensino específica em que se relacionam a
literatura, enquanto atividade comunicativa e estética, a didática, como prática
interacional. Segundo a autora, a escolarização adequada da literatura deve ser
aquela que conduz eficazmente às práticas de leituras literárias que ocorrem no
contexto social e às atitudes e valores próprios do ideal do leitor que se quer formar.
Uma leitura que subverte, desafia, que não pode ser domesticada.
Na década de 1990, Luiz Antônio Marcuschi (1996) também realiza uma
pesquisa em manuais de ensino da 1ª. a 7ª. série em uso, à época, nas diversas
escolas, particulares e públicas, no estado de Pernambuco. Na pesquisa, em um
total de 1.463 perguntas desses manuais, tem-se que cerca de 60% trazem
perguntas que requerem apenas cópia ou citação de alguma parte do texto. Outras
perguntas eram perguntas de caráter pessoal, sem relação com o texto, e apenas
5% delas exigiam que se relacionassem duas ou mais informações textuais para
responder, sem falar que poucas perguntas se preocupavam com alguma reflexão
crítica.63 Em sua análise Marcuschi (1996) constata que mais da metade dos
exercícios de compreensão pode ser dividida em quatro categorias: perguntas
respondíveis sem a leitura do texto, não-respondíveis, mesmo lendo o texto,
perguntas para as quais qualquer resposta serve e perguntas que só exigem
exercício de caligrafia.
Para o autor, algumas perguntas poderiam ser um bom início para debates
sobre o discurso do texto. Porém, isso fica mascarado na expressão “você acha” e
na solicitação de uma justificativa para o possível sim ou não que o aluno dará,
ressalta o linguista. Logo, “mais uma vez, malbarata-se a possibilidade de
aprofundar uma boa ideia, a escola parece ter um verdadeiro horror das questões
63
Sobre isso, o autor assevera: “Em geral os exercícios são elaborados com perguntas padronizadas
e repetitivas, de exercício para exercício, feitas na mesma sequência do texto. Quase sempre se
restringem às conhecidas indagações objetivas: O quê? Quem? Quando? Onde? Qual? Como? Para
quê? ou então contém ordens do tipo: copie, ligue, retire, complete, cite, transcreva, escreva,
identifique, reescreva, assinale... partes do texto. Às vezes, são questões meramente formais.
Raramente apresentam algum desafio ou estimulam a reflexão crítica sobre o texto” (1996, p. 64).
106
ideológicas, julga-as intocáveis ou as ignora” (MARCUSCHI, 1996, p. 69). O grande
problema, na opinião do autor, é que esses tipos de exercícios não tratam da noção
de inferência, isto é, aquela atividade cognitiva realizada quando reunimos algumas
informações conhecidas para chegarmos a outras informações novas. Desse modo,
pode-se admitir que a compreensão textual se dá, em boa medida, como um
processo inferencial, isto é, uma atividade de construção de sentido, na qual
compreender é mais do que extrair informações do texto. Nos Cadernos de Teoria e
Prática do Gestar II, constata-se que em alguns exercícios de leitura de textos
literários predominam perguntas que pouco exploram a inferência, como um modo
de se reconstruir pistas textuais até atingir um nível maior de criticidade no ato de
ler.
No que tange às questões das atividades de compreensão e interpretação
desses Cadernos, chama atenção a seção “Correção das atividades” a qual traz
todas as respostas para o professor cursista, incluindo-se aí as de cunho pessoal.
Essa seção apresenta possíveis respostas ao professor cursista; assim, o que o ele
deve achar já está pré-estabelecido. Como exemplares dessa situação, têm-se a
seguintes perguntas e respostas: a) Atividade 4: Pergunta –“Faz parte da visão que
muitos têm da mulher atribuir a ela um comportamento abnegado e conciliador. Você
acha que essa ideia é adequada? ” Resposta: “Opinião pessoal, a partir de suas
experiências. Mas parece continuar existindo, em muitos ambientes, apesar de ser
ideológica” (p. 54); b) Atividade 6: Pergunta “Você gostou ou não da história?
Justifique sua opinião” (p. 29). Resposta pessoal. “De todo modo, procure entender
por que gostou ou não gostou: sua opinião foi formada pelo assunto, pela estrutura
repetitiva? ” (BRASIL, 2010, p. 54).
Dessa forma, as sugestões de respostas para questões pessoais, que
consequentemente exigiriam também respostas pessoais e singulares, tendem a
direcionar as reflexões dos docentes e apontam para uma homogeneização de
valores e crenças. Nesse sentido, destacam-se algumas considerações de
Marcuschi (2001) sobre a importância de o professor saber o que deverá fazer com
as orientações recebidas em documentos oficiais e materiais didáticos.
Tudo dependerá, no entanto, de como serão tais orientações
tratadas pelos usuários em suas salas de aula; seria nefasto se as
indicações ali feitas fossem tomadas como normas ou pílulas de uso
e efeito indiscutíveis. Pior ainda, se com isso se pretendesse
identificar conteúdos unificados para todo o território nacional,
107
ignorando a heterogeneidade linguística e a variação social.
(MARCUSCHI, 2001, p. 10).
As questões colocadas acima precisam ser discutidas com mais atenção, a
primeira com relação ao gabarito de respostas, e a segunda, com relação às
sugestões de respostas para perguntas pessoais. A questão está na ação do
professor e não na proposta do material. É preciso considerar que toda e qualquer
proposta pedagógica, seja ela criada coletivamente ou não, dependerá da recepção
do professor, aquele a quem cabe efetivá-la ou transgredi-la. Pois, ainda que o
programa proponha controlar, induzir, ou apenas sugestionar conteúdos e formas de
aplicá-los em sala de aula, deve-se considerar a particularidade de cada professor e
região.
Embora não haja fórmulas que garantam o êxito da leitura, é importante que
se evitem atividades cujo objetivo se limite a localizar informações no texto ou
exercícios de gramática.
Não se dispõe de fórmulas para garantir que a leitura seja
compreensível e prazerosa. Sabe-se, entretanto, que há várias
maneiras de dificultar a compreensão e o prazer na leitura: se
orientarmos a criança para a concentração em detalhes visuais, se
fornecemos fragmentos de textos incompreensíveis ou amontoados
de frases sem real significado de comunicação, se exigimos que ela
responda a questões após a leitura, se lhe pedimos para oralizar
palavras em detrimento do sentido. Ou seja, o ponto comum de todas
essas atitudes de ensino que dificultam a aprendizagem de leitura é
a limitação da quantidade de informações não visuais a que a criança
pode recorrer enquanto lê (BARBOSA, 1994, p. 138).
Essa questão aponta para a necessidade do próprio professor constituir um lugar
autoral no modo de apropriação e utilização do material didático e pedagógico, em
sala de aula. Isso implica na produção de práticas, ainda que inspiradas no material,
que coloquem o professor como coautor nos processos decisórios de criação do
material e que considerem os alunos como autores do seu próprio processo de
aprendizagem. O que significa reconhecer, acima de tudo, a pluralidade de saberes
existentes nas salas de aulas, que muitas vezes levam os professores a seguirem
percursos diferentes para alcançarem objetivos comuns.
A escola tem sido uma instituição legal de reprodução de um ensino
tradicional de literatura, que acaba distanciando os alunos da leitura literária. Na
108
maioria das vezes, o texto literário, no contexto da sala de aula, não tem os seus
sentidos construídos na interação autor/leitor, uma vez que seus significados vêm
prontos, de acordo com a concepção de um crítico literário ou de uma postura
teórico-crítica, de um livro didático, nesse caso, os Cadernos de Teoria e Prática, ou
pela imposição da perspectiva do professor.
A esse respeito, Martins (2006, p. 85) afirma ser “preciso que a escola amplie
mais suas atividades, visando à leitura da literatura como atividade de construção e
reconstrução de sentidos”. Além disso, nenhum procedimento de interpretação ou
leitura de obras literárias deve desprezar sua singularidade enquanto saber.
Contudo, muitas vezes, na escola a leitura do texto literário não passa de uma
prática burocratizada, com atividades quase sempre sistematizadas, tornando o
trabalho com o texto literário enfadonho e uma obrigação que nada tem a ver com o
universo do jovem leitor.
Estranhamente, na escola, o estudante não entra em contato com a leitura de
literatura, mas com alguma forma de crítica ou de teoria literária. Segundo Todorov
(2012), isso representa uma inversão de papéis entre a escola e a universidade, pois
o ensino superior se destina à formação dos especialistas em literatura. Portanto, é
legítimo ensinar também as abordagens, os conceitos e as técnicas. Mas, à escola,
cabe a própria literatura, pois o público a que ela se destina não será de
especialistas, mas de leitores que fazem do ato de ler um modo de dar sentido à
vida. Para Todorov (2012, p. 76), a literatura pode nos ajudar a viver:
Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente
deprimidos, nos tornar ainda mais próximos de outros seres
humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e
nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de
cuidados para com a alma; porém, a revelação do mundo.
Assim, a escola precisa realizar uma forma de escolarização da literatura,
abrindo
mão
do
artificialismo
e
simplificações
reducionistas
exacerbadas,
decorrentes do processo de pedagogização nas atividades e exercícios escolares,
principalmente nos anos finais do ensino fundamental, com atividades que
vislumbrem o contato direto com as obras literárias. Lamentavelmente, o modo pelo
qual a literatura vem sendo trabalhada na escola, minimiza e às vezes até anula, a
potência do saber literário, no sentido pensado por Roland Barthes (2007). Essa
109
potência se expressa através de três forças, mathesis, mimesis e semiosis. A
primeira corresponde à força dos saberes; a segunda, à da representação e a
terceira, ao jogo com os signos, ao deslocá-lo incessantemente. Isso por que, para
Barthes, é na literatura que se pode questionar o poder tirânico da língua.
No tocante à mathesis, a literatura é enciclopédica, pois mobiliza muitos
saberes,
matemáticos,
históricos,
geográficos,
sociais,
antropológicos
ou
lingüísticos. Contudo, “faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles, ela
lhes dá um lugar indireto” (BARTHES, 2007, p. 18). E esse saber nunca é inteiro
nem derradeiro: “a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe algo das
coisas” (BARTHES, 2007, p. 18). A segunda força da literatura, a mimesis, é a da
representação do real demonstrável ou impossível, pois a literatura “sempre tem o
real por objeto do desejo”, revelando assim sua função utópica (BARTHES, 2007, p.
22-23). Portanto, a literatura é absolutamente realista: ela é a realidade, isto é, o
próprio fulgor do real.
Em relação à semiosis, tal força “consiste em jogar com os signos em vez de
destruí-los, ou seja, instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira
heteronímia das coisas” (BARTHES, 2007, p. 27-28); demonstra a capacidade da
literatura de escapar dos discursos do poder, de trapacear a língua através da
própria língua. Por isso, para Barthes (2007), se por alguma razão inexplicável todas
as disciplinas fossem extintas do ensino, com exceção de uma só, esta deveria ser a
literatura.
Considerando o pensamento de Roland Barthes, constata-se que o trabalho
com a literatura nos Cadernos de Teoria e Prática não prioriza a potência do saber
literário. Ao trazer os textos literários, já fragmentados, para submetê-los a um
trabalho direcionado, controlado, muitas vezes com esquema de pergunta/resposta,
uma atividade mecânica, repetitiva, perde-se de vista o lúdico, o jogo com as
palavras, que dê espaço à criatividade. Portanto, faz-se necessário repensar os
currículos de Língua Portuguesa, para que promovam a imersão do aluno no
universo da literatura, incentivando-o a ter contato com formas, textos e estéticas
diferenciadas, articulados com a vida, com a história e o contexto sociocultural.
Ademais, deve-se pensar o ensino de literatura do modo proposto por
Todorov (2012), como uma prática liberta das críticas formalistas, levando em
consideração o fato de que o texto literário tem muito a dizer sobre os homens,
principalmente porque se permite incursionar para além do censurável, revelando,
110
assim, o indivíduo, o particular. Ensinar literatura não significa apenas “ler poemas,
romances, letras de músicas na sala de aula, pois tais atividades por si só não
conduzem à reflexão sobre a condição humana, sobre o indivíduo, sobre a
sociedade, mas sobre as noções críticas tradicionais ou modernas” (TODOROV,
2012, p. 93).
A literatura é uma via para se entender os homens: “Que melhor introdução à
compreensão das paixões e dos comportamentos humanos do que uma imersão na
obra dos grandes escritores que se dedicam a essa tarefa há milênios? ”
(TODOROV, 2012, p. 93). Por isso, ele propõe um ensino que tenha como eixo
norteador a leitura dos textos literários, tendo em vista a multiplicidade de sentidos
que a literatura oferece e a diversidade de leitores.
Nesse sentido, o autor chama à atenção para o cuidado de se trabalhar
literatura na escola, a qual não deve possuir os mesmos objetivos de ensino da
esfera acadêmica, não se pode trabalhar a literatura como uma aplicação da língua
e do discurso. Nesse ensino, o objeto deveria ser a condição humana, e essa
mudança, ressalta o autor, implicaria em consequências imediatas no âmbito
profissional. Assim, deve-se compreender a literatura muito além de uma ferramenta
de transformação, problematização e elaboração de conceitos, mas para buscar
sentidos para a vida:
[...] a literatura para o leitor não profissional não é uma muleta para
melhor dominar um método de ensino, nem tampouco para retirar
informações sobre as sociedades a partir das quais foram criadas,
mas para nelas encontrar um sentido que lhe permita compreender
melhor o homem e o mundo, para nelas descobrir uma beleza que
enriqueça sua existência; ao fazê-lo, ele compreende melhor a si
mesmo. O conhecimento da literatura não é um fim em si, mas uma
das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um
(TODOROV, 2012, p. 32-33).
Para Todorov (2012, p. 28-29), “o professor de literatura não pode se resumir
a ensinar, como lhe pedem as instruções oficiais, os gêneros e os registros, as
modalidades de significação e os efeitos da argumentação, a metáfora e a
metonímia, a focalização interna e externa etc. Ele estuda também as obras”.
Passadas duas décadas das pesquisas realizadas por Marcuschi e Magda
Soares, faz-se necessário frisar que muitas mudanças ocorreram no ensino,
111
decorrentes das exigências do Programa Nacional do Livro Didático, criado em 2004
para subsidiar o trabalho pedagógico dos professores e acompanhar o trabalho das
editoras na elaboração de livros didáticos. Ademais, têm-se as orientações dos
PCNs, que na época das referidas pesquisas, tinham sido publicados. Além do mais,
os documentos oficiais não são suficientes para uma mudança substancial das
práticas. Há que repensar a formação inicial.
Em vista disso, professor cursista, na condição de leitor, poderia ser
convidado a elaborar questões nas oficinas coletivas do Curso. Considerando que
se trata de uma formação continuada, os professores podem contribuir para que os
alunos desenvolvam uma compreensão ampliada dos textos, evitando, com isso,
que o seu papel de estudante e leitor seja subestimado, sufocado pela leitura
imposta pelos roteiros de interpretação.
3. 2 Além das páginas do Gestar...
Os recorrentes questionamentos sobre o ensino de literatura expõem uma
concepção do literário que resiste às transformações sociais, as quais trouxeram
mudanças nas práticas culturais. A obrigatoriedade de ter a literatura na escola,
como posto pelos PCN‟s, não resultou efetivamente em novas práticas de ensino.
Assim, no dizer de Maria de Lourdes Dionísio, sabe-se que a literatura “anda por lá”,
mesmo sem que se saiba como fazer com que ela permaneça na escola como um
saber que guarda o fulgor do real.
Ao falar da função social da literatura, principalmente nas periferias urbanas,
Heloísa Buarque de Holanda (2012) a entende como um recurso educativo,
econômico e de inclusão cultural e social, não apenas um meio de comunicação e
expressão. Suas reflexões contribuem para se pensar o lugar da literatura na escola
e o quanto se poderia aprender com o que está sendo produzido à margem de
práticas escolares já há muito tempo instituídas, mas carentes de inovação.
Exemplar de uma função social renovada tem sido a sua presença em saraus
literários, promovidos por escritores e poetas nas periferias dos grandes centros
urbanos.
112
No campo da criação literária e, principalmente, no da formação de
leitores, os saraus são, sem dúvida, fenômeno inédito e à parte. Os
saraus já representam uma rede significativa de escritores/leitores na
periferia paulista e, no caso do Rio de Janeiro, um movimento
incipiente, mas já claramente promissor. A literatura chega às favelas
e afins via hip hop, o que já define seu perfil diferenciado. Muito
próxima (talvez descendente) do rap, ou poesia falada, a literatura
marginal, divergente ou periférica (autodenominações mais
recorrentes entre seus autores) não distingue entre arte e ativismo,
entre criação de texto e criação de leitores (HOLANDA, 2012, p. 4).
Todavia, é preciso considerar que a escola continua resistente ao acolhimento
de movimentos advindos da periferia, a despeito do contexto social de seus alunos.
Continua avessa a certas transformações, ao manter práticas ultrapassadas e
muitas vezes elitistas de ensino e relegar à literatura um lugar menor no currículo
escolar, talvez por considerá-la como a não ciência. Nesse sentido, a escola, lugar
por excelência do ensino da leitura, parece não cumprir com seu papel social frente
às novas demandas sociais, que exigem acima de tudo, uma adoção de novas
posturas frente ao livro e à leitura, o texto e o leitor, que evoca, consequentemente,
a literatura.
Considerando esse novo cenário, Heloísa Buarque de Holanda (2012) propõe
pensar o livro e a leitura no novo quadro de culturalização, ou seja, do direito ao
conhecimento e ao livre acesso à cultura. Para a autora, apesar da permanência de
certa auratização do livro e do seu antigo sabor de fetiche, é importante entender
que outras experiências e interpretação do valor-livro estão emergindo. Ou seja, a
experiência da leitura e o livro ganharam novas e múltiplas configurações. Assim, o
livro, a escrita e a leitura sinalizam um caminho de mudanças estruturais. Desse
modo, a autora propõe uma reflexão a respeito da influência da internet e das mídias
digitais neste processo de expansão da palavra escrita e da oralidade:
Portanto, ao contrário do que possa parecer, a internet e as mídias
digitais, por si só, não são responsáveis pelo turbilhão de mudanças
que se anunciam nas áreas do livro e da leitura. Tudo indica que, na
realidade, essa transformação responde a uma longa e lenta
demanda de interpelações de fronteiras e procedimentos. Tenho que
me policiar porque não cabe aqui ceder à iminente tentação de
discorrer sobre as novas características dos usos da palavra na
literatura dessa geração familiarizada com a vida www e sobre o
atual processo de explosão da palavra, em todas as suas formas,
dicções, gramáticas, sintaxes bem como sua interação com
linguagens e interlocutores. Temos ainda a emergência de uma nova
113
oralidade, com características próprias que começam a ser tema dos
estudos da palavra falada (HOLANDA, 2012, p. 3).
Convém, portanto, entender esses múltiplos caminhos a partir do conceito de
transmídia, diferente de multimídia, ressalta a autora. No conceito de multimídia, a
criação de uma obra ou produto, por exemplo, utiliza várias mídias. Já no conceito
de transmídia, a criação de uma obra lança mão simultaneamente de vários
suportes e metodologias de criação, a exemplo “do design, do vídeo, da animação,
da literatura para criar novos formatos de expressão que não se identificam
especificamente com nenhuma das mídias que constituem seu DNA” (HOLANDA,
2012,p. 3).
Os jovens poetas hospedados na web já começam a anunciar novas
práticas da palavra-movimento, palavra-som, palavra-imagem, da
palavra-game. Esta produção, tanto pelo comportamento criativo
como pela natureza da invenção, muitas vezes se afasta do que
entendemos por literatura, seus valores, seus paradigmas, seus
cânones ou das formas tradicionais do consumo hermenêutico do
texto literário. [...] A essas novas práticas, podemos chamar de (ou
pensar como) palavra expandida. Neste sentido, toda atenção aos
desdobramentos dessa forma de criação, particularmente atraente
para as tribos jovens, é pouca nesse momento. É importante, ao
pensar o livro e seus usos, dar um foco especial nas múltiplas
plataformas da palavra expandida, que geram novas formas de
percepção e novas leituras do mundo, assim como usuários com
comportamentos ainda pouco conhecidos e estudados (HOLANDA,
2012, p. 3).
Destaque nessa perspectiva de gêneros transmídia a plataforma Inanimate
Alice, que propõe um trabalho artístico no ambiente virtual. Concebida por Kate
Pullinger e Chris Joseph, é uma proposta pedagógica criativa para se trabalhar os
princípios da literatura eletrônica e as discussões filosóficas propostas por Lewis
Carroll em sua obra Alice no País das Maravilhas. 64 Considerada “literatura
eletrônica”, é uma produção artística criada em parceria com a máquina para ser
64
Inanimate Alice é uma premiada produção narrativa com 10 episódios que busca acompanhar o
crescimento e a formação de uma criança de nacionalidade não identificada, dos oito aos dez anos
de idade, especialmente elaborada para a internet e concebida em meio digital.Disponível em inglês,
possui uma linguagem fácil e o leitor dispõe do tempo que necessitar para mudar a tela, além de
poder contar com a ferramenta de tradução do Google.
114
vivenciada na máquina, conforme Emerlinda Maria Ferreira (2013, p. 141), que
considera essa narrativa o bildungsroman – romance de formação65 – da era digital.
A proposta visa a atender a necessidade de letramento digital do
público contemporâneo, ainda no ambiente escolar, buscando reduzir
os efeitos possivelmente deletérios do autodidatismo nesta área, que
estaria levando os usuários da internet a apreender de modo limitado
as complexidades do sistema pela prática cotidiana do uso de
computadores pessoais, celulares e todo o arsenal de aparelhos
portáteis hoje disponíveis. (FERREIRA, 2013, p. 141)
Para a autora, “os especialistas mencionam mesmo a demanda por um
“transletramento” (“transliteracy”), que definem como a capacidade de ler, escrever e
interagir em uma variedade de plataformas, ferramentas e meios, que incluem a
oralidade, a escrita, a imprensa, o rádio, a televisão, o cinema e as redes sociais
digitais, fornecendo uma perspectiva unificadora sobre o que significa ser
“alfabetizado” no século XXI.
Inara Ribeiro Gomes (2010) reitera tais proposições, que deslocam uma
concepção fechada do literário e aponta caminhos possíveis para atender às novas
demandas de leitura, através das contribuições da revolução digital com sua vasta
gama de possibilidades de uso da palavra escrita – “as mídias eletrônicas provocam
transformações profundas nos modos tradicionais de apropriação e de compreensão
das linguagens” (GOMES, 2010, p. 2). A autora defende que a circulação da
literatura na escola deve contemplar a dimensão social das práticas de leitura, para
evitar o seu esvaziamento pelas práticas pedagógicas e preservando-se o jogo
estético entre leitor e texto, e não o uso do texto como ilustração de conceitos
(GOMES, 2010, p. 1).
65
Segundo Emerlinda Maria Ferreira (2013) o Bildungsroman adquiriu um estatuto de forma
específica na tradição romanesca a partir do livro Os anos de formação de Wilhelm Meister, de
Goethe, publicado em 1795; que definiu, por assim dizer, as qualidades do gênero – ou, mais
especificamente, as suas convenções, através das quais manifestações literárias das mais diversas
procedências passaram a ser identificadas e reconhecidas sob esta alcunha: como romances “de
formação” ou romances educativos”. Tais romances chamam atenção pelo caráter otimista que vigora
na maioria deles, destinados a finais felizes, ou pelo menos sem danos irreparáveis para o herói,
como a morte ou a degradação. Também não há, em geral, um princípio de unidade para a narrativa,
que se organiza em função da viagem espiritual do protagonista, podendo abranger episódios
fragmentados no tempo e no espaço, sujeitos a um processo de interiorização pelo personagem, cuja
personalidade se desenvolverá dependendo do modo como possa apreender e absorver os conflitos
e dissonâncias resultantes de suas experiências no mundo.
115
Em relação ao lugar ocupado pela literatura nas práticas atuais de ensino,
que para a autora, já foi de prestígio, deve-se a alguns fatores: a) as mutações do
sistema de ensino; b) a trajetória histórica da escola; c) a formação dos professores
de língua. Alguns fatores externos, relacionados ao contexto social e cultural, como
“o avanço da “cultura científica” sobre os objetivos educacionais, que segundo a
autora, “levou a uma progressiva marginalização das humanidades” (GOMES, 2010,
p. 2). Assim, as disciplinas que têm como base uma visão formativa atrelada à
cultura clássica gradativamente vão perdendo espaço nos currículos formativos. O
enfraquecimento da literatura nesse espaço ocorre também pelo processo de
desvalorização social da instituição escolar:
Do lado de fora da escola, a literatura vive a história de uma
desvalorização social, deslocada na sua função mais básica –
proporcionar prazer ao suprir nossas demandas por ficção – pelas
novas formas culturais e artísticas propiciadas pela evolução técnica
dos meios de comunicação audiovisual e seu poder de intervir na
formação dos gostos e do imaginário coletivo. O enfraquecimento da
representação social da literatura atinge o espaço escolar e afeta o
seu ensino (GOMES, 2010, p. 2).
Com a criação da nova LDB 9394/96 e dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (1998), a literatura no ensino médio deixa de ser uma disciplina autônoma
para se diluir como conteúdo na disciplina de Língua Portuguesa e em leitura, o que,
em parte, explica o enfraquecimento de uma concepção elitizada de literatura. E no
ensino fundamental, embora ela nunca tenha se constituído como disciplina
autônoma, foi também alocada na área de linguagens. Nesta nova concepção de
ensino, a literatura está agregada a uma perspectiva maior, a linguagem.
Segundo Eliana Yunes (2008), os PCNs trazem uma atualização de
concepção teórica sobre a grande área da Literatura, principalmente por não
aparecer completamente explicitada no texto e corresponder ao subtítulo
“linguagens”, que também inclui as artes plásticas, o cinema e outras manifestações
artísticas e culturais.
A grande área em que cabe a literatura – é bem verdade que não
aparece explicitada no texto – corresponde ao subtítulo das
linguagens, no conjunto em que língua, artes plásticas, teatro e
música estão relacionados. Não tem qualquer sentido a ausência da
nomeação explícita... ou teria? Talvez descaracterizá-la como o
116
paradigma das linguagens artísticas na tradição, trazendo o foco da
atenção para o largo horizonte que se abriu com os estudos culturais
em alta. Esta expressão, no entanto, também não merece qualquer
destaque (YUNES, 2008, p. 63-64).
Segundo a autora, “isto mais pareceria firula, se não houvesse o fato concreto
de que permaneçam as listas de livros a serem lidos para os vestibulares na maior
parte das universidades do país” (YUNES, 2008, p. 64). Em sua visão, inserir a
literatura como linguagem pode ser uma renovação.
Olhar a literatura na sua condição de linguagem, em interface com
outras expressões culturais, pode, no mínimo, reservar-lhe o sabor
de oferecer verbo para o leitor referir e tratar a cultura, em múltiplas
linguagens, seja o cinema, as artes plásticas ou a música, por
exemplo. A discursividade literária é hoje inegavelmente uma ponte
de feliz ocorrência entre a teoria, a ciência e a arte, entre a teoria e
outros saberes, tal como Calvino, Borges e Barthes a exerceram
(YUNES, 2008, p. 65).
Para Yunes (2008), a problemática que se coloca nesse deslocamento
compreensivo é a demarcação do espaço para a cultura em nossas escolas, por
meio de diferentes linguagens, inclusive a literária. Para ela, o contato significativo
com a leitura literária foi se perdendo, visto que seu lugar se fragilizou com o
advento da mídia de imagem e de som, tornando a figura do leitor intimista, senão
melancólica, uma das raras imagens de se ver na contemporaneidade. Com isso,
constitui-se, de algum modo, uma impossibilidade de apropriação da literatura como
experiência cultural, prejudicando os estudos culturais e aumentando a defasagem
entre o pensamento e a escola.
A perda de um contato significativo com a literatura sem que se
possa apropriá-la efetivamente como uma experiência cultural,
complica não apenas a realocação dos estudos literários, mas todo o
segmento rotulado como linguagens, nos PCNs. A chamada crise da
literatura pode atingir no ensino, os recém-nascidos estudos
culturais, aumentando a defasagem entre a escola e o pensamento,
justamente quando o alargamento do espectro pretendia sanar este
mal (YUNES, 2008, p. 66).
Tendo em vista esse cenário de mudanças culturais, as reflexões de Viviane
Mosé sobre a aprendizagem contribuem para que se modifique a visão de que o
117
ensino de literatura se apóie no repasse de conteúdos: “Ensinar não pode ser
transmitir conhecimentos, mas, antes de tudo, provocar interesses e dúvidas, fazer
com que brotem questões e desenvolver métodos de pesquisa, de filtragem e
seleção de dados, de ordenação de conteúdos, de construção da argumentação”
(MOSÉ, 2013, p. 13).
Assim, cabe também ao professor, dentre tantos outros sujeitos envolvidos no
processo educacional, enfrentar esse novo cenário recusando-se a participar de um
sistema alienador, imposto pelas prescrições oficiais e manuais didáticos que visam
ao tutelamento e ao doutrinamento, o que se pode ver na repetição de práticas,
ideias, conceitos e teorias extremamente cristalizados. Ao contrário, o professor
deve promover, com sua autonomia, situações de aprendizagem que valorizem o
pensamento crítico e a pluralidade de ideias dos alunos, estimulando-os a elaborar,
inventar, construir conceitos e relacioná-los, afastando-os da sedução dos juízos de
valores maniqueístas sobre o mundo, o outro, a vida e si mesmo.
118
EM VIAS DE CONCLUIR A FORMAÇÃO
Tenho um grande respeito, e principalmente um grande carinho, pelo ofício
de professor e por isso mesmo me reconforta saber que eles também são
vítimas de um sistema de ensino que os induz a dizer bestialidades. [...]
Lembro-me de um professor de literatura do colégio, um homem modesto e
prudente, que nos conduzia pelo labirinto dos bons livros sem
interpretações rebuscadas. Esse método possibilitava a seus alunos uma
participação mais pessoal e livre no milagre da poesia. Em síntese, um
curso de literatura não deveria ser mais que um bom guia de leituras.
Qualquer outra pretensão não serve para nada mais além de assustar as
crianças. Penso eu, cá entre nós.
Gabriel Garcia Marquez
Neste momento em que nossas reflexões se encaminham para algumas
considerações finais sobre este estudo, pensar a literatura na escola requer, acima
de tudo, entendê-la em um sistema regulativo de ensino. Portanto, para analisar a
sua presença no Programa Gestar II tornou-se fundamental fazer uma abordagem
que extrapolasse o material didático. Foi necessário movimentar um conjunto de
problemas que situam o lugar da literatura a partir da política educacional de
formação docente, que assumiu no Brasil, feição compensatória, criada com o intuito
de sanar os problemas da formação inicial.
Ademais, na condução deste estudo, foi preciso considerar as forças e
crenças que habitualmente rondam o ensino de literatura, quase sempre marcado
por um trabalho com textos literários selecionados especificamente para uso no
ambiente escolar, com o propósito instrucional. As atividades geralmente são
voltadas para a aquisição de informação: o “ler para fazer”, negligenciando, assim, a
singularidade da literatura.
Nesta apreciação, foi possível identificar, também, que os livros e manuais
didáticos de literatura geralmente reproduzem um ensino pautado em uma tradição
dos estudos literários, que quase sempre priorizam uma abordagem do texto em sua
imanência. O material didático do Gestar II revela o tutelamento e o doutrinamento
através de determinados conceitos que chegam prontos e com atividades das quais
já se sabem as respostas. Observa-se, assim, que tais modelos são elaborados com
fins de controle da qualidade educacional, regulados por movimentos de
homogeneização e padronização.
119
Nesse contexto, cabe uma reflexão sobre o nome do Programa: Gestão da
Aprendizagem Escolar, conhecido por sua sigla GESTAR. A palavra gestão vem do
termo latino “gestio”, que expressa a ação de dirigir, de administrar e de gerir a vida,
os destinos, as capacidades das pessoas e as próprias coisas que lhes pertencem
ou que delas fazem uso. No dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (2008) o
verbete “gestão” significa: 1. Gerência; administração.
A análise da sigla do Programa “gestar” permite inferir significados
semelhantes, pois, obviamente, são léxicos oriundos de uma mesma etimologia
latina. O termo latino “gerere” significa governar, conduzir, dirigir. De acordo com
Houaiss & Villar (2001, p. 1.499), o verbete “gestar” significa “formar e sustentar um
filho no próprio ventre”. Ao analisar as definições da palavra ” gestão e gestar”,
constata-se que ambas trazem a ideia de “gerir”, que significa “exercer gerência
sobre; administrar, dirigir, gerenciar” (HOUAISS & VILAR, 2001: p, 1.447). Ambas as
palavras, “gestar e gerir”, são plenamente cabíveis para compreender em qual
dessas definições a concepção do programa Gestar II se apoia.
Em uma perspectiva antropológica, Antônio Carlos Lima (2002) analisa os
sentidos desses termos, no contexto da administração pública do Brasil, o que torna
pertinente considerá-los, tendo em vista que o Programa Gestar II é uma política
pública de educação. Sobre a palavra “gestar”, o autor destaca sua função
constituitiva e pedagógica de “maternagem”, de ensinar a ser, perceptível na tutela
como exercício de poder, na qual a imagem da babá ou governanta se contrapõe à
sua bondade opressiva e emblemática (LIMA, 2002, p. 16). Quanto ao termo “gerir”,
sinaliza para uma compreensão de controle cotidiano de uma administração,
perpassada por interesses pessoais e redes de clientelas, na qual os interesses de
grupos são muito mais fortes que os chamados corporativos, por vezes mais
figuração que prática efetiva, ainda assim representa este “tutor” de coletivos,
controlador de espaços, mantenedor dos desiguais em seus nichos (LIMA, 2002, p.
16).
Nesse sentido, apesar da ambivalência dos termos “gestar” e “gerir”, é
importante ressaltar que a concepção do Programa Gestar II se aproxima mais da
noção de gerir algo, no sentido de tutela. Isso pode ser constatado na forma como
os Cadernos de Teoria e Prática foram elaborados, com sugestões de atividades
que visam ao controle diário da sala de aula e ao direcionamento dos discursos
docentes e desempenho dos discentes no sistema escolar. Não se pode negar uma
120
pretensão de que gestar sugira a ideia de gestação, de algo novo, no sentido de
criação. Contudo, o termo gerir se acomoda melhor, pois traz a ideia de gerir algo, o
que já existe.
Nesse caso, pode-se inferir que o Programa se apresenta como uma forma
de controle governamental sobre as ações dos professores de Língua Portuguesa.
Assim, o Gestar II, na condição de programa de formação docente, visa à correção
das falhas do processo de formação inicial, tendo em vista as pressões
internacionais frente aos resultados negativos dos estudantes brasileiros, forçando o
governo a investir em políticas de formação continuada, pelo entendimento de que a
má formação docente é uma das causas do fracasso escolar dos alunos.
Certamente por força de um programa que aposta em resultados mais
imediatos, a literatura tenha sido pouco explorada de modo mais livre nos Cadernos
de Teoria e Prática do Gestar II, como uma escrita singular, avessa inclusive à
institucionalização. Aí sua singularidade se dilui nos estudos da língua e os gêneros
literários ganham ênfase apenas como prática discursiva, ainda que haja tópicos dos
conteúdos que se propõem a tratar da especificidade da literatura. Esse lugar que
lhe é reservado termina por reforçar uma antiga polaridade: língua e literatura. A
partir dessa constatação, conclui-se que o lugar da literatura nos Cadernos de
Teoria e Prática do Gestar II está marginalizado, uma vez que o contato com as
obras é empobrecido pelos recorrentes fragmentos de textos literários.
Quando a literatura é explorada nas atividades, está quase sempre
subordinada ao ensino da língua, uma vez que “falar bem” e “escrever bem” são
competências socialmente valorizadas e
exigidas
nas relações sociais
e
profissionais. Contudo, não se tem a garantia de que se lê bem. Lê-se apenas.
Assim, o Programa Gestar II reflete uma visão pragmática de ensino, ao tempo em
que expressa uma dificuldade de entender os deslocamentos dos conceitos de
literatura consagrados pela tradição erudita.
121
REFERÊNCIAS
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Comunicação, 24, 2001. Campo Grande: Anais eletrônicos. Disponível em:
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2015.
127
ANEXO 1
Apresentação
Caro Educador,
Este é o Guia Geral do Programa Gestão da Aprendizagem Escolar –
GESTAR II – do qual você participará, nos próximos meses, buscando
aprimorar as suas práticas pedagógica e profissional.
O nosso trabalho no Programa Gestar tem se orientado para a criação de
uma nova escola, que contemple a complexidade do mundo contemporâneo
articulando-o com educação de nossos alunos. Uma escola mais
democrática e amorosa, que vise à autonomia e à auto realização de cada
aluno e que, ao mesmo tempo, tenha como horizonte a justiça social, a
felicidade e a emancipação da humanidade.
Por tudo isso, o que é importante para nós é não perdermos de vista a sua
formação permanente e as possibilidades de proporcionarmos espaços para
o aperfeiçoamento do seu desempenho pessoal e acadêmico. Por meio de
sua formação, promoveremos condições para que os alunos se
desenvolvam de forma harmoniosa, tornando-se autônomos e cooperativos,
críticos e criativos. Este é o propósito do programa Gestar II, que
começamos a apresentar a você agora.
O objetivo deste Guia Geral é construir uma proposta de trabalho
participativa e interativa que o oriente na:
 Compreensão do Programa Gestar II, para as séries finais do Ensino
Fundamental (5ª a 8ª série, ou 6º ao 9º ano);
 Construção coletiva da Proposta Pedagógica do Gestar II;
 Implementação do Gestar II;
 Definição dos papéis dos atores do Gestar II.
(BRASIL, 2010. Não paginado).
128
ANEXO 2
Avançando na Prática
Propomos-lhe a seguinte experiência:
1- Faça um levantamento com sua turma: quais são os assuntos que mais
mobilizam cada um?
2- Discuta com eles sobre esses assuntos: por que o interesse, quantos
alunos estão ligados a ele, etc.
3- Proponha que cada grupo de interessados faça uma pesquisa sobre um
dos assuntos, para posterior apresentação e discussão com a turma.
4- Discuta com eles as fontes e materiais mais adequados para se obter
informação sobre cada assunto: outros professores, livros informativos,
jornais e revistas, profissionais ou estudiosos ligados ao assunto, Internet,
livros de literatura, outras obras de arte.
5- Todos os dias, estipular um tempo para uma reunião em grupo e
apresentação de resultados e definição de novos avanços. (Você estará
acompanhando as decisões de cada grupo, naturalmente.)
6- Defina com cada grupo data e forma de apresentação dos resultados. Dê
liberdade a cada um deles para planejar sua apresentação de forma
criativa.
7- Após a apresentação de cada grupo, ouça a opinião da turma: ajude-a a
avaliar de forma adequada, com objetividade e respeito a cada trabalho.
8- Peça à turma que avalie a experiência, sintetizando os ganhos em termos
de leitura (que material foi mais útil a seus objetivos) e conhecimentos
(como seus horizontes foram alargados). Avalie você mesmo a experiência,
ressaltando os avanços do grupo em todos os campos.
Precisamos atentar para algumas questões importantes e muitas vezes
pouco enfatizadas, no tocante a nossos objetivos de leitura. A primeira
delas é que, sublinhando a importância da clareza dos objetivos, deixamos
de lembrar o fato de que nem sempre a leitura ocorre em situações tão bem
delimitadas, em que o leitor deseja ler e até procura o material adequado
para realizar seus objetivos bem definidos de leitura. Às vezes, o texto
“aparece” diante de nós, independentemente de o estarmos procurando. É o
caso dos cartazes, anúncios em jornais, revistas e outdoors, filipetas
entregues na avenida.
Filipeta é um tipo de publicidade de massa: trata-se de um “anúncio”, em
geral em papel jornal e impresso sem grandes cuidados, em que se oferece
algum tipo de serviço (venda e compra de ouro, cartomante, equipamentos
vários, loteamento, ou se divulga um espetáculo, por exemplo)
Em geral, não temos intenção de ler tais textos, a menos que sejamos
publicitários, trabalhemos com o produto anunciado ou com o concorrente.
A publicidade sabe muito bem disso, por isso esmera seus mecanismos de
sedução.
O fato é que, quando caem em nossas mãos, esses textos estabelecem
imediatamente determinada situação comunicativa, na qual a leitura
ocorrerá com características específicas.
129
Outro ponto importante: costumamos ligar a leitura para obter informações
gerais, sem necessidade de precisão, a determinados suportes, como
jornais e revistas: “navegamos” nosso olhar pela página, registrando
conteúdos das manchetes, um ou outro subtítulo, e com isso estamos em
condições de acompanhar as notícias do dia, sentindo-nos atualizados. Se
alguma for especialmente importante para nós, paramos e a lemos inteira,
ou parte dela.
Atitude semelhante a essa podemos ter numa biblioteca, ou numa livraria:
entramos nesses espaços para “ver as novidades”, observar títulos.
Percorremos estantes, observamos lombadas e capas, e, diante de um
título de interesse, paramos, folheamos o livro, lemos a orelha, o sumário e
figuras. Conforme o caso, podemos checar a bibliografia, para ver a
atualização do tratamento do assunto. Se realmente parecer importante,
tomamos emprestado, ou compramos o volume.
Outra questão a sublinhar é a da leitura por prazer, ou distração, ou
entretenimento. Em geral, achamos que lemos por prazer o texto de
literatura, por sua falta de objetivos práticos, sua “inutilidade”, no dizer do
poeta Manoel de Barros. É a leitura de lazer, a que buscamos para ocupar
nosso tempo livre. Para nós, a literatura cumpre mesmo esse objetivo, e é
bom que ela proporcione prazer. Mas devemos deixar claros dois pontos: o
prazer não é oposto a esforço, alguma dificuldade. Ao contrário, muitos
autores assinalam que suas melhores leituras foram aquelas que lhes
deram trabalho e safanões. Se temos motivos para ler, o esforço não é
superestimado, o desafio é aceito sem problemas e “com prazer”. Como
quando lemos uma instrução para montar um brinquedo: mesmo que
complicada, vamos até o fim, porque queremos ver o objeto montado. Por
outro lado, o prazer não está vinculado só à literatura: está ligado
essencialmente à experiência significativa, e não à facilidade e ao
descompromisso.
Lembremos, ainda, que nem sempre na escola a literatura chega aos
alunos pela via do prazer, em virtude do trabalho autoritário marcado, não
só na escolha do título, como nas atividades impostas em torno da leitura.
Inibe-se, assim, uma das experiências mais enriquecedoras da
humanidade. Vamos tratar dessa questão em uma das nossas próximas
unidades.
Por fim, queremos lembrar que uma leitura menos atenta pode trazer-nos
enganos, a partir de nossos objetivos.
Suponha que você deparou com o texto seguinte, numa folha mimeografada
ou impressa (BRASIL, 2008, p. 85-86).
130
ANEXO 3
GESTAR II
TP1 - Língua Portuguesa
Caro Professor, cara Professora,
Começamos, agora, nossos estudos de Língua Portuguesa.
Como já lhe adiantamos, neste primeiro caderno vamos tratar de
questões mais gerais, que, fundamentando todo o trabalho com a Língua
Portuguesa, vão obrigatoriamente ser retomadas em determinados pontos
dos demais TPs, tal a importância delas para a sua prática. Com isso,
imaginamos facilitar o caminho a ser percorrido neste ano de estudos.
Você já sabe também que, para tornar nossa proposta ainda mais
ligada à sua atuação em sala de aula, decidimos, na seleção de textos a
serem trabalhados, privilegiar os temas transversais. Nas quatro primeiras
unidades que constituem o TP1, nossos textos estão ligados aos temas da
família e da escola, vistas de variados ângulos e em diversas formas: ao
final delas, poderemos ter ampliada e aprofundada nossa visão sobre as
questões que envolvem essas instituições que, mesmo com todas as
transformações da sociedade, se apresentam como da maior importância,
ainda hoje.
Nessas unidades, vamos também explorar assuntos relevantes: a
variação linguística, a própria conceituação de texto e as suas implicações
no ensino-aprendizagem da língua e a intertextualidade.
Você deve estar se perguntando se vale a pena rever assuntos que,
com certeza, já foram estudados em alguns ou em vários cursos de que terá
participado.
Bem, o principal argumento que podemos apresentar-lhe, para rever
questões como dialetos e registros, norma culta, modalidades da língua,
linguagem literária, paráfrases e paródias, é um fato que a experiência nos
mostra constantemente: esses e outros pontos continuam obscuros e mal
explorados em sala de aula, o que vem refletindo-se no inadequado
desempenho de nossos alunos na maioria das atividades de linguagem.
Esses conteúdos continuam, pois, fundamentais sob dois aspectos:
a
ampliação
do
conhecimento
desses
assuntos
aumentará
substancialmente sua competência no uso da linguagem. Você terá
melhores condições de compreender e avaliar mais adequadamente os
textos lidos e ouvidos, da mesma forma que produzirá textos mais
pertinentes.
Na medida em que desenvolve essa competência linguística, que é
o grande objetivo do ensino da língua, você estará em condições de, com
algumas sugestões que vamos propor-lhe, ao longo das unidades,
desenvolver em seus alunos a consciência dessas variações e o uso de
cada uma delas, nas diversas situações de comunicação vividas por eles.
Na primeira unidade, chamada Variantes linguísticas: dialetos e
registros, vamos distinguir normas e usos da língua, buscando compreender
como essas variantes se efetivam em nossa interação cotidiana. Na
segunda, chamada Variantes linguísticas: desfazendo equívocos, vamos
trabalhar a oralidade e a escrita, a norma culta e o texto literário, procurando
esclarecer a importância da compreensão mais ampla desses
“acontecimentos linguísticos”. Na terceira, chamada O texto como centro
131
das experiências no ensino da língua, vamos discutir o próprio conceito de
texto, descobrir por que a necessidade de trabalhar com textos e por em
cena os interlocutores do texto, com seus objetivos. Na quarta e última
unidade deste TP, chamada A Intertextualidade, trabalharemos questões
relativas ao diálogo entre textos, às várias formas de intertextualidade e ao
ponto de vista em todo tipo de interlocução.
Esperamos que estes estudos sejam um trabalho compensador e
agradável para você. Vamos à nossa primeira unidade (BRASIL, 2008. Não
paginado).
132
ANEXO 4
GESTAR II
TP2 - Língua Portuguesa
Caro Professor, cara Professora,
Nas unidades do TP1, insistimos na necessidade de o texto, em
qualquer de suas formas, originar as atividades de língua portuguesa. Uma
unidade tinha mesmo essa ideia como elemento central, lembra-se?
Pois, nas duas próximas unidades, os textos vão ajudar-nos a fazer
uma reflexão mais sistemática sobre a língua.
É claro que, quando criamos ou interpretamos textos, estamos
refletindo e aprendendo sobre a linguagem. Nesse sentido, qualquer
pergunta feita sobre determinado enunciado, nosso ou alheio, já é um
trabalho importante, que desenvolve nossa competência no uso da
linguagem. Foi através de hipóteses e dúvidas, ainda que não explicitadas
ou conscientes, mas que ficaram ecoando no nosso cérebro, que
adquirimos inicialmente a linguagem, procedimento que não abandonamos
mesmo depois do domínio da língua.
Esse trabalho que desenvolvemos obrigatoriamente pelo simples
uso da língua pode tornar-se mais consciente e mais aprofundado, ao longo
de nossa vida. O processo de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa
avança nessa direção, por meio da chamada análise linguística.
Vamos trabalhar a análise linguística do mesmo modo que
estudamos os textos: procurando ajudá-lo a “ver” melhor o assunto
abordado. Só podemos refletir sobre o que observamos, e observamos
melhor o que faz parte de nossa vida, do nosso cotidiano.
Frequentemente, a análise linguística e o trabalho com a gramática
costumam ser mal vistos por alunos e muitos professores, ou mal
orientados. Muitos veem esse estudo como extremamente complexo, outros
o acham completamente sem interesse, outros tantos o consideram sem
sentido. No entanto, ele pode não ser desagradável, nem infrutífero. Muito
pelo contrário. Vamos procurar demonstrar isso, ao longo dessas unidades.
Para você se sentir mais à vontade para percorrer esses caminhos
da análise linguística, achamos oportuno esclarecer, inicialmente, alguns
pontos sobre o que chamamos “análise linguística” e “gramática”.
Assim, na Unidade 5 – Gramática: seus vários sentidos, vamos
refletir sobre as várias acepções que a palavra gramática tem nos estudos
linguísticos, e como a confusão entre essas acepções pode gerar
dificuldades no ensino-aprendizagem da língua. Na Unidade 6 – A frase e
sua organização – vamos estudar as várias formas linguísticas de estruturar
o texto - das mais simples às mais complexas, e como ajudar nossos alunos
a compreender e usar essas estruturas.
Nas Unidades 7 e 8 vamos tratar da arte, suas características, em
especial, da literatura.
Vamos começar a primeira unidade (BRASIL, 2008. Não paginado).
133
ANEXO 5
Registros de Gêneros Textuais Encontrados nos TPs 1 ao 6 do Gestar II
Cadernos de Teoria e Prática
TP
TP
TP
TP
TP
TP
1
2
3
4
5
6
45
43
81
59
90
57
9
11
20
4
11
5
9
14
26
27
28
21
27
18
35
28
51
39
Charge
1
0
0
0
1
0
Anúncio Publicitário
3
3
3
4
4
3
Carta
0
0
2
0
1
1
Bilhete
0
0
0
0
1
0
Diário
0
0
0
0
1
0
Receitas culinárias
0
0
3
0
1
0
Fotografias/imagens
1
1
5
3
1
0
Telas – pinturas
0
6
0
0
0
0
Letra de Música
1
1
2
1
3
1
Anedota
1
1
0
0
1
1
HQ
0
2
1
0
3
1
Mapas
0
0
0
0
1
0
Provérbios
0
0
1
0
0
0
Verbete de dicionário
0
0
1
0
0
0
Texto de divulgação científica
0
0
2
0
3
6
Narrativas Diversas
2
2
1
8
0
7
Bula
0
0
1
0
0
0
Entrevistas
0
0
2
3
1
1
Texto religioso /Bíblia
0
0
1
0
0
0
Horóscopo
0
0
1
0
0
0
0
0
0
8
5
0
Trava-língua
0
0
0
0
1
0
Total de Não literários por TP
9
14
26
27
28
21
Registros de Gêneros
Textuais
Gênero Literário
Gênero não Literário
Texto Funcional/utilitário
66
Categoria e Registro dos
Gêneros
Leitura
de
imagens
e
símbolos
66
Os textos funcionais/instrucional/utilitarista - devem ser compreendidos como textos de
fundamentação teórico-conceituais com relação à língua e literatura.
134
Gênero Literário
Conto
3
4
4
1
3
1
Poema
1
4
7
3
6
3
Fábula
1
1
3
0
0
1
Crônica
2
0
1
0
1
0
Novela
1
0
0
0
1
0
Romance
0
0
2
0
0
0
Lenda
0
0
0
0
0
0
Cordel
0
0
3
0
0
0
Teatro
1
2
0
0
0
0
Total de literários por TP
9
11
20
4
11
5
135
ANEXO 6
Sumário TP167
Apresentação
PARTE I
Apresentação das unidades
Unidade 1: Variantes linguísticas: dialetos e registros
Seção 1: As Inter-relações entre Língua e Cultura
Seção 2: Os dialetos do Português
Seção 3: Os registros do Português
Leituras sugeridas
Bibliografia
Ampliando nossas referências
Correção das atividades
Unidade 2: Variantes lingüísticas: desfazendo equívocos
Seção 1: A norma culta
Seção 2: O texto literário
Seção 3: Modalidades da língua
Leituras sugeridas
Bibliografia
Correção das atividades
Unidade 3:O texto como centro das experiências no ensino da língua
Seção 1: Afinal, o que é texto?
Seção 2:Por que trabalhar com textos
Seção 3:Os pactos de leitura
Leituras sugeridas
Bibliografia
Ampliando nossas referências
Correção das atividades
Unidade 4: A intertextualidade
Seção 1: O diálogo entre textos: a intertextualidade
Seção 2: As várias formas da intertextualidade
Seção 3: O ponto de vista
Leituras sugeridas
Bibliografia
Correção das atividades
PARTE II
Lição de casa 1
Lição de casa 2
PARTE III
Oficina 1
Oficina 2
67
Todos os sumários obedecem esta mesma estrutura, exceto o tópico “Ampliando as nossas
referências” que só aparece nas unidades ímpares. Portanto, nos sumários subsequentes se
reproduzirá apenas os conteúdos das unidades.
136
Sumário TP2
Apresentação
PARTE I
Apresentação das unidades
Unidade 5:Gramática: seus vários sentidos
Seção 1:A gramática interna e o ensino produtivo
Seção 2:A gramática descritiva e o ensino reflexivo
Seção 3:A gramática normativa e o ensino prescritivo
Unidade 6:A frase e sua organização
Seção 1: O que é frase
Seção 2: O período e a oração
Seção 3: As várias possibilidades de organização da frase e do período
Unidade 7:A arte: formas e função
Seção 1: Arte e cotidiano
Seção 2:A arte: classificação e características
Seção 3:As funções da arte
Unidade 8: Linguagem figurada
Seção 1: A expressividade da linguagem cotidiana
Seção 2: Figuras e linguagem literária
Seção 3: Elementos sonoros e sintáticos da expressividade
Sumário TP3
Apresentação
PARTE I
Apresentação das unidades
Unidade 9: Gêneros textuais: do intuitivo ao sistematizado
Seção 1: O conhecimento intuitivo de gêneros
Seção 2:Gêneros textuais e competência sociocomunicativa
Seção 3:Classificando gêneros textuais
Unidade 10: Trabalhando com gêneros textuais
Seção 1: Gênero literário e não-literário
Seção 2: O gênero poético
Seção 3: Uma subclassificação do gênero poético: o cordel
Unidade 11:Tipos textuais
Seção 1: Sequências tipológicas: descrição e narração
Seção 2: Sequências tipológicas: os tipos injuntivo e preditivo
Seção 3: Sequências tipológicas: o tipo dissertativo
Unidade 12: A inter-relação entre gêneros e tipos textuais
Seção 1: Gêneros textuais e sequências tipológicas
Seção 2: Sequências tipológicas em gêneros textuais
Seção 3: A intertextualidade entre gêneros textuais
Sumário TP4
Apresentação
PARTE I
Apresentação das unidades
Unidade 13: Leitura, escrita e cultura
Seção 1: O letramento
Seção 2:Letramento e diversidade cultural
137
Seção 3:Conhecimento prévio e a atividade de leitura e escrita na escola
Unidade 14: O processo da leitura
Seção 1: Onde está o significado do texto?
Seção 2: Os objetivos de leitura: expectativas e escolhas de texto
Seção 3: Conhecimentos prévios interferem na produção de significado do
texto?
Unidade 15: Mergulho no texto
Seção 1: Por que e para que perguntar
Seção 2: Como chegar à estrutura do texto?
Seção 3: Quando queremos aprender
Unidade 16: A produção textual - Crenças, teorias e fazeres
Seção 1: Escrita, crenças e teorias
Seção 2: O ensino da escrita como prática comunicativa
Seção 3: A escrita e seu desenvolvimento comunicativo
Sumário TP5
Apresentação
PARTE I
Apresentação das unidades
Unidade 17: Estilística
Seção 1: A noção de estilo e o objetivo da Estilística
Seção 2: A Estilística do som e da palavra
Seção 3: A Estilística da frase e da enunciação
Unidade 18: Coerência textual
Seção 1:Continuidade de sentidos
Seção 2: A construção da coerência textual
Seção 3: As partes do todo
Unidade 19: Coesão textual
Seção 1: Marcas de coesão
Seção 2: Os elos coesivos
Seção 3: A progressão textual
Unidade 20: Relações lógicas no texto
Seção 1:A lógica do (no) texto
Seção 2: A negação
Seção 3: Significados implícitos.
Sumário TP6
Apresentação
PARTE I
Apresentação das unidades
Unidade 21:Argumentação e linguagem
Seção 1:A construção da argumentação
Seção 2:A tese e seus argumentos
Seção 3:Qualidade da argumentação
Unidade 22: Produção textual: planejamento e escrita
Seção 1: O planejamento
Seção 2: O planejamento: estratégia
Seção 3: A escrita
138
Unidade 23: O processo de produção textual: revisão e edição
Seção 1: A Revisão
Seção 2: A revisão e edição
Seção 3: Estratégias de revisão e edição
Unidade 24: Literatura para adolescentes
Seção 1:Adolescentes, leitura e professores
Seção 2: A qualidade literária é primordial no livro para adolescentes?
Seção 3: Existem boas formas de explorar a literatura na escola?
139
ANEXO 7
Unidade 7
A arte: formas e função
Maria Antonieta Antunes Cunha
Nas duas próximas unidades, vamos trabalhar com um assunto que tem
percorrido todo o nosso curso, vai continuar sendo trabalhado em muitas
unidades e com o qual você tem intimidade: a arte, suas características e,
mais especialmente, a literatura.
Você se lembra de que, na Unidade 3 do TP1, ampliamos nosso conceito
de texto e classificamos e interpretamos como tal a tirinha, a composição
musical, a pintura, a fotografia, entre outras formas de interação.
Parece-nos importante agora discutir o papel e as características da
linguagem da arte, para chegarmos a um elemento constante na obra
literária: a linguagem figurada.
Talvez você não se sinta um bom ou frequente fruidor de arte, aquela
pessoa que procura entrar em contato com obras artísticas e se deleita com
sua percepção. Talvez tenha dúvidas quanto ao que considerar arte, nos
dias atuais.
Às vezes, não temos clareza quanto ao poder da arte, num mundo marcado
pela concorrência e pela luta no mercado de trabalho, cada vez mais ávido
de informações. Nesse quadro cultural, que papel cabe à arte e, mais
especialmente, à literatura, a arte da palavra?
Vamos à nossa primeira unidade?
140
ANEXO 8
Tabela 1
Distribuição percentual de Gênero Literário e Não Literário do Gestar II
Gênero
NºAbsoluto
%
Literário
Não
Literário
Total
60
27,5
158
72,5
218
100
Tabela 2
Distribuição percentual de Gênero Literário e Não Literário do Gestar II por Caderno de Teoria e
Prática
Gênero
% TP1
% TP2
% TP3
% TP4
%TP5
%TP6
% Total
Literário
15
18,3
33,3
6,8
18,3
8,3
100
Não Literário
5,7
9,5
19
20,3
24
21,5
100
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