A ABORDAGEM DO LETRAMENTO E DO ENSINO DE GÊNEROS NA
FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR DAS SÉRIES INICIAIS
Eliana Merlin Deganutti de Barros (doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos
da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina/UEL – [email protected])
Resumo: Este trabalho objetiva analisar a formação inicial do professor de Língua Portuguesa
das séries iniciais, a partir da análise da linguagem sobre o trabalho docente (cf.
BRONCKART & MACHADO, 2004) materializada nos Projetos Político-Pedagógicos
(PPP) de dois curso de Pedagogia de Londrina e nas novas Diretrizes Curriculares Nacionais
do curso, visto que são estas que, a partir de 2007, passam a nortear todos os cursos de
Pedagogia do país. Apoiamo-nos nas concepções de alfabetização, letramento e gênero de
texto como objeto de ensino da língua – parâmetros estes que regem os principais documentos
oficiais da educação básica. As análises estão focadas no conteúdo temático dos documentos e
nas vozes que perpassam seu discurso. Os resultados preliminares apontam para um curso de
Pedagogia generalista e, no caso específico da formação do professor letrador, um currículo
pobre em conteúdos básicos da didática da língua e uma desarticulação com a proposta de
letramento escolar.
PALAVRAS-CHAVE: curso de Pedagogia, currículo, Língua Portuguesa.
ABSTRACT: This work aims at analyzing the initial education of Portuguese Language
teachers for first grades from the analysis of language about teacher’s work (see
BRONCKART & MACHADO, 2004) materialized in the Political-Pedagogical Projects of
two Pedagogy courses in Londrina and in the new National Curricular Directives of the
course, considering that, since 2007, they have guided all Pedagogy courses in the country.
Concepts of initial reading instruction, literacy and textual genre as an object for language
teaching – parameters that rule the main official documents in primary education, support this
study. The analyses focus on the thematic content of the documents and on the voices that
underlie their discourse. The preliminary results indicate a generalist Pedagogy course and, in
the specific case of the first grade teacher education, a poor curriculum in terms of basic
contents of language didactics and lack of articulation with the proposal of school literacy.
KEYWORDS: Pedagogy course, curriculum, Portuguese Language.
1. Introdução
Esta pesquisa parte do pressuposto de que tanto a alfabetização, considerada em seu sentido
restrito como aquisição da escrita alfabética, como o letramento, tido como produto da
participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico (KLEIMAN,
2006), ocorrem dentro de um processo mais amplo de aprendizagem da Língua Portuguesa.
Esse enfoque coloca necessariamente “um novo papel para o professor das séries iniciais: o de
professor de Língua Portuguesa” (BRASIL, 1997, p. 28). É justamente sobre esse enfoque
que esta pesquisa se desenvolve: não há como pensar o ensino da Língua Portuguesa sem
considerar os conceitos de alfabetização e letramento e sem levar em conta a formação, nos
cursos de Pedagogia, do professor das séries iniciais – agentes do letramento (KLEIMAN,
2006).
Sendo assim, objetivamos investigar a formação do pedagogo/professor de português das
séries iniciais do Ensino Fundamental nos cursos de Pedagogia. Para tanto, tomamos como
objeto de pesquisa o agir prescritivo de dois cursos de Pedagogia de grande tradição da cidade
de Londrina 1 consolidados em seus Projetos Político-Pedagógicos (PPP).
Para o
desenvolvimento do texto partimos de uma discussão envolvendo os conceitos de
alfabetização, letramento e letramento como apropriação de gêneros textuais, para, em
seguida, trazermos uma breve análise das novas Diretrizes que regem o curso de Pedagogia e,
finalizando, uma análise de dois PPP de Pedagogia.
2. Alfabetização, letramento e ensino da língua por meio de gêneros
Na atualidade, o termo “letramento” já se encontra bastante disseminado, principalmente em
estudos que envolvem o ensino da escrita e da leitura nas séries iniciais. Entretanto, isso não
significou o abandono do termo “alfabetização”, nem tampouco se chegou a um consenso
sobre o uso dessas duas palavras/conceitos:
Para alguns, “letramento” deve substituir, definitivamente, “alfabetização”, ou se deve optar por um ou outro
termo; para outros, trata-se de denominações distintas de duas etapas distintas e seqüenciais; devendo-se,
primeiramente, alfabetizar para, depois, letrar; para outros, ainda, trata-se de alfabetizar, letrando, como dois
momentos diferentes, mas complementares e simultâneos, no ensino-aprendizagem inicial da leitura e da escrita
(MORTATTI, 2007, p. 161).
Como é possível depreender, ainda não há uma posição homogênea sobre o que seja
letramento. A posição assumida por esta pesquisa é de que existe, sim, um momento de
1
Optamos por não divulgar os nomes das instituições de ensino arroladas na pesquisa. Para distinção entre as
mesmas, trabalho com as denominações ALFA e BETA.
decodificação dos códigos linguísticos – o qual podemos denominar de “alfabetização” –,
momento este que a criança percebe, por exemplo, que da aproximação dos grafemas B e A
resulta o fonema /BA/ e da junção dos fonemas /BA/ e /LA/ surge a palavra BALA. Entretanto,
essa é apenas uma das vertentes do processo de ensino da língua, uma vez que não podemos
dizer que uma criança que consegue simplesmente reconhecer letras e palavras realmente
tenha capacidade de efetuar uma leitura proficiente ou produzir um texto compatível com a
sua idade e adequado a uma dada situação de comunicação.
Por outro lado, não podemos dizer que um indivíduo que não saiba decodificar o sistema de
sua língua não seja capaz de participar de práticas sociais e empreender ações de linguagem 2
adequadas a uma certa situação de produção oral. Neste caso, temos um indivíduo letrado em
uma determinada prática de linguagem, mas não alfabetizado. Assim sendo, não há como
desprezar o conceito de alfabetização – decodificação do sistema linguístico – e tampouco
ignorar a noção de letramento.
Kleiman (2006, p. 19) define letramento como “um conjunto de práticas sociais que usam a
escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para
objetivos específicos”. Eu iria mais além, esclarecendo que o letramento se dá não só pelo uso
da palavra escrita, mas também por meio de práticas de linguagem multissemióticas – como
as que envolvem gráficos, ilustrações, imagens, cores, sons, oralidade, etc. – envolvendo
múltiplos espaços midiáticos. Segundo Barros (2009), é preciso que a escola assuma um
posicionamento de letramentos multissemióticos e miltimeios, já que essas formas de
letramento são indispensáveis para o agir da vida contemporânea.
Voltando à discussão sobre a relação entre alfabetização e letramento, a minha posição é de
que deve existir na escola um processo de alfabetização e, simultaneamente, um processo de
práticas de letramento. Ou seja, esses termos remontam a conceitos diferentes, mas
complementares, que devem andar de mãos dadas no processo de ensino da língua dentro do
contexto escolar. Eu diria que ao invés de falarmos em “alfabetizar letrando”, poderíamos
dizer “letrar alfabetizando”; pois, com certeza, o conceito de letramento é muito mais
abrangente do que o de alfabetização.
A intersecção entre estudos oriundos da Linguística Aplicada envolvendo uma concepção
interacionista da linguagem e estudos pedagógicos voltados para a abordagem da escrita e da
leitura nas primeiras séries tem contribuído para a aproximação da concepção de letramento e
2
Ação de linguagem é uma parte da atividade de linguagem (interpretação coletiva do agir pela palavra) cuja
responsabilidade é atribuída a um indivíduo singular – o agente produtor dessa ação (BRONCKART, 2006, p.
139).
do ensino por meio de gêneros textuais. Alguns pesquisadores têm orientado suas pesquisas a
partir da premissa de que o domínio de um determinado gênero textual está intrinsecamente
relacionado a um processo específico de letramento (cf. NASCIMENTO, 2005).
Ou seja, o indivíduo só é letrado em determinada prática de linguagem se é capaz de
empreender uma ação de linguagem eficaz, por meio da adaptação de um modelo de gênero
de texto. Nessa perspectiva, o ensino da língua ultrapassa uma concepção puramente
linguística – embora o texto continue sendo a unidade de ensino – pois o interesse não é
simplesmente que o aluno aprenda a forma da escrita, mas também que ele entenda toda a
complexidade linguístico-discursiva e enunciativo-contextual envolvida em uma determinada
ação de linguagem, esta fruto de adaptação de uma prática de referência preexistente.
Nos últimos anos, o enfoque nos gêneros textuais no processo de letramento tem se tornado o
lugar central para o reconhecimento dos usos da linguagem nas práticas sociais de uma
sociedade, uma vez que são eles os sinalizadores das diferenças da situação, da interação e do
significado de tais atividades. Na interação letrada, indivíduos escrevendo e lendo um texto
mediador têm de criar relações e significados compatíveis para estabelecer essa interação, o
que pressupõe a noção de gêneros textuais como formas de ação social organizada.
3. As novas Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Pedagogia
Ao analisar o agir prescritivo (cf. BRONCKART & MACHADO, 2004) que se realiza pelas
Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia, verificamos que essas foram
elaboradas com base nas discussões de vários segmentos e associações de profissionais da
educação preocupados em dar uma identidade ao curso e aos futuros pedagogos, como
também estabelecer uma base comum nacional que, de certa forma, unificasse os cursos de
Pedagogia existentes no Brasil. O fim das habilitações foi uma tentativa de instituir certa
unidade às concepções de pedagogia e às funções próprias do profissional da educação.
Entretanto, o texto que determina tais diretrizes peca por diversas vezes na clareza conceitual
e na precisão da definição de pedagogia e da atividade profissional do pedagogo. Vejamos o
que diz o artigo 4º da Resolução CNE/CP nº. 1/2006 que institui as Diretrizes:
Art. 4º. O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de professores para exercer funções de
magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na
modalidade Normal, de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais
sejam previstos conhecimentos pedagógicos.
Parágrafo único. As atividades docentes também compreendem participação na organização e gestão de
sistemas e instituições de ensino, englobando:
I - planejamento, execução, coordenação, acompanhamento e avaliação de tarefas próprias do setor da Educação;
II - planejamento, execução, coordenação, acompanhamento e avaliação de projetos e experiências educativas
não-escolares;
III - produção e difusão do conhecimento científico-tecnológico do campo educacional, em contextos escolares e
não-escolares (grifos meus).
Esse trecho da Resolução não é claro no que diz respeito à função exercida pelo profissional
formado no curso de Pedagogia. Ao mesmo tempo em que diz que o curso forma professores
(carreira docente), também faz uma associação da atividade docente com a “participação” na
organização e gestão educacional. Ora, se formos abranger o agir docente da forma como é
posto no texto do Parecer, estamos assumindo que “o planejador da educação, o especialista
em avaliação, o animador cultural, o pesquisador, o editor de livros, entre tantos outros, ao
exercerem suas atividades estariam exercendo a docência” (LIBÂNEO, 2006, p. 845). Da
mesma forma, qualquer profissional formado em um curso de licenciatura – curso específico
para a formação de docentes – estaria apto a exercer todas essas atividades pedagógicas
descritas no parágrafo único do artigo 4º.
Ou seja, o que as Diretrizes fazem é trazer para a base comum do curso todas as funções que
antes faziam parte da prioridade de cada curso em particular ou estavam dispostas nas
chamadas “habilitações”. Essa nova postura, ao invés de dar uma “cara” particular para o
curso de Pedagogia, acaba por deixá-lo sobrecarregado, o que, com certeza, pode causar
prejuízos irreparáveis na formação dos novos pedagogos.
Nas palavras de Mello (2000, p. 98), para que a aprendizagem na escola “seja uma
experiência intelectualmente estimulante e socialmente relevante, é indispensável a mediação
de professores com boa cultura geral e domínio dos conhecimentos que devem ensinar e
dos meios para fazê-los” (grifos meus). Se transpusermos tal afirmação para o contexto de
formação de professores das séries iniciais, tal como esse é contemplado pelas Diretrizes do
curso de Pedagogia, fica difícil imaginarmos a formação de um professor que realmente possa
vir a dominar os conhecimentos específicos das disciplinas que compõem a grade curricular
das primeiras séries do Ensino Fundamental (Português, Matemática, Geografia, História,
Ciências, Artes), e ainda mais, que venha a dominar os meios eficazes para realizar seu
trabalho em sala de aula.
Das dezesseis aptidões do egresso do curso de Pedagogia contempladas pelo texto do Projeto
de Resolução anexo ao Parecer nº. 5/2005, apenas uma explicita o trabalho com a Língua
Portuguesa, e mesmo assim, não é colocado que o futuro professor deva dominar os
conteúdos dessa disciplina, mas simplesmente que ele saiba:
Aplicar modos de ensinar diferentes linguagens, Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geografia,
Artes, Educação Física, de forma interdisciplinar e adequada às diferentes fases do desenvolvimento humano
(BRASIL/CNE, 2005, p. 9).
Ou seja, parece que não há uma preocupação das fontes prescritivas com a formação
linguística (voltada para os letramentos) dos professores das séries iniciais, uma vez que não
priorizam uma formação que contemple o ensino dos conteúdos da Língua Portuguesa, mas
simplesmente sua metodologia de ensino. Agora, como aplicar uma metodologia de um
conteúdo desconhecido? Essa ideia é reforçada pela descrição feita de uma das doze
prioridades relativas aos estudos que compõem o núcleo de estudos básicos: “decodificação e
utilização de códigos de diferentes linguagens utilizadas por crianças, além do trabalho
didático com conteúdos, pertinentes aos primeiros anos de escolarização, relativos à Língua
Portuguesa [...]” (BRASIL/CNE, 2005, p. 11). Novamente prega-se o trabalho didático com
os conteúdos de Língua Portuguesa, desprezando o ensino sistemático dos mesmos.
Outra crítica às novas Diretrizes diz respeito a uma das possibilidades de estudos sugerida
para ser incluída ao núcleo de aprofundamento e diversificação de estudos: “avaliação,
criação e uso de textos, materiais didáticos, procedimentos e processos de aprendizagem que
contemplem a diversidade social e cultural da sociedade brasileira” (BRASIL/CNE, 2005, p.
22).
A crítica, nesse caso, é quanto à colocação de tal item como “possibilidade” de
aprofundamento de estudos. Entendo que a produção e avaliação de textos e de materiais
didáticos seja um requisito básico para a formação do professor letrador, pois estes são as
ferramentas de ensino mais utilizadas em sala de aula.
Quanto à questão da produção de textos, é inadmissível que um futuro agente do letramento
não tenha uma formação letradora. Ou seja, como trabalhar, por exemplo, com o letramento
do gênero “fábula” se o próprio professor não teve oportunidade de ser letrado em tal gênero?
Ou, pelo menos, de desenvolver capacidades suficientes para que possa transferir o
conhecimento de gêneros com estruturas semelhantes para o trabalho didático com a fábula?
Assim sendo, entendo que esse item deveria fazer parte do núcleo de estudos básicos.
4. O curso de Pedagoga ALFA
No decorrer do ano letivo de 2007, foram verificados no curso de Pedagogia da instituição
ALFA três PPP em andamento. Um referente à reformulação curricular de 2007 (para cumprir
às determinações das novas Diretrizes Curriculares); outro de 2005 e um terceiro de 1998.
O currículo de 2007, seguindo determinações das Diretrizes para o curso de Pedagogia,
extingue as habilitações. Entretanto, o perfil do egresso continua o mesmo do currículo de
2005 e, na redação do objetivo do curso, há apenas uma pequena alteração: ao invés de
formar o pedagogo com visão da totalidade do trabalho docente e não docente, o texto agora
coloca que o objetivo é formar o Pedagogo numa perspectiva de totalidade do trabalho
pedagógico. Tal alteração parece relacionar-se ao fato de as Diretrizes para o curso de
Pedagogia colocarem as atividades de gestão escolar, como a supervisão e a orientação
educacional, como atividades docentes. Pelo que se pode inferir, a voz das Diretrizes do
Curso é prontamente absorvida pelo PPP da instituição ALFA, uma vez que o curso de
Pedagogia em questão perde a dualidade de uma licenciatura que forma docentes e nãodocentes e passa a trabalhar apenas com o pedagógico, englobando aí o trabalho docente. Se
formos analisar com cautela, essa foi uma “ótima” estratégia dos organizadores das Diretrizes
para justificar um curso de licenciatura que formava não-docentes.
Entretanto, ao relatar os campos de atuação do futuro pedagogo, percebe-se a clássica divisão
do curso de Pedagogia em atividades docentes e atividades de gestão escolar e não escolar.
Essa divisão é reiterada na distribuição dos três estágios supervisionados proposta pela grade
curricular: a) estágio supervisionado na Educação Infantil; b) nas séries iniciais do Ensino
Fundamental; c) na gestão pedagógica. A novidade desse currículo é englobar toda atividade
não-docente (com caráter escolar) na prática da gestão educacional; nesse caso, suprimem-se
os estágios específicos para orientação ou supervisão escolar, condensado-os na modalidade
da gestão pedagógica.
Passando, agora, para uma análise da abordagem da Língua Portuguesa nos currículos 3 ,
vejamos como esses se organizam quantitativamente para darem conta da formação do futuro
professor de Língua Portuguesa das séries iniciais:
Tabela 1 – Peso da Língua Portuguesa na grade curricular – curso ALFA
Currículo 1998 – habilitação “a”
Currículo 2005 – habilitação “a”
Currículo 2005 – habilitação “b”
Currículo 2007 – considerando disciplinas
optativas
Currículo 2007 – sem considerar disciplinas
optativas
Carga
total
estágios)
2.516
2.822
2.822
2.720
2.720
horária
(exceto
Carga horária –
língua portuguesa
204
136
136
204
% da língua
portuguesa no
currículo
8,10%
4,8%
4,8%
7,5%
136
5%
Como se pode observar, o percentual não alcançou os 10% em nenhum dos currículos
analisados. O melhor panorama foi encontrado no currículo de 1998 com habilitação “a”,
3
Os currículos analisados referem-se somente aos que comportam habilitação no magistério das séries iniciais.
justamente por trazer em sua grade um diferencial: a inclusão da disciplina “Literatura
infantil”. “Diferencial” porque as reestruturações curriculares ocorridas no curso pouco
alteraram o panorama da abordagem dos estudos da linguagem ao longo da última década.
Basicamente, tal abordagem se dá por meio da oferta das disciplinas “Metodologia [ou
Didática] do ensino da Língua Portuguesa para as séries iniciais” e “Alfabetização” (com
pouquíssimas variações terminológicas), como podemos constatar por meio de um recorte das
grades curriculares do período:
Quadro 1 – O ensino da língua materna nas grades curriculares do curso ALFA
1º ano
2º ano
Currículo 1998 –
habilitação “a”
X
X
Currículo 2005 –
habilitação “a”
X
X
Currículo 2005 –
habilitação “b”
X
X
Currículo 2007
X
3º ano
Fundamentos da alfabetização
Metodologia do ensino das séries
iniciais (Língua Portuguesa)
Didática da Língua Portuguesa
para as séries iniciais do Ensino
Fundamental
Alfabetização
Didática da Língua Portuguesa
para as séries iniciais do Ensino
Fundamental
Alfabetização
Alfabetização
X
4º ano
Literatura infantil
X
X
Didática
da
Língua
Portuguesa para as séries
iniciais
Alfabetização:
tendências
atuais (optativa) 4
No currículo de 2007 é colocado como anexo um quadro com a distribuição em percentual da
carga horária das disciplinas ofertadas em cinco grandes eixos: 1) educação e sociedade
(19,6%); 2) conhecimento, currículo e gestão (23;2%); 3) conhecimento sobre docência
(39,6%); 4) conhecimento sobre pesquisa em educação (7, 2%); estágios (10,7%). Ao analisar
os percentuais, a impressão que temos é que o curso dá uma grande ênfase aos conteúdos
próprios do magistério. Mas, se formos analisar objetivamente, veremos que não é bem assim:
é absolutamente impossível contemplar em 1.496 horas (horas correspondentes aos 39,6%) os
conhecimentos específicos de todas as disciplinas que comportam a grade curricular das séries
iniciais e todas as vertentes pedagógicas da Educação Infantil, além dos conteúdos específicos
para as matérias pedagógicas do Ensino Médio.
Vale ressaltar que, na realidade, essas 1.496 horas podem nem ser concretizadas, uma vez que
seis dessas disciplinas – total de 408 horas – pertencem à grade optativa do currículo. Dessa
4
“Alfabetização: tendências atuais” é uma disciplina optativa que pode ser incluída na grade do 4º ano desde que
haja um mínimo de 15 alunos interessados.
forma, podemos dizer que apenas 1.088 horas são objetivamente voltadas para os
conhecimentos sobre a docência. Outra observação importante é que esse eixo também inclui
conhecimentos de aprendizagem comuns a qualquer vertente pedagógica da educação formal,
como, por exemplo, a didática, a avaliação escolar, as tecnologias da aprendizagem, a
organização do trabalho docente. Ou seja, esse eixo não representa apenas conhecimentos
específicos das disciplinas referente à atuação docente do pedagogo, mas também vertentes da
pedagogia, comuns a qualquer licenciatura.
No caso do ensino da Língua Portuguesa nas séries iniciais, vemos que apenas três disciplinas
abordam conhecimentos dessa área: “Alfabetização”, “Alfabetização: tendências atuais” e
”Didática da Língua Portuguesa para as séries iniciais do Ensino Fundamental”; lembrando
que “Alfabetização: tendências atuais” faz parte da grade optativa do currículo. Se pensarmos
que grande parte da grade curricular das séries iniciais é composta por conhecimentos
específicos da Língua Portuguesa, alicerçados pelo processo de alfabetização/letramento, fica
difícil imaginarmos uma formação de qualidade para o futuro professor que atuará nesse nível
de ensino composta apenas por três disciplinas específicas, sendo uma delas optativa. Outra
questão a se levantar é a falta de participação de estudiosos da linguagem na composição do
corpo docente do curso de Pedagogia. Para se ter uma ideia, não há nenhuma disciplina
ofertada no currículo de 2007 que seja ministrada por um professor do curso de Letras 5 . Ou
seja, além do número de disciplinas ser insuficiente para contemplar uma formação que
disponibilize o mínimo de conhecimentos necessários para o futuro professor de Português
das séries iniciais, também não há a preocupação do curso em promover um intercâmbio de
conhecimentos com a área específica de estudos da linguagem a fim de proporcionar uma
formação mais consolidada na área de aprendizagem da língua.
Outro ponto relevante na análise do currículo é a questão da ênfase na didática 6 em
detrimento do ensino dos conhecimentos estruturantes das séries iniciais. Não que as técnicas
de ensino não sejam importantes, mas sem um conhecimento mais profundo dos conteúdos
basilares de uma determinada área do conhecimento, como, por exemplo, a do ensino da
língua materna, essas técnicas são impraticáveis. Para que se possa discutir teorias e práticas
de ensino, é preciso saber o que ensinar, ter uma base consolidada sobre a área de
conhecimento que se vai atuar, e é justamente esse o ponto frágil do currículo de Pedagogia
em questão, no tocante à formação do professor de Português das séries iniciais.
5
De todos os currículos analisados da instituição ALFA, apenas um – habilitação “a” de 1998 – tem disciplina
ministrada pelo curso de Letras: “Literatura infantil”.
6
De um total de vinte e uma disciplinas que compõem o eixo “conhecimento sobre docência”, dez têm o termo
“didática” no nome.
Vejamos agora as ementas das disciplinas que abordam questões da Língua Portuguesa em
cada um dos currículos, para que possamos entender um pouco melhor a postura assumida
pelo curso em relação à formação do futuro professor letrador. Primeiramente, vamos analisar
as disciplinas voltadas à alfabetização:
Quadro 2 – Ementas das disciplinas sobre alfabetização – ALFA
Currículo
Habilitação
“a” de 1998
Habilitações
“a” e “b” de
2005
2007
Ementas
Fundamentos da Alfabetização
Evolução conceitual da alfabetização. Fisiogênese da leitura escrita e concepções teóricometodológicas das práticas alfabetizadoras. Propostas alternativas de alfabetização. Propostas
de Alfabetização do Currículo Básico do Paraná. Suas implicações.
Alfabetização
Análise crítica das concepções de alfabetização. As relações entre alfabetização e letramento.
O processo de construção da leitura e escrita. Concepções teórico-metodológicas das práticas
alfabetizadoras.
Alfabetização
Concepções de alfabetização. Processos de alfabetização sintéticos, analíticos e ecléticos:
evolução histórica e análise crítica. As relações entre alfabetização e letramento. O processo
de construção da leitura e da escrita.
Alfabetização: Tendências Atuais (optativa)
As novas propostas didáticas para a alfabetização baseadas em estudos e pesquisas mais
recentes da área da Psicologia, Lingüística e Sociolingüística.
Ao analisarmos as ementas das disciplinas sobre alfabetização vemos que em todas, com
exceção da optativa, há referência à questão da “leitura e escrita”. No currículo mais antigo,
leitura e escrita são agregadas ao termo “fisiogênese”, cunhado da biologia, cujo significado
nos remete à origem e desenvolvimento das espécies. Com a apropriação desse termo a
impressão que fica é que o tratamento dado à leitura e a escrita fica restrito ao âmbito
puramente fisicalista/biológico, o que descarta qualquer possibilidade de uma abordagem
sociointeracionista do ensino da língua, na qual leitura e escrita são vistas de forma
complementar e intrinsecamente ligadas às práticas sociais. Nos dois últimos currículos,
mesmo abandonando o termo “fisiogênese” e passando a incorporar como redação o
“processo de construção da leitura e escrita”, ainda não há a apropriação desses processos
como práticas de letramento, muito menos como práticas de letramento por meio de gêneros,
como assim postulam os PCN.
Como podemos verificar, o termo “letramento” começa a aparecer no currículo de 2005,
mantendo a mesma redação no currículo de 2007: “As relações entre alfabetização e
letramento”. Por essa redação é possível percebermos que a intenção do curso é estabelecer
relações entre alfabetização e letramento, mas não há como sabermos qual a postura assumida
pelo curso em relação ao ensino da língua materna nas séries iniciais: alfabetizar? Letrar?
Alfabetizar e letrar? Alfabetizar, letrando? Letrar, alfabetizando? Ou seja, as ementas não
direcionam um posicionamento específico frente a tais questões. Entretanto, se levarmos em
consideração que o nome escolhido para a disciplina em qualquer um dos três currículos gira
em torno do termo “alfabetização” , podemos inferir que, para o curso, alfabetizar ainda é o
objetivo maior do ensino da língua nas primeiras séries, e não letrar – posição essa defendida
pela pesquisa em pauta. Essa suposição é reforçada quando se analisa a ementa da disciplina
optativa “Alfabetização: tendências atuais”, referente ao currículo de 2007, cujo título nos faz
imaginarmos que, entre as “tendências atuais” da alfabetização, esteja o processo de
letramento, tão abordado pelas recentes pesquisas da área da aquisição da língua/linguagem,
mas não é o que vemos em sua redação: não vemos sequer a menção ao termo “letramento”.
Vejamos agora as ementas das disciplinas relativas à metodologia (ou didática) do ensino de
Língua Portuguesa para as séries iniciais:
Quadro 3 – Ementas das disciplinas sobre ensino da Língua Portuguesa – ALFA
Currículo
Habilitação
“a” de 1998
Habilitações
“a” e “b” de
2005
2007
Ementas
Metodologia do Ensino das Séries Iniciais do Ensino Fundamental
A língua enquanto resultante de um trabalho coletivo e histórico. O Ensino de Língua
Portuguesa e a variação lingüística. O ensino da língua através de leitura, produção de textos e
análise lingüística. Propostas de ensino da Língua Portuguesa para as séries iniciais
Didática da Língua Portuguesa para as Séries Iniciais do Ensino Fundamental
Pressupostos teórico-metodológicos da Língua Portuguesa e suas implicações no processo de
ensino-aprendizagem nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental. A Língua como produto do
trabalho coletivo e histórico. A variação lingüística. A leitura, produção de textos e análise
lingüística. As diversas propostas de ensino da Língua Portuguesa.
Didática da Língua Portuguesa para as Séries Iniciais do Ensino Fundamental
Pressupostos teórico-metodológicos da língua portuguesa e suas implicações no processo de
ensino e aprendizagem nas séries iniciais do ensino fundamental. A língua como produto do
trabalho coletivo e histórico. A variação lingüística. A leitura, produção de textos e análise
lingüística. As diversas propostas de ensino da língua portuguesa.
Se analisarmos as redações das ementas, veremos que elas são praticamente idênticas.
Realmente, a proposta é bastante abrangente, mas essa “abrangência” pode ser apenas
superficial, pois, para cumprir satisfatoriamente os objetivos gerados a partir de tal ementa, 68
horas não seriam suficientes. No curso de Letras da mesma instituição em análise, só para se
ter uma ideia, a disciplina de “Metodologia de Língua Portuguesa” comporta 136 horas
teóricas e 68 práticas 7 e “Lingüística Aplicada” mais 136 horas – disciplinas estas que se
dispõem a trabalhar, com algumas variações, a partir dos mesmos focos.
Para finalizar, cabe aqui um elogio e ao mesmo tempo uma crítica quanto à disciplina
“Literatura infantil” referente ao currículo de 1998. O elogio fica por conta da relevância do
7
Essas horas práticas não se tratam dos estágios supervisionados.
tema para a formação do professor das séries iniciais, já a crítica está no fato de tal disciplina
ter sido excluída dos currículos posteriores. Vejamos o texto da ementa:
A literatura infantil para criança: aspecto lúdico e formador. Concepção de infância: visão histórica. O texto
verbal e o texto não verbal: níveis de complexidade. A literatura oral. Proposta de atividades pedagógicas. A
importância da literatura para a aquisição de linguagem e para a alfabetização.
É fato que a literatura infantil está na base do letramento das crianças das séries iniciais do
Ensino Fundamental, é por meio dela que elas entram em contato com o mundo letrado e
começam a desenvolver a criatividade, o prazer pela leitura, a afetividade, entre tantas outras
coisas. Dessa forma, uma disciplina como esta, que traz, além do estudo da formação do
aluno a partir de textos literários, também a concepção de infância, a complexidade do verbal
e não-verbal na literatura infantil, a literatura oral, bem como propostas pedagógicas com base
em gêneros próprios da literatura infantil, é de suma importância para um currículo que se
propõe a formar professores de Português das séries iniciais. Entretanto, o que está faltando
para essa disciplina é uma concepção de gêneros de texto, pois literatura é apenas uma esfera
social de criação, mas como são configuradas as práticas de linguagem dessa esfera?
5. O curso de Pedagogia BETA
Ao investigar o curso de Pedagogia da instituição BETA foram verificados três currículos em
andamento: um implantado em 2002, outro em 2006 e um terceiro em 2007 8 . O currículo de
2002 explicita como objetivo formar o professor da Educação Infantil e das séries iniciais do
Ensino Fundamental, bem como o gestor educacional. Entretanto, neste “gestor educacional”,
está inclusa uma gama de funções profissionais que acabam “pesando” o curso, tornando-o
abrangente: das nove áreas descritas na formulação das competências do egresso, apenas uma
se refere à docência, e ainda assim esta é dividida em duas vertentes: magistério das séries
iniciais e magistério da Educação Infantil. Ou seja, este também é um curso generalista e
tende a dar mais ênfase na formação do “profissional da educação” e não na docência.
Outro ponto a se destacar é a assimilação da voz da ANFOPE – a docência como base da
formação do pedagogo – como podemos observar no primeiro item dos objetivos específicos:
“Atuar nas diversas áreas de educação formal e não-formal, tendo a docência da Educação
Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental, como base de sua intervenção educacional”.
Esse discurso é reiterado na redação introdutória do documento: “curso que forma o educador
8
De 2007 não foi cedido nenhum documento.
no professor”; “educador que deverá ter a docência como base de sua identidade
profissional”.
Vejamos, agora, o peso da Língua Portuguesa no currículo BETA:
Tabela 2 – Peso da Língua Portuguesa nos currículos – BETA
Carga
total 9
Currículo 2002
Currículo 2006
2.600
2.440
horária
Carga horária –
língua portuguesa
240
280
% da língua
portuguesa no
currículo
9,23%
11,47
A tabela 2 nos revela um panorama um pouco mais significativo do que o apresentado pelo
curso ALFA. Essa pequena vantagem se deve ao fato de esse curso incluir a disciplina
“Comunicação e linguagem” e, no currículo de 2006, a disciplina “Lingüística aplicada à
Educação”. Os percentuais relativos às disciplinas que abordam o ensino da Língua
Portuguesa nas séries iniciais ainda são bem inexpressivos se levarmos em consideração o
peso que a Língua Portuguesa tem no currículo nas séries iniciais. Entretanto, esses
resultados, de certa forma, já eram esperados em virtude da abrangência curricular do curso.
Analisamos, agora, as ementas das disciplinas sobre alfabetização:
Quadro 4 – Ementas da disciplina “Fundamentos da alfabetização” – BETA
Ementas
Currículo
2002
Currículo
2006
Fundamentos da alfabetização
Fundamentos histórico, filosófico e sociológico da alfabetização. Conhecimento
notacional. Pressupostos teóricos e suas implicações metodológicas. Avaliação e
intervenções pedagógicas.
Fundamentos da alfabetização I
Concepção de alfabetização. Métodos. Alfabetização como processo de construção
da língua escrita. Procedimentos de avaliação e intervenção.
Fundamentos da alfabetização II
História da escrita. A criança e a pré-história da escrita: a fala, o desenho. Função
social e política da alfabetização. Análise de experiência de alfabetização na
Educação Infantil.
Carga
horária
80 h
80 h
40 h
No currículo de 2002, a disciplina aborda a alfabetização, primeiramente, sob um ângulo
sócio-histórico, ou seja, procura fazer um resgate dos fundamentos que a regem. Essa
introdução ao tema é de suma importância, pois faz com que o aluno possa compreender
melhor a situação atual em que se encontra a alfabetização, pois lhe é apresentado um
9
Exceto estágios, atividades complementares e trabalho de conclusão de curso.
panorama contextual da questão, Não podemos esquecer que a compreensão que temos das
coisas são regidas por um certo horizonte social “que determina a criação ideológica do grupo
social e da época a que pertencemos” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1986, p. 112), dessa
forma, muito do que o aluno de Pedagogia entende por alfabetização está ligado a um certo
horizonte contemporâneo do que seja tal fenômeno dentro do âmbito da escola, por isso é
imprescindível esse resgate histórico.
Depois desse estudo contextual do tema, o currículo de 2002, atenta-se a questões notacionais,
teóricas e metodológicas do processo de alfabetização. A pergunta é se, em 80 horas de
disciplina, consegue-se abordar com eficácia todas as vertentes notacionais teóricas e
metodológicas que envolvem, nos dias atuais, o problema da alfabetização, visto aqui, em um
sentido mais amplo, uma vez que o currículo não trata especificadamente de letramento – um
dos pontos mais cruciais no ensino das primeiras séries.
No currículo de 2006, a disciplina sobre alfabetização ganha 40 horas a mais e passa a ser
semestral. Na primeira etapa (80 horas) os focos passam a ser, além dos procedimentos de
avaliação, as concepções e os métodos de alfabetização, bem como a construção da língua
escrita. Em comparação à ementa anterior, perde-se o estudo do resgate sócio-histórico do
fenômeno “alfabetização” e conservam-se as abordagens teórico-metodológicas que o
envolvem. O fato novo reside no estudo da “alfabetização como processo de construção da
língua escrita”. É evidente que a língua escrita é o ponto crucial do processo de alfabetização,
já que “à escola competem as funções de socialização, de instrução e de formação intelectual.
E todas essas funções se vinculam ao conhecimento e ao uso extensivo da escrita” (BRITTO
apud COLLELO, 2007, p. 12), mas a oralidade não pode e não deve ser esquecida nessa etapa
do aprendizado em que fala e escrita se complementam, se interligam em um aprendizado
mediado pela linguagem, seja ela escrita ou falada.
A segunda etapa da disciplina sobre alfabetização (40 horas) aborda fundamentalmente três
itens: a história da escrita, a função social e política da alfabetização e o processo de
alfabetização na Educação Infantil. Essa nova vertente da disciplina parece estar mais voltada
para conhecimentos mais específicos da Educação Infantil, já que preocupa-se com a préhistória da escrita na infância: a fala, o desenho, além da alfabetização, propriamente dita,
nesse nível de ensino. Dessa forma, o tópico sobre função social e política da alfabetização
deveria ser incluído na primeira etapa da disciplina, visto que faz parte de questões mais
abrangentes da alfabetização e não de especificidades do ensino da Educação Infantil. Uma
pergunta que fica, e que somente por uma análise das ementas fica difícil responder, é o que o
curso em questão entende por alfabetização na Educação Infantil, qual é a concepção desse
fenômeno dirigido a crianças de até cinco anos de idade?
Vejamos, agora, as ementas da disciplina “Fundamentos do ensino de Língua Portuguesa”:
Quadro 5 – Ementas da disciplina “Fundamentos do ensino de Língua Portuguesa” –
BETA
Ementas
Currículo
2002
Currículo
2006
Carga
horária
Fundamentos do ensino da Língua Portuguesa
Fundamentos teórico-metodológicos da alfabetização: lingüísticos, psicológicos,
sociológicos e pedagógicos. A leitura e a escola como produção social.
Fundamentos do ensino de Língua Portuguesa
Fundamentos teórico-metodológicos para a formação do professor de língua
materna (leitura e escrita/ literatura infantil).
80 h
80 h
A disciplina “Fundamentos do ensino da Língua Portuguesa” do currículo de 2002 se
assemelha muito com a disciplina sobre alfabetização do mesmo período curricular. Como
podemos observar, ela se pauta nos “fundamentos teórico-metodológicos da alfabetização:
lingüísticos, psicológicos, sociológicos e pedagógicos”, distinguindo muito pouco, em termos
de abrangência conteudística, daquilo que acabamos de analisar na disciplina “Fundamentos
da alfabetização”, com acréscimo apenas da questão da leitura e da escola “como produção
social”. Item este, a meu ver, muito hermético para a redação de uma ementa, na medida em
que não se esclarece o ponto principal de estudo da disciplina. “Leitura como produção
social”: o que se abordará da leitura? Estratégias de leitura? Leitura como simples fruição?
Leitura como instrumento de letramento? Leitura do quê? De que gêneros? Leitura apenas
literária?
“Escola como produção social”: esse item é mais obscuro ainda, pois o que se pretende
abstrair dele? Que objetivos e conteúdos estão vinculados a tal proposição? Como podemos
perceber, essa ementa não proporciona uma abordagem objetiva dos conhecimentos
específicos do ensino da Língua Portuguesa.
A ementa referente ao currículo de 2006, mesmo sendo bastante sintética, consegue ser mais
esclarecedora e mais coerente do que a de 2002, pois não trabalha mais com a questão da
alfabetização e se propõe a abordar as teorias e os métodos do ensino da língua materna,
especificando a leitura, a escrita e a literatura infantil como focos.
A observação fica
novamente por conta da carga horária da disciplina, ou seja, como trabalhar em apenas 80
horas: o ensino da leitura, com toda a sua complexidade; da escrita – pressupõe-se que nela
esteja incluso o trabalho de produção de textos escritos e orais –; e também da literatura
infantil.
Vejamos, agora, o que nos trazem as ementas das disciplinas “Comunicação e Linguagem” e
“Lingüística aplicada à educação”:
Quadro 6 – Ementas das disciplinas “Comunicação e linguagem” e “Lingüística
aplicada à educação” – BETA
Ementas
Currículo
2002
Currículo
2006
Comunicação e linguagem
Diferentes possibilidades de um processo de Comunicação. Conceitos de texto,
linguagem, significado e literatura. Formas de leitura de texto. Avaliação crítica da
leitura infanto-juvenil. Formas de contar histórias.
Comunicação e linguagem
Aspectos gerais da Língua Portuguesa. Leitura e produção de textos básicos.
Lingüística aplicada à educação
Conceitos da leitura, texto, discurso. Língua e variação. Aspectos da língua
portuguesa relativos à educação infantil e ao Ensino Fundamental.
Carga
horária
80 h
40 h
40 h
Como podemos observar, a carga horária total (80 horas) da disciplina “Comunicação e
linguagem” referente ao currículo de 2002 é dividida em duas disciplinas no currículo de
2006. Sendo assim, a partir de 2006 tem-se além de “Comunicação e linguagem”, agora com
40 horas de duração, também “Lingüística aplicada à educação”, com a mesma carga horária.
Se analisarmos a ementa referente ao currículo de 2002, veremos que ela se concentra no
estudo dos conceitos de texto, linguagem, significado, literatura e leitura de texto. Essa é, sem
dúvida, uma disciplina essencial para a formação do futuro professor de Português das séries
iniciais, visto que trabalha com conceitos fundamentais para ensino da língua, muitas vezes
desprezados pelos cursos de Pedagogia. Segundo Fiorin (2007, p. 97), um dos problemas
cruciais do ensino do Português “se funda sobre noções equivocadas e estreitas a respeito do
funcionamento, da estrutura e das funções da linguagem humana”, já que a concepção de
língua/linguagem que, normalmente, norteia o trabalho escolar é de uma língua una e
inflexível.
Também, nessa mesma disciplina, observamos uma preocupação em se trabalhar criticamente
com a literatura infanto-juvenil, ponto muito positivo, já que o estudo se propõe a ir além da
apresentação teórico-metodológica da questão, forçando os futuros professores a se
posicionarem frente a um objeto tão utilizado nas salas de aula das primeiras séries, mas tão
pouco questionado em termos de sua qualidade e aplicabilidade no processo de letramento
infantil – a crítica novamente, é não unir a literatura a uma concepção de ensino por meio de
gêneros.
No currículo de 2006, a disciplina “Comunicação e linguagem” aparece bem mais
compactada, voltando-se para os “aspectos gerais da Língua Portuguesa” e para a “leitura e
produção de textos básicos”. A ementa, nesse caso, não nos dá caminhos muito claros do
direcionamento da disciplina, pois por “aspectos gerais da Língua Portuguesa” podemos
imaginar uma diversidade de conhecimentos que envolvem o funcionamento da língua. No
que se refere à leitura e produção de textos básicos, o problema está em não explicitar se o
objetivo de tal disciplina é abordar o ensino da leitura e da produção de textos direcionado
para as séries iniciais ou se é trabalhar a leitura e a produção de textos pensando no letramento
dos alunos do curso de Pedagogia, a partir do estudo de alguns gêneros textuais “básicos” 10 .
O mais coerente seria pensar, nesse primeiro momento, em práticas de letramento voltadas
aos futuros professores, pois é inadmissível que um professor que se propõe a ser um letrador
de crianças das séries iniciais não tenha vivenciado relevantes práticas de letramento em sua
formação inicial. Ou seja, não podemos apenas ensinar aos nossos graduandos métodos de
ensino de leitura e escrita sem que eles tenham passado por uma experiência semelhante. O
mais correto seria ser letrado (pelo menos nos principais gêneros trabalhados nas séries
iniciais) para depois aprender a ser um letrador; caso contrário, corremos o risco de formar
técnicos de ensino da língua, instrumentalistas do letramento – aqueles que só aprendem a
usar as ferramentas para ensinar, mas, na vivência concreta das práticas sociais, não
conseguem assumir o papel de agentes produtores de linguagem, conseqüentemente, são
incapazes de empreender uma ação de linguagem compatível a um profissional dito
“letrador”.
A disciplina “Lingüística aplicada à educação”, introduzida no currículo de 2006 amplia um
pouco mais os conhecimentos linguísticos do futuro professor de Português das séries iniciais.
Além das concepções de língua, texto, leitura a disciplina agora introduz os conceitos de
discurso e variação linguística, tão cruciais para a formação básica de qualquer profissional
que se propõe a trabalhar com o ensino da língua. “No ensino da língua materna, o aluno
deveria ser levado a compreender a natureza e a função da linguagem humana: as línguas
variam, mudam, o uso de determinadas variedades linguísticas são marcas de uma identidade
social” (FIORIN, 2007, p. 99); e compreender essa variabilidade da língua é responsabilidade
de todo professor letrador.
10
Em conversa informal com a professora responsável pela disciplina, foi dito que se trata de letramento do
professor em formação.
Para finalizar nossa análise do curso de Pedagogia BETA, ressaltamos que, apesar do esforço
do curso em criar disciplinas voltadas à compreensão do funcionamento e das concepções da
linguagem, ainda há uma grande carência quanto à inserção curricular da concepção de
letramento escolar (esse termo não aparece em nenhuma ementa analisada), da língua como
forma de interação interpessoal e do gênero como objeto de ensino da Língua Portuguesa –
concepções estas já afloradas na redação de 1997 dos PCN e tão pesquisadas pelos estudiosos
da linguagem da atualidade. Acredito que um currículo de Pedagogia (espaço destinado à
formação do professor letrador das séries iniciais) construído a partir desse tripé – língua
como forma de interação, letramento, e gênero como objeto de ensino – pode proporcionar ao
futuro professor de Português das séries iniciais uma formação sólida capaz de lhe dar
subsídios necessários para, em ambiente escolar, assumir conscientemente seu papel de
professor letrador.
Não há uma preocupação do curso em incluir discussões e análises dos documentos oficiais
que regem o ensino da Língua Portuguesa, como, por exemplo, os PCN, documento
mencionado várias vezes na presente pesquisa. Também não foi verificado nenhum trabalho
específico de análise e elaboração de materiais didáticos voltados para o ensino da língua nas
primeiras séries – item de suma importância para um curso de licenciatura, uma vez que
saber utilizar com criticidade os diversos materiais didáticos que circulam nas salas de aula é
uma competência essencial para qualquer professor, bem como saber elaborar o seu próprio
material didático.
6. Conclusão
Como pudemos observar ao longo das análises, os dois cursos pesquisados se enquadram no
perfil geral do curso de Pedagogia delineado pelas suas diretrizes nacionais, a saber, um curso
generalista, “pesado” e, por essas razões, incapaz de dar conta da complexidade de
conhecimentos que, necessariamente, deveriam estar presentes em seus currículos. Ambos
acabam sucumbindo ao lema da ANFOPE da docência como base da formação do pedagogo,
mas, na prática, esse lema se torna impraticável, uma vez que nem os currículos conseguem
colocar a docência como base de sustentação da formação desse profissional e tampouco o
curso tem mecanismos para assegurar que a experiência docente seja requisito necessário ao
exercício da gestão escolar, já que o diplomado no curso já sai habilitado para tal função.
No caso da formação específica do professor de Português das séries iniciais, foi possível
verificar a pouca ênfase dada aos conteúdos disciplinares que regem o ensino da Língua
Portuguesa. O que vimos, na maior parte dos casos, são estudos voltados às metodologias do
ensino da língua e uma abordagem “pedagogizada” da alfabetização, uma vez que a disciplina
sobre alfabetização, além de voltar-se para questões essencialmente pedagógicas, na maioria
das vezes, ignora a relação entre alfabetização e letramento – tão crucial para o ensino das
séries iniciais – e desconsidera a relação intrínseca entre alfabetização e linguística (cf.
CAGLIARI, 1992).
Tomando por base a formação do professor letrador das séries iniciais nos cursos de
Pedagogia, o ponto mais crítico observado na organização curricular dos cursos pesquisados
diz respeito à ausência de uma concepção interacionista da linguagem, com foco em uma
perspectiva de letramentos ou práticas letradas consolidadas a partir do domínio, por parte do
aluno, da diversidade de gêneros de textos existentes em nossa sociedade.
Ignorar o ensino da língua a partir de uma visão de multiletramentos, ou seja, por meio da
apropriação da variedade de gêneros que perpassam o mundo social do aluno das séries
iniciais é atribuir à língua apenas o papel de um objeto escolar: “antes de ser um objeto
escolar a serviço da aquisição do conhecimento, a língua escrita garante modos de inserção na
sociedade e de participação crítica no complexo de nossa cultura” (COLELLO, 2007, p. 91).
Dessa forma, um currículo que não coloca o letramento escolar como objetivo principal da
formação de seus futuros professores de Português, não dá subsídios a estes de transformarem
uma realidade tão lamentável e tão criticada como a que o Brasil apresenta em termos de
letramento dos nossos alunos e apontada por inúmeros indicadores sociais como o INAF, o
SAEB, o IDEB, a Prova Brasil, e por meio de várias pesquisas acadêmicas preocupadas com
o ensino da língua materna.
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a abordagem do letramento e do ensino de gêneros na