ARTIGO DE REVISÃO
R E V I S TA P O R T U G U E S A
DE
CIÊNCIAS VETERINÁRIAS
Instabilidade da caseína em leite sem acidez adquirida
Casein instability in milk without acquired acidity
Daniela S. Oliveira, Cláudio D. Timm*
Inspeção de Leite e Derivados, Faculdade de Veterinária, Universidade Federal de Pelotas,
prédio 34, campus universitário, Pelotas, RS, Brasil, CEP: 96010-900
Resumo: O aparecimento de leite que reage positivamente à
prova do álcool, sem ter elevada acidez nem ser originário de
vacas com mastite, é um problema prático que acomete com
freqüência rebanhos leiteiros e/ou indústrias lácteas. Neste
trabalho, é apresentada uma breve revisão sobre a ocorrência
de leite com proteína instável, abordando alguns aspectos
relacionados à estabilidade coloidal da caseína. A caseína é uma
fosfoproteína com atividade anfipática por possuir regiões
hidrofílicas e hidrofóbicas, sendo os filamentos hidrofílicos da
κ-caseína na superfície da micela os responsáveis por sua
estabilidade. Hidrólise enzimática da κ-caseína, temperatura,
pH, excesso de Ca2+ e adição de etanol estão entre os principais
fatores que levam à instabilidade das micelas. Leites com
proteína instável sem acidez adquirida apresentam diminuição
no teor de caseína e aumento na concentração de íões, particularmente cálcio, e parecem estar correlacionados com épocas de
carência alimentar ou dietas deficitárias. Embora as causas
da ocorrência de leite com estas alterações ainda não sejam
completamente conhecidas, os estudos realizados são sugestivos de que estejam relacionadas com o manejo nutricional
inadequado.
Summary: Milk positive in alcohol test, without high acidity
and not from mastitic cows is a practical problem that frequently
happens in dairy herds and industries. This work presents a
short review about the occurrence of milk with instable protein,
concerning some aspects related to colloidal stability of the
casein. Casein is a phosphoprotein with anphypatic activity
because it has hydrophilic and hydrophobic regions. The
hydrophilic filaments of κ-casein on micelle surface are responsible for its stability. Enzymatic hydrolysis of κ-casein, temperature,
pH, excess of Ca2+, and ethanol addition are the main factors
that induce instability of the micelle. Milk with instable protein
without acquired acidity shows decreased casein content and
increased ions concentration, especially calcium, and seems to
be correlated with periods of food shortage or deficient diets.
Although the causes of the occurrence of milk with this
alteration are not completely known yet, the studies carried out
suggest it is related to unsuitable nutritional handling.
*Correspondência: [email protected]
Tel: +55 53 32757216; Fax: +55 53 32757311
Introdução
Há várias décadas existem dados sobre alterações
nas características físico-químicas do leite por causas
não totalmente esclarecidas. O aparecimento de leite
que reage positivamente à prova do álcool ou à prova
do cozimento, sem estar ácido nem ser originário de
vacas com mastite, é um problema prático que
acomete com freqüência rebanhos leiteiros e/ou
indústrias lácteas (Ponce, 1999).
A estabilidade do leite ao etanol, definida como a
concentração mínima de etanol em solução aquosa
que promove a coagulação do leite (Horne e Parker,
1979), tem sido utilizada em alguns países como
método rápido e barato para determinar a acidez
adquirida do leite. O leite produzido nas propriedades
rurais deve apresentar resultado negativo na prova do
álcool, ou seja, não deve formar grumos quando
misturado a igual volume de solução de etanol em
concentrações pré-estabelecidas, geralmente 70 ou 72 %
(v/v), antes de ser coletado para o tanque isotérmico
do caminhão transportador (Brasil, 2002; Chavez et
al., 2004). O leite com resultado positivo no teste é
considerado com baixa resistência térmica, podendo
coagular nas placas do pasteurizador durante o tratamento. Entretanto, a ocorrência de leite sem acidez
adquirida, com baixa contagem bacteriana, positivo na
prova do álcool tem levado à rejeição de leite com boa
qualidade (Timm et al., 2002; Donatele et al., 2003),
acarretando perdas econômicas ao produtor, que não
recebe pagamento pelo leite, e à indústria de laticínios, que tem o fornecimento de leite diminuído.
Alterações na estabilidade do leite frente ao etanol
também têm sido relatadas em outros países (Donnelly
e Horne, 1986; Ponce, 1999; Barros et al., 2000;
Negri, 2002).
Neste trabalho, é apresentada uma breve revisão
sobre leite positivo no teste do álcool, sem acidez
adquirida e com baixa contagem de células somáticas,
com objetivo de caracterizar sua ocorrência, abordando
alguns aspectos relacionados com a estabilidade
coloidal da caseína, sem, no entanto, ter a pretensão de
esgotar o tema.
17
Oliveira DS e Timm CD
Caseína
Leite é uma solução contendo sais, lactose e proteínas dispersos em fase aquosa, glóbulos de gordura em
emulsão e partículas hidratadas de proteína em
suspensão coloidal (Walstra e Jenness, 1984).
As proteínas do leite são divididas em duas classes
principais. A primeira fração, que corresponde a
aproximadamente 80% da proteína total do leite
bovino, é formada pela caseína. A segunda fração
compreende as proteínas do soro lácteo (Cheftel et al.,
1989).
Caseína pode ser definida como uma proteína micelar
precipitada por acidificação do leite desnatado a pH
4,6 e a temperatura de 20 °C, sendo classificada como
fosfoproteína, devido à presença de fósforo (Sgarbieri,
1996). A caseína tem atividade anfipática por possuir
regiões hidrofóbicas e hidrofílicas (de Kruif e
Grinberg, 2002). A conformação das moléculas expõe
consideravelmente os resíduos hidrofóbicos, o que
resulta em forte associação entre as caseínas e as torna
insolúveis em água (Goff, 2006).
A caseína possui seqüências fosforiladas através das
quais pode interagir com fosfato de cálcio, o que a
torna capaz de seqüestrar fosfato de cálcio, formando
minúsculos agrupamentos de íons circundados por
uma camada de proteína (Little e Holt, 2004; Holt,
2004). Segundo Smyth et al. (2004), além da função
nutricional, a caseína é o meio pelo qual grande
quantidade de cálcio pode passar pelo epitélio
mamário sem provocar problemas de calcificação.
Esta função impõe limites à seqüência primária da
proteína, influenciando sua conformação em solução e
sua organização com o fosfato de cálcio.
O termo micela tem sido usado para designar a
mistura complexa de proteínas dispersas do leite na
forma de partículas coloidais aproximadamente esféricas. Cerca de 80-90% de toda caseína está nessa forma
(Sgarbieri, 1996). Micelas de caseína são agregados
relativamente grandes desta proteína, possuindo
aproximadamente 7% de fosfato de cálcio e pequenas
quantidades de citrato (Horne, 2003; Smyth et al.,
2004). Uma micela típica tem raio de 100 nm e massa
de 109 Da, contendo aproximadamente 800 núcleos de
fosfato de cálcio por micela. Cada núcleo tem 61 kDa
de massa e 2,4 nm de raio (Holt et al., 2003). A
principal força de formação das micelas em solução
aquosa é o efeito hidrofóbico, assim, todos os fatores
que promovem interações hidrofóbicas, como aumento
da temperatura e adição de alguns sais, facilitam a
organização das caseínas em micelas (Mikheeva et al.,
2003).
A natureza e a estrutura das micelas de caseína têm
sido extensivamente estudadas, mas sua exata estrutura
ainda permanece em debate. A maioria dos modelos
propostos enquadra-se em uma de três categorias
gerais: (1) modelo núcleo-córtex, baseado original18
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mente em estudos da solubilidade da caseína em
soluções com Ca2+, (2) modelo das submicelas,
baseado na influência do tratamento com uréia e
oxalato sobre a ruptura das micelas de caseína, e (3)
modelo de estrutura interna, baseado nas propriedades
de cada componente isoladamente, causando ou
direcionando a formação da estrutura interna das
micelas de caseína. Os vários modelos de estrutura das
micelas de caseína propostos nas últimas três décadas
podem ser verificados de forma detalhada na revisão
elaborada por Phadungath (2005).
O leite de vaca contém quatro tipos de caseína,
αs1, αs2, β e κ-caseína, na proporção 4:1:4:1 (de Kruif
e Grinberg, 2002), as quais são constituídas por 199,
207, 209 e 169 resíduos de aminoácidos, com pesos
moleculares de 23, 25, 24 e 19 kDa, respectivamente
(Goff, 2006).
A cadeia polipeptídica da caseína αs1 está formada
por duas regiões hidrofóbicas separadas por uma zona
polar. Todos os grupos fosfatos, menos um, estão no
segmento polar 45-89 e 17 resíduos de prolina se
distribuem nos segmentos hidrofóbicos. Portanto, esta
proteína pode ser considerada como uma cadeia
polipeptídica frouxa e flexível. A caseína αs1 precipita
com níveis de cálcio muito baixos.
A caseína αs2 possui uma estrutura bipolar com
cargas negativas concentradas perto da extremidade
N-terminal e positivas na porção C-terminal. É mais
sensível à precipitação pelo Ca2+ que a caseína αs1
(Walstra e Jenness, 1984).
A κ-caseína é uma fosfoproteína sensível ao Ca2+,
possuindo cinco serinas fosforiladas e 35 resíduos de
prolina (Mikheeva et al., 2003). É uma proteína
anfipática com uma região hidrofílica na porção
N-terminal e uma região C-terminal hidrofóbica com
carga quase zero. Nos sítios de ligação com o cálcio,
os resíduos de serina-fosfato têm carga -2 na ausência
de cálcio (Follows et al., 2004). Uma característica da
β-caseína é sua dependência da temperatura, formando
grandes polímeros a 20 ºC, mas não a 4 ºC (Walstra e
Jenness, 1984; Goff, 2006). A adsorção de β-caseína
aos núcleos de fosfato de cálcio limita o crescimento
desses (Follows et al., 2004). Segundo Horne (2003),
a β-caseína ligada ao núcleo de fosfato de cálcio atua
como uma ponte de ligação a outras caseínas. Por ser
mais fosforilada que a κ-caseína, a β-caseína é mais
sensível a altas concentrações de sais de cálcio,
embora seja menos sensível a precipitação com cálcio
do que as caseínas α (Walstra, 1999).
Diferentemente das outras caseínas, a κ-caseína é
uma glicoproteína e possui apenas um grupo fosfoserina, sendo, portanto, estável na presença de íons de
cálcio e assumindo importante papel na estabilidade
da micela de caseína (Dalgleish, 1998; Walstra, 1999).
O fosfato de cálcio atua como um agente cementante,
mas se não houver κ-caseína, a agregação continuará
até à formação de um gel ou de um precipitado
Oliveira DS e Timm CD
(Walstra, 1990). A κ-caseína se localiza na superfície
da micela, com a zona hidrofóbica da molécula ligada
à micela, enquanto a porção hidrofílica forma uma
capa de filamentos altamente hidratados que se projetam na fase aquosa. Os filamentos de κ-caseína são os
responsáveis pela estabilidade estérica das micelas de
caseína (Varnam e Sutherland, 1995). Em estudo
recente, Bansai et al. (2006) demonstraram que o
peptídeo N-terminal da κ-caseína apresenta uma
irregular estrutura helicoidal que pode contribuir para
a estabilidade da caseína.
Estabilidade das micelas de caseína
A estabilidade da micela de caseína depende da
presença da κ-caseína na sua superfície, a qual se
constitui na fração hidrofílica da caseína, que reage
com a água e impede a agregação das micelas
(Creamer et al., 1998). Segundo Tuinier e de Kruif
(2002), a estabilidade estérica gerada pela relativamente esparsa camada externa de κ-caseína em forma
de escova é o fator estabilizante mais importante.
Hidrólise enzimática da κ-caseína, temperatura, pH,
excesso de Ca2+ e adição de etanol estão entre os
principais fatores que afetam a estabilidade coloidal
das micelas de caseína (O’Connell et al., 2006).
Hidrólise enzimática
A hidrólise enzimática da κ-caseína reduz a estabilização estérica das micelas, bem como a repulsão
eletrostática intermicelar, resultando na coagulação do
leite (Fox et al., 1996).
Em um primeiro estágio, a quimosina cliva a ligação
entre os aminoácidos 105 (fenilalanina) e 106
(metionina) da cadeia peptídica da κ-caseína, eliminando sua capacidade estabilizante e gerando como
produtos uma porção hidrofóbica, para-κ-caseína, e
uma hidrofílica chamada glicomacropeptídeo, ou mais
apropriadamente, caseínomacropeptídeo. No segundo
estágio, as micelas se agregam devido à perda da
repulsão estérica da κ-caseína (Goff, 2006).
Leites mastíticos apresentam grande quantidade de
células somáticas. Os lisossomos dessas células
contêm enzimas proteolíticas, dentre as quais a
catepsina D, que pode produzir para-κ-caseína e
caseínomacropeptídeo a partir de κ-caseína e, em altas
concentrações, pode coagular o leite (Larsen
et al., 1996; Hurley et al., 2000).
Microrganismos psicrotróficos, ao se multiplicarem
no leite armazenado em baixas temperaturas,
produzem enzimas proteolíticas termoestáveis, a
maioria das quais tem ação sobre a κ-caseína, resultando na desestabilização das micelas e coagulação do
leite (Fairbairn e Law, 1986).
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Temperatura
A 4-5 ºC a interação hidrofóbica fica fraca e parte
das caseínas, em especial, a β-caseína inicia a dissociação das micelas. A hidratação aumenta, já que
as cadeias de β-caseína projetam-se da superfície
micelar e uma pequena parte do fosfato de cálcio se
dissolve. Estas trocas são responsáveis pela ligeira
desintegração das micelas. A 0 ºC a agregação micelar
é difícil de acontecer (Walstra, 1990). Em altas
temperaturas a quantidade de fosfato de cálcio associado às micelas aumenta e ocorre dissociação da
κ-caseína, diminuindo a estabilidade (O’Connell et
al., 2006).
Micelas de caseína de maior tamanho são menos
resistentes ao aquecimento do que micelas de menor
diâmetro, devido ao menor conteúdo de κ-caseína, o
que as torna mais susceptíveis ao Ca2+. O maior grau
de glicosilação da κ-caseína nas micelas de maior
tamanho em relação às micelas menores também
favorece a formação do complexo κ-caseína –
β-caseína (O’Connell e Fox, 2000).
PH
A acidificação reduz a carga e a hidratação das
proteínas (O’Connell et al., 2006). As ligações que
mantêm as micelas de caseína juntas são mais fracas e
escassas a pH 5,2 ou 5,3. A pH inferior, com o aumento da atração electrostática entre as moléculas de
caseína, as micelas mantêm-se mais fortemente
juntas; a pH superior uma quantidade crescente de
fosfato de cálcio coloidal faz o mesmo (Walstra,
1990).
Leite mastítico e do final da lactação têm três vezes
mais probabilidade de ser instáveis do que leites de
vacas no início ou meio da lactação. O fator responsável por este efeito é o aumento no pH do leite,
devido à maior permeabilidade do epitélio mamário
a pequenas partículas e íons (Holt, 2004).
Adição de etanol
A adição de etanol a uma solução aquosa diminui
a constante dielétrica do solvente, favorecendo as
interações eletrostáticas (Mikheeva et al., 2003).
A adição de etanol ao leite induz várias alterações
nas micelas de caseína: (1) colapso da região C-terminal proeminente da κ-caseína, levando à redução da
repulsão estérica intermicelar e do potencial hidrodinâmico das micelas; (2) o pKa dos resíduos de
glutamato e aspartato é aumentado, enquanto os
resíduos alcalinos lisina, arginina e histidina não são
afetados, o que leva à diminuição da carga negativa na
superfície das micelas; (3) redução na solubilidade do
cálcio e do fosfato associado às micelas de caseína. O
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colapso da camada de κ-caseína, a redução na carga
micelar e a precipitação do fosfato de cálcio colaboram para a redução da estabilidade micelar da
κ-caseína (O’Connell et al., 2006).
Robitaille et al. (2001) demonstraram que um
polimorfismo na expressão do gene da κ-caseína afeta
a estabilidade do leite ao etanol. Leite obtido de vacas
que apresentam predominância na expressão do alelo
B do gene da κ-caseína em relação ao alelo A
precipitou frente a concentrações de etanol significativamente maiores que as requeridas para precipitar
leite de vacas com expressão similar para os alelos
A e B.
Excesso de Ca2+
O aumento da força iônica ou a forte ligação de íons
específicos a grupos carregados da proteína pode
diminuir a repulsão eletrostática e favorecer a
auto-associação das proteínas (Mikheeva et al., 2003).
O excesso de Ca2+ é comparável ao salting out, ou seja,
quando ocorre excesso de sais diminui a solubilidade
das proteínas em água. O excesso de sais domina as
cargas do solvente (água), diminuindo, conseqüentemente, o número de cargas disponíveis para se ligarem
ao soluto (proteína). Desta forma, aumenta a interação
soluto/soluto, ocorrendo a precipitação das proteínas
(Riegel, 2001).
De acordo com Varnam e Sutherland (1995), a
concentração de citrato afeta o conteúdo de cálcio
solúvel e a estabilidade do leite. O citrato seqüestra o
cálcio iônico, reduzindo o cálcio disponível para
unir-se com a caseína e estabilizando as micelas,
evitando sua agregação.
Leite com instabilidade das micelas
de caseína
Em trabalho sobre coagulação do leite fresco frente
ao álcool, Mitamura (1937) menciona variações na
estabilidade do leite que ocorreram em Utrecht, na
Holanda, em 1930. De acordo com Davies e White
(1958), nos casos de Utrecht, a instabilidade da
proteína ao calor e ao etanol estava relacionada com a
concentração de íons de cálcio no leite. A adição de
substâncias alcalinas ou ânions que combinam com o
cálcio, como citrato de sódio, reduz a concentração de
íons de cálcio, aumentando a estabilidade do leite ao
etanol.
Na Itália, Pecorari et al. (1984) estudando leite com
tempo de coagulação anormal, encontraram valores
baixos para os teores de caseína, lactose e minerais
(cálcio e fósforo) e alterações nas propriedades
físico-químicas, como baixa acidez titulável, alto pH e
resultado positivo na prova do álcool.
Em Cuba, Ponce (1999) relatou que desde 1976
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ocorria, em uma região deste país, produção de leite
com reação alcalina e resultado positivo à prova do
álcool, sem que este leite fosse proveniente de vacas
com mastite ou com lactação prolongada. A única
condição associada a estas alterações foi a alimentação de animais da raça Holandês de alto potencial
genético baseada na utilização de cana-de-açúcar
como forragem durante a época de seca. O autor
propôs a denominação Síndrome do Leite Anormal
(SILA) para este tipo de anormalidade do leite.
A SILA, de acordo com Ponce e Hernández (2001),
refere-se a um conjunto de alterações nas
propriedades físico-químicas do leite, caracterizadas
por diminuição dos sólidos totais, da estabilidade
térmica e da capacidade tamponante, que causam
transtornos nos processos de elaboração de derivados
lácteos, no seu rendimento e/ou na sua qualidade
final. É um fenômeno ainda não bem identificado em
todos os casos, de causa multifatorial associada a
transtornos fisiológicos metabólicos e/ou nutricionais
com implicações nos mecanismos de síntese e
secreção lácteas. Os desequilíbrios em energia e
proteína associados às características da ração, com
implicações no ambiente ruminal e comprometimento
do metabolismo geral (acidose), são os fatores de
maior consideração nos casos que ocorreram em
Cuba. Essa síndrome teve maior ocorrência em bovinos
com alto potencial genético e em épocas de estresse
nutricional e/ou calórico.
Barros et al. (1999), no Uruguai, notaram influência
da época do ano sobre a ocorrência de leite com
resultado positivo na prova do álcool, observando uma
freqüência aparentemente maior no Outono e na
mudança de estação de Inverno para Primavera,
estando associada com períodos de seca.
No período de seca do ano de 1993, em Havana, foi
realizado um estudo em 227 propriedades leiteiras
com 15.000 vacas em ordenha. Das amostras
analisadas, 79% apresentaram resultado positivo no
teste do álcool, com acidez menor que 13 ºD (graus
Dornic), indicando que nem sempre o resultado positivo no álcool está relacionado com acidez elevada.
Nesse estudo, foi acompanhado o processo de ordenha
para excluir adulteração por aguagem, bem como foi
conferida a ocorrência de mastite, excluindo amostras
positivas ao California Mastitis Test (CMT) com duas
ou mais cruzes (Ponce e Hernández, 2001).
Na região Sul do Rio Grande do Sul, Brasil, Oliveira
et al. (2002), estudando a ocorrência de leite instável,
analisaram 141 amostras de leite com acidez titulável
inferior ou igual a 20 ºD e contagem de células
somáticas (CCS) abaixo de 1,28 x 106 mL-1, e encontraram 52 (36,88%) com reação positiva no teste do
álcool.
Timm et al. (2002), no período compreendido entre
Maio e Julho de 2002, estudando leite com instabilidade protéica, encontraram em 274 amostras de leite
produzido em propriedades rurais do extremo sul do
Oliveira DS e Timm CD
Brasil, 126 (45,99%) com reação positiva na prova do
álcool e 148 (54,01%) com reação negativa. Das
amostras positivas, 22 (17,46%) estavam com acidez
acima de 20 ºD, sendo consideradas com caseína
instável devido à acidificação pela multiplicação
bacteriana. Cento e quatro (82,54%) amostras
positivas na prova do álcool apresentaram acidez até
20 ºD, indicando que a perda da estabilidade protéica
foi causada por outros fatores que não a acidez.
Donatele et al. (2003), analisando a relação do teste
de alizarol a 72%, acidez e CCS, em leite de 847
quartos de 37 animais de uma propriedade no Rio de
Janeiro, Brasil, verificaram que 287 se mostraram
instáveis ao alizarol. Entre estas, 257 apresentaram pH
entre 6,4 e 6,8 e 30 acima de 6,8; 77 demonstraram
acidez titulável inferior a 15 ºD, 171 entre 15 e 18 ºD
e 39 entre 18,1 e 20 ºD. Os autores observaram que
amostras de leite positivas no teste do alizarol não
apresentavam acidez adquirida (acima de 20 ºD) e
possuíam resistência térmica.
No Uruguai, Barros et al. (2000), estudando
variações na composição do leite individual em
função da positividade à prova do álcool, encontraram
146 amostras de leite negativas na prova do álcool e 70
positivas. Segundo esses autores, a estabilidade do
leite ao teste do álcool depende da composição das
pastagens, da composição química do leite, das
propriedades das micelas de caseína e dos componentes do soro lácteo. A reação positiva de leite com
pH normal (6,6 a 6,8) ao teste do álcool pode estar
relacionada com variações metabólicas ou nutricionais e com o período de lactação das vacas.
Zadow (1993) menciona que desde os primeiros
estudos sobre estabilidade do leite ao etanol, se
determinou que os cátions bivalentes e a concentração
de etanol têm um importante efeito na prova, estabelecendo que a concentração de etanol requerida para
coagular a caseína em um volume igual de leite está
inversamente relacionada com a concentração de íons
de cálcio. De acordo com Holt (1991), uma concentração elevada de Ca2+ tende a unir as caseínas favorecendo a coagulação. Barros et al. (1998) estudando a
relação entre cálcio iônico e teste do álcool no leite,
observaram diferenças significativas entre os teores de
Ca2+ de leites positivo e negativo no teste do álcool,
sendo os valores médios de 0,110 ± 0,014 e 0,083 ±
0,017 g/L, respectivamente.
Barros (2001) associou a ocorrência de leite
instável com dietas ricas em cálcio, com deficiências
ou desbalanços minerais (Ca, P, Mg) e com mudanças
bruscas na dieta.
Chavez et al. (2004) estudaram a composição de
leite com estabilidade alterada e observaram que baixa
concentração de caseína foi um dos fatores que
caracterizou as amostras de leite instável, embora a
concentração total de proteína tenha sido similar entre
os grupos com amostras de leite instável e de leite
estável. Importantes diferenças entre grupos também
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foram observadas quanto aos elementos minerais,
dentre os quais Cl, Na e K, que apresentaram valores
mais elevados no grupo de amostras de leite instável
do que no grupo de leite estável. Os resultados obtidos
neste trabalho corroboram a tese de que a força
dielétrica do meio tem importante papel na precipitação induzida pelo etanol. O aumento da força iônica,
resultante da elevação dos níveis de Cl, Na e K, reduz
a constante dielétrica do meio enfraquecendo a
barreira energética que evita a coagulação. Os autores
também observaram valores mais elevados para Ca2+
no grupo de amostras de leite instável, embora com
menor nível de significância.
Conclusão
A produção de leite com caseína instável por
animais sadios é um problema que tem acometido
bacias leiteiras em diversas regiões. Leites com estas
alterações apresentam diminuição no teor de caseína e
aumento na concentração de íons, particularmente
cálcio, e parecem estar correlacionados com épocas de
carência alimentar ou dietas deficitárias. Embora as
causas da ocorrência de leite com proteína instável
sem acidez adquirida ainda não sejam completamente
conhecidas, os estudos realizados são sugestivos
de que estejam relacionadas a manejo nutricional
inadequado.
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Nº 561-562 • pp 1-192 • Jan - Jun 2007