FILOSOFIA DA CIÊNCIA 1. A Ciência na História 1. As três principais concepções de ciência Historicamente, três têm sido as principais concepções de ciência ou de ideais de cientificidade: O racionalista, cujo modelo de objetividade é a matemática; O empirista, que toma o modelo de objetividade da medicina grega e da história natural do século XVII; O construtivista, cujo modelo de objetividade advém da idéia de razão como conhecimento aproximativo; A Ciência na História A concepção racionalista – que se estende dos gregos até o final do século XVII – afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo como a matemática, portanto, capaz de provar a verdade necessária e universal de seus enunciados e resultados, sem deixar qualquer dúvida possível; Uma ciência é a unidade sistemática de axiomas, postulados e definições, que determinam a natureza e as propriedades de seu objeto, e de demonstrações, que provam as relações de causalidade que regem o objeto investigado; A Ciência na História O objeto científico é uma representação intelectual universal, necessária e verdadeira das coisas representadas e corresponde à própria realidade, porque esta é racional e inteligível em si mesma; As experiências científicas são realizadas apenas para verificar e confirmar as demonstrações teóricas e não para produzir o conhecimento do objeto, pois este é conhecido exclusivamente pelo pensamento; O objeto científico é matemático, porque a realidade possui uma estrutura matemática, ou como disse Galileu, “o grande livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos”; A Ciência na História A concepção empirista – que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do século XIX – afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos que permitem estabelecer induções e que, ao serem completadas, oferecem a definição do objeto, suas propriedades e suas leis de funcionamento. A teoria científica resulta das observações e dos experimentos, de modo que a experiência não tem simplesmente o papel de verificar e confirmar conceitos, mas tem a função de produzi-los. Eis por que, nesta concepção, sempre houve grande cuidado para estabelecer métodos experimentais rigorosos, pois deles dependia a formulação da teoria e a definição da objetividade investigada. A Ciência na História Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto, embora o realizassem de maneiras diferentes. Ambas consideravam que a teoria científica era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal como esta é em si mesma. A ciência era uma espécie de raio-X da realidade. A concepção racionalista era hipotético-dedutiva, isto é, definia o objeto e suas leis e disso deduzia propriedades, efeitos posteriores, previsões. A concepção empirista era hipotético-indutiva, isto é, apresentava suposições sobre o objeto, realizava observações e experimentos e chegava à definição dos fatos, às suas leis, suas propriedades, seus efeitos posteriores e previsões. A Ciência na História A concepção construtivista – iniciada no século passado – considera a ciência uma construção de modelos explicativos para a realidade e não uma representação da própria realidade; O cientista combina dois procedimentos – um, vindo do racionalismo, e outro, vindo do empirismo – e a eles acrescenta um terceiro, vindo da idéia de conhecimento aproximativo e corrigível; A Ciência na História Como o racionalista, o cientista construtivista exige que o método lhe permita e lhe garanta estabelecer axiomas, postulados, definições e deduções sobre o objeto científico. Como o empirista, o construtivista exige que a experimentação guie e modifique axiomas, postulados, definições e demonstrações. No entanto, porque considera o objeto uma construção lógico-intelectual e uma construção experimental feita em laboratório, o cientista não espera que seu trabalho apresente a realidade em si mesma, mas ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade, explicando os fenômenos observados. A Ciência na História Não espera, portanto, apresentar uma verdade absoluta e sim uma verdade aproximada que pode ser corrigida, modificada, abandonada por outra mais adequada aos fenômenos. São três as exigências de seu ideal de cientificidade: 1. Que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios que orientam a teoria; 2. Que os modelos dos objetos (ou estruturas dos fenômenos) sejam construídos com base na observação e na experimentação; 3. Que os resultados obtidos possam não só alterar os modelos construídos, mas também alterar os próprios princípios da teoria, corrigindoa. 2. Diferença entre ciência Antiga e Moderna Quando apresentamos os ideais de cientificidade, dissemos que tanto o ideal racionalista quanto o empirista se iniciaram com os gregos. Porém, não significa que a concepção antiga e a moderna (século XVII) de ciência sejam idênticas. Tomemos um exemplo que nos ajude a perceber algumas das diferenças entre antigos e modernos. A) Aristóteles escreveu uma Física. Diferença entre ciência Antiga e Moderna O objeto físico ou natural, diz Aristóteles, possui duas características principais: em primeiro lugar, existe e opera independentemente da presença, da vontade e da ação humanas; em segundo lugar, é um ser em movimento, isto é, em devir, sofrendo alterações qualitativas, quantitativas e locais; nasce, vive e morre ou desaparece. A Física estuda, portanto, os seres naturais submetidos à mudança. Diferença entre ciência Antiga e Moderna Os seres físicos não se movem da mesma maneira (não se transformam nem se deslocam da mesma maneira). Seus movimentos e mudanças dependem da qualidade de suas matérias e da quantidade em que cada um dos quatro elementos materiais existe combinado com os outros num corpo. Deixemos de lado todas as modalidades de movimentos estudadas por Aristóteles e examinemos apenas uma: o movimento local. Os corpos, diz o filósofo, procuram atualizar suas potências materiais, atualizando-se em formas diferentes. Cada modalidade de matéria realiza sua forma perfeita de maneira diferente das outras. Diferença entre ciência Antiga e Moderna No caso do movimento local, a matéria define lugares naturais, isto é, locais onde ela se atualiza ou se realiza melhor do que em outros. Assim, os corpos pesados (nos quais predomina o elemento terra) têm como lugar natural o centro da Terra e por isso o movimento local natural dos pesados é a queda. Os corpos leves (nos quais predomina o elemento fogo) têm como lugar natural o céu e por isso seu movimento local natural é subir. Diferença entre ciência Antiga e Moderna Os corpos não inteiramente leves (nos quais predomina o elemento ar) buscam seu lugar natural no espaço rarefeito e por isso seu movimento local natural é flutuar. Enfim, os corpos não totalmente pesados (nos quais predomina o elemento água) buscam seu lugar natural no líquido e por isso seu movimento local natural é boiar nas águas. Diferença entre ciência Antiga e Moderna Além dos movimentos naturais, os corpos podem ser submetidos a movimentos violentos, isto é, àqueles que contrariam sua natureza e os impedem de alcançar seu lugar natural. Por exemplo, quando o arqueiro lança uma flecha, imprime nela um movimento violento, pois força-a a permanecer no ar, embora seu lugar natural seja a terra e seu movimento natural seja a queda. Diferença entre ciência a Antiga e Moderna Este pequeno resumo da Física aristotélica nos mostra algumas características marcantes da ciência antiga: É uma ciência baseada nas qualidades percebidas nos corpos (leve, pesado, líquido, sólido, etc.); É uma ciência baseada em distinções qualitativas do espaço (alto, baixo, longe, perto, celeste, sublunar); É uma ciência baseada na metafísica da identidade e da mudança (perfeição imóvel, imperfeição móvel); Diferença entre ciência a Antiga e Moderna É uma ciência que estabelece leis diferentes para os corpos segundo sua matéria e sua forma, ou segundo sua substância; Como conseqüência das características anteriores, é uma ciência que concebe a realidade natural como um modelo hierárquico no qual os seres possuem um lugar natural de acordo com sua perfeição, hierarquizando-se em graus que vão dos inferiores aos superiores; Diferença entre ciência a Antiga e Moderna Os objetos físicos investigados pelo cientista começam por ser purificados de todas as qualidades sensoriais – cor, tamanho, odor, peso, matéria, forma, líquido, sólido, leve, grande, pequeno, etc. -, isto é, de todas as qualidades sensíveis, porque estas são meramente subjetivas. O objeto é definido por propriedades objetivas gerais, válidas para todos os seres físicos: massa, volume, figura. Torna-se irrelevante o tipo de matéria, de forma ou de substância de um corpo, pois todos se comportam fisicamente da mesma maneira. Torna-se inútil a distinção entre um mundo celeste e um mundo sublunar, pois astros e corpos terrestres obedecem às mesmas leis universais da física; Diferença entre ciência a Antiga e Moderna Quando comparamos a física de Aristóteles com a moderna, isto é, a que foi elaborada por Galileu e Newton, podemos notar as grandes diferenças: Para a física moderna, o espaço é aquele definido pela geometria, portanto, homogêneo, sem distinções qualitativas entre alto, baixo, frente, atrás, longe, perto. É um espaço onde todos os pontos são reversíveis ou equivalentes, de modo que não há “lugares naturais” qualitativamente diferenciados; Diferença entre ciência a Antiga e Moderna A física estuda o movimento não como alteração qualitativa e quantitativa dos corpos, mas como deslocamento espacial que altera a massa, o volume e a velocidade dos corpos. O movimento e o repouso são as propriedades físicas objetivas de todos os corpos da Natureza e todos eles obedecem às mesmas leis – aquelas que Galileu formulou com base no princípio da inércia (um corpo se mantém em movimento indefinidamente, a menos que encontre um outro que lhe faça obstáculo ou que o desvie de seu trajeto); e aquelas formuladas por Newton, com base no princípio universal da gravitação (a toda ação corresponde uma reação que lhe é igual e contrária). Diferença entre ciência a Antiga e Moderna A Natureza é um complexo de corpos formados por proporções diferentes de movimento e de repouso, articulados por relações de causa e efeito, sem finalidade, pois a idéia de finalidade só existe para os seres humanos dotados de razão e vontade. Os corpos não se movem, portanto, em busca de perfeição, mas porque a causa eficiente do movimento os faz moverem-se; A física é uma mecânica universal; Diferença entre ciência a Antiga e Moderna A física da Natureza se torna geométrica, experimental, quantitativa, causal ou mecânica (relações entre a causa eficiente e seus efeitos) e suas leis têm valor universal, independentemente das qualidades sensíveis das coisas. Terra, mar e ar obedecem às mesmas leis naturais; A Natureza é a mesma em toda parte e para todos os seres, não existindo hierarquias ou graus de imperfeição-perfeição, inferioridadesuperioridade; Diferença entre ciência a Antiga e Moderna Há, ainda, uma outra diferença profunda entre a ciência antiga e a moderna. A primeira era uma ciência teorética, isto é, apenas contemplava os seres naturais, sem jamais imaginar intervir neles ou sobre eles. A técnica era um saber empírico, ligado a práticas necessárias à vida e nada tinha a oferecer à ciência nem a receber dela. Numa sociedade escravista, que deixava tarefas, trabalhos e serviços aos escravos, a técnica era vista como uma forma menor de conhecimento. Diferença entre ciência a Antiga e Moderna Duas afirmações mostram a diferença dos modernos em relação aos antigos: a afirmação do filósofo inglês Francis Bacon, para quem “saber é poder”, e a afirmação de Descartes, para quem “a ciência deve tornarnos senhores da Natureza”; A ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na Natureza, de conhecê-la para apropriar-se dela, para controlá-la e dominála; Diferença entre ciência a Antiga e Moderna A ciência não é apenas contemplação da verdade, mas é sobretudo o exercício do poderio humano sobre a natureza; Numa sociedade em que o capitalismo está surgindo e, para acumular o capital, deve ampliar a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar a Natureza, a nova ciência será inseparável da técnica; Diferença entre ciência a Antiga e Moderna Na verdade, é mais correto falar em tecnologia do que em técnica; De fato, a técnica é um conhecimento empírico, que, graças à observação, elabora um conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas; A tecnologia, porém, é um saber teórico que se aplica praticamente; Diferença entre ciência a Antiga e Moderna Por exemplo, um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar horas seguindo o movimento solar no céu. Um cronômetro, porém, é um objeto tecnológico: por um lado, sua construção pressupõe conhecimentos teóricos sobre as leis do movimento (as leis do pêndulo) e, por outro lado, seu uso altera a percepção empírica e comum dos objetos, pois serve para medir aquilo que nossa percepção não consegue perceber. Diferença entre ciência a Antiga e Moderna Uma lente de aumento é um objeto técnico, mas o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos, pois sua construção pressupõe o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica. Em outras palavras, um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber científico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas. A ciência moderna tornou-se inseparável da tecnologia.