POR UMA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: A EXPERIÊNCIA DO MUNICÍPIO DE SANTARÉM-PARÁ Willivane Ferreira de Melo Mestranda na Universidade Federal do Pará (UFPA) [email protected] Resumo: O presente artigo relata a experiência do município de Santarém, estado do Pará, no que diz respeito ao processo de construção de uma política pública de educação escolar quilombola no âmbito do sistema municipal de ensino. Apresenta as ações desenvolvidas por meio da Coordenação de Educação e Diversidade Étnico-Racial, criada em maio de 2006, na Semed (Secretaria Municipal de Educação e Desportos). Ao apresentá-las, realiza uma análise sucinta do processo, relatando as conquistas e os desafios existentes, com ênfase nas ações empreendidas pela gestão municipal, com vistas a responder às demandas educacionais das comunidades quilombolas. Palavras-chaves: quilombo, educação escolar quilombola, política pública. Página 1 Introdução O racismo institucional1 presente no Estado brasileiro traz diversas consequências à população negra, inclusive quilombola, sendo uma delas o baixo nível de escolarização de seus moradores. A discussão sobre a educação, juntamente com o tema da regularização fundiária, vem se desenhando nos últimos anos como um instrumento de luta pela garantia dos territórios negros e de promoção da igualdade racial. Com a reivindicação do movimento negro, as iniciativas de professores e militantes quilombolas, além de pesquisadores na temática, diversas experiências foram se desenvolvendo no contexto da educação escolar nas comunidades quilombolas em todo território nacional. No âmbito das secretarias de educação, tanto estadual quanto municipal, foram criados setores com o objetivo anunciado de tratar da implementação da Lei 10.639/03, que alterou os Artigos 26-A e 79-B da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) nº 9394/96, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira na educação básica 2. Em geral, esses setores não tinham a especificidade de tratar da educação formal nos territórios quilombolas (AMARAL, 2010). Neste ínterim, com as discussões sobre a aplicação desses artigos na política institucional das unidades escolares locais, as comunidades quilombolas foram surgindo como espaços privilegiados nesse contexto, entendidos como espaços de visibilidade da presença afrobrasileira, seja no estado ou no município. No caso do estado do Pará, em 2002, ano anterior à lei federal, foi criada a Seção Técnico-Pedagógica de Relações Raciais, no âmbito da Seduc (Secretaria de Estado da Educação), e em 2005, a seção foi substituída pela Copir (Coordenadoria de Educação 1 O racismo institucional atua no nível das instituições sociais, dizendo respeito às formas como estas funcionam, seguindo as forças sociais reconhecidas como legítimas pela sociedade e, assim, contribuindo para a naturalização e reprodução da hierarquia social. Não se expressa por atos manifestos, explícitos ou declarados de discriminação, orientados por motivos raciais, mas, ao contrário, atua de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, que, operam de forma diferenciada na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes grupos raciais. (SILVA et al., 2009, p.157) 2 Os Pareceres nº 03/2004 e nº 2/2007, bem como a Resolução nº 01/2004 do CNE (Conselho Nacional de Educação), ampliam a aplicação da referida lei para a educação básica e o ensino superior no Brasil. Página 2 para a Promoção da Igualdade Racial). 3 Portanto, vale ressaltar que este setor foi criado um ano antes da aprovação da lei, tendo contribuído com a apropriação da temática sobre as relações étnico-raciais no âmbito educacional em diversos municípios do estado, favorecendo a criação de setores específicos nas secretarias municipais de educação, inclusive em Santarém. O percurso O município de Santarém fica localizado na região oeste do Pará, conhecida como Baixo Amazonas, onde, juntamente com o Baixo Tocantins e Belém, segundo Funes (1995), houve significativa concentração de africanos escravizados no Pará, principalmente a partir do século XVIII, devido à atuação da Companhia Geral de Comércio Grão-Pará e Maranhão (1775-1778). E, embora não houvesse registro da procedência de um número considerável de africanos, o autor afirma, por meio de pesquisa em registros cartoriais e paroquiais da região, que a maioria dos africanos veio de regiões do continente onde hoje se situam a República Democrática do Congo e a República de Angola. Quanto à presença das comunidades quilombolas na região, Funes (1995) ressalta que a interação com o meio ambiente, sua organização interna e a relação de solidariedade entre os seus integrantes possibilitaram o surgimento das comunidades e sua continuidade ao longo dos anos. O Pará é um dos estados com maior número de comunidades identificadas segundo os dados de Cadastro Geral de Comunidades Quilombolas (Fundação Cultural Palmares, 2012). Conforme a divisão por regiões comumente adotada no município, as comunidades estão assim divididas: na região do planalto: Murumuru, Murumurutuba, Tiningú e Bom Jardim; na região da várzea do Rio Amazonas: Saracura, Arapemã, São José do Ituqui, Nova Vista do Ituqui e São Raimundo do Ituqui; e na região urbana: Pérola do Maicá. Recentemente, mais duas comunidades se auto-reconheceram como quilombolas e estão em processo de certificação pela Fundação Cultural Palmares: Patos do Ituqui e Água Fria (região de várzea). 3 Informação pessoal fornecida em agosto de 2012, por Amilton Sá Barretto, coordenador da Copir/ Seduc. Página 3 As lideranças quilombolas frequentemente atribuem ao Sr. Elias Vasconcelos a contribuição pioneira no trabalho de organização das comunidades no município para o reconhecimento de seus direitos. Ativista do movimento negro e nascido na Comunidade Quilombola de Arapemã, o Sr. Elias convidou seis comunidades (Tiningú, Bom Jardim, Murumuru, Murumurutuba, Arapemã e Saracura) a participar do Encontro de Raízes Negras, ocorrido em Belém, em 1996. Posteriormente, em 1999, o VIII Encontro de Raízes Negras foi realizado no município de Santarém, na Comunidade Quilombola de Saracura, onde participaram também as comunidades de Oriximiná, Alenquer e Óbidos, sendo esses encontros promovidos pelo Cedempa (Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará). As lideranças quilombolas de Santarém também reconhecem a contribuição do movimento quilombola em Oriximiná, além da Colônia de Pescadores Z-20 e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), neste processo inicial de organização. No ano de 2003 foi criada a Comissão de Articulação das Comunidades Quilombolas, que passou a ter identidade jurídica em 2006, com o nome de Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS). Atualmente esta entidade congrega todas as associações quilombolas municipais e possui uma sede no centro da cidade, com reuniões ordinárias às segundas-feiras, no turno da manhã, tendo a participação das lideranças de cada associação. A minha aproximação com as comunidades ocorreu em julho de 2005, quando da visita do ativista negro e pesquisador Assunção José Amaral Pureza, hoje professor vinculado à UFPA (Campus de Castanhal), que à época desenvolvia os seus estudos de doutorado na comunidade de Bom Jardim. Posteriormente, coloquei-me à disposição para contribuir com a organização que assessorava o movimento, o Sara (Serviço AfroAmazônida de Solidariedade), coordenado pelo frei franciscano Alex Assunção e a vereadora na época, Odete Costa. Embora esta organização tenha sido extinta em janeiro do ano seguinte, devido à criação da FOQS (Federação das Organizações Quilombolas de Santarém), o meu apoio junto ao movimento quilombola se manteve. Em maio de 2006, foi criada a Coordenação de Educação e Diversidade Étnico-Racial, no âmbito da Semed que, diferentemente de outros contextos, já surgiu com a competência de acompanhar e construir uma educação quilombola (termo usual na Página 4 época), além da implementação do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no currículo da rede municipal de ensino. Esta coordenação partiu da reivindicação do movimento quilombola local e de demandas do movimento negro urbano, que discutia a necessidade de implementar os Artigos 26-A e 79-B, da LDB 9394/96. No mesmo período houve também a criação das coordenações de Educação Escolar Indígena e Educação Ambiental, todas ligadas diretamente à Direção de Ensino 4. Com a criação do setor, as reuniões entre a Semed e as lideranças quilombolas passaram a ser frequentes, sendo uma reunião mensal, em média. O primeiro procedimento foi realizar o levantamento sobre a situação escolar das comunidades (infraestrutura, recursos humanos, etc) e a inserção dos dados no censo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o que serviu para organizar o planejamento das ações futuras. Naquele período, o formulário do INEP apenas questionava se a escola estava localizada “em áreas de remanescentes de quilombos” e não havia documentos que orientassem a inserção específica dessas escolas, o que repercutia na tomada de decisões locais. Diferentemente do contexto da educação escolar indígena que, além da pergunta no formulário do censo, oferecia orientações que subsidiavam a inserção dos dados. A falta de orientações específicas do MEC (Ministério da Educação) dificultava a inserção das escolas como quilombolas no Censo do INEP. Como exemplo, cito a Escola Pérola do Maicá, localizada na comunidade de mesmo nome. Em 2007, embora a associação quilombola local tivesse solicitado sua inserção no censo, a maioria dos moradores na época não aceitava tal decisão. Após várias reuniões com a comunidade, com o objetivo de dialogar sobre as consequências da inserção escolar como quilombola no Censo, a coordenação formalizou o questionamento ao MEC. Sem a resposta do órgão federal competente e diante de uma maioria que não aceitava a inserção, a secretaria decidiu inseri-la como escola comum e promover cursos de formação continuada para a implementação de uma educação antirracista e de implementação dos Artigos 26-A e 79-B da LDB 9394/ 96, além de dar continuidade aos diálogos com a 4 A coordenação foi criada na gestão municipal da prefeita Maria do Carmo Martins, do Partido dos Trabalhadores (PT) (2005-2012), tendo como secretária de educação, Raimunda Lucineide Gonçalves Pinheiro. Iniciou com uma integrante e ampliou-se gradativamente, finalizando o governo em 2012 com cinco integrantes no setor. Página 5 comunidade. No ano de 2012 a solicitação foi novamente encaminhada à secretaria que manteve o encaminhamento anterior. Outro desafio regional é a realidade geográfica que exige estratégias que dêem conta das demandas educacionais. Um exemplo disso é a dinâmica da área de várzea com a cheia e a vazante do rio, exigindo um calendário próprio para as comunidades da região da várzea que não coincide com o período do Censo, o que provoca defasagem entre o dado real e o dado inserido anualmente. Isto implica nos investimentos realizados pelo poder público municipal, pois o Censo também serve de referência para o repasse de recursos do governo federal. O diálogo permanente com as lideranças possibilitou o reconhecimento da realidade educacional em suas comunidades e a superação de alguns dos desafios apresentados. Com base nas discussões, as demandas educacionais eram levantadas, sendo atualizadas constantemente para que o atendimento fosse o mais ágil possível, visando à melhoria da qualidade educacional. No início do ano de 2007, a coordenação realizou um minicenso educacional em quatro comunidades quilombolas. O critério de escolha das comunidades baseou-se em reclamações apresentadas pelas lideranças e professores (as). Para a coleta dos dados, utilizamos como instrumento de pesquisa um questionário com 30 perguntas, que foi adaptado do minicenso realizado no município de Fortaleza, estado do Ceará (SOUZA, 2005). Este questionário foi aplicado em todas as residências, com a finalidade de identificar o nível de escolarização dos (as) moradores (as). As recenseadoras foram as acadêmicas do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Pará (UFPA, Campus de Santarém), servidoras da Semed, além de professores (as), agentes de saúde e lideranças das comunidades, que passaram por formações com temáticas relacionadas à realidade das comunidades e à aplicação do questionário. Com a realização do minicenso educacional, também denominado de diagnóstico educacional (MELO, 2009), constatamos baixa escolaridade, atendimento escolar em outras comunidades não-quilombolas, dificultando o acesso à escola, bem como a realidade da evasão escolar como consequência de racismo, implicando na diminuição do número de alunos/as na própria comunidade, dentre outras problemáticas anteriormente denunciadas pelas lideranças. Com base nos resultados, as ações Página 6 posteriores tiveram como objetivos a ampliação da oferta educacional, a melhoria da infraestrutura das escolas, o aumento de professores (as) oriundos (as) das próprias comunidades. Gostaria de destacar que o estado do Paraná, ao realizar o diagnóstico educacional das comunidades quilombolas do estado, também observou dificuldades parecidas com as que foram apresentadas no município de Santarém (PARANÁ, 2010). No contexto administrativo o número de escolas-pólos quilombolas foi duplicado para que houvesse agilidade no processo de gestão5. No caso da Amazônia brasileira com suas extensões territoriais e a dificuldade de acesso a algumas comunidades, a nucleação se constitui como uma possibilidade administrativa que permite o acesso ao sistema educacional. No que diz respeito às escolas quilombolas, decidimos que deveriam ser reorganizadas, criando pólos quilombolas para que a escola pudesse contribuir no fortalecimento dos laços com a comunidade. Embora fôssemos conhecedores das críticas em relação ao sistema de nucleação, percebemos que a avaliação das comunidades foi positiva, pois no modelo realizado houve uma maior presença da Semed e maior visibilidade destas escolas para a secretaria. Em cada escola, seja ela anexa ou pólo, criou-se um pequeno acervo bibliográfico, com o objetivo de subsidiar o trabalho pedagógico do (a) professor (a). A formação deste acervo era uma preocupação da Coordenação de Educação e Diversidade Étnico-Racial que ainda se constitui como um importante desafio, pois os temas e títulos são insuficientes e não há recorte étnico-racial no acervo dos projetos de incentivo à leitura que a secretaria desenvolve, com exceção do acervo da Biblioteca Vagalume 6, na Escola Municipal Afro-Amazônida (Comunidade Quilombola de Murumuru). No ano de 2009 foi criado no âmbito da Semed, por meio de portaria, o Grupo de Trabalho Permanente (GT) para a aplicação da Lei 10.639/03 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de 5 Esta organização administrativa é denominada de nucleação, sendo muito comum em áreas rurais. A escola considerada pólo possui uma equipe técnico-administrativa e agrega outras escolas denominadas anexas. Há críticas em relação a este modelo, das quais estávamos cientes. 6 A escola foi contemplada com acervo da Expedição Vagalume, uma associação sem fins lucrativos, fundada em 2001, que desenvolve projetos de educação, cultura e meio ambiente em 23 municípios da Amazônia Legal brasileira, inclusive em São Paulo, município onde está sediada. Disponível em: http://www.expedicaovagalume.org.br/. Acesso em: 15 maio 2013. Página 7 História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Embora não seja especificamente voltado para a educação escolar quilombola, o GT se configurou como um espaço de diálogo entre os outros setores da secretaria, inclusive com as Assessorias de Rios e a Assessoria de Planaltos, que também atendiam as comunidades quilombolas. Marcos normativos Com o objetivo de assegurar que a criação da Coordenação e suas responsabilidades significassem uma ação de Estado, à época, houve uma articulação para que construíssemos marcos normativos que dessem visibilidade e garantia para a construção de uma educação escolar quilombola em âmbito municipal. Neste sentido, foi aprovada a Lei Municipal nº. 18.051/ 06, Cap. 6, Art. 897, que garante a permanência do setor no âmbito da secretaria, além de um currículo específico e diferenciado para a educação escolar quilombola. Esta aprovação foi fruto da participação política do setor e de lideranças quilombolas na plenária de construção participativa do Plano Diretor Municipal. Na reformulação do Regimento Escolar Unificado da secretaria conseguimos assegurar algumas especificidades para as escolas quilombolas, como a participação de representantes das associações quilombolas nos conselhos escolares. Houve também a aprovação da Resolução nº 07/2009 do Conselho Municipal de Educação (CME), que apresenta diretrizes para o funcionamento das escolas quilombolas e dá outras providências, como priorizar os (as) professores (as) oriundos (as) das comunidades na lotação das escolas quilombolas e estas, quando necessário, devem ser anexas somente a pólos quilombolas, ressalvados os casos excepcionais. Este documento também foi importante para a inserção e a permanência de professores/as oriundos/as das comunidades, além de garantir em seu Artigo 5º: a participação da comunidade na definição do modelo de organização e gestão, projeto político pedagógico, currículo, bem como: suas estruturas sociais; suas práticas sócioculturais e religiosas; suas formas de produção de conhecimento, processos educativos próprios; suas atividades econômicas; o 7Plano Diretor Municipal. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/groups/22957126/255387793/name/pd. Acesso em: 03 maio 2013. Página 8 uso de materiais didático-pedagógicos produzidos de acordo com o contexto sóciocultural de cada comunidade (Resolução nº 07/2009). Formação continuada A formação continuada específica foi desenvolvida inicialmente pela Seduc, por meio da Copir (Coordenação de Promoção de Igualdade Racial), em 2005. Com a criação da coordenação no município no ano seguinte, a formação passou a ser semestral e o público era constituído de todos (as) os (as) trabalhadores (as) das escolas quilombolas, além de lideranças e representantes dos seus conselhos escolares. Essa formação continuada específica desenvolvia temáticas voltadas às relações étnico-raciais, o que não excluía a participação dos/as trabalhadores/as nas formações gerais da secretaria. O primeiro curso desenvolvido pela Semed foi realizado com o apoio financeiro da Secretaria de Formação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/ MEC)8, em 2006. Há alguns anos as secretarias de educação foram impedidas de submeter projetos de formação continuada nas chamadas específicas de formação de professores que trabalham em áreas quilombolas, ficando os editais limitados à participação de organizações não-governamentais (ONG's) e universidades. Esta limitação foi um prejuízo para a política de formação das secretarias de educação e, inclusive, podemos inferir que implicou na criação e ampliação de coordenações específicas que tratassem da temática étnico-racial nas secretarias de educação. Participar de editais foi um incentivo para que as secretarias pudessem desenvolver ações de formação continuada para as áreas quilombolas, o que muitas vezes, possibilitava tanto ao movimento negro, quanto às secretarias, de criar setores específicos para tratar da temática racial. Embora haja investimento na formação continuada dos trabalhadores das escolas quilombolas desde o ano de 2005, como citado anteriormente, a pesquisa realizada por Valentim (2008) em uma escola quilombola do município, aponta que a mesma ainda é indiferente aos saberes produzidos pela comunidade. Ainda recentemente, ouvi de gestores (as) e professores (as) dessas áreas que os (as) estudantes resistem à discussão sobre a história das comunidades e outros temas afins. Por outro lado, também há falas 8 Atualmente Secadi (Secretaria de Formação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão). Disponível em: Acesso em:http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=290&Itemid=816. Acesso em: 1 ago. 2013. Página 9 de que a partir do desenvolvimento do trabalho com as temáticas sobre relações raciais na escola, houve mudança de comportamento nos (as) estudantes, no sentido de valorização de si e de sua comunidade. Portanto, é importante investir em pesquisa e no fortalecimento das ações de formação continuada, além de criar um plano de avaliação e monitoramento dessas ações. Projeto Político-Pedagógico No ano de 2009, foi realizado um encontro com o objetivo de dar suporte teórico e técnico para que as escolas quilombolas do município formulassem o projeto políticopedagógico (PPP), guardadas as especificidades de cada comunidade e escola. A ideia era de que o documento final servisse de texto-base a ser apreciado pelo CME. O encontro teve a duração de dois dias e contou com a participação efetiva de lideranças, corpo técnico-administrativo, servidores (as), representantes dos (as) estudantes, conselheiros (as) escolares, pais e comunidade em geral. Embora haja semelhanças entre as comunidades quilombolas, sabe-se que elas são heterogêneas. No município, as particularidades ocorrem também por estarem em regiões geográficas diferentes, como o planalto e a várzea. Dentre outras diferenças, há o acesso à escola, realizado por meio de transporte terrestre ou fluvial, respectivamente, e o ano letivo que, enquanto no planalto se desenvolve no mesmo período que as escolas urbanas, na área de várzea ele se desenvolve nos meses de julho a abril, em decorrência da cheia dos rios Amazonas e Tapajós. Vasconcelos (1999, p. 169) afirma que o PPP “é um instrumento teórico-metodológico para a intervenção e mudança da realidade. É um elemento de organização e integração da atividade prática da instituição neste processo de transformação”. E, segundo Passos (2002): É [...] um projeto político por estar intimamente articulado ao compromisso sociopolítico como os interesses reais e coletivos. […] Pedagógico, no sentido de definir ações educativas e as características necessárias às escolas de cumprirem seus propósitos e sua intencionalidade. (p1) Neste sentido, é o documento em que estão descritas as diretrizes e estratégias que orientam a prática político-pedagógica da escola, sendo a expressão de sua autonomia. Página 10 Portanto, é um planejamento que prevê ações a curto, médio e longo prazo, incluindo a reorganização curricular, a avaliação e até as relações que se estabelecem dentro e fora dos “muros” da escola. Em se tratando de uma educação escolar quilombola, este instrumento torna-se muito importante para a construção e o fortalecimento da identidade política das comunidades. A participação da comunidade possibilitou a reflexão sobre a realidade a sua volta, bem como a compreensão de expectativas que a comunidade tinha em torno da escola. O encontro foi desenvolvido durante três dias, por meio de plenárias, descritas a seguir. A primeira ocorreu na Comunidade Quilombola de Murumuru e contou com a participação das quatro comunidades da região do planalto. A segunda ocorreu na Comunidade Quilombola de Saracura, envolvendo as seis comunidades da região da várzea. E a terceira ocorreu na Comunidade Quilombola de Bom Jardim (região do planalto) envolvendo representantes das nove comunidades quilombolas, com exceção da Comunidade Pérola do Maicá (urbana), por estar inserida sob a gestão da Assessoria urbana da secretaria e esta última não possuir na época ações articuladas com a Coordenação de educação e Diversidade Étnico-Racial. Nas duas primeiras plenárias a programação consistiu em plenárias e painéis com as seguintes temáticas: “Projeto político-Pedagógico e Currículo”, “A lei 10.639/2003” e “educação do Campo e educação Quilombola”. Posteriormente foram formados os grupos que, por meio de um (a) mediador (a)9, discutiram as seguintes questões: qual a escola que temos e a que queremos; qual a gestão que temos e a que queremos; qual o(a) professor (a) que temos e qual o(a) professor (a) que queremos; o que aprendemos e o que queremos aprender; como aprendemos e como queremos aprender; como é a participação da comunidade e como deve ser a participação da comunidade no interior da escola quilombola; que tipo de avaliação temos e que tio de avaliação queremos; que tipo de alimentação escolar temos e que tipo de alimentação escolar queremos. A terceira plenária contou com a participação dos membros da comunidade que sediou o encontro, além de representantes das plenárias anteriores. Iniciou com a temática “A 9 Assessores (as) convidados (as) do movimento social negro, do movimento pela educação do campo e professores (as) com experiências nas temáticas apresentadas. Este trabalho teve o apoio da Seduc, por meio da Copir. Página 11 Presença Negra no Pará” e posteriormente houve a divisão em grupos para a análise e apresentação das propostas construídas ao longo dos dois primeiros dias. Embora não fosse esse o objetivo, o processo contribuiu para a para aprovação da Resolução nº 07/2009 (CME), apresentada anteriormente. Logo, o encontro de construção participativa do PPP das escolas quilombolas serviu tanto para avaliar a educação oferecida nas comunidades, quanto para definir as diretrizes e metas a serem alcançadas. Desafios da gestão Uma das dificuldades encontradas foi o acesso ao financiamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para a construção de escolas quilombolas, principalmente na área de várzea. Nesta realidade há uma necessidade de escola de madeira, que o FNDE não financia. Além disso, a Portaria Interministerial MP/MF/MCT nº 127/2008 embora tenha retirado a exigência da titulação do território para as comunidades quilombolas terem acesso ao recurso, as diligências apresentadas pelo órgão até o primeiro semestre do ano de 2010 ainda exigia tal documento. Há uma exigência de que a escola não seja construída próxima à mata, ao ramal (estrada) e ao rio, o que inviabiliza ainda mais o acesso ao recurso para a região Amazônica, pois as comunidades quilombolas encontram-se nesse contexto. Portanto, tais dificuldades não têm sido sanadas no âmbito das atuais diretrizes da política educacional federal. Quanto à política municipal, aponto abaixo alguns dos desafios no sentido de contribuir com a construção e a consolidação de uma educação escolar quilombola: - necessidade de elaboração da matriz curricular específica, garantida na Lei Municipal nº 18.051/2006, Cap. 6, Art. 89 (apresentada anteriormente); - fortalecer as ações de formação continuada e a aquisição de acervo bibliográfico com recorte étnico-racial, principalmente nos projetos de incentivo à leitura que a Semed já desenvolve; - criar um plano de avaliação e monitoramento das ações, principalmente no que diz respeito à formação continuada e à prática pedagógica desenvolvida no cotidiano das escolas quilombolas; - adquirir e elaborar materiais didático-pedagógicos específicos; Página 12 - construir um plano que garanta o acesso e a permanência de profissionais a educação oriundos/as das comunidades quilombolas; - regularizar as escolas quilombolas do município com base na Resolução nº 07/2009 (CME); - reformular o projeto político-pedagógico das escolas quilombolas, dando continuidade ao processo de discussão; - necessidade de maior articulação entre a Coordenação e os demais setores da secretaria, pois, em geral, os setores criados para a implementação de uma política de promoção da diversidade étnico-racial ficam isolados, como se esta fosse uma temática particularizada. 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